OUTROS TEXTOS DE INTERESSE

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Edição 174, janeiro 2022

John Naughton

AS MÁQUINAS INTELIGENTES QUE JÁ NOS DIRIGEM

Em suas mais apocalípticas previsões, pioneiros da inteligência artificial davam como certo que algumas de suas criações acabariam superando os humanos. Este futuro chegou e elas controlam Estados, sociedades e nossas vidas. Mas quem são? O texto é de John Naughton, jornalista e autor irlandês, pesquisador sénior do Centro de Pesquisa em Artes, Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Cambridge, publicado por The Guardian e reproduzido por OutrasPalavras. A tradução é de Maurício Ayer /IHU

Na primeira de suas quatro (impressionantes) palestras Reith (realizadas pela rede britânica BBC) sobre a vida com inteligência artificial, o professor Stuart Russell, da Universidade da Califórnia em Berkeley, iniciou com um trecho de um artigo que Alan Turing escreveu em 1950. Com o título Computing Machinery and Intelligence [Máquinas de computação e inteligência], ali Turing apresentou muitas das ideias centrais do que veio a se tornar a disciplina acadêmica da inteligência artificial (IA), inclusive sobre a vedeta de nosso tempo, o chamado aprendizado de máquina.

Desse texto impressionante, Russell sacou uma citação dramática: “Uma vez que se ponha em marcha o método do pensamento de máquina, não demoraria muito para que ultrapassasse nossas débeis capacidades. Em algum estágio, portanto, deveríamos esperar que as máquinas tomariam o controle”. Este pensamento foi articulado mais vigorosamente por IJ Good, um dos colegas de Turing em Bletchley Park: “A primeira máquina ultra-inteligente será a última invenção que o homem precisará fazer, desde que a máquina seja dócil o suficiente para nos dizer como mantê-la sob controle.”

Russell foi uma escolha inspirada para as palestras sobre IA, pois além de ser um pesquisador de ponta na área (coautor, com Peter Norvig, de um livro texto canônico, Artificial Intelligence: A Modern Approach, por exemplo) também é alguém que acredita que a atual abordagem para a construção de máquinas inteligentes é profundamente perigosa. Isso porque ele enxerga que o conceito de inteligência predominante no campo – a expectativa de que ações previstas atinjam objetivos dados – é fatalmente falho.

Pesquisadores de IA constroem máquinas, definem objetivos específicos para elas e as julgam como mais ou menos inteligentes a depender de seu sucesso em atingir esses objetivos. No laboratório, isso provavelmente funciona. Mas, diz Russell, “quando começamos a sair do laboratório e entrar no mundo real, descobrimos que somos incapazes de especificar estes objetivos de maneira completa e correta. De facto, definir os outros objetivos dos carros que dirigem sozinhos, tais como equilibrar velocidade, segurança dos passageiros e pedestres, legalidade, conforto, cortesia, acabou se tornando extraordinariamente difícil”.

Dizendo de um modo delicado, nada disso parece incomodar as gigantescas corporações de tecnologia que estão impulsionando o desenvolvimento de máquinas cada vez mais capazes, sem remorsos e com um único pensamento e promovendo sua omnipresente instalação em pontos críticos da sociedade humana.

Este é o pesadelo distópico que Russell teme se sua disciplina continuar em seu caminho atual e conseguir criar máquinas super-inteligentes. É o cenário implícito no “apocalipse do clipe de papel” do filósofo Nick Bostrom, que é uma experiência pensada e divertidamente simulada no jogo de computador Universal Paperclips. Naturalmente, essa preocupação também é ridicularizada como pouco plausível e muito alarmista tanto pela indústria tecnológica quanto pelos pesquisadores de inteligência artificial. Um especialista na área fez uma tirada que ficou famosa, em que ele diz que se preocupa tanto com as máquinas super-inteligentes quanto com a superpopulação em Marte.

Mas para quem pensa que viver em um mundo dominado por máquinas superinteligentes é uma perspectiva que não vai chegar a ver “em seu tempo de vida”, eis um pensamento salutar: já vivemos em um mundo assim! As IAs em questão são chamadas de corporações. Elas são definitivamente super-inteligentes, na medida em que o QI coletivo dos humanos que elas empregam reduz o das pessoas comuns e, de fato, com frequência também o dos governos. Elas têm imensa riqueza e recursos. Sua expectativa de vida é muito superior à dos meros humanos. E elas existem para atingir um objetivo que supera qualquer outro: aumentar e, com isso, maximizar o valor dos acionistas. Para conseguir isso, eles farão incessantemente o que for preciso, independentemente de considerações éticas e danos colaterais à sociedade, à democracia ou ao planeta.

Uma dessas máquinas super-inteligentes se chama Facebook. E para ilustrar este último ponto, eis aqui uma declaração inequívoca de seu objetivo primordial escrita por um de seus mais altos executivos, Andrew Bosworth, em 18 de junho de 2016: “Nós conectamos as pessoas. Ponto final. É por isso que todo o trabalho que fazemos visando o crescimento é justificado. Todas as práticas questionáveis de importação de contatos. Toda a linguagem subtil que ajuda as pessoas a permanecerem pesquisáveis pelos amigos. Todo o trabalho que temos que fazer para trazer mais comunicação. O trabalho que provavelmente teremos que fazer na China algum dia. Todo ele”.

Como dizia a famosa observação de William Gibson, o futuro já está aqui – apenas não está distribuído de maneira equitativa.

Angelo Tartaglia

ECOLOGIA. O QUE DIZ A CIÊNCIA

"Uma vez que os pressupostos das relações entre os seres humanos mudaram, somente depois de ter aceitado a fraternidade universal não apenas em sentido retórico, pode-se pensar em abordar pragmaticamente as emergências globais atuais ou futuras. Se os alicerces forem corretos e nos colocarmos humildemente diante do jardim que nos foi confiado, a ciência pode nos ajudar", escreve Angelo Tartaglia, que foi professor de Física na Faculdade de Engenharia da Politécnica de Torino e é membro do Instituto Nacional de Astrofísica, em artigo publicado por Archivio Teologico Torinese, Nº 2, de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Premissa

A relação entre humanidade e natureza sempre foi central na história de nossa espécie e esteve sempre entrelaçada ao tema do divino. Em tempos mais remotos ou no que resta hoje de populações "primitivas", a própria natureza é divinizada: eventos naturais anômalos são lidos como castigos infligidos por divindades iradas que será preciso tentar apaziguar com ritos apropriados. Na tradição bíblica e depois cristã, a natureza coincide com a criação, e é o próprio Criador quem envia os flagelos naturais para admoestar os seres humanos e punir seus pecados. Para acabar com esses eventos extremos, como são chamados hoje, era necessário se arrepender e fazer reparações.

A forma tinha mudado, mas em última análise a orientação era a mesma da antiguidade e de outras culturas: a causa dos vários desastres naturais é sim o ser humano, mas como pecador, não pela forma como ele cultiva o solo, usa as águas ou produz as mercadorias que depois comercializa. Em suma, a responsabilidade é moral, não material. A situação começou a mudar com o início da "revolução científica" no Ocidente. No entanto, convém sublinhar que mesmo a nova forma de ver os fenômenos da natureza foi acompanhada por uma dimensão que poderíamos definir “ideológica”

De fato, as estruturas sociais desde sempre foram “justificadas” por meio de uma narrativa que afirmava sua legitimidade a posteriori, geralmente revestida de uma aura de sacralidade. Com o declínio e depois a queda (em 1700) do Ancien Régime, surge uma nova ordenação social que se apresenta como artífice e expressão do "progresso": na narração dessa nova ordem, a ciência moderna assume um papel relevante. E a natureza? De ente divina, é transformada em objeto de (legítimo) domínio.

No plano religioso, o fundamento é buscado diretamente na Bíblia, Gênesis 1,28: “[...] e Deus lhes disse [...] Frutificai e multiplicai-vos; e enchei a terra, sujeitai-a, e dominai sobre os peixes do mar e as aves dos céus e sobre todo o animal que se move sobre a terra”. Do lado secular, a "natureza" é tratada como um depósito (infinito) de "recursos naturais" que o ser humano, graças à ciência (e à técnica), explora para convertê-los em "riqueza", isto é, progresso.

As novas hierarquias sociais são definidas a partir da riqueza produzida pela manipulação dos recursos naturais destinados ao comércio, bem como (hoje cada vez mais) ao jogo financeiro. Em suma, a ideia é, em todo caso, que o ser humano é senhor e dono da natureza; não existem limites "naturais" para sua vontade. Do ponto de vista social, a nova ideologia converte, como acontecia no passado, uma situação de fato em uma situação de direito, aliás, de princípio. O egoísmo individual, de conotação enraizada empiricamente no ser humano, transforma-se em princípio fundador e motor do progresso.

As convenções que, com base no "egoísmo sagrado" presidem às trocas de bens e serviços pretendem elevar-se a leis da natureza, bem mais robustas que aquelas que a ciência vai descobrindo, assumindo também que esta última, num sentido mágico, permitirá ultrapassar qualquer vínculo material. Não tendo tudo isso bases racionais particularmente sólidos, remedia-se apresentando este esquema como "óbvio" e "indiscutível". A economia de mercado baseada no exercício do egoísmo individual é praticamente sacralizada, suas convenções compartilhadas ou forçadas têm valor de dogmas e de fato o Mercado é divinizado, a ponto de afirmar que sua "mão invisível" proverá a resolver os problemas sociais e as injustiças, bem como os conflitos com o meio ambiente.

Com o peso crescente do mundo das finanças estamos inclusive perante “os Mercados”, que ecoam os Eloim bíblicos, levando o exercício do egoísmo individual a uma dimensão transcendente (o que “os Mercados” valorizam transcende justamente a dimensão material). Tudo isso vale para o lado anti ou simplesmente a-religioso, mas, como já aconteceu em séculos anteriores, também o Cristianismo histórico, dentro da nova ordem social, segue por caminhos paralelos especialmente no que diz respeito àqueles que derivam dessa ordem as maiores vantagens: o cristão que decide se dedicar a atividades empresariais o faz aplicando as regras da economia (esta economia) com o objetivo de enriquecer (é o egoísmo que impulsiona o progresso); uma vez rico, no entanto, ele terá que destinar a riqueza assim acumulada para o bem, com obras de caridade e esmolas.

Não é o caminho de São Francisco, mas provavelmente é o de Pietro di Bernardone, seu pai. Considerei útil começar com essas poucas reflexões gerais, uma vez que a crise atual decorrente do conflito humanidade/natureza se desenvolve contra esse pano de fundo e não pode ser enfrentada sem também reconsiderar as relações internas às sociedades humanas.

Natureza e complexidade

A ciência moderna procurou reconsiderar a maneira como olhamos ao nosso redor e interpretamos os fenômenos naturais. No início, os campos de reflexão foram, por um lado, em grande escala (os corpos celestes e suas dinâmicas), pelo outro, em escala elementar ao nosso redor: as leis do movimento e a relativa dinâmica. A abordagem foi por muito tempo a de isolar um fenômeno particular, observá-lo e tentar interpretar racionalmente o que acontece a fim de derivar alguma lei válida até prova contrária, isto é, até que um novo fenômeno a desminta, implicando em seu abandono ou na transformação em uma forma mais evoluída. O campo de observação se expandiu e se estendeu, dando vida àquelas que hoje são ciências clássicas, como a química, a biologia e muitas outras.

Prosseguindo, a ciência percebeu que, ao lidar com sistemas compostos por um grande número de componentes, a simples aplicação das leis que regem o comportamento das partes separadamente não é suficiente para explicar e descrever o comportamento do todo. Em suma, podemos dizer que sistemas formados por muitas partes em interação são algo mais do que sistemas complicados, no sentido coloquial do termo: hoje os chamamos de sistemas complexos e aos poucos foi se desenvolvendo um ramo científico especializado que os estuda.

Além da termodinâmica, as novas disciplinas, principalmente a partir da década de 1970, são representadas por teorias de nomes sugestivos, como "teoria do caos determinista" ou "teoria das catástrofes". O maior problema é que esses sistemas complexos, em seu comportamento, não se conformam à nossa intuição comum, que, em vez disso, tende a considerar implicitamente apenas a lógica de causa/efeito imediata e local. Nossa intuição elementar nos sugere que se, por exemplo, houver uma cadeira à nossa frente e aplicarmos sobre ela uma força adequada (por exemplo, um empurrão), ela cai; o resto do universo circundante permanece, impassível, apenas olhando. Mas vamos imaginar que estamos no palco de um teatro e que a cadeira esteja amarrada por uma miríade de fios (quase invisíveis) a tudo que está no palco: quando empurramos a cadeira talvez ela não caia, mas em compensação algo se move atrás de nós, no fundo ou na mesinha lateral ou tudo isso junto; talvez a cortina caia de repente.

Se colocarmos tudo isso em termos éticos, em um sistema complexo a nossa responsabilidade não se estende apenas às consequências imediatas, diretas e locais das nossas ações, mas também àquelas induzidas e remotas. Este é precisamente o cerne da questão: a natureza é um sistema complexo do qual nós fazemos parte. Este sistema praticamente não troca matéria com o exterior, mas não é isolado: a radiação solar chega até ele e o permeia e ele reemite para o espaço externo a energia que recebe. O que é relevante, entretanto, é que se trata de um sistema complexo composto por um número muito grande de componentes que interagem entre si e que nada, dentro dele, é realmente irrelevante; muito menos os comportamentos humanos.

Podemos acrescentar que este "sistema complexo" não é estático, mas dinâmico: ele evolui ao longo do tempo e pode ser imaginado como um conjunto de quase equilíbrios dinâmicos locais que se sustentam ou se perturbam ao longo do tempo. Uma imagem super simplificada pode ser aquela de um ciclista que mantém o equilíbrio enquanto pedala, mesmo que sua posição mude continuamente, embora dentro de certos limites. A configuração geral do sistema depende de uma série de parâmetros físicos e a interação contínua dos subconjuntos entre eles governa sua evolução. Em condições que poderíamos definir como “normais”, modificar localmente o valor desse ou daquele parâmetro produz efeitos que são também locais e aproximadamente proporcionais à extensão da mudança introduzida; não que não haja repercussões remotas e diferidas, mas são efeitos fracos que não despertam preocupações especiais.

O problema, nos sistemas complexos, no entanto, é que existem particulares configurações "críticas", ou seja, conjuntos particulares de valores dos parâmetros aos quais podemos nos aproximar lentamente, mas que, quando alcançados, podem dar origem a consequências absolutamente fora de escala em relação às nossas expectativas: mesmo uma perturbação muito modesta produz o que se chama de colapso. Esse conjunto de quase equilíbrios dinâmicos que formam o sistema global torna-se cada vez mais instável até que, tendo atingido o ponto crítico, todo o sistema "de repente" (isto é, em um tempo muito curto) se reorganiza em uma nova configuração de equilíbrio estável que pode ser muito diferente da anterior.

Mais do que as palavras (e nos mantendo a devida distância das fórmulas), alguns exemplos podem nos ajudar a entender o mecanismo. Vamos pensar em uma encosta de montanha. Está nevando e a neve se deposita gradualmente. Se tentarmos caminhar sobre ela, as nossas botas deixam pegadas e produzem pequenos movimentos locais na superfície. Se continuar nevando, o manto branco engrossa aos poucos e as pegadas que deixamos tornam-se mais profundas, mas no longo prazo, em relação à natureza da encosta, a carga geral de neve se aproxima de uma condição crítica: naquele ponto, até mesmo uma perturbação muito modesta, como a passagem de um montanhista ou talvez de uma cabra-montanhesa ou outro animal, desencadeia um processo muito rápido que faz com que toda a neve acumulada até aquele momento se precipite ruinosamente vale abaixo. É a avalanche, um colapso típico.

Outro exemplo é o desgaste progressivo de estruturas expostas a carga, como pontes ou viadutos (ou construções em geral). Também nesse caso, os noticiários nos fornecem exemplos dramáticos: o desabamento da ponte Morandi ou do viaduto de Albiano Magra. O desgaste das estruturas vai ocorrendo progressivamente por um tempo mais curto ou mais longo, mas depois o colapso é repentino. Entre os sistemas complexos com os quais estamos lidando está o que chamamos de clima: é o conjunto de todos os fenômenos ligados à circulação da atmosfera e das águas, bem como das relativas mudanças de estado da água (evaporação-condensação-solidificação com seu regime de precipitações).

Os fatores que contribuem para determinar a configuração climática global são numerosos e envolvem a composição da atmosfera, a conformação dos continentes e dos relevos, a natureza dos solos, a cobertura vegetal, a salinidade das águas oceânicas e muito mais. Ora, a ciência percebeu que nós (a humanidade) estamos mudando alguns desses fatores de forma cada vez mais acentuada, em particular a composição da atmosfera e a natureza dos solos das terras emersas. O mais conhecido entre os efeitos induzidos pela atividade humana é o chamado efeito estufa (conhecido desde o século XIX): através de processos de combustão e somando a redução do conteúdo orgânico dos solos e a destruição de muitas florestas estamos aumentando a quantidade de gases que alteram o clima (primeiro entre eles, o dióxido de carbono ou CO2), que tornam a baixa atmosfera mais opaca à radiação térmica que o solo emite para o exterior.

Em termos concretos, a temperatura média da superfície do planeta tende a aumentar, e a temperatura média do planeta tem uma influência muito marcante no arranjo climático: onde chove, quanto chove, como chove (ou cai neve ou granizo). O clima sempre mudou ao longo do tempo, mas o ponto-chave é a velocidade das mudanças. Nesse sentido, a ciência nos diz que estamos nos aproximando de um ponto crítico, como aqueles mencionados acima, e se chegarmos lá iremos de encontro a um ajuste repentino do clima, tão rápido que não nos permitirá uma readaptação sem consequências muito pesadas para grande parte da humanidade. Se quisermos evitar o colapso, devemos parar de introduzir maiores quantidades de gases que alteram o clima na atmosfera; traduzido: devemos parar de queimar combustíveis fósseis, derrubar florestas, esgotar os solos agrícolas de seu conteúdo orgânico, cobri-los com um manto impermeável (concreto e asfalto). Só isso.

O problema é que nossa forma atual de interferir nos processos naturais se tornou um componente estrutural da nossa sociedade e de nossa economia. Mudá-lo não é um fato puramente técnico, mas implica uma redefinição não banal das relações de dar e ter que existem entre nós, bem como da escala de valores sobre a qual orientamos a nossa vida. Não é de forma alguma algo simples e pequeno e, em vez de tentar, muitas vezes prefere-se o refúgio no negacionismo.

Vimos isso na história recente, e ainda presente, do COVID; nós o vimos se opor à abordagem científica a respeito da mudança climática; algum tempo atrás, lutamos contra os malefícios do fumo e assim por diante. Para além das irracionalidades individuais, quando a necessária reconversão acaba afetando as próprias hierarquias sociais baseadas substancialmente na riqueza, muitos dos que se beneficiam no momento das maiores vantagens se revoltam cegamente contra hipóteses de mudança do status quo, utilizando também os recursos abundantes de que dispõem para sustentar os negacionismos mais sutis com financiamentos (que do ponto de vista deles são "investimentos") e garantindo um acesso privilegiado aos principais canais de comunicação: isso já foi visto no passado no caso exemplar do fumo. foi visto em relação à questão climática.

Uma variante do "mudar tudo desde que nada mude" é a que mencionei no parágrafo anterior: a "magia" científica. Os “cientistas” de chapéu pontudo e varinha nas mãos vão resolver tudo: é preciso ter “fé” na ciência e, entretanto, não mudar nada nas estruturas da economia. A ciência (verdadeira) fez sua parte e a está fazendo. A novidade é que hoje, quando algo acontece no meio ambiente, conseguimos saber em boa medida porque acontece e qual é sua origem. A partir daí devemos, todos e cada um, assumir as nossas responsabilidades: “O Senhor Deus tomou o homem e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar” [Gen 2,15].

Ciência e economia

A economia é uma disciplina empírica que foi gradualmente se dotando de instrumentos formais bastante refinadas para se mover no meio das estatísticas relativas ao comportamento de grandes grupos humanos em matéria de produção e de troca. Dada a relevância do tema de que trata, tem progressivamente entendido (pelo menos em sua versão dita "clássica") elevar seu status também acima daquele das ciências naturais, promovendo algumas de suas bases empíricas ao posto de princípios fundamentais e de "leis da natureza", primeira entre todas o valor primordial e indiscutível do egoísmo individual. Como já mencionei na premissa, a economia (clássica) é a linguagem formal em que se expressa uma representação ideológica que justifica a estrutura social da humanidade agora globalizada, com suas hierarquias baseadas na riqueza.

Poderíamos comparar a economia (clássica) a uma espécie de "teologia" imprópria: a "teologia" do Mercado, que guia o progresso da humanidade por meio de sua "mão invisível", criando as condições para encarnar seu filho predileto, o Lucro. Na realidade, a economia e suas regras conflitam em vários pontos com as leis físicas e, infelizmente, o desfecho do conflito é óbvio: as leis da natureza não se deixam minimamente afetar. Encontramos uma primeira incompatibilidade na finitude do contexto material: a terra como um todo, e a biosfera em particular, têm um volume e, portanto, um conteúdo seja do que for, que é limitado.

Durante séculos, porém, o mundo material foi considerado como “praticamente” infinito e, portanto, em condições de sustentar outro dos axiomas centrais da doutrina econômica: o crescimento. O crescimento tem uma dimensão sacral inclusive mais marcada do que outros aspectos que mencionei até agora: é global e transversalmente invocado, desejado, exaltado. As objeções ao crescimento geralmente não são consideradas com base no mérito, mas são recebidas com indignação, zombaria e repulsa. Ainda assim, não é necessário uma formação científica particularmente refinada para entender que o crescimento infinito em um ambiente finito é materialmente impossível. Destaco o “materialmente” porque, justamente, a base da economia é material.

Como no caso dos vários negacionismos, também aqui alguns tentam negar a evidência refugiando-se no transcendente: o crescimento infinito da riqueza sem o crescimento das quantidades materiais manipuladas e trocadas. No mundo material, "nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma", como escreveu Lavoisier em 1700, "os Mercados", porém, como os Eloim, podem criar riqueza do nada ou trazê-la de volta ao nada, sem que matéria nem mesmo o perceba.

Então, por que não um crescimento sem crescimento? Enquanto isso, o que continua a crescer é a quantidade de toneladas manipuladas e transportadas e, ao mesmo tempo, a quantidade de quilowatts-hora exigidos para tudo isso. Independentemente dos vínculos impostos pela finitude do contexto, conhecida a bem da verdade, há muito tempo, a análise lógica e científica dos mecanismos de crescimento é capaz de evidenciar outro limite até mais estrito do que o da finitude do contexto. A economia se baseia, no seu funcionamento, nos fluxos de bens, serviços, informações que encarnam materialmente os circuitos comerciais na base das trocas; o crescimento econômico, portanto, implica um crescimento de todos esses fluxos. Pois bem, pode-se facilmente verificar que, em um sistema material em crescimento, a quantidade de recursos necessária para alimentar o crescimento (o "custo" material) aumenta mais rapidamente do que o próprio sistema. Um exemplo simples pode servir para esclarecer esse ponto.

Vamos pensar em um veículo que transporta algo; se queremos encurtar os prazos de entrega, temos que aumentar a velocidade: velocidade dupla, metade do tempo. No entanto, a quantidade de energia necessária para aumentar a velocidade aumenta com o quadrado desta última: velocidade dupla, energia necessária quádrupla. A “vantagem” obtida (a diferença entre o que cresce e o custo material do crescimento) tem, portanto, uma tendência característica: aumenta progressivamente até certo ponto, depois diminui muito rapidamente até se anular. O esquema é bastante semelhante ao já mencionado do colapso nos sistemas complexos.

A economia clássica conhece há tempo essa tendência cíclica (expansão-recessão) dentro de subsistemas específicos, sem, no entanto, compreender sua razão estrutural. A ideia é, em geral, mudar algo no subsistema dado, iniciando rapidamente um novo ciclo: a suposição subjacente é mais uma vez aquela de ter infinitas opções disponíveis para a reativação de novos ciclos. O sistema global, no entanto, com as opções dentro dele, de forma alguma é infinito. Outro aspecto importante do funcionamento da economia global está ligado às desigualdades. A observação desapaixonada do que está acontecendo nos diz que em todo o mundo, mesmo sob regimes diferentes, as desigualdades de renda vem crescendo há muitas décadas. O problema é reconhecido, aparentemente por todos, como algo muito sério e as receitas postas em prática incluem diversos expedientes (curas sintomáticas), cuja eficácia é episódica e não duradoura, exceto pela referência mágica ao remédio universal: o crescimento.

Pela observação do mundo real emerge, inclusive, que o crescimento não diminui, por si só, as desigualdades; muito pelo contrário. Mais uma vez, existem causas estruturais que podem ser rastreadas até um outro axioma da economia clássica: a competição. Competição e competitividade são novamente termos, como crescimento, que têm um valor sagrado: são indiscutíveis. Levantar dúvidas a respeito, mais uma vez, não abre espaço para análises racionais, mas é recebido com indignação, zombaria, repulsa: são dogmas. Porém, um mínimo de matemática mostra que o crescimento competitivo em um ambiente finito, além de não ser, como crescimento, possível, necessariamente produz diferenças crescentes. Sem recorrer, aqui, a fórmulas e algoritmos, basta referir-se ao jogo do Banco Imobiliário, cujas regras são justamente aquelas da competição em um campo de jogo limitado. Começa-se com pequenas diferenças entre os contendores e no final do jogo um tem tudo e os outros nada.

Conclusões

Em suma, o sistema econômico global baseado no egoísmo individual, no crescimento infinito da riqueza, independentemente de como for entendida, e na competição entre os egoísmos como força motriz do progresso é necessariamente insustentável e injusto. A insustentabilidade se manifesta hoje na forma de um conflito crescente e em curso com o sistema climático e de devastadoras desigualdades sociais.

Até agora, ciência e lógica. Para ir além, é necessário fazer referência a questões de sentido e a escalas de valores. Não há espaço para duplas morais: ninguém pode servir a dois senhores [Mateus, 6, 24]. Não podemos nos declarar irmãos e depois exaltar a competição, incutindo-a nas crianças desde o jardim de infância. Não se pode ser um bom guardião de um jardim que se pretende saquear todos os dias impunemente. Para enfrentar as emergências cotidianas e globais, é preciso em primeiro lugar uma profunda mudança de atitude e de mentalidade, que tem as características de uma conversão, não separada daquela exigida pela fé.

Uma vez que os pressupostos das relações entre os seres humanos mudaram, somente depois de ter aceitado a fraternidade universal não apenas em sentido retórico, pode-se pensar em abordar pragmaticamente as emergências globais atuais ou futuras. Se os alicerces forem corretos e nos colocarmos humildemente diante do jardim que nos foi confiado, a ciência pode nos ajudar.

Pondo de lado o mito do crescimento perpétuo e estabilizado o montante dos fluxos (de recursos materiais e energéticos) que nos são necessários, a ciência pode nos ajudar a racionalizar a organização geral das trocas, a otimizar a eficiência dos processos, a reutilizar da melhor forma o que é tradicionalmente considerado "desperdício". Descartando a fábula das fontes ilimitadas de energia "limpa" e a ilusão do moto perpétuo (que a ciência há muito provou ser impossível), uma economia substancialmente circular torna-se efetivamente praticável em vez de se reduzir a uma fórmula propagandística e retórica.

Tudo isso, porém, é válido se ao mesmo tempo os seres humanos forem concretamente tratados e mutuamente vistos não como "consumidores", mas como valores em si; se as relações entre nós não são baseadas na “competição”, mas na integração, complementaridade e colaboração. Petição de princípio? Sonho projetado além da história? Na realidade, até mesmo a economia concreta conhece formas em que, pelo menos dentro de um determinado grupo, as relações inclusive de produção/consumo se norteiam pelo critério da subsidiariedade e não da competição. Os sócios de uma cooperativa não mantêm, entre si, relações de competição, mas de partilha, tanto de custos como de vantagens, e de forma proporcional ao empenho de cada um. As cooperativas já existem e a lógica competitiva a relegam para fora do grupo, mas nada impede estender a complementaridade e a colaboração a uma rede mais ampla ou mesmo global formada por grupos já organizados dentro de si mesmos para cooperar. Se continuarmos a colocar no centro dos nossos comportamentos sociais a desconfiança e, aliás, o medo do outro iremos em direção ao desastre, que a ciência nos indica como iminente e, em certa medida, já em andamento.

Nicoletta Dentico

AS LIÇÕES NÃO APRENDIDAS NOS ANOS DA PANDEMIA

"A desigualdade de vacinação que maculou 2021 não será remediada em 2022 se um pequeno grupo de governos continuar a se demonstrar sensível às razões das multinacionais dos medicamentos e indiferente ao direito à saúde. Se não mudarmos o curso, não haverá tratado pandêmico que resista", escreve Nicoletta Dentico, jornalista e analista sênior de políticas em saúde global e desenvolvimento, que atualmente lidera o programa de saúde global da Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (SID), em artigo publicado por Il Manifesto. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Há três anos, nesta época, não tínhamos ainda conhecimento do grande e assustador evento que teria abruptamente interrompido as cinéticas da globalização e marcado a história com um arrasto inacreditável não só de natureza sanitária, mas com efeitos explosivos também na esfera psicológico-existencial, social e econômica. Uma Chernobyl no campo da saúde, assim foi definida.

Tantas coisas aconteceram nestes dois anos totalmente inesperadas. Algumas positivos, além de toda expectativa, como o rápido desenvolvimento das vacinas e - mais recentemente - de novas terapias contra a Covid.

Nunca antes houve um esforço científico dessa magnitude: 23 vacinas diferentes aprovadas em um ano em todo o mundo e centenas em desenvolvimento. Estima-se que essa incrível virada tenha salvado a vida de 750.000 pessoas apenas na Europa e nos Estados Unidos. Porém, muito mais coisas deram errado.

Muito errado. A Covid definiu 2021, um ano que ficará para a história pelas inúmeras comissões, painéis, cúpulas que, pelo menos em palavras, pretenderam aproveitar as lições desta pandemia, para não nos encontrarmos na mesma situação da próxima vez - porque com certeza haverá próximas vezes.

Novas comissões despontam no horizonte: a comunidade internacional decidiu de fato - em uma recente assembleia ad hoc da Organização Mundial da Saúde (OMS) - embarcar na negociação de um novo tratado pandêmico. Quase como se aquele pandêmico fosse um aceitável novo status do mundo, a figura desajeitada de uma nova ordem das coisas, e não o resultado de um fracasso histórico de visão e governança em escala mundial. Mas na véspera do terceiro ano de Covid-19, há lições importantes a compartilhar.

A primeira é que agir imediatamente é fundamental, mesmo à custa do exagero. Entre janeiro e fevereiro de 2020, por motivos inexplicáveis, o mundo não entendeu que o vírus desconhecido que estourou em Wuhan não ficaria confinado à China. Bastaram poucas semanas para que o novo patógeno amplamente anunciado em outros países transbordasse. É verdade que anteriormente outros coronavírus, como o SARS em 2003 e o MERS em 2012, não haviam causado pandemias. Também é verdade que as autoridades sanitárias pagam caro pelo anúncio de alarmes por emergências que depois não se cumprem; a OMS foi criticada pelo Parlamento Europeu em 2009 por declarar a pandemia de gripe H1N1, um evento com efeitos não particularmente graves. O mundo inteiro sabe que o princípio norteador de qualquer resposta a emergências de saúde é preparar-se para o pior, com investimentos adequados e treinamento de pessoal. Mas raramente acontece. A escolha, tentada várias vezes ao longo de dois anos, de aguardar que a evolução do vírus se manifestasse plenamente antes de tomar as medidas necessárias para alterar sua trajetória, pressupõe a decisão de tornar o vírus muito mais perigoso e abrir caminho para a pandemia.

A segunda é que a política continua a ter domínio sobre a saúde pública. Em dois anos de pandemia, vimos de tudo. Quantos líderes políticos colocaram em risco a vida de seus cidadãos, explorando a crise, menosprezando-a ou espalhando mentiras, só porque a verdade sobre a COVID-19 poderia prejudicar seus destinos políticos? Na Europa, chefes de governo consideraram a pandemia como uma oportunidade para uma bonificação social nacional lucrativa para os cofres do Estado. Em muitas partes do mundo, as medidas de emergência serviram aos autocratas da vez para "fazer uma limpeza", livrando-se de adversários políticos, ativistas e jornalistas, ou para impor regimes de desajeitada (in) segurança. No Brasil, o negacionista presidente Bolsonaro, emulando o descriterioso Trump, permitiu que o vírus circulasse sem ser perturbado em um país desigual e com estruturas sanitárias insuficientes para as necessidades da população.

Como se não bastasse, detonou três ministros da saúde e deixou à própria sorte inteiras comunidades indígenas da região amazônica. Haverá um juiz em Brasília ou em Haia capaz de impugnar os crimes do presidente que, alheio aos 600 mil mortos, pretende ser reeleito em outubro próximo? O que sabemos com certeza científica é que se o vírus tivesse estourado nos Estados Unidos em vez de Wuhan, as consequências teriam sido muito piores, independentemente do arroubo antichinês de Federico Rampini. Apesar de 824 mil mortes, os programas de vacinação nos EUA continuam envoltos em um inescrupuloso desvio ideológico e até mesmo usar a máscara identifica politicamente, em uma polarização que tira o respiro mais do que o vírus.

Na fase extrema e talvez terminal do capitalismo financeiro dominada pela "busca obsessiva de sempre novos campos da vida social, da existência humana e da natureza para serem transformados o mais rápido possível em dinheiro", para citar Luciano Gallino, o cinismo geopolítico dá as cartas contra as razões da saúde global. A comunidade internacional se resigna às novas variantes para não ceder à polêmica questão da suspensão dos direitos de propriedade intelectual em tempos de emergência. Perdemos um ano e a história nos julgará severamente. A desigualdade de vacinação que maculou 2021 não será remediada em 2022 se um pequeno grupo de governos continuar a se demonstrar sensível às razões das multinacionais dos medicamentos e indiferente ao direito à saúde. Se não mudarmos o curso, não haverá tratado pandêmico que resista.

Edição 173, dezembro 2021

Jorge Carrión

DIGITAL, SERIAL, ALGORÍTMICA, A CULTURA DO SÉCULO XXI CHEGOU

A primeira década do século XXI foi a da digitalização e a organização em série. A segunda foi a das plataformas. A terceira década será a dos algoritmos criativos. Estamos preparados para isso?”, questiona Jorge Carrión, escritor e crítico cultural, em artigo publicada por Clarín-Revista. A tradução é do Cepat /IHU.Segundo ele, "por meio desses três passos – digitalização, serialização, algoritmos – a cultura do século XXI foi retirando a importância da obra e do artista singulares e a repassando para a série, a franquia, o universo, o catálogo, a plataforma".

Em 1998, Massive Attack lançou o seu disco Mezzanine, Roberto Bolaño publicou Os detetives selvagens e Svetlana Alexievich recebeu o prestigioso prêmio da Feira do Livro de Leipzig. A Bienal de São Paulo foi histórica por seu discurso antropofágico e pós-colonial e foi lançado o filme A eternidade e um dia, de Theodoros Angelopoulos, que eu vi nos cinemas Verdi de Barcelona. Em 1998, também nasceu o Google.

Naquele ano, portanto, enquanto a cultura e a arte continuavam com o seu atomizado bombardeio estético e crítico de baixa intensidade, solidificou-se um macroprojeto tecnológico que havia sido gestado nas décadas anteriores. A informatização da realidade.

Os grandes computadores da IBM, o design e a inovação na informática pessoal segundo Steve Jobs, a aposta dos Estados Unidos da América nas vias da informação e a progressiva miniaturização dos dispositivos tinham provocado uma revolução que, rapidamente, um algoritmo tornaria definitiva.

O motor de busca do Google começou a organizar a informação textual da internet de um modo novo e logo também incluiu as imagens. No ano 2000, apresentou AdWords, o sistema de publicidade que vinte anos mais tarde seria a maior máquina comercial da história da humanidade. A essa altura, a cultura do mundo já terá mudado radicalmente. Será digital, serial e – após o sucesso brutal do Google e das sucessivas plataformas e redes sociais – profundamente algorítmica.

A digitalização serial do mundo

Nesse mesmo ano 2000, o Napster conquistou grande popularidade, sendo a primeira grande estrutura de intercâmbio de arquivos mp3, o que acabaria transformando nosso modo de nos relacionar com a música. Com o tempo, as séries, os filmes e os livros também seriam convertidos em arquivos e visualizados em dispositivos. Nossa vida cultural foi se tornando híbrida, física e virtual. Na verdade, nossa vida toda.

A música, o cinema, os livros. Costuma-se narrar a digitalização da cultura no século XXI a partir do polo da recepção, quando na verdade a metamorfose se deu tão ou mais rapidamente no da criação e produção.

Muitos de nós continuam lendo livros exclusivamente em papel, mas a grande maioria dos escritores utiliza o computador desde os anos 1990. Em uma velocidade vertiginosa, as câmaras e outras tecnologias de gravação ou edição foram aumentando sua qualidade e diminuindo seu preço até nos habituar a capturar o real por meio de interfaces tecnológicas.

Esse processo culminou, no momento, nos telefones celulares, que são ao mesmo tempo uma caixa cheia de ferramentas (para qualquer tipo de expressão criativa) e uma caixa de Pandora (que saturou os servidores, as nuvens, nossos olhos).

Se a passagem do analógico ao digital era previsível, ninguém imaginaria, vinte anos atrás – por outro lado –, a transição entre as obras únicas e as narrativas seriais. Uma inércia levou à outra. A série faz parte da cultura do capitalismo e nem a rádio, nem os quadrinhos, nem a televisão são compreendidas sem ela.

Mas, após o triunfo da telerrealidade e das telesséries de extensa gama, na exata virada do século, o novo ecossistema midiático digital, onde primeiro foram multiplicados os canais de televisão - coletivos - e depois os pessoais - a partir do lançamento do Facebook e Youtube, em 2005 -, nada mais fez do que potencializar a existência de séries.

Conforme escreveu Mark Fisher, a partir do modelo de Star Wars, a primeira franquia “a tratar o mundo inventado como uma mercadoria de grande escala comercial”, o formato se estendeu rapidamente para todas as linguagens. Do sucesso de Harry Potter e As Crônicas de Gelo e Fogo às sagas cinematográficas ou de videogames.

Como todo o humano, a cultura se articula entre dois conceitos: a novidade e o reconhecimento. Na última década, os objetivos culturais vagamente identificados que foram surgindo ou se assentando – memes, podcasts, stories, listas, gifs, experiências interativas e de realidade virtual ou microvídeos – não são uma exceção.

E uma das principais táticas que seguiram para penetrar na consciência coletiva, para se tornar normais, além de virais, foi a de se tornar sistemáticos. Dos memes que repetem a foto e trocam o texto às webséries, as séries para ouvir ou as intermináveis listas de reprodução, tudo se tornou serial.

E não por acaso. Do ponto de vista humano, um vídeo, um filme ou uma telessérie podem ser igualmente interessantes. Mas na perspectiva das plataformas e seus algoritmos, sem dúvida, são muito mais convenientes os canais de influencers ou uma série com muitas temporadas.

Porque o valor artístico, a qualidade artesanal ou a importância canônica não são fatores que importam no novo paradigma tecnológico. A única coisa que as redes sociais e as grandes produtoras de conteúdos levam em consideração é a capacidade de seduzir de forma duradoura, de sequestrar a atenção para gerar o máximo número possível de dados úteis.

Para o Instagram ou o Amazon Prime Video dá no mesmo se as séries são criadas por David Simon, Amy Sherman-Palladino, Kim Kardashian ou El Ribius.

Todo o novo sistema se sustenta nos rastros, nas correlações, nas linhas de consumo traçadas por cada internauta, cada leitor, cada visualizador de vídeos. Portanto, no novo mundo do Big Data, as obras ou os conteúdos são muito menos importantes do que as linhas de dados que cada um de nós construímos. A série de séries em que transformamos nossas vidas. Isso que você chama – precisamente – de seu perfil.

Algoritmos

O fato de que, no momento, não exista nenhuma manifestação cultural que não seja – ao menos parcialmente – digital e que a maior parte das obras e projetos artísticos se insira em séries projetadas pelos próprios criadores, pelas páginas web ou plataformas que as incluem em seus catálogos ou pelo nosso próprio histórico, tem permitido o crescimento desenfreado dos algoritmos sociais e culturais.

A maior parte da leitura, informação e entretenimento é mediada pelo Google, Facebook, Apple, Youtube, Netflix, Amazon, Spotify, Alibaba e outras corporações. Ou seja, por complexas maquinarias algorítmicas.

Estruturas tentaculares que são – ao mesmo tempo – produtoras de conteúdos próprios, distribuidoras de produções alheias, pesquisadoras em inteligência artificial ou arquiteturas logísticas e inventoras de novas formas de consumo, como agregadores, formas de subscrição ou dispositivos.

Compartilham um espírito de concentração empresarial e a vontade de ser plataformas, que contagiou todas as companhias de entretenimento e comunicação, do New York Times à Movistar ou o grupo Planeta.

Por meio desses três passos – digitalização, serialização, algoritmos – a cultura do século XXI foi retirando a importância da obra e do artista singulares e a repassando para a série, a franquia, o universo, o catálogo, a plataforma.

Encontramos a dimensão mais clara dessa tendência nos grandes projetos coletivos de caráter intelectual, como Forensic Architecture ou Wikipédia. O resumo de sua dimensão mais obscura encontramos em Disney+, uma plataforma que foi totalmente monopolizada por etiquetas e marcas genéricas, em detrimento dos nomes próprios: Marvel, Star Wars, Pixar, National Geographic. Cada vez menos pessoas sabem que Disney é o sobrenome de um ser humano do século passado chamado Walt.

Nesse ecossistema de ascensão dos algoritmos e de imposição de novas regras alheias aos critérios tradicionais, é preciso compreender vários fenômenos que, aparentemente, não estão relacionados.

Do cansaço e a depressão dos influencers com mais seguidores, que formataram suas vidas e suas economias segundo a visibilidade oferecida por algumas fórmulas matemáticas totalmente obscuras e variáveis, e que agora assistem seu declínio sem entender as razões, ao avanço da precariedade nos trabalhos criativos, cada vez mais condicionados pela quantidade e pelo impacto ou o tráfego e menos pela qualidade e recepção a médio e longo prazo, passando pelo auge imparável da autopublicação, que é a lógica das redes sociais e que – a partir delas – foi criando espaços cada vez mais importantes, tanto na Amazon como dentro das grandes editoras tradicionais.

Em um mundo cada vez mais horizontal, de recomendações automáticas e de crítica amadora e coletiva (Goodreads, TripAdvisor), todos somos escritores, fotógrafos, designers, comunicadores ou criadores digitais que despejam constantemente milhões de conteúdos nesse grande desaguadouro que é a rede.

Do outro lado, os algoritmos não param de aprender conosco. Como disse Éric Sadin, em La siliconización del mundo. La irresistible expansión del liberalismo digital (Caja Negra): “A interpretação industrial dos comportamentos se tornou o principal pivô da economia digital”. Os algoritmos já traduzem e geram música ou imagens com grande precisão, que alimentam tanto filmes ou videogames quanto o Spotity ou YouTube. Cada vez existem menos linguagens que sejam dominadas só pelos humanos.

Uma nova crítica cultural

As metodologias tradicionais de análise cultural – herdeiras da filologia e da história da arte – começam a ficar obsoletas para o estudo da cultura. Pela nossa formação e pela nossa própria escala, individual e finalmente humana, diante de filmes, obras de teatro ou quadros que estão ao alcance de nossos olhos, com livros que não são muito maiores do que nossas próprias mãos, continuamos acreditando na singularidade da obra que vemos, escutamos ou lemos.

E seguimos pensando-a em relação ao seu autor e sua trajetória, seu contexto, nossa época. Mas, na realidade, não só a forma como lemos mudou brutalmente – através da rolagem e catálogo infinitos, na transição da cultura do livro à cultura do aplicativo -, como também as formas como a cultura é produzida e distribuída.

No momento atual, não apenas a inteligência coletiva e a colaboração entre roteiristas, artistas, técnicos e engenheiros em um mesmo projeto prevalece cada vez mais; não apenas as fórmulas contratuais e estratégias de trabalho em equipe, que lembram as oficinas artesanais da Idade Média ou os estudos de animação e de quadrinhos do século XX, se estendem, sobretudo, o consumo cultural das obras – com suas ideias geniais – feitas na solidão por criadores individuais começa a ser menos importante do que as tendências virais, os padrões do Big Data, as cadeias de sentido detectadas pela inteligência artificial e os formatos desenhados pela aprendizagem profunda.

Por isso, é importante pensar em estratégias de leitura que vão além da semiótica ou a retórica do texto ou da linguagem audiovisual. Seria necessário imaginar uma crítica ao algoritmo. Não só no âmbito macro do código – por exemplo, por meio de exercícios de engenharia reversa – ou dos dados em massa, também no nível do que é transparente: número de visualizações, rótulos, recomendações automáticas, listas de reprodução e o desenho de usuário.

Essa nova gramática e essa nova sintaxe, que ainda não pensamos a sério e que está determinando todas as formas como lemos a arte e a cultura em nossa época.

A primeira década do século XXI foi a da digitalização e a organização em série. A segunda foi a das plataformas. A terceira década será a dos algoritmos criativos. Estamos preparados para isso?

Tina Simoniello

HIKIKOMORI. O MUNDO DENTRO DE UMA SALA

O mundo de Matteo está todo dentro de uma sala, porque Matteo se retirou da vida social, decidiu voluntariamente não ir mais à escola, interromper todas as relações e atividades, e viver recluso na sua toca doméstica, passando o tempo na frente da tela do seu computador e na companhia dos videogames. A reportagem é de Tina Simoniello, publicada em La Repubblica. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU.

Sara, educadora chamada pelo colégio do jovem e pelos serviços sociais, tenta ajudá-lo. O desafio é complicado: Matteo, de 17 anos, precisa voltar ao colégio em três meses para não perder de novo o ano letivo. Depois de uma série de encontros, com tenacidade, paciência e competência, Sara consegue romper a solidão de Matteo, e o rapaz volta ao colégio.

Mas o sucesso da intervenção foi questionado pelo passo em falso da mulher. Exceto pelo fato de Matteo ter feito uma descoberta sobre a vida de Sara que ainda pode evitar o fracasso de ambos.

Essa é a trama do curta-metragem “Ho tutto il tempo che vuoi” [Tenho todo o tempo que quiser], uma história intensa de dor e esperança que, em 26 minutos, conta a relação entre um adolescente hikikomori – o termo é japonês e indica quem optou por se retirar da vida social, atingindo níveis extremos de isolamento e que, na Itália, se estima que diz respeito a cerca de 100.000 jovens – e uma mulher, uma profissional, que tenta ajudá-lo a se reinserir no mundo.

O filme é dirigido por Francesco Falaschi (“Quanto basta”, “Emma sono io”), que o coescreveu com Alessio Brizzi, e é produzido pela Associazione Culturale Storie di Cinema, em colaboração com a Rai Cinema, com a contribuição da COeSO Società della Salute de Grosseto. No papel de Matteo, está Luigi Fedele (“Io ti cercherò”, “Quanto basta”) e, no de Sara, Cecilia Dazzi (“La Porta Rossa”, “Habemus Papam”).

“Ho tutto il tempo che vuoi”, que já recebeu uma dezena de prêmios e reconhecimentos, está disponível a partir de 27 de novembro no Raiplay por ocasião do 5º Dia Nacional sobre as Dependências Tecnológicas e o Ciberbullying. A Rai Pubblica Utilità o tornará acessível para as pessoas com deficiência visual e auditiva por meio de audiodescrição e legendas.

“Tínhamos o objetivo e a exigência de jogar luz sobre uma prática tão delicada e atual quanto perigosa pela sua difusão entre os muito jovens”, diz Falaschi, que, além de ser diretor e roteirista, é também professor de literatura em uma escola secundária de Grosseto.

“É necessário – acrescenta – fazer campanhas de sensibilização sobre as condições ou os problemas sociais ou psicológicos, também com o cinema e o audiovisual, sempre se documentando: porque as imagens não sabem apenas dar emoções, mas também estimulam a curiosidade e o interesse pelos fenômenos dolorosos. E o curta-metragem, nesse sentido, é um instrumento particularmente útil.”

Ansiedade social, medo do julgamento e vergonha

Hikikomori é um desconforto adaptativo descrito e observado pela primeira vez no Japão. “Hoje ele não é codificado como psicopatologia, mas como síndrome social”, explica Marco Crepaldi, psicólogo presidente e fundador da associação Hikikomori Italia. “Usamos a palavra fenômeno para defini-lo, mas – acrescenta o especialista – a patologia é evidente: estamos falando de uma forma de isolamento social peculiar, diferente dos outros, que tem como pedra angular a ansiedade do julgamento, a dificuldade de adaptação ou a vergonha por não conseguir se adaptar.

Gostaríamos que fosse reconhecido como psicopatologia, porque, nas suas versões extremas, é uma psicopatologia: o hikikomori grave se isola de todos, até mesmo dos pais, da web. Há jovens que não falam mais com os familiares nem se comunicam com outras pessoas na internet. Existe um potencial desvio profundamente psicopatológico do hikikomori, que tem riscos depressivos e suicidas. Na Itália, estimamos que cerca de 100.000 adolescentes e jovens adultos podem ser afetados pelo hikikomori, considerando-se todas as formas, e pelo menos 75-80% são do sexo masculino, embora na nossa experiência até 90% deles sejam homens.”

O perfil do hikikomori

No Ensino Fundamental e Médio, quando as competências relacionais são necessárias para a integração com os pares, os hikikomori não se integram, a ponto de abandonarem todas as atividades. É como se, em certo ponto, dissessem: “Chega, cansei de jogar, vocês continuam, eu saio de campo”.

“Na realidade, a metáfora do jogo descreve bem a situação”, continua Crepaldi. “Esses jovens ‘abandonam o campo’ porque têm funcionamentos sociais diferentes, porque talvez sejam tímidos ou são talentosos demais. Os motivos são muitos, mas, de todos os modos, estão ligados ao medo do julgamento e à ansiedade social, ao medo de ser rotulado como diferente e à sensação de não ‘se sentirem parte’.”

Quando é preciso se preocupar

O hikikomori, como muitos distúrbios psicológicos, é um continuum que vai desde uma condição moderada – na qual a pessoa tem dificuldades de relacionamento, mas continua indo à escola e tem alguns amigos – até uma condição em que a pessoa não é mais capaz de se relacionar com os outros, e então começa a abandonar tudo: primeiro as atividades extraescolares e depois a escola.

“A evasão escolar quase sempre é o sinal de alerta das famílias, que só então se mobilizam. Mas os sinais existem antes da recusa da escola: são a tendência de ficar em casa, de passar muito tempo no computador, principalmente nos videogames, de ficar acordado à noite e de dormir durante o dia. Quando os pais captam esses sintomas, eles devem começar a se interrogar e a refletir, junto com a escola, sobre a possibilidade de um caminho didático alternativo, que não inclua necessariamente a presença em sala de aula e que evite que o jovem acabe em um estado de burnout e de recusa definitiva da educação. Esta não é ditada pela falta de vontade de estudar – especifica Crepaldi –, porque muitas vezes os hikikomori também tem bons resultados escolares. O fenômeno dos hikikomori diz respeito muitas vezes a filhos de pais com boas carreiras e com altas expectativas de realização social e escolar para os filhos ou até mesmo laboral. É preciso dizer que o hikikomori diz respeito também a jovens adultos, às vezes até à adultos: há casos de homens que viveram durante décadas isolados em casa, totalmente dependentes das famílias.”

Mães presentes e pais nem tanto

Por falar em famílias, parece que os jovens hikikomori têm um padrão comum, tanto na Itália quanto no Japão e no Ocidente em geral. “Nos contextos familiares desses jovens, existem elementos que, embora nem sempre estejam presentes, se repetem”, retoma o psicólogo. Por exemplo? “Mães muito presentes, ansiosas e com tendência à apreensão e que às vezes se tornam excessivamente exigentes em relação aos objetivos do filho. Pais mais fracos, figuras mais rarefeitas, que não conseguem se relacionar com o filho, que tendem a se tornar marginais e a delegar, e que, quando surge o problema, não sabem como ajudar: dos mais de 3 mil familiares que contataram a nossa associação e que fazem parte dos nossos grupos de autoajuda para pais que organizamos gratuitamente em toda a Itália, as mães são quase a totalidade. Muitos núcleos familiares são constituídos por uma mulher – a mãe – e por um homem – o hikikomori.”

O papel da internet e o ciberbullying

Existe a tendência de associar o isolamento social à dependência da internet, mas como os dois fenômenos estão relacionados? “A partir dos estudos disponíveis hoje, podemos deduzir que a internet não é a causa do hikikomori. Mas a rede pode ter um papel, que pode ser negativo ou positivo: positivo quando permite que esses jovens mantenham contato com o mundo; negativo quando instaura uma dependência muito forte, principalmente dos videogames, o que pode agravar a situação. Para não pensarem e não passarem o tempo ruminando sobre os seus sofrimentos, os jovens acabam se jogando no mundo do videogame e passando todo o dia todo nele, tornando-se viciados. Mas o videogame não pode ser considerado a causa primária, no máximo uma consequência ou uma comorbidade do hikikomori, e, se eu resolver o problema da dependência do videogame ou da hiperconexão à internet, eu não resolverei a causa do mal-estar que está a montante e que é outra”, explica Crepaldi. “O bullying, por outro lado, mesmo na sua versão ciber, muitas vezes é uma causa concomitante dessa forma de isolamento voluntário.”

O impacto negativo da Covid

Antes da pandemia, o comportamento dos hikikomori era claramente anômalo aos olhos da comunidade e dos familiares, mas as necessárias estratégias implementadas para conter os contágios podem ter atenuado a atenção midiática e social sobre o desconforto: simplificando, a Covid pode ter mascarado e encoberto o fenômeno hikikomori. É assim mesmo?

“A Covid tem efetivamente favoreceu uma diminuição da tensão por parte das famílias, dos jovens e da mídia, que pode levar a um agravamento e a uma cronicidade incontestáveis do fenômeno”, explica e confirma o psicólogo. “E também a um aumento dos casos: muito mais pessoas – falamos naturalmente daquelas com predisposição – experimentaram um alívio da pressão com o EaD ou com o trabalho remoto, concluindo que eles, em casa, estão melhor. Pois bem, tudo isso corre o risco de levar ao aumento dos casos de hikikomori ou de favorecer a sua cronicidade. Porque é preciso dizer que, quando falamos de hikikomori, não estamos falando sempre de uma fase transitória da vida: essas pessoas primeiro se retiram voluntariamente do mundo e depois, se não houver intervenção, não conseguem mais sair, correndo o risco de formas de depressão importantes e perigosas. No Japão, há homens isolados há décadas, e também na Itália temos casos de homens em casa há mais de 10-15 anos”, diz Crepaldi.

O que pais e mães podem fazer ou não

Mas os genitores estão confusos, não sabem muito bem como lidar com a situação e muitas vezes acabam piorando, geralmente usando a cenoura ou o bastão, dependendo do momento, e ficando muito frustrados. O que podem fazer? Em suma, o que significa “intervir”?

O primeiro objetivo é serem percebidos como aliados. Por isso, os genitores devem evitar aumentar a pressão sobre os filhos e não os forçar a fazer o que não querem ou não conseguem fazer, até mesmo voltar à escola. “Isso é contraintuitivo, porque é claro e provavelmente natural que quem tem um filho de 15 ou 16 anos que abandona a escola se sinta no direito e até mesmo no dever de forçá-lo a voltar, mas esse comportamento corre o risco de romper a aliança entre genitor e filho, e de favorecer a sua fuga também do próprio genitor, além do restante”, alerta o psicólogo.

E então? “Então, o adulto tem que parar e entender que o filho está nessa condição porque sentiu uma pressão sobre si mesmo e que essa pressão se tornou excessiva. E, depois, tem que tentar se encontrar com a escola, que deve aprender a se mostrar sensível a esses temas. Trata-se de um caminho alternativo que é muito possível de ativar: pode ser o EaD, o homeschooling. Ao mesmo tempo, é preciso tentar dar origem a uma relação íntima com o jovem, mesmo que seja difícil, porque os filhos raramente falam com os genitores com intimidade. Por outro lado, impedir que os jovens usem a internet não faz sentido: temos histórias de genitores que destruíram computadores e de filhos que responderam com a violência até mesmo contra si mesmos. Ao invés disso, faz sentido se dirigir a um psicólogo. Se o jovem se recusar a ir, há também uma rede de educadores, formados nos desconfortos sociais, que vão em casa para se encontrar com o jovem. Ao mesmo tempo, os adultos podem trabalhar sobre si mesmos.”

Trabalhar sobre si mesmo

Sim, porque, se um adolescente ou um jovem adulto está em um estado tão doloroso e debilitante, não é absolutamente óbvio que se trata de um problema apenas dele. Pode ser também uma questão de contexto.

“Certamente, pode haver comportamentos disfuncionais dentro da família. Então, os pais também devem recorrer a especialistas. Nós, como associação, temos grupos de genitores apoiados por psicólogos em toda a Itália. Em primeiro lugar, porque são os genitores que pedem ajuda, os filhos não pedem. Segundo, porque, trabalhando com mães e pais, é possível melhorar a condição dos filhos. Mas, se o ideal é se dirigir a um psicólogo ou a um psiquiatra que conhecem o transtorno, isso nem sempre acontece: os genitores se encontram diante de percursos de apoio falimentares ou custosos: no âmbito da saúde mental, o Estado não ajuda, e nem todos podem se dar ao luxo de custear psicólogos em longo prazo.”

Andrea Dean

EQUIDADE DE GÉNERO, JÁ!

As Escrituras falam de Deus em pronomes genéricos que – em hebraico e grego – não têm qualquer implicação sexual. Imagens ricas das escrituras fornecem uma ampla gama de metáforas pessoais, masculinas e femininas, para transmitir a relação de Deus com os seres criados. Infelizmente, o uso excessivo de 'Senhor' e 'Pai' para nomear Deus exagera a importância da masculinidade e dá a impressão de que a masculinidade é mais divina”, escreve Andrea Dean, coordenadora do grupo Women and the Australian Church, em artigo publicado por La Croix International. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

É uma boa notícia ver mulheres sendo nomeadas para cargos significativos dentro da Igreja Católica, incluindo várias nomeações recentes de mulheres para cargos importantes na Santa Sé. No início de novembro, o Papa Francisco nomeou a irmã Raffaella Petrini como secretária-geral do governatorato do Vaticano. Isso se seguiu às nomeações anteriores de Nathalie Becquart como subsecretária do Sínodo dos Bispos, Alessandra Smerilli como secretária interina do Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral e Barbara Jatta como diretora dos Museus do Vaticano.

A Conferência dos Bispos Católicos Australianos também tem cinco secretárias executivas nas seis posições disponíveis. Alison Burt, Louise Zavone, Clara Geoghan, Lana Turvey-Collins e Jacinta Collins apoiam as Comissões Episcopais para a Unidade Cristã e Diálogo Inter-religioso, Educação Católica, Justiça Social, Missão e Serviço, Conselho Plenário e muito mais. De fato, o documento de preparação do Concílio Plenário indica: “Nos últimos anos, muitas mulheres assumiram cargos de direção em dioceses e agências católicas”.

Então, por que as mulheres na Igreja Católica na Austrália e no exterior ainda clamam para que as mulheres sejam incluídas na liderança da Igreja? Não é suficiente “adicionar mulheres e mexer”? Ou é algo mais do que um ingrediente ou uma ação necessária para derrubar a distribuição desigual de poder, recursos e oportunidades entre homens e mulheres na Igreja Católica?

Uma das principais questões é que os ensinamentos da Igreja Católica sobre as mulheres são conflitantes. O Papa Francisco escreveu na Fratelli Tutti que “é inaceitável que alguns tenham menos direitos pelo fato de serem mulheres” e o catecismo afirma que “homens e mulheres têm a mesma dignidade e são de igual valor”. O que precisamos é de maior autoridade para os conselhos paroquiais e diocesanos. Ao mesmo tempo, no entanto, as mulheres são descritas como complementares em vez de iguais.

Como Catherine Lacugna explicou em 1992, a “teologia da complementaridade extrapola das diferenças corporais uma dissimilaridade embutida nos papéis”, alegando que o papel da mulher é privado e doméstico com o papel do homem como liderança e chefia públicas.

Na estrutura atual, todas as funções atribuídas às mulheres estão sujeitas à autoridade dos homens. Para lidar com essa desigualdade, proponho que a Igreja Católica deve primeiro redefinir sua teologia da pessoa humana, usar uma linguagem inclusiva, expandir a linguagem usada para Deus e maximizar seu uso de estruturas alternativas de tomada de decisão.

Os dualismos da filosofia grega, que sustentam um sistema doutrinário rígido e dogmas individuais desenvolvidos e defendidos pela Igreja Católica Romana, vê a natureza, assim como as mulheres, como algo a ser dominado.

O Papa Francisco pediu uma nova teologia das mulheres, mas em vez de desenvolver algo separado para as mulheres, é hora de repensar uma teologia da pessoa humana como parte da comunidade da criação.

As consequências devastadoras do patriarcado não podem ser totalmente abordadas até que a teologia mude de categorias dualísticas, hierárquicas e atomísticas para holísticas, comunitárias e relacionais.

A linguagem exclusiva é definida como um padrão consistente de uso do inglês em que o homem é considerado a pessoa humana normativa; isto é, a palavra “homem” conota tanto o masculino quanto o humano.

Linguagem inclusiva de género é aquela que se esforça para incluir ambos os sexos igualmente. A linguagem exclusiva discrimina as pessoas e as faz sentir-se inferiores, especialmente se forem diferentes por causa de sua raça, religião, sexo, educação ou se forem portadoras de deficiência. A linguagem exclusiva também afeta os homens, pois transmite uma falsa sensação de superioridade.

As Escrituras falam de Deus em pronomes genéricos que – em hebraico e grego – não têm qualquer implicação sexual. Imagens ricas das escrituras fornecem uma ampla gama de metáforas pessoais, masculinas e femininas, para transmitir a relação de Deus com os seres criados. Infelizmente, o uso excessivo de 'Senhor' e 'Pai' para nomear Deus exagera a importância da masculinidade e dá a impressão de que a masculinidade é mais divina.

Atualmente, a Igreja Católica depende quase totalmente de padres e bispos em paróquias, dioceses, conferências e sínodos para tomar todas as decisões importantes. As falhas dessa abordagem hierárquica foram detalhadas pela Comissão Real sobre Abuso Sexual.

A Comissão cobrou a Igreja para “explorar e desenvolver maneiras em que sua estrutura e práticas de governo podem ser mais responsáveis, mais transparentes, mais acessíveis e mais participativas, inclusive a nível paroquial e diocesano”.

O que nós precisamos é mais autoridades para os conselhos paroquiais e diocesanos. Nós precisamos conselhos nacionais de leigos e sínodos internacionais do Povo de Deus onde a representação leiga se torna parte das tomadas de decisão da Igreja.

Em 2014, o Papa Francisco destacou a nomeação de várias mulheres para a Comissão Teológica Internacional, dizendo que “eram a cereja do bolo, mas nós queremos mais”. Embora celebremos as mulheres talentosas e capazes que assumem funções na Igreja, a busca pela igualdade de género é muito mais do que a cereja no bolo, é uma receita totalmente nova.

Edição 172, novembro 2021

Jürgen Moltmann

DEUS CAMINHA CONNOSCO DENTRO DA PANDEMIA

O texto é publicado por Avvenire. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU.

N.D. Publica-se aqui, para que se veja claramente quanto a teologia cristã é uma teologia mítica, nos antípodas da Teologia de Jesus histórico. Pelo que os teólogos cristãos, elas e eles, desistem do mítico Cristo-da-fé e aprofundam-praticam o Projecto político de Jesus histórico, ou melhor será que se calem para sempre. E que deixem a Bíblia judeo-cristã, despojada dos 4 Evangelhos em 5 Volumes, finalmente desencriptados, apodrecer nas bibliotecas.

A pandemia de Covid-19 é como o "vale da sombra" do Salmo 23. Ninguém a domina com o olhar, ninguém sabe quanto tempo vai durar, ninguém sabe quando ou quem vai atingir. Deus não poupa a nós, homens, o "vale da sombra", que para muitos também se torna o "vale da morte". Apesar disso, Deus está conosco em nossas angústias e em nossos sofrimentos. Deus caminha conosco na escuridão. Ele também não poupa a si mesmo do "vale da sombra" e do "vale da morte". Deus padece as nossas mesmas dores conosco e conhece o caminho para nós. A confiança em Deus sustenta a confiança em si próprio, quando esta é afetada pela angústia e pelas dores.

Todas as previsões científicas sobre o futuro da pandemia tornaram-se incertas. A certeza sobre o futuro do mundo moderno desmoronou devido à pandemia e às mudanças climáticas. Agora é a vez da esperança e da paciência, que brota da esperança. A paciência é o longo respiro de uma grande esperança. A esperança cristã é esperança ativa no Reino de Deus para o futuro do homem e da terra, aguardamos a ressurreição dos mortos na vida eterna do mundo vindouro, como afirmamos no Credo Niceno. Por muito tempo, a esperança na vida eterna reprimiu nas Igrejas a esperança propulsora do Reino de Deus na terra.

No mundo moderno, a fé no progresso e a globalização reprimiram a esperança na vida eterna. Ambas as coisas estão erradas: o anúncio de Jesus do Reino de Deus que está próximo para os pobres, para os enfermos e para as crianças, torna-se presente com a sua ressurreição. O Jesus ressuscitado é tornado presente com seu anúncio do Reino de Deus. A esperança na ressurreição contra a morte e a violência do aniquilamento torna-se o motivo para a realização do Reino de Deus na terra. No final, o começo: esta é a esperança cristã. E fundada pelo fim de Cristo foi seu verdadeiro começo na ressurreição. Ela nos levanta daquilo que, desde sempre, experimentamos como o fim. O Deus da esperança sempre cria um novo começo na vida, enquanto na morte ele nos desperta para uma nova vida em seu mundo vindouro.

O que é a pandemia Covid-19? Em primeiro lugar, é um evento natural que ocorreu em Wuhan, na China central. O fato de a doença ter se espalhado de forma tão rápida e universal, no entanto, é um evento humano, resultado da globalização. Não foi o que acontecia na época da gripe espanhola, que, após a Primeira Guerra Mundial, causou mais mortes do que a guerra. A peste, que despovoou a Europa na Idade Média, ficou confinada em nível regional. A atual pandemia é um problema de toda a humanidade. No início de 2020, pensávamos que a pandemia teria sido superada antes do outono. Depois veio a segunda onda, e hoje já estamos na quarta onda. Novas mutações se adicionam continuamente. Crescem os rumores de que a humanidade terá que aprender a conviver com a pandemia. A melhor defesa é a vacina, mas com nove bilhões de seres humanos é uma façanha difícil de realizar. Não vivemos em um mundo íntegro e intacto. A natureza da criação também precisa de redenção.

A criação é ameaçada por forças caóticas. Paulo as chama de "principados e potestades", enquanto Karl Barth falou de "poderes sem Senhor" (herrenlosen Gewalten). Devemos nos defender deles; o que é possível, porque Cristo se tornou o Senhor desses poderes. O romantismo da natureza não ajuda nesse caso; ao contrário, precisamos da ciência, da técnica e a paciência da esperança, cujo exemplo na Bíblia é Jó: é necessária a paciência de Jó. Quando a primeira onda apareceu na primavera do hemisfério norte em 2020, uma onda de solidariedade entre a população também se espalhou: o apoio da boa vizinhança.

Quando as vacinas foram criadas, as nações passaram para a concorrência: cada nação queria garantir para si o maior número possível de vacinas. Nesse sentido, a pandemia é precisamente uma tarefa da humanidade. O sistema sanitário das sociedades modernas não está à altura de uma epidemia de vírus, devido à economificação da saúde, da orientação para o lucro dos nossos hospitais e da privatização das casas de saúde. Os medicamentos alemães são produzidos na Índia e na China, porque é mais econômico, como se a proteção da saúde da população não fosse uma finalidade do Estado sancionada na Constituição, mas sim confiada ao livre mercado. A morte e o luto mudaram...

A morte moderna, removida, retorna ao centro do palco. Não é bom para o orgulho moderno, que quer ter tudo sob controle. É preciso humildade em vez de arrogância, mas o orgulho dos homens modernos só consegue ser humilde contra vontade.

Agora chegamos às interpretações teológicas. Em primeiro lugar, devemos ouvir o aviso que se esconde na pandemia: uma catástrofe ainda pior está chegando, a catástrofe ecológica da civilização humana. A sobrevivência da humanidade está em perigo. Já durante este ano de 2021, os períodos de calor excessivo aumentaram: no Canadá, na Califórnia e na Sibéria, enquanto o Mediterrâneo está em chamas. Na Europa central, ocorreram inundações e alagamentos que duraram semanas. A Terra se aquece com mais rapidez do que os cientistas estimaram.

Os objetivos climáticos estabelecidos na Conferência de Paris de 2015 já não são mais sustentáveis. A pandemia produzida pela natureza convenceu os homens a serem solidários uns com os outros e a tomar medidas sociais drásticas. A catástrofe ambiental causada pelo homem deveria produzir uma análoga solidariedade humana e medidas sociais similares por parte das coletividades estatais. No desastre das inundações na região do Reno, o apoio funcionou muito bem em termos de boa vizinhança.

Por que Deus permite o sofrimento e a morte de tantos? Essa é uma pergunta de observador, não a pergunta posta por aqueles diretamente atingidos. Estes últimos pedem cuidado e conforto. Querem que seu sofrimento e suas preocupações parem, não que sejam explicados a eles. Com isso a pergunta sobre o porquê não foi eliminada, afinal Jesus também morreu com a pergunta "por quê" em seus lábios. Minha resposta:

Deus não é Todo-Poderoso, ou seja, a Realidade que tudo determina. Aquele é o soberano absoluto de Aristóteles, ou o Deus que era invocado na guerra para garantir a vitória. A teologia sempre enfatizou um Deus que preserva o mundo ao invés da onipotência de Deus. Como Deus preserva o mundo? Por meio de sua paciência. Deus, que tem paciência conosco seres humanos, sustenta o mundo e nos dá apoio com os nossos vícios e as nossas virtudes. Assim, Israel experienciou o Deus que carrega e sustenta (trägt) durante a peregrinação no deserto: "como uma ama carrega um recém-nascido, para levá-lo à terra que prometeste sob juramento aos seus antepassados" (Nm 11,12). Segue-se uma imagem masculina: “vocês viram como o Senhor, o seu Deus, os carregou, como um pai carrega seu filho, por todo o caminho que percorreram até chegarem a este lugar” (Dt 1,31). Isaías usa-o no plano do conforto pessoal: "até à velhice eu lhes carregarei, até que se cubram de cabelos brancos eu continuarei a lhes carregar" (Is 46,4).

O Cristo crucificado é a imagem do Deus que carrega e sustenta. Pedimos a ele: "Você que carrega (trägst) a dor do mundo, tende misericórdia de nós" [assim reza a versão luterana de Agnus Dei, ndt]. Ele, de fato, carrega as nossas doenças e se encarrega das nossas dores, como diz Isaías do servo de Deus sofredor (Is 53,4). Isso não responde à pergunta "por quê", mas com esse entendimento podemos nos sentir consolados e sobreviver. As perguntas sobre o porquê serão respondidas quando a grandeza da justiça de Deus aparecer, que até agora é aguardada como juízo universal.

Andrea Grillo

O SEXO COMO DOM E COMO TAREFA

O sexo não é simplesmente um “dado natural” que nos caracteriza originalmente, nem é apenas um “dom” pelo qual devemos agradecer. O sexo, como qualquer outra parte do nosso corpo e da nossa vida, também é uma tarefa. O comentário é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Em um breve e interessante comentário para o site Settimana News, que pode ser lido aqui, Giuseppe Lorizio identifica o ponto-chave do debate em torno do “decreto Zan” [projeto que busca criminalizar a homofobia e transfobia na Itália] na última das definições encontradas no início do decreto. Para utilidade, relato aqui série de quatro definições que abre o texto da lei:

a) por sexo, entende-se sexo biológico ou civil;

b) por gênero, entende-se qualquer manifestação exterior de uma pessoa que seja conforme ou contrastante com as expectativas sociais ligadas ao sexo;

c) por orientação sexual, entende-se a atração sexual ou afetiva por pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo ou de ambos os sexos;

d) por identidade de gênero, entende-se a identificação percebida e manifestada de si em relação ao gênero, embora não correspondente ao sexo, independentemente de ter concluído um percurso de transição.

Diante da última dessas definições, Lorizio diz que “se abre um abismo antropológico, filosófico e teológico entre quem considera que a identidade de gênero deve ser assumida como critério legislativo e quem, por sua vez, se opõe a ela”. Qual é a argumentação que sustenta essa discordância? Lorizio indica em uma abordagem “realista” a aceitação de uma “precedência” em relação ao ser humano, que é ao mesmo tempo um “dado” e um “dom”. Essa precedência impediria que se pudesse aceitar uma “perspectiva de gênero” como normativa.

Reproduzo por inteiro as duas frases em que Lorizio sintetiza a sua posição, comentando o ponto “d” da definição:

“Quem, como eu, pensa que o ponto ‘d’ representa uma criticidade real e não sub-reptícia do projeto de lei, move-se em uma perspectiva de realismo, segundo a qual há algo que nos precede e nos seguirá, razão pela qual, por exemplo, não decidimos se, como e quando existir, mas existimos, vivemos e somos chamados, caso não o tenhamos sido, a nos reconciliar com a nossa existência.

É isso que queremos dizer quando afirmamos que a vida é ‘dom’ a ser recebido e oferecido. E o ‘sexo’ faz parte da vida (ponto ‘a’ das definições). O sexo é dom! Talvez nem sempre ensinamos isso e percebido assim na forma do catolicismo convencional, mas é difícil defender o contrário. As escolhas subjetivas e individuais devem ser colocadas nesse horizonte de sentido da vida e da morte.”

Nessas palavras claras, parece-me que emerge uma posição clássica, com a qual não só a fé católica, mas também a razão comum, elaborou posições importantes de proteção da tradição e da humanidade do ser humano.

Precisamente devido a essa longa tradição, Lorizio pode dizer que não se alegrou com o resultado da votação do dia 27 de outubro, na qual ninguém venceu: “Nem o amor pela vida e o sexo como dom, como representado também por grupos soberanistas e inclinados às rejeições, nem o respeito pelas pessoas, que mereceria uma lei contra a violência homofóbica que salvaguardasse a sua dignidade”.

Penso que essa passagem “preocupada” do texto pode ajudar a captar outra questão, que não transparece a partir do texto e que talvez mereça uma atenção específica. Tento explicá-la em seguida.

Não só dados e dons, mas também tarefas

O sexo, na bem da verdade, não é simplesmente um “dado natural” que nos caracteriza originalmente, nem é apenas um “dom” pelo qual devemos agradecer. O sexo, como qualquer outra parte do nosso corpo e da nossa vida, também é uma tarefa.

Essa categoria, que certamente é clássica, visto que construímos refinadas doutrinas morais ao redor do sexo, torna muito mais complexa a relação que temos com o sexo, com o corpo e com a vida. Precisamente porque somos “animais que têm a palavra e as mãos”, nunca podemos simplesmente “alinhar” o dado e o dom. Entre o dado e o dom, está a tarefa, ou seja, o vínculo, a luta, a ciência, a técnica: há mediações tipicamente humanas.

Na palavra e nas mãos, a vida, o corpo e também o sexo são assumidos e transformados. Para o ser humano, é assim desde a origem. Com a palavra e as mãos, que o ser humano recebeu de Deus, o ser humano transforma a vida, o corpo e o sexo, e torna-se à imagem e semelhança de Deus. Não como posto ou dado, mas como realizado. No início que o ser humano recebe, está escrito o início que ele deve se tornar.

Essa diferença implica que a perspectiva, indicada por Lorizio como “solução”, ou seja, a “reconciliação”, assumiu rostos e formas bastante diversas ao longo dos séculos. É claro que, desde sempre, entre dado e dom, não houve uma perfeita coincidência para o ser humano.

E é bom lembrar que, para equiparar a experiência, uma via clássica, nunca totalmente exaurida e muitas vezes até vitoriosa, foi e continua sendo a reconciliação, a aceitação, a entrega, a obediência. Mas o mundo tardo-moderno, correndo o risco de “querer reduzir tudo sob o seu controle” e de desobedecer ao infinito, descobriu “mediações novas”, nas quais as “mãos” ensinaram algo à palavra.

Aqui, eu acredito que a tradição da “tarefa”, ou seja, a tradição ética, conheceu novas aberturas, novas crises e novas oportunidades. Tento dar dois exemplos. Dois dados/dons clássicos: ser escravos e ser cardiopatas graves

A história da razão comum e também da reflexão teológica conheceu por muito tempo formas de “reconciliação” na vida dos sujeitos, que diziam respeito à sua condição “social” ou “natural”. O que significava, no mundo antigo ou moderno, ter “nascido escravo”? Era um “dado” que certamente podia ser vivido como um “dom”. E assim foi.

Mas, desde que a ideia de escravidão foi culturalmente excluída da dignidade humana, nasceu uma “reconciliação diferente”: mudaram as relações sociais por meio de novas leis e criou-se um mundo sem escravidão (pelo menos sem escravidão formal). Não foi um fenômeno linear: mesmo em tal mundo “novo”, podia haver regras pelas quais uma mulher negra tinha que ceder o lugar no ônibus se um homem branco entrasse.

A mesma coisa, em um nível diferente, ocorreu com as pessoas cardiopatas graves. Elas eram chamadas, por uma longuíssima tradição, a assumir o “dado” embaraçoso como um “dom” e inventavam uma razão para isso. E podiam se reconciliar com a sua doença e ser capazes de viver a vida inteira como um dom. Mas, quando nasceu a “possibilidade tecnológica” do transplante de coração, a relação entre dado e dom mudou. Houve uma tarefa intermediária, uma luta, uma busca, uma experimentação, uma “infração/substituição da natureza” que abriu espaços de vida, de experiência e de esperança novos e antes inconcebíveis.

A lei e a tarefa, entre dado e dom

Por que propus esses dois exemplos, que podem até parecer impertinentes em relação ao tema? Porque, nessa relação entre “dado” e “dom”, que podemos aplicar ao sexo, ao corpo e à vida inteira, não podemos ler todas as passagens culturais fortes, em que entram novas palavras ou novas tecnologias, apenas com a categoria de “abismo antropológico”. Porque é o próprio homem/mulher que são constitutivamente abismais.

E a transformação da identidade sexual não inicia quando alguém pensa em “mudar de sexo”, mas quando a cultura comum não pensa mais o sexo como um simples equipamento para a geração. Essa “transformação da intimidade” é um fenômeno que já tem 200 anos e que é paralelo a uma compreensão diferente da lei. Ela não descerra simplesmente um olhar benevolente sobre o “delírio de um ser humano manipulador”, mas consegue dar solução a questões novas, que são e continuam sendo urgentes.

Mas aqui, precisamente, é necessário sair de uma visão da lei exclusivamente pedagógica e se abrir a uma função com a qual a lei reconhece um sofrimento novo e um novo direito. Sempre será possível pensar que uma eventual lei sobre a discriminação sexual poderia favorecer o capricho de quem quisesse tentar ser homem, sendo mulher, ou ser mulher, sendo homem.

Mas essa avaliação é típica de quem pensa o problema a partir de fora. A tutela de quem não se percebe no plano do gênero alinhado com o seu sexo constitui uma questão verdadeira, uma experiência profunda e dura, a respeito da qual o abismo antropológico corre o risco de ser sobretudo aquele de quem se arrisca a entendê-la apenas como o fruto de uma “campanha de imprensa” ou de um “lobby de poder”.

Entre o dado natural e o dom do sentido está o espaço aberto e complexo da tarefa. Esta não é uma invenção moderna. Nesse espaço, é possível legislar bem ou mal. Mas não acho que se possa simplesmente reduzir a tarefa ao dom ou ao dado. Isso, substancialmente, seria permanecer em uma abordagem que, não apenas teologicamente, seria dependente demais de um mundo que não existe mais.

Que fique claro, isso absolutamente não significa que a decisão de um sujeito que “quer mudar de sexo” (psicológica ou fisicamente) pode ser colocada imediatamente no campo dos direitos subjetivos aos quais é preciso oferecer uma proteção direta, nem no campo dos caprichos que mereçam apenas uma repreensão ou uma punição.

Existem ordenamentos jurídicos que nem sequer concebem a ideia de tutelar essas escolhas. Existem ordenamentos que as permitem até mesmo a um menor. O discernimento permanece necessário e precioso: mas não pode ser resolvido com a referência imediata ao dado ou ao dom. Pois o sexo nunca é apenas “natureza” nem apenas “graça”, mas também caminho histórico e passagem de consciência, compreensão geracional da relação entre gênero e sexo. Essa complexidade, a meu ver, exige categorias mais complexas. Mas nem por isso menos urgentes.

Luciano Floridi

BIG TECHS, A GRANDE OPORTUNIDADE PERDIDA DA AUTORREGULAÇÃO

Com a comercialização da web, o fracasso da tentativa de autorregulação teve sérios custos sociais e econômicos, como a desinformação online. A análise é de Luciano Floridi, filósofo italiano e professor de Ética da Informação na Universidade de Oxford, na Inglaterra. O artigo foi publicado em Corriere della Sera. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Se eu tivesse que escolher um ano para marcar o início da web comercial, eu sugeriria 2004, quando o Facebook foi lançado, e o Google fez a sua IPO (“initial public offering”, oferta pública inicial para cotar uma empresa no mercado). Antes disso, o debate sobre os problemas éticos – da privacidade ao bias, da moderação dos conteúdos ilegal ou não éticos às notícias falsas e à desinformação – havia sido principalmente acadêmico. Eram problemas previsíveis e, desde o fim dos anos 1980, nos congressos, nas revistas especializadas ou em seminários universitários, nós os discutíamos como fundamentais e prementes, ética e socialmente.

Na primeira conferência da International Association for Computing and Philosophy (da qual fui presidente), em 1986, entre os temas do programa estavam: o ensino online; como ensinar lógica matemática com software que rodava em DOS (o Disk Operating System introduzido pela IBM em 1981, do qual eu ainda tenho os disquetes em algum lugar do sótão); e algo que então se chamava de “computer ethics”, que se tornaria “information ethics” e que hoje se chama “digital ethics”. Mas ainda era cedo demais. A prevenção não se aplica, lamenta-se durante o tratamento.

Mais ou menos depois de 2004, as preocupações começaram a se espalhar também pela opinião pública. A comercialização da web trouxe para a vida de todos os dias problemas éticos já presentes em contextos especializados, como o spyware, o software que coleta dados sem o consentimento do usuário (o termo nasceu em 1995).

Logo começou a aumentar a pressão para melhorar as estratégias e as políticas empresariais e adequar o quadro normativo. Foi naquele período que a autorregulamentação começou a aparecer como uma estratégia útil para enfrentar a crise ética.

Lembro-me de encontros em Bruxelas nos quais muitos defendiam o valor da autorregulamentação, em contextos como a liberdade de expressão online. Já naqueles anos, o Facebook insistia na oportunidade de não legislar, mas de agir de forma “soft” (usa-se a expressão “soft law” também em italiano para se referir a normas desprovidas de eficácia vinculante direta), por meio de códigos de conduta que, por exemplo, garantiriam a presença na plataforma apenas de pessoas com mais de 13 anos de idade.

Circulava a ideia de que a indústria digital podia formular seus próprios códigos e padrões éticos, solicitar e monitorar a adesão a eles, sem a necessidade de controles ou imposições externos. Não era uma má ideia. Eu mesmo muitas vezes a defendi. Muitas relações internacionais se baseiam na soft law. Por exemplo, o Conselho da Europa promove o respeito pelos direitos humanos, pela democracia e pelo Estado de direito por meio de recomendações que indicam os comportamentos e os resultados desejáveis, mas sem sanções em campo de não observância.

Recentemente, eu introduzi e defendi a necessidade de uma ética soft (não apenas a hard, ou dura, que aprendemos na vida e que estudamos nos clássicos), que respeite, mas vá além da mera adequação (compliance) à lei em vigor. Por exemplo, pagar os seus próprios funcionários mais do que o exigido pela normativa também é uma questão de ética soft. Teoricamente, por meio da autorregulamentação, a ética soft e a soft law, as empresas poderiam adotar modelos de comportamento melhores, mais adequados eticamente às exigências comerciais, sociais e ambientais, de forma mais rápida, ágil e eficiente – fatores fundamentais em um setor que evolui tão rapidamente quanto o digital – sem ter que esperar por uma nova legislação ou acordos internacionais. Quando desenvolvida e aplicada corretamente, a autorregulamentação pode evitar desastres, aproveitar mais oportunidades e preparar a indústria para se adequar a futuros marcos jurídicos. Também pode contribuir com a própria legislação, antecipando e experimentando soluções que sejam mais facilmente atualizáveis e melhoráveis.

Eu continuo convencido de que, naqueles anos, era realista e razoável acreditar que a autorregulamentação poderia favorecer um diálogo eticamente construtivo e frutuoso entre a indústria digital e a sociedade. Como argumentei várias vezes, valia a pena tentar o caminho da autorregulamentação, pelo menos em um sentido complementar à legislação em evolução. Infelizmente, não foi assim.

Se eu tivesse que escolher outro ano, desta vez para indicar a maioridade da era da autorregulamentação, eu sugeriria 2014, quando o Google instituiu o Advisory Council (do qual eu fui membro) para enfrentar as consequências da sentença sobre o “direito ao esquecimento” da Tribunal de Justiça da União Europeia.

Foi a primeira de muitas outras iniciativas semelhantes. Aquele projeto teve muita visibilidade e um sucesso moderado, mas, no geral, a era da autorregulamentação foi decepcionante depois.

Nos anos posteriores, o escândalo Facebook-Cambridge Analytica em 2018 – previsível e evitável – e o Advanced Technology External Advisory Council, claramente mal concebido e de brevíssima duração, instituído pelo Google sobre a ética da inteligência artificial em 2019 (do qual eu fui membro), mostraram como a autorregulamentação era difícil e, em última análise, falimentar.

No fim, as empresas mostraram-se relutantes ou incapazes de resolver os seus problemas éticos, não necessariamente em termos de recursos, lobby e relações públicas, mas em termos de estratégia de alto nível, em nível de C-suite, para melhorar mentalidades e comportamentos equivocados, mas enraizados demais.

Recentemente, quando a indústria reagiu aos desafios éticos impostos pela inteligência artificial, criando centenas de códigos, diretrizes, manifestos e declarações, o vácuo da autorregulamentação pareceu constrangedor. Hoje, o Oversight Board do Facebook, instituído em 2020, é um anacronismo, uma reação tardia ao fim de uma era em que a autorregulamentação não conseguiu fazer a diferença.

É tarde demais, até porque a legislação já alcançou a indústria digital. Em particular, na União Europeia, o GDPR (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, em vigor desde 2016) foi seguido por iniciativas legislativas como o Digital Markets Act, o Digital Services Act e o AI Act, para citar os mais significativos. É um movimento normativo que provavelmente gerará um vasto efeito Bruxelas, substituindo um compromisso ético, que realmente nunca decolou, pela conformidade legal (compliance).

As empresas têm um papel crucial a desempenhar para além dos requisitos legais. A ética soft continua sendo um elemento essencial de aceleração competitiva e de “boa cidadania”. Mas a era da autorregulamentação, como estratégia principal para resolver os problemas éticos do digital, se concluiu. Ela deixa como herança um bom trabalho de limpeza do terreno, em termos de análise dos problemas e das suas soluções, de consciência cultural e social, de sensibilidade ética e também de algumas contribuições positivas para a legislação.

Por exemplo, o High-Level Expert Group on Artificial Intelligence (do qual eu fui membro), instituído pela Comissão Europeia, contou com a participação de parceiros industriais e forneceu o quadro ético para o AI Act. No entanto, o convite para se autorregulamentar, dirigido pela sociedade à indústria digital, tem sido amplamente ignorado.

Foi uma oportunidade histórica enorme, mas perdida, muito custosa social e economicamente; basta pensar nas consequências da desinformação online. Chegou a hora de reconhecer que ela não funcionou e, para usar as palavras do Evangelho, “forçá-las [as empresas] a entrar” (Lucas 14,23).

Jacir de Freitas Faria, OFM

ESPIRITUALIDADE HOLÍSTICA E O VAZIO EXISTENCIAL

"A espiritualidade holística é como a água que nunca cria raízes. Ele penetra na terra e flui sem pedir licença. Água não foi feita para ser controlada. A água não briga com a montanha, quando a encontra. Ela refaz o seu caminho. Como um novo modo de viver a espiritualidade plena (holística), a água nos ensina a sermos irmãos na pureza da vida, na fonte cristalina e casta dos relacionamentos saudáveis no tudo e no Todo", escreve Jacir de Freitas Faria, OFM. Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de exegese bíblica, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) e padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze, cujo último livro é O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).

Em nossos dias, muito se fala de espiritualidade. O ser humano vive momentos de crise em relação ao seu modo de existir na relação com os outros, com o mundo pós-moderno e, sobretudo, com o Sagrado. A predominância da razão na sociedade moderna, com seus avanços tecnológicos, científicos e a dessacralização do mundo, tem provocado crise de valores éticos e morais. A afetividade e crenças estão sendo redesenhadas no Ocidente. As futuras gerações conviverão com modos de ser, outrora inimagináveis nas sociedades antigas. Como no mundo cibernético e nas redes sociais, onde as mudanças e notícias correm de forma veloz, quem não se deixar moldar por esse modo de viver e conviver vai perder o bonde da história.

Na perspectiva religiosa, pairam no ar perguntas instigantes. As espiritualidades tradicionais ainda continuam válidas? O Devocionismo, por exemplo, é capaz de alimentar o vazio existencial que bate às portas da grande maioria? A crise provocada pelo Coronavírus (Covid-19) foi capaz e de suscitar novos modos de ser? Nesse caso, há os que afirmam que nada mudou nem mudará. Não serei tão radical, mas é notório que algo acrescentou à vida dos humanos do planeta terra, ricos e pobres mortais. A questão é como ressignificar a vida sempre. O ser humano é fruto das decisões que vai tomando em sua vida. Mas, o que é mesmo espiritualidade? E essa tal de espiritualidade holística?

Espiritualidade é algo que vai além da religião. Nos últimos séculos, as religiões passaram e passam por crises nos seus modos de ser como instituições. Vemos reflexos disso no Brasil, onde há uma volta ao conservadorismo católico, agora protagonizado, defendido por leigos. No afã de defender a Igreja Instituição, eles atacam até o Papa Francisco. A Santa Inquisição medieval, que mandava para a fogueira os opositores da Igreja e da fé, tem agora novos atores no comando.

O Papa Francisco tem exercido liderança mundial inconteste, justamente por sua espiritualidade inclusiva, que rompe barreiras, propondo a destituição de muros que acrisolam pessoas no vazio da fé. A sua recente proposta de iniciar um processo de escuta dentro da Igreja, o que servirá de base para o Sínodo dos Bispos, em 2023, é uma tentativa de reviver o Vaticano II e de abrir novas portas para o catolicismo mundial a partir da comunhão, participação e missão. A pergunta, no entanto, é: “Tem futuro a Igreja Católica?”, como escreveu Frei Betto.

Diante desse cenário, o que propõe a Espiritualidade holística? Esse modo de ser se define como sendo um modo de viver a fé e a relação com o Sagrado, para além dos modos convencionais das religiões institucionalizadas, isto é, de forma corpórea, integrada e afetiva. A fé é a mesma, mas ela é vivenciada de forma diferenciada, sem, necessariamente, estar vinculada à uma religião. O Sagrado não perdeu o seu sentido, muito pelo contrário, Ele está sendo revisitado sob novo olhar, novas perspectivas. Uma pessoa holística, característica pós-moderna, pode até participar dos ritos religiosos com experimento de relações, mas não como adesão a essa ou àquela religião. Ela participa de uma celebração de batizado, casamento etc. mesmo não sendo católica ou evangélica.

Holístico, substantivo grego originários de holos (o todo, inteiro), é o modo de ver a si mesmo, os outros e o mundo como um todo interligado, em relação e não separado. Uma espiritualidade holística é aquela que considera a integração entre a razão, o corpo e os sentimentos. Desse modo, Deus deixa de ser um Ser Superior, Transcendente e Poderoso, mas próximo das pessoas.

Correlato à espiritualidade está o vazio existencial, provocado pela solidão e pelo desejo exacerbado de sempre querer consumir, comprar, ter, de conhecer para dominar, de viver sem conviver, o que ocasionou os relacionamentos virtuais, zapeados de fofocas e de Fake News. O que fazer diante da falta de sentido da vida frenética e vazia?

Os psicólogos, substitutos dos padres de confessionário que atendiam os fiéis de forma não tanto profissional, mas a partir da fé, veem seus consultórios cada vez mais abarrotados de pessoas deprimidas, que perderam o sentido da vida, com as dores da alma provocadas por uma sociedade suicida. Nesse sentido, é notório o fato de que os padres e religiosos, outrora orientadores espirituais, também estão na fila dos que esperam ser atendidos por eles.

Acrescente-se a isso o número preocupante de padres suicidas. O vazio existencial chegou também para os “profissionais do Sagrado”. Aliás, a figura do padre como um super-homem, assexuado e sacralizado, entrou em profunda crise a partir do Concílio Vaticano II. Urge redesenhar o perfil espiritual do padre, do religioso(a) na sociedade atual.

Na tentativa de encontrar novos caminhos, atualmente têm surgido muitos movimentos de espiritualidade com as mais variadas propostas de cursos, dinâmicas, terapias corporais e musicais, massagens terapêuticas e vibracionais, eneagrama, meditação, mandala, respiração, renascimento etc. Destaque para os retiros holísticos que cuidam do corpo para cuidar do espírito, propondo encontros de espiritualidade coletiva e individual, com reeducação alimentar associada à desintoxicação do corpo com jejuns, monodietas, atividades físicas, celebrações da fé etc.

Para finalizar, diria que a espiritualidade holística é como a água que nunca cria raízes. Ele penetra na terra e flui sem pedir licença. Água não foi feita para ser controlada. A água não briga com a montanha, quando a encontra. Ela refaz o seu caminho. Como um novo modo de viver a espiritualidade plena (holística), a água nos ensina a sermos irmãos na pureza da vida, na fonte cristalina e casta dos relacionamentos saudáveis no tudo e no Todo. E assim, com o salmista, no vazio existencial de nossas vidas, haveremos de rezar: “Minha alma tem sede de ti, minha carne te deseja com ardor, como terra seca, esgotada, sem água” (Sl 63,2).

Edição 171, outubro 2021

Anita Prati

O SÍNODO E AS MULHERES

"Simpático, o Cardeal Grech. Simpático e despreocupado como a Sra. Banks. Ela pleiteava o voto para as mulheres, ele pleiteia o voto para ninguém. Ou talvez eu tenha entendido mal", escreve Anita Prati, em artigo publicado por Settimana News. A tradução é de Luisa Rabolini.

Na sociedade é garantido o direito de voto às mulheres. E na Igreja? As antigas exclusões prevalecerão? O Sínodo será capaz de superar esse atraso? Winifred Banks é certamente uma das personagens mais simpáticas do clássico da Disney Mary Poppins, lançado nos Estados Unidos no verão de 1964 e na Itália no ano seguinte. Esposa do rígido e empolado Sr. Banks, banqueiro totalmente dedicado à ordem e ao trabalho, e mãe de Jane e Michael, os dois pequenos moleques que serão confiados aos cuidados de Mary Poppins, uma babá "praticamente perfeita", Winifred faz seu primeiro aparecimento no filme - ambientado no início do século XX em Londres - quando entra em casa cantarolando alegremente.

Como ela dirá às empregadas, que a ouvem encarando-a com olhos arregalados, ela está voltando de uma manifestação antigovernamental durante a qual algumas sufragistas, para reivindicar o direito de voto, se acorrentaram às rodas da carruagem do primeiro-ministro e depois se deixaram levar para a prisão cantando e jogando folhetos.

Winifred, com um vestido azul até aos pés completo com uma faixa atravessada no peito com a inscrição Vote for women, envolve as duas empregadas numa exuberante explosão de enérgica felicidade, cantando com elas uma canção memorável:

Somos claramente soldados vestindo saias

E intrépidas guerreiras a favor do voto à mulher

Apesar de adorar homens individualmente

Concordamos que, como grupo eles são bastante estúpidos!

Libertar-se das algemas de outrem!

Lado a lado na batalha!

Filhas de nossas filhas vão adorar-nos

E gratas elas entrarão no coro "Muito bem, Irmã Sufragista!"

Adeus à nossa mansa e suave submissão!

Nós estamos lutando por nossos direitos, militarmente! Nunca tema!

É quase inacreditável essa ênfase para um direito que hoje, na Itália - os últimos números das eleições administrativas de outubro estão ali para ser vistos -, agora apenas um em cada dois eleitores se sente obrigado a exercer.

Um longo caminho

No entanto, não podemos esquecer como foi longo e difícil o caminho que levou as mulheres a poderem exercer o direito de voto; na verdade, de vez em quando vale a pena refrescar algumas datas e lembrar, por exemplo, que de 1893, ano em que a Nova Zelândia introduziu o sufrágio feminino, a 2 de junho de 1946, quando as nossas avós e mães tiveram pela primeira vez direito de acesso às urnas, mais de cinquenta anos se passaram.

Nesse ínterim, o Norte da Europa já havia dado um passo decisivo nessa direção há algumas décadas. Resta o consolo de não ter atingido a meta do sufrágio universal por último: depois de nós, a Suíça (1971) e Portugal (1976), sem falar nos Emirados Árabes Unidos ou na Arábia Saudita, que aderiram ao voto feminino apenas em 2000.

Winifred Banks sorri orgulhosa e despreocupada enquanto canta Suffragette, somos nós!; sorri e nos faz sorrir. O nosso é o sorriso de quem se sente segura, de quem pode dar como certo um direito que outras reivindicaram e obtiveram, e não apenas para si; o texto original em inglês da canção da Sra. Banks, aliás, em certo ponto diz que as filhas de nossas filhas vão nos adorar.

Podemos sorrir com a Sra. Banks porque temos certeza de que ninguém jamais poderá impedir que nós, mulheres de um Ocidente aparentemente transportadas para além da discriminação de gênero, entremos em uma cabine de votação para exercer um nosso sacrossanto direito. E temos tanta certeza de que ninguém jamais poderá tirar esse direito ao voto, que até podemos nos permitir (o luxo?) de não votar.

Podemos decidir não votar. Podemos decidir expressar uma escolha política - de e como cidadãs - também por meio da abstenção. Podemos decidir, e é dentro dessa possibilidade de decisão que sentimos fluir a linfa vital.

Porque o direito ao voto, nós mulheres do Ocidente, filhas das filhas daquelas mulheres que perderam suas vidas e reputação pelo direito de votar, nós não o consideramos mais uma concessão magnânima que os homens, se for o caso, se eles quiserem, ou se eles se sentem obrigados (se ainda nos negar o voto, haverá problemas para você), eles podem fazer isso com as mulheres, mas nós sentimos e vivemos isso como um direito humano universal. Um direito humano sagrado e intangível. Pedra angular da nossa civilização, da nossa sociedade civil e da própria ideia de pólis, de Estado.

Depois, há a Igreja

Depois, é claro, há os clubes exclusivos, os "clubes de cavalheiros". Somente indivíduos do sexo masculino podem entrar lá. Eles leem o jornal, jogam xadrez. Eles votam para eleger o presidente ou para modificar o estatuto. Eles fazem tudo e resolvem tudo sozinhos, sem a necessidade das mulheres. Para eles está perfeito assim, eles se divertem, eles gostam. E dizem isso claramente: SOMENTE PARA HOMENS.

Nenhuma de nós pensa em reivindicar o direito de acesso, não nos interessa. No máximo, se tivermos vontade, decidiríamos fundar também um clube como esse, um clube igualmente exclusivo com um igualmente explícito APENAS PARA MULHERES declarado firmemente no estatuto.

Depois, há a Igreja. Tendo já superado (espera-se ...) a secular solidariedade Aristóteles-Tomás, que olhavam para as mulheres como mas occasionatus, os ventos de abertura dos últimos papas foram reconhecendo a presença - até mesmo na história da Igreja! - de um génio feminino.

Portanto, costuma-se dizer, é justo que as mulheres na igreja não apenas se limitem a limpar. As mulheres, costuma-se dizer, devem ser protagonistas da história e da vida da Igreja. E nós, mulheres que vamos à igreja todos os domingos e ainda mais, e somos sacristãs, catequistas, coristas, leitoras, e participamos nos conselhos pastorais, nas iniciativas do oratório, na Caritas, nós que nas nossas igrejas cada vez mais vazias nos olhamos na cara e vemos quão poucas somos - poucas, ainda assim mais numerosas que os homens -, nós que na vida de nossas igrejas nos sentimos protagonistas ativas de nosso caminho de fé, assim como nos sentimos protagonistas em nossas famílias, no mundo do trabalho, nas nossas cidades - nós, mulheres, esperaríamos alguma coerência. Principalmente agora que, com o Sínodo dos Bispos, a Igreja com “I” maiúsculo parece querer abrir uma nova página em sua história.

Em vez disso, o Cardeal Mario Grech, Secretário-Geral do Sínodo dos Bispos, disse que a atenção dada à questão do voto às mulheres na assembleia não o deixa sereno. Não é o voto que importa, disse ele. Porque – segundo ele -, se o processo sinodal envolve todo o povo de Deus, a convergência se traduzirá em consenso, o consenso se traduzirá em harmonia e, portanto, será possível prescindir do voto.

Simpático, o Cardeal Grech. Simpático e despreocupado como a Sra. Banks. Ela pleiteava o voto para as mulheres, ele pleiteia o voto para ninguém. Ou talvez eu tenha entendido mal. Por que ... e se não houver convergência? Se não houver consenso? Se não houver harmonia? O que farão os padres sinodais?

Existem duas opções. Ou voltarão para casa sem nada de concreto e começarão a orar e esperar que o Espírito inspire, com os seus tempos, que não são os tempos dos homens, harmonias ainda escondidas. Ou pensarão em refazer estradas conhecidas, graníticas e consolidadas, e voltarão - mais uma vez e como nos melhores clubes de cavalheiros - a votar por sua própria conta a sua história.

Edelberto Behs /IHU

MEXERAM NO DÍZIMO DA UNIVERSAL EM BRASÍLIA

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) denunciou 12 pastores, expulsos da denominação, de desvirarem para suas contas pessoais em torno de 3 milhões de reais avindos de dízimos e ofertas recebidas na capital federal. A denúncia está sendo investigada pelo Departamento de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Decor), da Polícia Civil de Brasília. A reportagem é de Edelberto Behs, jornalista.

A IURD suspeita que o grupo é liderado pelo ex-pastor regional Nei Carlos dos Santos, informa o portal Metrópoles. Os religiosos abriram empresas de fachada para lavar o dinheiro conseguido com os desvios, principalmente recursos do chamado “Culto dos 318”, reunião de fiéis voltada a empresários e pessoas que queiram melhorar a vida financeira.

O comportamento financeiro de Nei dos Santos, com salário de 2,9 mil reais por mês pagos pela Universal, chamou a atenção da liderança. No ano passado, ele comprou um apartamento de luxo na Quadra 208 da Asa Norte, bairro nobre de Brasília, por 2,6 milhões de reais, com parcelas mensais de 87,7 mil reais. Também adquiriu três carros, no valor de 248 mil reais.

Nei dos Santos foi consagrado pastor da Universal de 1997, ascendeu à posição de pastor regional no Distrito Federal em 2003, dando suporte espiritual a colegas de vários templos da capital. Também tinha acesso irrestrito às ofertas e doações dos membros.

Sem conhecimento da IURD, Nei dos Santos abriu uma empresa de psicologia e consultoria em tecnologia da informação, com capital social declarado de 500 mil reais. Em sociedade com o colega Welison Fernandes Pereira, o pastor regional constituiu outra empresa, a New Gestão Empresarial.

Mirelle Pinheiro e Carlos Carone, repórteres do Metrópole, apuraram que os doze suspeitos constituíram empresas de consultoria, tecnologia e transporte em Brasília, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Paraná e Santa Catarina.

Mas o negócio mais lucrativo de Nei dos Santos, tudo indica, está vinculado a aplicações em criptomoedas. O nome do pastor apareceu em documentos apreendidos pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal e há indícios de que ele era um dos sócios-administradores de Glaidson Acácio dos Santos, conhecido como o Faraó dos Bitcoins, preso pela PF no Rio de Janeiro em agosto passado. O religioso teria movimentado 68 milhões de reais nessas transações, informa repórter Mirelle Pinheiro, do Metrópoles.

Nei conseguiu recrutar 950 clientes até novembro de 2020 para o negócio que funciona como uma pirâmide financeira, operada pela GAS Consultoria e Tecnologia, constituída em março de 2015 por Glaidson Acácio dos Santos, que operava à margem da fiscalização e do Sistema Financeiro Nacional.

Os advogados da IURD informaram à polícia, em documento, que uma das premissas da igreja é a dedicação integral à atividade religiosa. A Universal busca subsidiar necessidades básicas dos colaboradores, porém “sem qualquer tipo de luxo ou ostentação”, princípio que seu líder máximo, o bispo Edir Macedo, não segue, uma vez que é dono de apartamentos de luxo e de jatos executivos.

Debate com Roberto Marchesini

A CONDIÇÃO PÓS-HUMANA NUM MUNDO MAQUÍNICO

O Prof. Dr. Roberto Marchesini, médico veterinário, etologista e filósofo, esteve no IHU a debater sobre “A condição pós-humana em um mundo maquínico. Tecnosfera, presença e responsabilidade social”.

Em um artigo enviado pelo próprio professor para o IHU em março deste ano, Marchesini introduz esta discussão asseverando que “ o pós-humano é uma condição própria do ser humano, uma entidade que, desde as primeiras expressões, fizeram da hibridação uma das expressões mais típicas da própria natureza. Podemos, portanto, afirmar que sempre fomos pós-humanos”.

Segundo o pensamento pós-humanista, Marchesini comenta que “a espécie humana apresenta características inatas – entendidas como tendências motivacionais, características cognitivas, dimensão de umwelt, gamas de possíveis resultados ontogenéticos – assim como todas as outras espécies. Estas são o fruto do percurso filogenético, ou seja, das pressões seletivas e da linhagem particular de derivação, da espécie Homo sapiens”. E aponta para o fato de “de uma natureza humana que representa tanto as condições de partida do indivíduo, quanto o perímetro do campo de desenvolvimento possível para o ser humano. Ao contrário do trans-humanismo, para a perspectiva pós-humanista não existe uma total liquidez da condição humana, mas apenas uma relevante plasticidade, atribuível ao excesso somático, por exemplo o grande número de neurônios e a flexibilidade da conformação pratognósica, e não a uma suposta incompletude”.

A hibridização inerente a nossa espécie incita não apenas elucubrações filosóficas e ontológicas, mas também sociais, éticas e políticas. Conforme expressado pelo professor em outro artigo publicado no início de 2021, “a queda da centralidade universalista do ser humano é evidente. O humanismo, antes, oferecia valores-bússola, mas hoje não é mais capaz de fazê-lo. A filosofia pós-humanista tenta dar novos pontos de referência, em um cenário em que a técnica não é mais um instrumento, mas sim um agente de mudança do humano”.

A mudança de objetos técnicos analógicos para digitais é um dos elementos essenciais para revisarmos nossas acepções sobre a Técnica. Conforme este filósofo, “se até a primeira metade do século XX ainda se podia falar de téchne como de um conjunto de entidades de suporte, parceladas em uma multidão de instrumentos disjuntos, com o advento da revolução digitálica, ela, ultrapassando a condição analógica dos elementos instrumentais separados entre si, assume uma consistência dimensional, ou seja, faz-se ecossistema. A téchne torna-se, portanto, um segundo ambiente que, mesmo quando põe em contacto, coloca o sujeito em uma condição de relacionalidade dessomatizada, razão pela qual falamos de tecnosfera”.

E continua: “na tecnosfera, o ser humano é chamado a uma ação de projeção, ou seja, em termos de plena vivência ou de adesão a uma segunda realidade, a fim de poder usufruir das diversas utilidades funcionais – tanto a leitura de um texto, a assinatura de um documento, a escuta de um trecho musical ou a assistência de um filme – movendo-se de modo dimensional entre elas, exatamente como se fosse em um ambiente. Isso muda consideravelmente a noção de presença e responsabilidade nas práticas, uma vez que toda produção do sujeito – seja ela uma simples postagem em uma mídia social ou uma decisão que envolva centenas de pessoas agida com um simples clique – é sempre mediada de modo desestrutural em relação ao plano somático e não se limita ao âmbito telecinético”.

Roberto Marchesini é médico veterinário, etologista e filósofo que se dedica ao estudo de animais desde a década de 1980. Ele combina perspectivas científicas e filosóficas para abordar uma série de questões sobre evolução, comportamento, mente, subjetividade, cultura e ética. Com colegas, ele desenvolveu uma escola de interação e treinamento animal que se baseia em tratar os animais (cães, cavalos, gatos, outros) como interlocutores mentais em uma interação social, ao invés do uso de reforço negativo e simples condicionamento. Ele é o expoente mais conhecido da zooantropologia e do pós-humanismo na Itália, e desenvolveu versões únicas de ambos que podem contribuir para a literatura anglófona sobre eles. 

Frei Gilvander /IHU

SER HUMANO REDUZIDO À MÁQUINA E À MERCADORIA?

"Em uma sociedade capitalista, que é máquina de moer vidas, o ser humano é reduzido à máquina e à mercadoria e as mercadorias são fetichizadas e reificadas", escreve Frei Gilvander, padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG.

A Constituição Federal de 1988 tem como um dos seus princípios basilares o respeito à dignidade humana. Segundo a mística e espiritualidade bíblica, o ser humano é “imagem e semelhança de Deus” (Gênesis 1,26) e nosso corpo é “templo do Espírito Santo” (1 Coríntios 6,19), segundo o apóstolo Paulo. Ou seja, toda pessoa é sagrada, portadora de uma dignidade infinita que precisa ser respeitada e valorizada. No entanto, temos que perguntar: em uma sociedade capitalista, o ser humano é reduzido à máquina e à mercadoria e as mercadorias são fetichizadas e reificadas? Para respondermos a estas perguntas precisamos analisar o mais profundo das relações sociais e não acreditar em ideologia dominante, que sempre cumpre o papel de oprimir e explorar.

Ajuda a compreender os processos de fetichização e de reificação a análise que Karl Marx tece sobre a relação íntima existente entre produção e consumo, que afirma: produção é consumo também. “A produção é também imediatamente consumo. Consumo duplo, subjetivo e objetivo. [Primeiro]: o indivíduo, que ao produzir desenvolve suas faculdades, também as gasta, as consome, no ato da produção, exatamente como a reprodução natural é um consumo de forças vitais. Segundo: produzir é consumir os meios de produção utilizados, e gastos, parte dos quais (como na combustão, por exemplo) dissolve-se de novo nos elementos universais. Também se consome a matéria-prima, a qual não conserva sua figura e constituição naturais, esta ao contrário é consumida. O próprio ato de produção é, pois, em todos os seus momentos, também ato de consumo” (MARX, 2005, p. 31).

O consumo é também imediatamente produção. Ao consumir o alimento, a pessoa humana se produz. A produção é imediatamente o seu contrário: o consumo, e vice-versa. A produção é também mediadora para o consumo e vice-versa. “Sem a necessidade não há produção. Mas o consumo reproduz a necessidade” (MARX, 2005, p. 32). “A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, que se come com faca ou garfo, é uma fome muito distinta da que devora carne crua, com unhas e dentes. A produção não produz, pois, unicamente o objeto do consumo, mas também o modo de consumo, ou seja, não só objetiva, como subjetivamente. Logo, a produção cria o consumidor. [...] A produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto” (MARX, 2005, p. 32).

Theodor Adorno critica o abandono da dialética pela esquerda que, na prática, muitas vezes vê somente o negativo. Vê apenas o que lhe interessa e, vítima do racionalismo e do pragmatismo, acaba com o movimento dialético e engessa a história. Para Adorno, acima de tudo, “dialética significa intransigência contra toda e qualquer reificação” (ADORNO, 1986, p. 88). Uma mercadoria pode ser algo material ou imaterial, que satisfaz necessidades humanas e que é veículo de valor. Por exemplo, vários serviços que, ao serem vendidos como mercadorias, revelam valor. “O ser humano não é em si uma mercadoria: torna-se uma mercadoria quando da sua inserção nas relações capitalistas de produção” (IASI, 2011, p. 133). Assim, em última instância, no capitalismo, a mercadoria produz quem a produz: um ser ‘humano’ domesticado reduzido a mera peça da engrenagem do sistema do capital e consumidor contumaz, quando pode. “Como proletário assalariado, os seres humanos estão produzindo mais que alimento, utensílios, roupas ou sapatos; estão produzindo história, estão produzindo os diferentes seres particulares que compõem o gênero humano” (IASI, 2006, p. 78).

Importante observar o que diz a esse respeito Ruy Fausto: “A noção de encantamento como de desencantamento tem na realidade um duplo sentido, que Weber não parece ter bem destrinchado. Por um lado, “desencantamento” remete a um mundo a-qualitativo, no qual desaparecem as diferenças de qualidade. Por outro, ele remete a um mundo de inércia, no qual os objetos inertes predominam, em detrimento dos objetos “vivos”. Ora, o que caracteriza o capitalismo é o fato de que nele se tem um desencantamento no primeiro sentido, mas não no segundo” (FAUSTO, 1997, p. 167).

Nas relações de produção e de comercialização, a função universal de equivalente se fixa em uma mercadoria na forma de dinheiro. Não se considera mais o valor de uso de uma mercadoria, mas o dinheiro, na sociedade capitalista, adquire a função universal de equivalente. A forma dinheiro é o ponto de chegada do processo de aparição das mercadorias, mas esse movimento de aparição é também um movimento de ocultação. A essência das mercadorias é ocultada, porque aparece através do dinheiro. Assim, o dinheiro tem um caráter ofuscante também, porque introduz a ilusão e o fetichismo. É o que explica Ruy Fausto: “Na medida em que na forma dinheiro se fixa numa mercadoria adequada a função universal de equivalente, nela se reúnem de um modo não só objetivado, mas estável as duas funções do equivalente: a de ser não-valor-de-uso e a de ser espelho de valor. O valor de uso material da mercadoria é ‘suprimido’ em benefício de um valor de uso formal: a mercadoria dinheiro é ‘não’ valor de uso (portanto imediatamente trocável), e ao mesmo tempo ou por isso mesmo ela é espelho de valor” (FAUSTO, 1997, p. 72).

“O fetichismo é a naturalização do objeto, a negação de que sua gênese está em última instância (isto é como pressuposição) na prática dos agentes” (FAUSTO, 1997, p. 78). Para expressar o valor de uma mercadoria, o dinheiro deve ser ao mesmo tempo valor e mercadoria, embora mercadoria negada em dinheiro. O papel-moeda é a encarnação de uma função do dinheiro e tem valor porque circula. Para se demonstrar a coisificação e a alienação – estranhamento - do trabalhador no processo de produção capitalista, Marx diz que “Potter, porta-voz dos fabricantes, distingue duas espécies de máquinas, ambas pertencentes ao capitalista; uma jamais deixa a fábrica, outra passa as noites e os domingos nos casebres da vizinhança. A primeira é morta, a segunda é viva” (MARX, 1982, p. 145). Uma diferença entre a/o trabalhador/a reduzida/o a máquina e a máquina produzida pelo trabalhador é que a máquina se desgasta e exige melhoramento constante, enquanto o/a trabalhador/a, pelo exercício do trabalho, se aprimora e acontece uma acumulação de aprimoramento de habilidades nas gerações sucessivas.

Enfim, pela análise feita, concluímos que, em uma sociedade capitalista, que é máquina de moer vidas, o ser humano é reduzido à máquina e à mercadoria e as mercadorias são fetichizadas e reificadas. Assim, o que precisa ser enfrentado e superado no Brasil é o capitalismo que, por meio da mercantilização da vida, pelo agronegócio, pela privatização das empresas, da terra e das águas – bens comuns -, com um Estado subserviente aos interesses do grande capital, segue com ideologia dominante que insufla cotidianamente o individualismo, o egocentrismo, a concorrência e a competição, como se fossem valores, mas são na prática vírus que solapam a convivência social e vão triturando e moendo a dignidade da pessoa humana.

Joan Subirats

REPENSAR O TRABALHO

Será cada vez mais difícil estabelecer parâmetros gerais e homogêneos para um cenário trabalhista crescentemente diversificado. Não deveríamos confundir igualdade com homogeneidade. Mas, ao contrário, persistir em melhorar igualmente as condições de trabalho para situações que necessariamente serão cada vez mais diversificadas”, analisa Joan Subirats, professor de Ciência Política e pesquisador do Instituto de Governo e Políticas Públicas da Universidade Autônoma de Barcelona, em artigo publicado por El Diario. A tradução é do Cepat /IHU

Se existe algo que caracteriza as pessoas é a sua relação com a sobrevivência veiculada ao trabalho. Mas, a evolução econômica e social foi tornando quase anacrônica a conexão direta trabalho-sobrevivência. São muito poucos os que vivem com o que eles mesmos produzem.

Com o progressivo avanço da industrialização, o que foi predominando é o trabalho como acesso ao salário. Um trabalho que foi se distanciando do lar para se concentrar em lugares pensados especificamente para realizar trabalhos produtivos.

O trabalho como sistema de acesso a recursos que nos permitem viver foi sendo assumido como algo natural. Não debatemos que para viver é preciso trabalhar. O que debatemos é se falta trabalho, se é fácil ter acesso ao mesmo, se gostamos de fazer o que nos oferecem ou a respeito de qualquer outro requisito.

Como bem destacava Karl Polanyi, uma das próprias bases da economia de mercado é a subtração do trabalho da esfera social, coletiva, e sua conversão em algo privado, totalmente subordinado à lógica mercantil. Essa privatização do trabalho foi se acentuando nos últimos anos, ao se diversificar de maneira extrema os tipos de tarefas a ser desenvolvidas, individualizando ao máximo trabalhos que antes faziam parte de categorias mais amplas.

Às vezes, é complicado diferenciar a crítica à própria ideia que subjaz em determinados trabalhos da crítica ao trabalhador que o desenvolve, o que é evidentemente diferente. Tudo isso foi corroendo a visão política e social sobre o mundo do trabalho, o que também explica a própria crise dos sindicatos como expressão organizada dos trabalhadores em seu conjunto.

O trabalho também está cercado por uma aura ética e moral. É preciso trabalhar. O trabalho foi se tornando a base do crescimento individual, da realização pessoal, do reconhecimento social e do status que cada um foi capaz de construir.

Ninguém duvida que o trabalho tem valor. Mas a verdade é que em muitos casos a sensação de criatividade, que é inegável em todo trabalho, não precisa necessariamente passar pelo trabalho que, enfim, você realiza para poder sobreviver.

O relatório Espanha 2050, apresentado há alguns meses, expressa com clareza os desafios existentes na esfera do trabalho. O que fica claro, por um lado, é o aumento da heterogeneidade de situações, contratos e tipologias nas relações de trabalho. Mas, por outro lado, destaca-se a necessidade de aumentar a taxa de emprego, quando, ao mesmo tempo, mostramos números recordes no desemprego de longa duração e no desemprego juvenil.

Também não são poupados argumentos quanto à necessidade de melhorar as condições de trabalho e a relação entre emprego e formação. As comparações que aí encontramos com países como Itália, França, Alemanha ou Suécia destacam que trabalhamos mais horas e dedicamos mais tempo às refeições do que qualquer um, ainda que em troca dormimos menos. Sem que desse balanço se desprenda que nossa produtividade aumenta, apesar das horas dedicadas ao trabalho.

Os dados também apontam que 15% estão insatisfeitos com o seu trabalho, que quase um terço não aprende nada nesse ofício e que, além disso, na mesma proporção, entendem que sofrem estresse laboral. Se somarmos tudo isso, não é estranho que mais da metade das pessoas ocupadas na Espanha não trabalhariam caso não precisassem do emprego para viver, quando, no outro extremo, três em cada quatro dinamarqueses ou holandeses trabalhariam.

Nada do que estamos dizendo é totalmente novo. Em meio a essa grande revolução nas condições de trabalho, o que foi gerando um certo barulho é, por um lado, a proposta de redução da semana de trabalho para quatro dias e, por outro, a rápida intensificação, via pandemia, do teletrabalho. Sem dúvida, as etapas de confinamento propiciaram, ao menos para uma boa parte dos assalariados, um certo teste piloto do que envolve modificar algo visto até então como “natural”.

Deslocar-se ao trabalho como obrigação diária e rotineira, para lá passar uma jornada de trabalho completa. A pandemia levou as pessoas a se interrogarem sobre um equilíbrio melhor entre vida e trabalho, enquanto permitia que alguns também pudessem se questionar se era melhor trabalhar de casa ou comparecer ao centro correspondente.

A redução das horas de trabalho foi uma constante entre as reivindicações trabalhistas, embora ultimamente se insistiu mais na melhora das condições de trabalho do que em sua redução. As mudanças tecnológicas, a constante intromissão das redes e das mensagens, foi situando o chamado “direito à desconexão” como um elemento importante para repensar as dinâmicas trabalhistas.

Mas, por outro lado, há aqueles que precisam trabalhar mais, já que seus salários não permitem que sobrevivam dignamente. É difícil a partir de lógicas tradicionais reunir perspectivas tão diferentes, que surgem de posições também muito diversificadas entre assalariados de diferentes condições.

O certo é que a redução das horas de trabalho foi em seu momento uma reivindicação muito poderosa que serviu para unificar posições muito diversificadas, tradições sindicais distintas, elementos raciais ou de gênero diferenciados, etc. A redução para 32 ou 35 horas, na atualidade, concretizada nessa semana de trabalho de quatro dias, deveria conseguir responder a uma realidade laboral tremendamente diversificada, tanto em condições de trabalho e salário, como em lugares ou tarefas a ser desenvolvidas.

Ao contrário, o que vemos é que as demandas se esfacelam, já que existem aqueles que aceitariam reduzir a semana para quatro dias, caso isso não signifique perda salarial, ao passo que outros precisam trabalhar mais para poder responder a seus desejos e necessidades.

Será cada vez mais difícil estabelecer parâmetros gerais e homogêneos para um cenário trabalhista crescentemente diversificado. Não deveríamos confundir igualdade com homogeneidade. Mas, ao contrário, persistir em melhorar igualmente as condições de trabalho para situações que necessariamente serão cada vez mais diversificadas.

E assim serão provavelmente não apenas porque o mercado aponta para isso, mas porque os próprios trabalhadores procuram fórmulas de conexão salarial diferentes. Daí a importância de construir alicerces de direitos trabalhistas básicos (como o salário mínimo ou a regulamentação da jornada de trabalho) que impeçam que aumente a fragilidade daqueles que menos capacidades possuem para defender suas condições essenciais de vida.

Edição 170, setembro 2021

Fulvio Ferrario

NEUROCIÊNCIAS E LIVRE ARBÍTRIO

"A pergunta sobre o 'livre-arbítrio' é muitas vezes feita nestes termos: que sentido pode ter tal categoria, quando os processos de tomada de decisão parecem ser determinados por dinâmica neurofisiológica e, de acordo com experimentos famosos, resultam substancialmente realizados antes que o cérebro os registre no plano de consciência? A questão, evidentemente, é ampla, no que diz respeito à compreensão do ser humano, da ética e até do direito: de fato, envolve a própria noção de responsabilidade. Estamos perante a prova de que a noção de liberdade está entre as mais difíceis de tratar: envolve, de fato, os mais diversos planos lógicos, cognitivos, emocionais, linguísticos, gerando o risco de confusões paralisantes", escreve Fulvio Ferrario, teólogo italiano e decano da Faculdade de Teologia Valdense, em Roma, em artigo publicado por Riforma. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

O ataque ao chamado "livre arbítrio", seja lá o que isso signifique, não é novo. A ideia do "ser humano - máquina" foi explicitamente formulada no século XVIII, mas não é difícil identificar suas raízes nas múltiplas tendências "naturalistas" (antes chamadas de "materialistas") da filosofia grega antiga. É fato, porém, que a abordagem neurocientífica constitui um salto qualitativo: abandonando definitivamente modelos um tanto simplistas de tipo mecânico, hoje se tenta descrever a atividade cerebral e os processos de tomada de decisão usando instrumentos teóricos que integram novos conhecimentos de caráter fisiológico e bioquímico a chaves de leitura derivadas de ciência da computação.

A pesquisa teórica básica, além disso, está em estreito diálogo com aquela tecnológica, comprometida (com considerável sucesso, ao que parece) em empurrar adiante os limites da inteligência artificial.

A pergunta sobre o "livre arbítrio" é muitas vezes feita nestes termos: que sentido pode ter tal categoria, quando os processos de tomada de decisão parecem ser determinados por dinâmica neurofisiológica e, de acordo com experimentos famosos, resultam substancialmente realizados antes que o cérebro os registre no plano de consciência? A questão, evidentemente, é ampla, no que diz respeito à compreensão do ser humano, da ética e até do direito: de fato, envolve a própria noção de responsabilidade.

Estamos perante a prova de que a noção de liberdade está entre as mais difíceis de tratar: envolve, de fato, os mais diversos planos lógicos, cognitivos, emocionais, linguísticos, gerando o risco de confusões paralisantes.

Já o debate católico-protestante (mas, em última análise, totalmente interno ao pensamento de Agostinho) sobre graça e livre (ou servo) arbítrio é um exemplo desse risco. Lutero poderia falar ao mesmo tempo da liberdade do cristão e de servo arbítrio: obviamente, trata-se de diferentes usos do mesmo termo; e algo semelhante também aconteceu no confronto entre o Reformador e Erasmo de Rotterdam.

Evidentemente, os termos da discussão atual são muito diferentes.

Pode ser útil observar algumas precauções, que, se não facilitam respostas simples e claras, pelo menos removem um pouco a possibilidade de falar bobagens.

Em primeiro lugar, uma certa sobriedade parece-me necessária para tirar conclusões mais ou menos filosóficas de hipóteses de pesquisa isoladas, que no momento parecem sugestivas. Cuidado: não estou dizendo que as teorias científicas não tenham implicações profundas na compreensão do ser humano; nem que, uma vez que são por definição provisórias, podem tranquilamente ser ignoradas porque irão mudar.

Esses são argumentos anticientíficos e irracionalistas frívolos (não raramente presentes também nas igrejas) que devem ser simplesmente rejeitados. Em vez disso, afirmo que as consequências de uma hipótese científica sobre a compreensão filosófica e religiosa do ser humano quase nunca são evidentes ou diretas. E isso também deve ser dito claramente aos "naturalistas" que povoam as páginas de divulgação científica dos suplementos literários dos principais jornais.

Em segundo lugar, creio que o pensamento cristão deve abandonar de uma vez por todas a ideia de que a fé é uma espécie de "megateoria" sobre Deus e sobre o mundo, que teria a tarefa de completar o quadro oferecido pelas ciências. Mesmo quando formulada da maneira mais prudente, essa visão constitui uma variante da tese do "Deus tapa-buracos", que a teologia do século XX esperava ter liquidado. É compartilhada, obviamente na perspectiva oposta, pelos profetas do ateísmo "científico": como o mundo se explica muito bem mesmo sem a hipótese de Deus, esta última pode ser facilmente eliminada ou considerada intelectualmente residual. É verdade que quando a fé fala do mundo, entende a mesma realidade a que se referem as ciências: ela a contempla, porém, de um ponto de vista diferente.

É um fato que muitas mulheres e muitos homens consideram supérfluo, talvez nocivo, colocar, ao lado do ponto de vista das ciências sobre a realidade, outro diferente, que a leia a partir do que a fé chama de "palavra de Deus". Outras pessoas, convencionalmente chamadas de "crentes", não consideram tal perspectiva obrigatória, mas nem mesmo supérflua, porém gratuita: uma possibilidade que não se pode deduzir, mas que nos é oferecida e que, se aceita, muda a forma como olhamos a vida e até mesmo a morte.

Tudo isso não fecha o debate sobre o "livre arbítrio": simplesmente tenta indicar o espaço dentro do qual (também) ele se coloca.

Gaël Giraud em diálogo com Felwine Sarr

SÓ A HOSPITALIDADE ÉTICA NOS SALVARÁ

"É a hospitalidade ética que cada um poderá demonstrar para com os outros que provará quem é o verdadeiro herdeiro dessa utopia", afirmou Gaël Giraud, jesuíta e economista francês, em diálogo com o economista senegalês Felwine Sarr, publicado por Il Fatto Quotidiano, 08-09-2021. Aqui publicamos um trecho do diálogo entre os dois. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Gaël Giraud — As culturas negro-africanas e as espiritualidades orientais poderiam ensinar os europeus a se tornarem filhos de Kant. Como o planeta é redondo e finito, escreveu Kant, estamos de alguma forma "condenados" à hospitalidade; o cosmopolitismo deve ser hospitaleiro.

Com a sua afirmação, Kant retomou o fio do Evangelho naquilo que ele tem de mais radical: o teólogo Christoph Theobald não hesita em fazer da hospitalidade o sinal messiânico por excelência.

O interessante sobre Kant é que ele vincula essa experiência messiânica à finitude da criação. Seja como for, é isso que a Europa não conhece mais, pois parece ter confinado a experiência cosmopolita a uma pequena elite financeira de mônadas que não conhecem mais enraizamentos nacionais.

É uma minúscula minoria que passa a vida nas salas VIP dos aeroportos, debruçada sobre o seu smartphone 5G, não entendendo mais o que vivem aqueles dois terços da população da Europa Ocidental que não tiveram ensino superior. O gap não é mais apenas financeiro, é também educacional e, em última instância, cultural. E, como o elevador social, fruto da escola da Terceira República, está fora de serviço desde meados dos anos 1990, esses dois terços da população sofrem com a ansiedade e a realidade do rebaixamento, no final do mês ter que ir às compras na loja solidária, e os serviços de reanimação sobrecarregados quando eclode uma epidemia... diante de um punhado de privilegiados que um terço da população com "educação superior" tenta imitar a todo custo.

Um terço é muito, observou o sociólogo Emmanuel Todd. Pode-se viver em endogamia quase completa e, consequentemente, tornar-se perfeitamente ignorantes do que milhões de homens e mulheres em situação de pobreza vivenciam na França (ou seja, com menos de 60% da renda média, cerca de 1.000 euros por mês) e também todos os outros que têm um único medo: despencar, por sua vez, na miséria. Assim, quando as classes populares vão às ruas, fazem greve ou, o que dá no mesmo, votam em Le Pen, a pequena elite "cosmopolita" sente-se fortemente tentada pela síndrome da fuga a Varennes. A meu ver, esta é precisamente uma das questões em jogo no diálogo entre os gilets jaunes e as elites dos centros das cidades que têm nas mãos as rédeas midiáticas, políticas e financeiras.

Felwine Sarr — Da maneira como você o descreve, o fenômeno também parece explicar a “insensibilidade” daqueles 10% dos super ricos em relação à maioria da população humana. Ou mesmo aquela do conjunto dos povos euro-americanos, que, embora percebendo que há algo de errado se eles detêm sozinhos 80% das riquezas do planeta, fundamentalmente não se identificam com as humanidades do chamado Sul global; no máximo pode acontecer que tenham pena ou comiseração, o que é diferente da compaixão ou da fraternidade comum. Certamente não pretendo generalizar: seres de boa vontade existem em toda parte. Isso não tira o fato de que as sociedades ocidentais parecem ter dificuldade para renunciar a um estilo de vida que devasta o planeta e do qual o mundo inteiro deve arcar com os custos, bem como estabelecer relações econômicas mais equitativas com o resto do mundo.

Gaël Giraud — O que você está dizendo me faz pensar na parábola dos três anéis de Lessing, outro grande Aufklärer (filósofo do Iluminismo), contida em seu Nathan, o Sábio. Um pai morre, e ele é um rei. Cada um de seus três filhos pretende ser o herdeiro legítimo, pois detém o anel do poder. Portanto, é óbvio que dois dos três anéis são falsos. Apenas um pode ser autêntico. Como reconhecer qual deles? No final, chega o profeta Nathan e diz essencialmente aos três homens: “Na verdade não se sabe quem é o verdadeiro herdeiro, ignora-se qual de vocês possui o anel verdadeiro. Mas será descoberto no decorrer da história, graças à hospitalidade ética que cada um terá para com os outros irmãos”.

Claro, o que Lessing tem em mente quando escreve são as três religiões abraâmicas que disputam o território europeu e a legitimidade do legado de Abraão. Mas, na verdade, poder-se-ia dizer que é o legado da utopia democrática e igualitária em busca de um herdeiro. Um dos três filhos é a Europa, as Europas, outro poderia ser a África, as Áfricas. Não existem três herdeiros, são 60! Afinal, é a hospitalidade ética que cada um poderá demonstrar para com os outros que provará quem é o verdadeiro herdeiro dessa utopia.

Felwine Sarr — Concordo neste ponto. Não é mais o momento de proclamar valores, mas de encarná-los. Aqui está o grande déficit. Tínhamos uma Europa declarativa. Mas quando se trata de encarnar essas proclamações no mundo contemporâneo, na crise mundial que estamos atravessando, na atualidade do mundo - que é realmente candente: Israel, Palestina, a embaixada estadunidense em Jerusalém, os mortos em Gaza ... - há como um impasse. O fato de, do ponto de vista ético, nem chegarmos a nomear um massacre como tal, a designar com seu nome os crimes e as violências, e de não cessarmos de eufemizar a realidade com a linguagem, é precisamente o sinal da dicotomia total entre a capacidade de declarar os valores, que são desfraldados e propalados em todo o mundo, e a capacidade de encarná-los. É talvez nessa lacuna que devemos buscar uma abertura.

No que diz respeito à hospitalidade, notamos que a Alemanha fez um esforço considerável em 2019 - um gesto que teve um enorme custo político para Angela Merkel - mas pergunto-me se é sabido que em certos países africanos a população estrangeira pode chegar a 40%. Pessoas que ainda assim são acolhidas. Um percentual que pode chegar e até ultrapassar 50%. A ideia seria ir além do preceito ético da hospitalidade e torná-lo uma cosmopolítica que uniria os Estados entre si, obrigando-os a acolher a vida temporariamente fragilizada e cuidar dela. Passar do dever de hospitalidade ao direito à hospitalidade, com todas as obrigações vinculantes que decorrem do direito.

Gaël Giraud — Qual país você tem em mente? Costa do Marfim? Líbano?

Felwine Sarr — Estou pensando na Costa do Marfim... no Gabão.

Gaël Giraud — Eu também penso no Chade. Os refugiados do Darfur sudanês e da África Central representam quase um quarto da população daquele país. E é ainda mais surpreendente porque as populações autóctones não são, em muitos casos, muito menos necessitados do que as populações de refugiados hospedados em campos improvisados. No mínimo, esses campos revelam a dificuldade dos ocidentais em demonstrar hospitalidade: o campo de Lesbos, por exemplo, é a vergonha da Europa. Você mencionou os massacres de Gaza ... Poder-se-ia pensar também no livro "Rwanda, fin du silence" de um oficial francês que participou da Operação Turquoise em Ruanda. O autor reflete sobre o contínuo não-dito que se vive na França a respeito da contribuição daquela operação para atrasar o avanço da Frente Patriótica de Ruanda (Fpr)...

Felwine Sarr — Salvando assim os genocidas...

Gaël Giraud —... enquanto a FPR tentava colocar fim aos massacres...

Alicia Bárcena

SIM, A ECONOMIA CRESCERÁ NA AMÉRICA LATINA

A economia da região crescerá 5,9% em 2021, ainda que a pandemia de covid-19 continue presente, a crise agudizou problemas estruturais de longa data e o crescimento desacelerará em 2022, apontou uma análise divulgada nesta terça-feira, 31-08, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). A reportagem é publicada por IPS Noticias e Jesuítas da América Latina. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

Para uma recuperação que mantenha políticas fiscais e monetárias expansivas, “os países da região requerem complementar os recursos internos com um acesso maior à liquidez internacional e com mecanismos multilaterais que facilitem a condução da dívida, se for necessário”, disse Alicia Bárcena, secretária-excutiva da Cepal.

Bárcena apresentou nesta capital chilena o novo “Estudo Econômico da América Latina e o Caribe 2021: dinâmica laboral e políticas de emprego para uma recuperação sustentável e inclusiva mais além da crise de covid-19”.

A Cepal atualizou sua projeção de crescimento regional para este ano a 5,9%, mas advertiu que terá uma desaceleração em 2022, com uma expansão estimada em 2,9%, ao persistir “problemas estruturais de longa data”, agudizados pela crise detonada com a pandemia.

Essas taras são o baixo investimento e produtividade, informalidade, desocupação, desigualdade e pobreza, e por isso aumentar o investimento e o emprego, especialmente em setores ambientalmente sustentáveis, é chave para uma recuperação transformadora e inclusiva, afirmou.

O crescimento de 2021 é explicado em primeiro lugar como um “rebote”, por uma baixa base de comparação, depois da retração de 6,8% anotada em 2020.

Ademais, pelos efeitos positivos derivados da demanda externa e a alta nos preços dos produtos básicos (commodities) que exporta a região, assim como pelos aumentos na demanda agregada.

O documento mostra que os problemas estruturais, que por décadas limitaram o crescimento econômico da região, se agudizaram devido à pandemia e limitarão a recuperação da atividade econômica.

Já antes da covid a região vinha com uma trajetória para a estagnação: no sexênio entre 2014 e 2019 cresceu a uma taxa média de 0,3%, menor que a média de 0,9% do sexênio que inclui a Primeira Guerra Mundial de 1914-1918, e o da Grande Depressão de 1929 e anos seguintes (1,3%).

Também mostra um declínio progressivo do investimento, atingindo em 2020 um dos níveis mais baixos das últimas três décadas (17,9 por cento do produto interno bruto).

Da mesma forma, a produtividade do trabalho cai significativamente e, em 2020, a pandemia desencadeou a maior crise que os mercados de trabalho da América Latina e do Caribe viveram desde 1950.

Os mercados de trabalho foram os mais afetados pela crise de todas as regiões do mundo — o número de empregados caiu 9% em 2020 — e a recuperação esperada para 2021 não permitirá que atinja os níveis pré-crise.

Da mesma forma, a pandemia causou uma queda acentuada na participação da força de trabalho, especialmente para as mulheres. Com a crise, a participação feminina em 2020 atingiu 46,9%, o que representa um retrocesso em relação aos níveis de 2002.

Em 2021, espera-se uma recuperação deste indicador, que chegaria a 49,1%, embora os níveis sejam semelhantes aos de 2008.

“O aumento do emprego exigirá políticas produtivas e trabalhistas que promovam a inserção laboral, especialmente das mulheres e dos jovens”, frisou Bárcena, acrescentando que os programas que promovem esse emprego devem ser ampliados, bem como reativar atividades gravemente afetadas pela crise, como o comércio e o turismo.

Além disso, estender e aprofundar programas de apoio para micro, pequenas e médias empresas e impulsionar a economia do cuidado.

A CEPAL propôs canalizar investimentos para setores que promovam um novo estilo de desenvolvimento e que possam aumentar a competitividade, o emprego e diminuir a pegada ambiental, como a transição para as energias renováveis, a mobilidade sustentável nas cidades e a revolução digital para universalizar o acesso às tecnologias.

Adiciona a indústria manufatureira da saúde; a bioeconomia e os serviços ecossistêmicos, a economia circular, a economia do cuidado e o turismo sustentável.

A política fiscal deve acelerar o investimento público e estimular e atrair o investimento privado, e o fortalecimento da arrecadação tributária e a redução da evasão, que representam cerca de 325 bilhões de dólares, ou 6,1% do PIB regional, são considerados prioritários para sua sustentabilidade.

É nesta área que contribuiria um maior acesso à liquidez internacional e a mecanismos multilaterais que facilitem a gestão da dívida. Espera-se também que a emissão de Direitos Especiais de Saque pelo Fundo Monetário Internacional fortaleça a posição externa da região.

Também afirma a necessidade de fortalecer os bancos regionais, sub-regionais e nacionais de desenvolvimento, a fim de aumentar a capacidade de empréstimos e de resposta à pandemia, bem como o estabelecimento de um mecanismo multilateral de reestruturação da dívida soberana.

“O conjunto de instrumentos inovadores deve ser expandido para melhorar o acesso ao financiamento e incluir os países de renda média em todas as iniciativas de alívio da dívida e acesso à liquidez concessional. O PIB não deve ser o único critério de avaliação do desenvolvimento e das necessidades dos países”, concluiu Bárcena.

Gilberto Borghi

PRECISAMOS ABOLIR OS SEMINÁRIOS!

Parte 1

"A necessidade de abolir os seminários e de encontrar outros caminhos para a formação dos padres nasce da mudança de época em que estamos e da necessidade de uma nova evangelização". A opinião é de Gilberto Borghi, teólogo, filósofo e psicopedagogo clínico italiano. O artigo foi publicado em Vino Nuovo. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Precisamos abolir os seminários, sim! A necessidade de se pôr as mãos nos seminários não nasce apenas de problemas de distorção sexual dos padres, que, no máximo, são um efeito, e não uma causa, mas é muito mais antiga.

Em 1563, quando o Concílio de Trento tomou a decisão de instituir os seminários, como lugares dedicados à formação dos futuros padres, ele queria obter duas coisas: o aumento da taxa cultural média dos sacerdotes e uma maior profundidade e uniformidade espiritual deles.

Estávamos em um momento histórico muito importante para a Igreja. A pervasividade cultural do cristianismo era total na Europa, mas era necessário reagir aos movimentos protestantes para salvaguardar a reta doutrina. Não havia habitante da Europa que não era chamado a tomar partido, e nisso se demonstra como o cristianismo tinha um papel cultural, social e político absolutamente primordial em comparação com qualquer outra visão do sentido da vida. A fé cristã era a referência social principal, mesmo que, com a chegada da modernidade, ela não seja mais tão evidente quanto na Idade Média e deva, de algum modo, se credenciar diante da razão, que lentamente se torna cada vez mais o verdadeiro motor da vida humana.

Por isso, fazia sentido pegar um jovem por cinco anos e fazê-lo viver nas regras da instituição do seminário, fortemente reconhecida pela própria sociedade, para que ali ele pudesse formar uma densidade cultural e espiritual a ponto de poder dar resposta precisamente a esta dupla necessidade: reacreditar a fé aos olhos da razão e restabelecer a reta doutrina.

Terminados esses cinco anos, depois, ele se encontrava na mesma sociedade de cinco anos antes e entrava nela com uma posição bem clara, reconhecida não só eclesialmente, mas também socialmente: ser o guia dos fiéis na reta justa e no caminho espiritual.

Sabemos como foi. Pelo menos três efeitos devem ser enfatizados.

Primeiro. Ao longo dos quatro séculos seguintes, o seminário logo se tornou um lugar de “garantia” de sobrevivência econômica para muitíssimos filhos de famílias que não tinham outras possibilidades, que, por isso, ingressavam nele por motivações não totalmente vocacionais.

Segundo. Ao mesmo tempo, não desapareceu o hábito das famílias poderosas de colocar as mãos na Igreja para fazê-la se tornar um instrumento do seu poder social e político, acabando por “desviar” os objetivos eclesiais.

Alguém poderá dizer: distorções aceitáveis, que, diante dos grandes números de seminaristas daqueles quatro séculos, permitiram igualmente que os melhores aumentassem efetivamente a sua própria taxa cultural e aprofundassem a sua espiritualidade. Sim, é verdade, gerando também grandes santos.

Mas são distorções que, graças a Deus, acabaram por volta do fim dos anos 1960, quando a sociedade europeia começou a mudar profundamente de rosto e de condição econômica, e os seminários de repente ficaram quase vazios. Dali em diante, o seminário era cada vez menos reconhecido socialmente, mas continuava sendo eclesialmente. Mas, depois de meados dos anos 1980, a Igreja perdeu gradualmente o seu papel único de referência no nível do sentido da vida, e a sociedade começou a mudar drástica e velozmente.

Diante disso, por sua vez, o seminário permaneceu praticamente o mesmo, e isso continua perpetuando um terceiro efeito, já presente no início e que ainda persiste: os futuros padres são educados à diversidade e à separação em relação aos fiéis comuns e, especialmente, a pensarem a si mesmos como guias (muitas vezes: um homem sozinho no comando), por isso, em um nível de poder mais alto do que o dos fiéis. De fato, essa é a estrutura do poder da comunidade de fé, totalmente nas mãos do padre, que está na base do drama atual do clericalismo e da insignificância dos leigos.

Crise de vocações, obra de Deus

Há algum tempo, eu penso que a crise das vocações sacerdotais na Europa e nos Estados Unidos é obra de Deus, e não da falta de resposta dos homens (como pensa a maior parte da hierarquia), nem mesmo do diabo (como muitos católicos ultraconservadores defendem). Talvez Deus esteja tentando nos mandar um sinal para desmantelar o clericalismo e para repensar como podemos ser uma comunidade de fé que saiba estar presente e ser eficaz no mundo de hoje.

Na lógica tridentina, de fato, fazia sentido construir os seminários assim como eles são, mas hoje não faz mais. Porque hoje o cristianismo não é mais a referência principal para o sentido da vida dos europeus. Isso pode nos desagradar, mas não se pode negar. Porque um seminarista, depois de cinco anos, volta a uma sociedade diferente da anterior, e o seu papel de guia eclesial é quase sempre dissonante em relação a comunidades eclesiais que muitas vezes não são comunidades, esvaziadas da fé e habitadas por pessoas que desfrutam de modo cada vez mais individualizado do “serviço religioso”.

Por isso, não é possível continuar pensando que um padre tem um lugar reconhecível na sociedade atual e que a comunidade eclesial é um lugar efetivo de vida cristã em que ele possa se sentir reconhecido. Hoje, a comunidade não deve ser guiada, mas refundada, porque a fé deve se credenciar não tanto em relação à razão, mas em relação ao mercado da felicidade e às dimensões emocionais e corporais, sobre as quais quase não há mais nenhum “percurso” educativo dentro dos seminários.

Então, isolamento, intelectualização e o fato de se sentir um guia são dimensões que, para um seminarista hoje, são contraproducentes. O isolamento o fará se sentir sozinho; a intelectualização o levará a não encontrar canais de comunicação com aqueles poucos fiéis que ainda poderão segui-lo; o fato de se sentir um guia acabará sendo o modo mais difundido para obter compensações humanas inevitáveis.

E este é o quarto efeito com o qual temos que fazer as contas. Os seminários de hoje, a partir de meados dos anos 1980, correm cada vez mais o risco de ser lugares de “refúgio” ou de “compensações” para distorções humanas que não encontram outra saída na experiência do indivíduo. Em particular, das sexuais ou das envolvidas na gestão do poder e do dinheiro.

Acho que agora está bastante claro que clericalismo, forma de vida comunitária e formação dos padres estão intimamente conectados entre si. A necessidade de abolir os seminários e de encontrar outros caminhos para a formação dos padres nasce da mudança de época em que estamos e da necessidade de uma nova evangelização, já anunciada há muito tempo, mas que cada vez mais custa a ganhar corpo, porque uma das maiores resistências ainda está, precisamente, nos seminários.

Parte 2

As reações ao artigo “Precisamos abolir os seminários!” me levaram a mais algumas reflexões, que tento expressar aqui. Embora uma parte dos comentadores, tanto neste site quanto na página do Facebook, tenham se mostrado muito contrários ao meu texto, isso não me surpreende. Uma possível mudança do método formativo dos sacerdotes, para muitas dessas pessoas, toca o coração do próprio status do padre. Indicando com clareza como a defesa radical de uma “fixidez” pastoral é considerada necessária para a própria defesa da fé.

Com todo o respeito a elas, devo dizer que bastaria conhecer um pouco de história da Igreja para se dar conta de que nenhuma fixidez pastoral jamais pretendeu “encarnar” a única possível tradução da fé. Até mesmo a celebração eucarística mudou pelo menos seis vezes ao longo de 2.000 anos de história.

Em vez disso, fiquei mais surpreso com as reações negativas de alguns agentes de pastoral, que desempenham o seu ministério precisamente nos seminários, que, em alguns casos, me pareceram verdadeiramente inconciliáveis com os dados e as vivências relativas aos próprios seminaristas.

Trata-se de constatações que, de várias formas, estiveram presentes na Igreja pelo menos desde meados dos anos 1980 (estou pensando nas investigações sobre a condição dos seminaristas feitas à época pelo Pe. Rulla) e confirmadas pelos números de abandono do estado clerical [disponível em italiano aqui] na Europa e nos Estados Unidos, em comparação com o total de seminaristas que se tornaram padres. Reiterados, não por último, pela pesquisa realizada na França sobre a condição existencial dos padres, bem documentada pela revista Il Regno Attualità [disponível em italiano aqui].

Diante dessas informações, a menos que se negue a realidade, é muito difícil negar que os seminários estão em crise, na sua capacidade de formar padres capazes de viver com suficiente plenitude e de serem testemunhas atraentes de Cristo na sociedade europeia e estadunidense.

Mas, do meu ponto de vista, ainda mais interessantes foram as reações daqueles que tentaram ir além do meu texto e oferecer pistas novas para uma eventual mudança dos seminários. Cada um enfatizou um aspecto ou mais daquilo que seria necessário fazer, mas sem uma suficiente consideração do vínculo existente, em âmbito pedagógico e de formação, entre método e objetivos.

Se, por exemplo, se levanta a hipótese de que os futuros seminaristas deveriam viver em pequenos grupos em apartamentos dedicados a eles, ao invés de em um único edifício centralizado, tende-se a privilegiar um padre que saiba se relacionar melhor com os seus próprios coirmãos, de modo que a sua relação “sustente” melhor a sua solidão e que a pastoral seja menos afetada pelas incompreensões e contradições que hoje aparecem entre eles. Mas, mesmo assim, continuamos mantendo o apoio à fratura entre clero e povo, educando-os, portanto, involuntariamente, à ideia de que o sacerdote é uma “coisa à parte” da comunidade.

Se, por exemplo, se levanta a hipótese de que deve ser potencializada a formação teológica, mantendo-a separada da prevista aos leigos, tende-se a privilegiar uma maior competência na conceitualização da fé, o que é efetivamente necessário, mas ainda se persegue a ideia de que a fé deve ser, primeiro, entendida e, depois, vivida e de que o padre é o detentor da verdade da fé, e, de fato, entrega-se a ele uma autoridade superior à dos leigos formados teologicamente. Certamente, assim, não favorecemos o fim do clericalismo.

Dou esses exemplos (e eu poderia continuar) apenas para dizer que o modelo de formação dos futuros padres é uma consequência direta do modelo de Igreja que temos em mente. Por esse motivo, não é possível simplesmente somar as melhores propostas de mudança dos seminários e amalgamá-las um pouco entre si para resolver o problema da formação dos padres.

Antes de resolver isso, é necessário um esclarecimento, senão uma partilha, do modelo de Igreja que gostaríamos para o futuro desta parte do mundo. Quer queiramos ou não, os padres não são algo “à parte” do povo de Deus, mesmo que, muitas vezes, nós os consideremos assim, e muitos deles se percebem assim. Por isso, é evidente que o modo como pensamos a forma da comunidade será a linha inevitável com que imaginaremos a futura formação dos padres.

Na Itália, está sendo aberta a temporada do sínodo. Tenho fortes dúvidas de que se terá a coragem de realmente tentar dar forma à ideia da Igreja italiana do futuro, mas isso seria necessário. E, dentro disso, então, se poderia tentar colocar as mãos também nos seminários. Mas também para o sínodo vale a mesma correlação, já vista para os seminários, entre método e objetivos. O modo como se conduz o sínodo já será um sinal de qual modelo de Igreja se tenderá a privilegiar: é a partir da aurora que se entende o dia.

Edição 169, junho 2021

Dephine Horvilleur

A REVOLUÇÃO DAS MULHERES

"Somos os herdeiros de um mundo em que a mulher quase sempre foi definida como pertencente ao género da interioridade. A mulher é aquela que se coloca tanto na periferia quanto em uma esfera oculta e secreta. Pensa-se que o seu mundo é o da interioridade, da casa, do âmbito doméstico e, portanto, tudo o que do seu interior sai e vai para o exterior corre o risco de constituir uma subversão, uma revolução", escreve Dephine Horvilleur, rabina do movimento judaico liberal da França, em artigo publicado por Avvenire. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

A rabina e estudiosa bíblica francesa fala na Torino Spiritualità. Nas Escrituras o feminino está associado ao mundo da interioridade e deve ser protegido de contaminações externas, mas quando age, muda o curso da história. Em meu trabalho como rabina, como exegeta e em particular no livro Nudità e Pudore. L’abito di Eva (Nudez e Pudor. O vestido de Eva, em tradução livre) tratei do papel tradicional das mulheres no judaísmo e na literatura hebraica, mas isso pode absolutamente ser extrapolado e aplicado a outras tradições religiosas e culturais, não definíveis como religiosas.

Somos os herdeiros de um mundo em que a mulher quase sempre foi definida como pertencente ao gênero da interioridade. A mulher é aquela que se coloca tanto na periferia quanto em uma esfera oculta e secreta. Pensa-se que o seu mundo é o da interioridade, da casa, do âmbito doméstico e, portanto, tudo o que do seu interior sai e vai para o exterior corre o risco de constituir uma subversão, uma revolução. Esse é o caso do cabelo da mulher em muitas tradições religiosas. O cabelo da mulher deve ser escondido ou é considerado um sinal de falta de recato. Mas o que é o cabelo? Algo que de dentro do corpo sai para fora de uma forma mais ou menos selvagem e indomável. E esse algo, que sai de dentro e vai para fora, incomoda quando vem do feminino. O cabelo dos homens tradicionalmente apresenta muito menos problemas no pensamento religioso. Da mesma forma, a voz das mulheres em muitas tradições, bem como em alguns legados do pensamento talmúdico, é considerada imodesta.

No Talmud há uma frase que diz que a voz das mulheres é uma nudez. O que é a voz? Assim como o cabelo, embora de forma diferente, a voz sai da profundidade para fora. E como o feminino é muitas vezes associado ao mundo da interioridade, deve permanecer dentro do corpo, da casa, do grupo, do lar. Deve ser domesticado para evitar que saia. Tudo isso é traduzido e descrito em muitas tradições religiosas, mas não só. Vamos pensar em todas as histórias que contamos às crianças. Hoje, as histórias muitas vezes se tornam desenhos animados, como aqueles de Walt Disney. Vamos pensar nos cenários tradicionais das histórias levadas para a tela, como Rapunzel, as princesas nos castelos ou A Pequena Sereia, que pode cantar nas profundezas do oceano e é um excelente exemplo. É um peixe na água e evolui para um mundo feminino, mas, assim que sai e se aventura fora das profundezas da esfera escura e oculta da água, imediatamente perde a voz e fica muda. Não poderia haver logos melhor do feminino no exterior. Esta é uma metáfora, uma alegoria muito clássica de muitos pensamentos religiosos tradicionais. Rapunzel com seus longos cabelos também é um ótimo exemplo. Ela está presa em um castelo, palácio ou prisão, não está claro. A única conexão que pode ter com o mundo exterior é jogar seu cabelo infinito pela janela. O cabelo é a chave para uma emancipação possível. Ninguém a quer, exceto ela, a heroína que quer se emancipar.

Depois, há outro exemplo que vem de um filme francês de grande sucesso baseado em um conto de fadas. É interpretado por Catherine Deneuve, que faz o papel de Pele de Asno. Todas as garotas francesas da minha geração cresceram com o filme Pele de Asno e suas canções extraordinárias. É a história de uma princesa trancada em um castelo que não pode sair porque sua pele é muito fina. A pele desta jovem do castelo é tão fina que se trata de uma única mucosa, um elemento que não possui derme, que não possui barreira externa. Um dia, porém, a jovem deve se aventurar para fora do castelo para se salvar de uma ameaça que se abate sobre ela. Como ela se aventura para fora? Vestindo a pele de um asno. Não é preciso ir muito longe para entender que a pele do asno é o símbolo de uma certa animalidade, de virilidade em geral. Uma virilidade que se veste. A fábula ainda conta a mesma história: o feminino pertence à interioridade, à mucosa, à fragilidade, à vulnerabilidade que não pode se aventurar para o exterior. Quando isso acontece, é uma ameaça de subversão, de inversão do mundo. Uma ameaça para si mesmo e para o mundo ao seu redor. O feminino deve, portanto, ser coberto com uma pele, uma barreira que pertence ao masculino.

Entende-se que a esfera política é mais masculina nessa representação e, dessa forma, garante-se que a esfera doméstica permaneça inteiramente feminina. Retorna um problema de fronteira que não é totalmente alheio ao que estávamos falando anteriormente. O medo da contaminação, o medo da impureza. Na realidade, os grupos que tentam manter as mulheres no lado dentro expressam assim uma angústia muito tradicional: o medo da contaminação, da porosidade, o medo do que poderia vir de fora e contaminar o grupo. É sobre isso que muitas vezes se baseia a noção do pudor. A ênfase muito forte que se coloca sobre o pudor das mulheres nas sociedades tradicionais muitas vezes tem a ver com sua representação como seres um pouco mais porosos, seres mucosos, que têm um pouco menos derme e barreiras do que os outros, os homens.

Em meu livro, analiso a tradução do hebraico de um termo que às vezes é encontrado na Bíblia como 'nudez' e que é sistematicamente associado ao feminino. Em muitas passagens da Bíblia, vemos que a mulher é censurada por sua nudez. Ela está sempre um pouco mais nua, ainda que seja com a própria anatomia. Enquanto um homem pode mostrar seu braço, coxa, perna sem que isso represente um problema de tentação ou nudez, quando se trata do corpo da mulher, surge imediatamente um problema de falta de recato. Na Bíblia se diz ervah. Um problema de nudez. Mas se buscarmos a tradução exata do termo ervah, se analisarmos a origem, a etimologia e as demais ocorrências do termo em muitas passagens da Bíblia, descobrimos que ervah, traduzido como nudez, significa mais exatamente capacidade de secretar, isto é, fazer sair um líquido de um lugar para outro.

Entende-se, assim, como elaboro mais detalhadamente no livro, que o feminino é sempre suspeito de ser um pouco fluido, de não ter um caráter hermético e de ser demasiado aberto, permeável ao perigo, à contaminação, ao encontro com uma alteridade que poderia nos alterar e arruinar. Não sei se funciona também em outras línguas, mas em francês a palavra 'alterar' é fascinante. Significa 'arruinar', 'desgastar', mas na raiz da palavra alter se entende claramente a alteridade, o Outro. Alterar significa acreditar estar se desgastado ou arruinado pelo encontro com a alteridade, com o Outro. Muitas vezes, manter o feminino dentro da esfera doméstica e do grupo significa manter a distância ou tentar se livrar do medo da contaminação, tentando proteger as fronteiras. As fronteiras da família ou do grupo.

Alguns poderiam pensar que isso é exagero e que na realidade existem muitas mulheres com papéis extraordinários nos textos. Muitas vezes, quando se pensa no feminino e na Bíblia, mencionamos heroínas que mudaram a história e que marcaram nossas leituras. Citamos personagens-chave como as matriarcas Sara, Lea, Rebeca, Raquel. Profetisas como Miriam ou mulheres como Rute e Esther. Na tradição cristã, Maria certamente é citada. Todas mulheres que mudaram a história. E é verdade: as mulheres desempenham um papel muito importante na literatura bíblica.

Mas é preciso sempre conseguir perceber, em sua maneira de mudar a história na Bíblia, como elas procedem. Na maioria dos casos, elas agem disfarçadas, com um ardil. Elas nunca possuem um poder político ou um poder de ação que lhes é acordado. Elas têm que encontrar um caminho para um poder de ação usando as únicas ferramentas de que dispõem: o estratagema, o ardil, uma forma de manipulação ou sedução. Muitos exemplos podem ser dados. Rebeca, por exemplo, manipula seus filhos e seu marido Isaac para decidir quem será o herdeiro da história. Eu poderia citar Rute, que seduz Boaz para ter uma descendência, que depois será a linhagem do Messias.

Poderíamos citar ainda outros personagens. Tem uma personagem bíblica de que gosto muito e que se chama Tamar. Tamar é nora de Judá e é viúva. Ela espera que o sogro lhe dê um noivo para ter uma descendência, ter filhos. Mas como seu sogro a renega, ela se disfarça de prostituta para seduzi-lo. Há uma forma incrível de transgressão no texto e é com os filhos de Judá e Tamar que se inicia a linhagem messiânica, a estirpe da salvação e da redenção. Poderíamos multiplicar os exemplos das personagens bíblicas femininas que mudam o curso da história, permitindo que a história continuasse diante de uma ameaça de esterilidade ou de uma ameaça macabra sobre a continuação do conto. Aparece uma personagem feminina que muda o mundo e a história, mas só pode fazê-lo agindo com uma armadilha, um disfarce, uma manipulação que é o único poder de que as mulheres podiam dispor.

Sergio Valzania

POR UM HUMANISMO DIGITAL: A RELAÇÃO ENTRE BIOPOLÍTICA, PANDEMIA E DEMOCRACIA

Biopolítica é um termo empregado com nuances de significado diferentes por filósofos e cientistas políticos. Entre eles, destaca-se Michel Foucault, que o utiliza para definir o complexo das ações do poder público voltadas a condicionar de modo direto o próprio uso do corpo por parte de homens e mulheres, ou mesmo das populações como um todo. O comentário é de Sergio Valzania, jornalista e historiador italiano, em artigo publicado por L’Osservatore Romano. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Devemos acreditar que Alessandro Pajno e Luciano Violante estão ligados a esse filão de pensamento quando escolhem o título “Biopolitica, pandemia e democrazia, Rule of law nella società digitale” [Biopolítica, pandemia e democracia: Estado de direito na sociedade digital, em tradução livre] para a análise da situação italiana realizada nos últimos meses pela Fundação Leonardo, da qual sou diretor científico e presidente, com a qual colaboraram 58 estudiosos de 21 universidades e centros de pesquisa.

A obra é publicada pela editora Mulino (Bolonha, 2021) em três volumes dedicados respectivamente a “Problemas de governo”, “Ética, comunicação e direitos”, “Pandemia e tecnologias: o impacto sobre processos, escola e medicina”.

É surpreendente a capacidade dos editores de desenvolver uma reflexão à queima-roupa, na prática enquanto os fenômenos estão em andamento, ainda não concluídos, e de apresentá-la com uma consistente organicidade, de modo a torná-la não apenas um aparato documental, útil em nível histórico, mas também um instrumento operacional, válido para direcionar a atividade política e a formação do complexo de decisões que são necessárias na atual fase de transformação da Itália.

Na introdução, Violante traça os contornos da pesquisa, partindo da consideração com base na qual “as políticas anti-Covid são naturalmente autoritárias porque, tendo a vida biológica por objeto, são biopolíticas: disciplinam o corpo”.

Seguem-se daí riscos, contradições, tentações e temores, como a centralidade não criticável de saberes apresentados como científicos enquanto são apenas especializados, a permanência em vigor para além da duração da emergência de iniciativas autoritárias tomadas sob a pressão da necessidade, ou ainda a extensão do poder das grandes empresas do digital após a demonstração que deram da importância da sua presença na prestação à comunidade de serviços hoje reconhecidos como essenciais.

Citando Marta Cartabia, Violante lembra que as restrições emergenciais se justificam no ordenamento jurídico italiano pela coexistência de cinco características: necessidade, proporcionalidade, provisoriedade, equilíbrio e possibilidade de recurso ao juiz.

Nesse contexto, a Fundação Leonardo propõe como linha estratégica o humanismo digital, que vê a técnica sempre subordinada aos valores da pessoa. A pandemia expôs as criticidades existentes na democracia liberal diante da evolução digital ocorrida nas últimas décadas.

Violante assinala a preocupação com uma transferência dos poderes estatais aos grandes operadores privados que condicionam a vida dos cidadãos de forma cada vez mais incisiva, para além do controle da comunicação, que também é decisivo.

Diante dessa intromissão, o Estado corre o risco de se demonstrar inadequado: durante a emergência Covid, foi criado na Itália um regime caracterizado pela coexistência de múltiplas instituições, que operaram com excessiva frequência de forma conflituosa e não coordenada. Tudo isso traz à tona “a rainha dos problemas, o funcionamento do nosso sistema decisório, no governo, no parlamento, nas magistraturas, na administração pública”.

Pajno trata justamente do governo da pandemia, da fenomenologia jurídica que o caracterizou, partindo de uma consideração alarmante e também compartilhada: “Na última década, os regimes democráticos sofreram uma verdadeira recessão global”.

A expansão da forma de governo liberal democrática, existente desde 1945, parece ter parado, enquanto aumenta o papel internacional de autocracias como a Rússia, a China e a Turquia. Nesse contexto, situa-se a análise pontual da instrumentação posta em prática pelo poder político italiano para responder à emergência pandêmica.

O perfil escolhido é o administrativo, não de legitimidade constitucional, e as incoerências identificadas nesse âmbito são numerosas, acima de tudo o emprego de uma instrumentação normativa centrada na proteção civil e dirigida a realizar intervenções em situações críticas circunscritas no tempo e no espaço, a ponto de se notar que o Decreto Legislativo n. 6/2020, procedimento inicial e fundamental na resposta à crise, “se presta a críticas radicais”.

O problema parece ser sistêmico mais do que contingente. De fato, Pajno observa que “estamos diante de uma quantidade de normativas e regulações inversamente proporcionais à capacidade administrativa do país”.

Outros artigos enfocam aspectos pontuais da reflexão da qual Violante e Pajno traçam o quadro. Tomaso Epidendio sinaliza a transformação em sentido barroco da técnica normativa. O fenômeno é descrito nestes termos: “As frases, assim, alcançam níveis de notável complicação sintática, visto que o sujeito normativo é separado do seu predicado por uma notável distância textual, muitas vezes preenchida com parentéticas e subordinadas de coordenação ambígua, de modo que, quase paradoxalmente, a pressa paroxística em preencher lacunas, ao invés de aumentar a determinação e a previsibilidade do preceito, aumenta a sua opacidade e a sua imprevisibilidade aplicativa”.

Guido Melis, por sua vez, escava no passado, procurando na normativa consequente ao terrível terremoto de Messina de 28 de dezembro de 1908 as raízes da legislação emergencial italiana no âmbito dos desastres naturais.

Um olhar de conjunto sobre a pesquisa fornece o panorama de uma situação em constante evolução, destinada a mudar com velocidade ainda maior, sob o impulso de uma tecnologia digital, centrada na inteligência artificial, capaz de se modificar continuamente e, aliás, caracterizada precisamente por uma exigência interna de constante remodelação das conquistas alcançadas e imediatamente superadas. Uma das características da sociedade líquida descrita por Bauman.

Manifesto da Jornada Internacional de Lutas Anti-imperialistas

O PLANETA ACIMA DOS LUCROS – APENAS UMA TERRA

O Império tem procurado reestruturar sua base econômica com projetos de mercado que tenham em seu DNA a necessidade de aumentar a exploração dos bens comuns dos países do Sul para produzir uma nova base tecnológica supostamente 'verde'. Por isso, acabar com a barbárie capitalista é a tarefa central de nosso tempo. Precisamos enterrar o domínio do capital sobre a vida, construir um mundo justo, igual e belo, para que todos possamos viver bem e em paz”, é o manifesto da Semana Internacional de Jornada de Lutas Anti-imperialistas. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU. Eis:

'Nós seres humanos temos apenas um planeta onde viver. E somente sobreviveremos se for em aliança com os demais seres vivos, animais e vegetais.

A extração e a exploração desenfreada dos bens da natureza, somente em busca de lucro por parte das grandes corporações, e a lógica do sistema capitalista levou o nosso planeta ao limite.

O poder destrutivo da etapa atual do capitalismo, em sua fase financeira, não tem precedentes. As empresas transnacionais aumentam sua capacidade de exploração dos bens comuns, avançando a mineração, o desmatamento, apropriação privada da água, entre outros. Na agricultura aplicam o modelo de agronegócio, baseado no monocultivo e na aplicação de agrotóxicos, que destrói a biodiversidade e altera o clima. O imperialismo estadunidense e os demais países do Norte global avançam sobre os países periféricos buscando privatizar estes bens comuns que os povos, seus verdadeiros donos, cuidavam em cada país.

O resultado é evidente: estamos vivendo a pior crise ambiental da história da humanidade e toda a humanidade pode se ver comprometida se continua esta dinâmica insana do capital. A mudança climática já afeta aos povos de diversas partes do mundo, porém infelizmente não é a única consequência da crise ambiental. As águas do mundo estão contaminadas por plásticos e pesticidas, e os mananciais se esgotaram. A biodiversidade se enfrenta a um ritmo brutal de extinção, ademais de ser objeto de grandes circuitos de biopirataria. Os solos estão se degradando pelo desmatamento e o monocultivo, e grandes regiões estão sendo completamente destruídas pela mineração em grande escala.

A pandemia de covid-19 é a última cara desta crise ambiental e do sistema. A origem de superpatógenos está diretamente relacionada com a destruição dos ecossistemas historicamente conservados pelos povos campesinos e tradicionais. Devastação que libera micro-organismos que estavam em equilíbrio dinâmico em seu habitat e que quando se encontram com as gigantescas instalações de escala industrial, superpovoadas de espécies animais, confinadas e bombardeadas intensamente com antibióticos e hormônios, são selecionados e se reproduzem como patógenos, depois se encontram com grandes aglomerações humanas e com pessoas imunodeprimidas pela constante contaminação agroquímica dos alimentos e pela própria comida completamente industrializada. É assim como o desmatamento e eliminação dos habitats de animais silvestres provocam a migração de patógenos para os seres humanos. Tudo indica que, se este modo de produção continuar, teremos inúmeros novos vírus, que se transformarão em mais pandemias.

Todos os seres humanos estão sendo afetados, especialmente os mais pobres, mulheres, crianças e povos indígenas em todo o mundo. Além disso, hoje temos mais de 134 mil espécies da fauna e da flora em perigo de extinção.

Também é importante destacar o papel nefasto que as atividades militares desempenham na destruição do planeta. O exército dos EUA e de seus aliados, além das constantes agressões contra a vida das pessoas, são um dos maiores poluidores do mundo, deixando um legado tóxico na forma de urânio empobrecido, óleo, combustível para aviação, pesticidas, desfolhantes como o agente laranja e chumbo entre outros.

Uma parte das corporações, em vez de combater as causas, se dedica a organizar o capitalismo verde, transformando os bens da natureza em novas mercadorias e fonte de especulação, como papéis de crédito de carbono, títulos de preservação ambiental e outras soluções falsas que não dão respostas às necessidades sociais e ecológicas dos povos. O Império tem procurado reestruturar sua base econômica com projetos de mercado que tenham em seu DNA a necessidade de aumentar a exploração dos bens comuns dos países do Sul para produzir uma nova base tecnológica supostamente “verde”.

Este caminho levará inevitavelmente à destruição da humanidade e da natureza como a conhecemos. É um projeto de morte, dominação e destruição.

A saída está na reconstrução da relação entre o ser humano e a natureza, onde a vida, o bem viver coletivo e os tempos ecológicos guiam as nações e os povos, não a ganância, o lucro e a propriedade privada. É uma saída da produção agroecológica de alimentos, da democratização do acesso à terra a partir da reforma agrária, do cuidado com os bens comuns como a água, a biodiversidade e a Terra, e a transição para uma matriz energética que responda às reais necessidades da classe trabalhadora com justiça social e ambiental, superando o patriarcado e o racismo.

Acabar com a barbárie capitalista é a tarefa central de nosso tempo. Precisamos enterrar o domínio do capital sobre a vida, construir um mundo justo, igual e belo, para que todos possamos viver bem e em paz.'

Branko Milanović

MARX NA ‘AMERIKA’

Tanto a origem da riqueza da elite como o seu comportamento são diferentes da classe capitalista que Marx conhecia”, escreve Branko Milanović, economista sérvio-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York, em artigo publicado por Letras Libres. A tradução é do Cepat /IHU

Karl Marx está de volta no Ocidente. Após um tour du monde, em que passou de um filósofo alemão emigrado à cabeça pensante da social-democracia, para depois se tornar um pensador revolucionário global, sua influência retorna em algumas partes do mundo que estudou e onde viveu.

A atual crise do capitalismo, provocada inicialmente pelas manobras do sector financeiro (algo que não surpreenderia Marx) e depois exacerbada pelo aumento da desigualdade, a pandemia e uma crise climática que parece irresolúvel, fez com que as leituras de Marx se tornem mais relevantes do que foram para gerações passadas e suas ideias mais atrativas para os jovens.

Mas há algo de semelhante entre o capitalismo de Marx e o de hoje? Suas ideias podem ser relevantes agora, mais de um século depois de terem sido formuladas e em um período no qual a renda per capita se multiplicou por sete, e no caso dos Estados Unidos por oito?

As principais diferenças entre o mundo capitalista clássico do século XIX e o de hoje não estão apenas no fato de que os salários são mais altos (Marx não ficaria muito surpreso já que disse que os salários refletem as condições “histórico-morais” de cada país) ou de que o Estado de bem-estar é muito mais amplo. As principais diferenças estão na natureza da classe dirigente e no efeito nas classes médias dos países líderes globais.

O topo da distribuição de renda nas economias avançadas é formado por pessoas que têm altos ingressos de seu trabalho, mas também do capital. Isto não acontecia no passado. Os rentistas e capitalistas eram a classe dominante no capitalismo clássico e raramente tinham rendas que não fossem de suas propriedades. Alguns teriam considerado algo impensável ou até mesmo insultante ter que complementar sua renda com salários.

Isto mudou. Atualmente, dos 10% mais ricos dos estadunidenses, um terço deles está entre os mais ricos pela renda do capital e os mais ricos pela renda do trabalho. Há menos de 50 anos, essa porcentagem era inferior a um em cada cinco, antes, provavelmente menor (Berman e Milanović). Isto transforma o conflito de classe. Não existem mais apenas dois grupos, claramente diferenciados por seus níveis de renda e a origem dela, seja pelo trabalho ou a propriedade.

Além disso, em vez de se publicar livros sobre a classe ociosa (Thorstein Veblen, Nikolai Bukharin) e a elite avarenta (“enriquecer-se era uma atividade passiva para os abastados”, escreveu Stefan Zweig sobre os ricos europeus de antes da Primeira Guerra Mundial), hoje, temos algumas classes altas que podem ser reprovadas por trabalharem muito: “os stakhanovitas de hoje são o 1% mais rico”, conforme disse Daniel Markovits em The meritocracy trap.

Estes ricos trabalhadores, que herdam seu capital original ou o constroem através de poupanças ao longo de suas vidas de trabalho, que se casam entre si e que desempenham um papel cada vez mais importante na política, por meio das doações, são uma nova elite. Desejam transmitir seus privilégios a seus filhos, pagando-lhes a melhor educação. Seu sucesso pode ser comprovado com numerosos estudos que demonstram a redução da mobilidade da renda intergeracional. Por isso, tanto a origem da riqueza da elite como o seu comportamento são diferentes da classe capitalista que Marx conhecia.

A segunda grande diferença é internacional e tem a ver com a globalização. Em finais do século XIX, os salários reais no Reino Unido estavam aumentando. A explicação de Marx era que este crescimento era provocado pela globalização da grande hegemonia britânica, o período da Pax Britannica. A elite britânica não se importava em compartilhar com as classes baixas as migalhas de sua espoliação imperial, e usou o aumento dos padrões de vida como uma ferramenta para exigir complacência ou diretamente uma aceitação implícita da ordem existente.

Marx não pensaria que a elite estadunidense, que desempenha um papel semelhante hoje ao da elite britânica daquele momento, defenderia políticas semelhantes? Ficaria surpreso do contrário. A elite estadunidense, no entanto, permaneceu indiferente enquanto sua classe média diminuía por culpa da globalização, e seus salários se estagnavam.

Ao contrário da elite britânica, a estadunidense provavelmente não pensava que seu poder político pudesse ser questionado pela base. É impossível saber se pensava isto porque acreditava que poderia manipular o processo político ou porque pensava que os perdedores da globalização não seriam capazes de se organizar.

Estes elementos, e provavelmente muitos outros, desempenham um papel. O despertar veio dos protestos chamados populistas na França, Espanha, Reino Unido, Alemanha e também nos Estados Unidos, onde Trump conseguiu construir, talvez por acidente, uma coalizão de descontentes. Foi necessário um esforço especial das elites e uma pandemia global para recuperar o controle.

Estes dois desdobramentos mostram como o capitalismo de hoje evoluiu nas economias mais avançadas. São desenvolvimentos ambíguos em uma perspectiva política ou filosófica. Romper a distância de classe explícita e ter uma classe alta que não privilegia seus compatriotas poderiam ser vistos como avanços. Mas uma classe alta cuja posição não se vê afetada pelos movimentos no mercado de trabalho (porque pode se refugiar em seus ativos de capital), nem na bolsa (porque tem qualificações e renda do trabalho) e que está comprometida em transmitir seus privilégios, através das gerações, talvez não seja algo tão positivo.

Edição 168, maio 2021

Walmaro Paz

ABELHAS AMEAÇADAS PELOS AGROTÓXICOS

Sem as abelhas, 80% dos vegetais conhecidos não produziriam sementes ou frutos. A reportagem é de Walmaro Paz, publicada por Brasil de Fato /IHU.

Em 2017, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) definiu o dia 20 de maio como o Dia Mundial da Abelha. A data, celebrada na última semana, realça a dependência do mundo em relação a estes insetos e a necessidade de conservação para resolver questões como o abastecimento global de alimentos e a eliminação da fome nos países em desenvolvimento.

Atualmente a ONU está realizado um evento virtual sob o lema “Empenhados com as Abelhas: Reconstruindo Melhor para Elas”. A agência das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, a FAO, destaca que o objetivo dessas ações é incentivar a cooperação e a solidariedade para combater as ameaças da pandemia à segurança alimentar e aos meios de subsistência agrícolas.

O objetivo do evento é mostrar que a regeneração ambiental e a proteção da abelha são prioritárias. A agência considera que a atividade será uma ocasião para aumentar a consciência de que todos “podem fazer a diferença para apoiar, restaurar e aprimorar o papel dos polinizadores”.

Polinizadores

É consenso entre técnicos e ambientalistas que sem estes insetos polinizadores, 80% dos vegetais conhecidos não produziriam sementes ou frutos. Por isso, a utilização de venenos que matam estes insetos e também outros animais pode comprometer a produção mundial de alimentos, levando até mesmo à extinção da espécie humana.

Desde o inicio do século que estudos na Alemanha e na Califórnia, Estados Unidos, constataram que as culturas de transgênicos e a utilização e agrotóxicos vêm acabando com as colmeias utilizadas na produção de mel e polinização de pomares. Conforme livro de Geraldo Hasse, foi em 2007 quando se detectou pela primeira vez nos Estados Unidos o fenômeno denominado “colony collapse disease” (CCD), ou “síndrome do colapso das colmeias”, na versão adotada no Brasil.

Embora a nomenclatura adotada pelos cientistas norte-americanos sugira causas múltiplas, a maioria dos apicultores gaúchos não duvida que a mortandade das abelhas, drástica o bastante para aniquilar toda atividade nas colmeias mais fortemente lesadas, só pode ser atribuída ao contato direto das abelhas com produtos químicos usados na pulverização de lavouras.

O que acontece, na realidade, é um desastre: muitas abelhas campeiras, que abastecem as colmeias com néctar e pólen, não voltam a seus ninhos após visitar flores em áreas mais ou menos próximas de lavouras. Como que desorientadas, elas extraviam-se no campo enquanto outras acabam morrendo amontoadas na entrada das colmeias, que sucumbem por falta de alimento ou pela ausência da mão-de-obra.

Detectada em 2007 nos EUA e na Europa, a mortandade de colmeias inteiras, denominada “síndrome do colapso das colmeias”, é associada ao uso sem controle de venenos agrícolas. A causa de tamanho desarranjo seria a absorção pelas abelhas de partículas de agrotóxicos. São apontados como mais nefastos os inseticidas à base de nicotina – os neonicotinóides, proibidos em diversos países e liberados no Brasil.

Rio Grande do Sul

No Rio Grande do Sul, na quinta-feira (20), a Comissão de Segurança da Assembleia Legislativa do estado realizou uma audiência pública sobre o Projeto de Lei 260/2020, que pretende revogar a lei 7774/1882, que disciplina a utilização de agrotóxicos e todos os biocidas no estado. Aprovada em 1982, a lei só começou a vigorar em 2002 quando foram constituídos órgãos de fiscalização.

Esta lei é considera a mais adiantada no país sobre agricultura e ecologia e, de acordo com o depoimento do presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), Francisco Milanez, foi praticamente elaborada dentro da associação e apresentada e defendida pelo deputado estadual Antenor Ferrari (PMDB).

A audiência pública que teve a participação de diversas entidades ambientais e até mesmo setores do governo estadual, como a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) e a Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), terminou com a orientação para que o governador retire o projeto de lei em tramitação no Legislativo.

Origens

As abelhas chamadas europeias foram introduzidas no Brasil pelos imigrantes e, conforme os originais do livro “A Geografia do Mel” , ainda não publicado, de autoria do jornalista Geraldo Hasse, a apicultura profissional no RS começou com os imigrantes alemães vindos no século XIX.

Na primeira parte do livro aparecem os pioneiros em Rio Pardo, depois em Taquari, onde está em ruínas a Estação Experimental de Citricultura que tinha anexa uma escola Apícola que vendia rainhas, caixas e outros acessórios.

O Aroni Sattler foi diretor dessa estação antes de se tornar professor da Agronomia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele estuda especialmente a mandaçaia, em vias de extinção, não se sabe por que. Os apicultores gaúchos atribuem aos agrotóxicos a grande mortandade de abelhas que ocorre nos últimos anos.

Em 1867, o imigrante Frederico Hanemann trouxe da Alemanha duas colmeias de Apis mellifera carnica, conhecida como abelha preta, num navio. Foi com esse material genético que ele começou, em Rio Pardo, um apiário que o tornou reconhecido como “pai da apicultura nacional” título concedido por apicultores em 1919, sete anos após sua morte. O Museu de Rio Pardo tem utensílios desenvolvidos por Hanemann.

Outro pioneiro foi Emílio Schenk, fundador da escola apicola de Taquari. Inventou um caixa (colmeia) até hoje usada por apicultores gaúchos. Segundo Hasse, foi ele que construiu o apiário modelo da Faculdade de Agronomia de Porto Alegre nos anos 10 do século XX.

O outro grande mestre apícola do RS foi Hugo Muxfeldt. Nasceu em 1904 em Nova Petrópolis e morreu em 1999 em Porto Alegre, onde manteve uma escola particular de apicultura. Manteve no Correio do Povo por mais de 30 anos uma coluna semanal sobre abelhas. Criou apiários em vários municípios de Viamão, Região Metropolitana, e São Borja, na Fronteira Oeste.

A importância da apicultura é tão grande para a produção e alimentos e para a ecologia que a fábrica de celulose de Guaíba manteve, desde 1980, um projeto de fomento em seus eucaliptais. O Walter Lídio Nunes, como penúltimo presidente, deu uma incrementada no projeto por ver nele um “selo social” capaz de amenizar as críticas à monocultura vegetal, concluiu Geraldo Hasse.

Luciano Floridi

IDEIAS INGÉNUAS PARA MELHORAR A POLÍTICA E PROTEGER O AMBIENTE

Em seu novo livro “Il verde e il blu” [O verde e o azul, em tradução livre], Luciano Floridi sugere que, em uma sociedade da informação madura, o projeto humano deve unir políticas verdes (economia verde e compartilhada) e azul (economia digital e da informação), favorecendo um modo de vida ético, centrado na qualidade das relações e dos processos, ao invés do consumo e das coisas.O sítio 'Linkiesta', publicou um trecho da obra. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Em 2016, o Google utilizou um sistema de inteligência artificial da DeepMind para reduzir o consumo de energia dos seus data centers, obtendo uma economia de 15%. E grande parte da chamada share economy (economia compartilhada) seria impossível sem o digital.

Na Itália, por exemplo, em 2016, a partilha dos alojamentos gerida por meio de plataformas e aplicativos digitais levou a hospedar 3,6 milhões de turistas, em um volume de negócios de 3,6 bilhões de euros [23 bilhões de reais], equivalente a 0,22% do PIB [italiano]. Essa referência positiva à Itália não é casual. A estratégia verde-azul poderia se desenvolver de forma muito favorável no nosso país. No setor da green economy (economia verde ou ecológica), a Itália já está na vanguarda da Europa. E o valor ambiental e cultural do país é obviamente excepcional.

Seria preciso investir muito nessas cartas já vencedoras. Seria preciso enquadrar a share e green economies como uma grande oportunidade de desenvolvimento e crescimento, em coordenação com uma robusta economia da experiência: bem-estar, cultura, enogastronomia, entretenimento, saúde, esporte, lazer e turismo.

Seria possível começar com a implementação do acordo climático de Paris, investindo no apoio direto (infraestruturas) e indireto (incentivos, desincentivos) à economia verde e azul; aplicando a Agenda 2030 da ONU para o desenvolvimento sustentável; e adotando as diretrizes europeias sobre a economia circular, baseada na reciclagem e na reutilização completa dos materiais. E, acima de tudo, seria possível acelerar e fortalecer o desenvolvimento das tecnologias, dos serviços, das competências e dos investimentos digitais, em vista de uma sinergia estratégica digital-ambiental.

[...]

Há décadas sabemos que estamos destruindo o planeta. É fácil demais jogar tudo sobre as costas dos políticos atuais. Eles também vivem neste planeta, têm família, sabem que a panela de pressão está prestes a explodir.

Mas eles têm que navegar entre aquilo que se deveria fazer – o que é difícil e muitas vezes impopular, veja-se a bagunça provocada por Macron quando aumentou o preço do diesel – e aquilo que os eleitores desejam, que às vezes é lindo, mas impossível, como a quadratura do círculo: padrões de vida altos para todos, custos baixos para todos, salvaguardando o ambiente e respeitando os direitos humanos.

O equilíbrio entre o desejado e o factível se chama consenso. O consenso não falta em palavras, mas nos fatos, porque os custos para salvar o planeta são imensos. Os números variam, mas a escala não. Arredondando, a contagem vai de 55 trilhões de dólares [292 trilhões de reais] para um aquecimento global de 1,5°C, passando por 70 trilhões de dólares [382 trilhões de reais] para 2°C, até 550 trilhões de dólares [2,9 quatrilhões de reais] se chegarmos a 3,7°C.

Considere-se que o PIB italiano em 2018 foi de cerca de 2,084 trilhões de dólares [11 trilhões de reais]. Estamos deixando para as gerações futuras uma dívida imensa, maior do que um buraco negro, em alguns casos apenas reparável, mas não mais reversível (por exemplo, as espécies extintas), com sofrimentos humanos e conflitos gigantescos.

Alguns acham que cada um de nós deve mudar os seus próprios comportamentos, porque isso ajudará a evitar esse meio-apocalipse em curso: banhos curtos, menos carne, menos aviões, menos carros, mais transportes públicos, reciclar, reutilizar, consertar, pouco aquecedor ou ar-condicionado, apagar a luz, não imprimir e-mails. Todas coisas justas, mas inúteis.

Usando um velho exemplo, é como se cada um de nós empurrasse um carro que não liga, se e quando pudermos, com a ideia de que todo pequeno esforço ajuda. Não é assim. Existe um limiar abaixo do qual todo esforço individual é nulo.

Kant tem razão: fazer o próprio dever não é certo porque é necessário; é certo mesmo que não seja necessário, para poder se olhar no espelho pela manhã e se reconhecer como humano. E saber que é inútil é vital, porque senão dormimos tranquilos à noite.

Em vez disso, a insônia da razão gera ideias e é importante, porque, para salvar o mundo, precisamos nos organizar, urgentemente. Precisamos de muita coordenação, porque, se todos fizermos a coisa certa (especialmente votando), então a universalidade do comportamento (Kant de novo) fará uma grande diferença. E é preciso um consenso que não seja contraditório.

Mas como fazemos para nos coordenar? Com sacrifício, boa legislação, aliando o público e o privado na única guerra que devemos combater, aquela contra o fim do mundo e contra uma sociedade iníqua, e com muita tecnologia digital, para saber mais, monitorar melhor e coordenar os esforços para empurrar todos juntos.

E como se faz para criar um mundo que seja acolhedor para todos? Melhorando radicalmente o modo como inovamos, produzimos e consumimos produtos e serviços. E também aqui o digital pode ajudar: para fazer melhor, mais e outras coisas, com muito menos ou de formas alternativas.

A dívida que deixaremos a quem vier depois de nós será tão inferior quanto melhor for o casamento entre o verde do ambientalismo, da economia circular e da partilha, com o azul das tecnologias digitais a serviço da humanidade e do planeta.

Por meio do digital, temos que passar de um capitalismo consumista para um capitalismo do cuidado. Não será fácil, mas é o projeto humano para o nosso século.

[...]

Hoje, a tecnologia pode se tornar a melhor aliada da natureza. O problema é que temos pouco tempo. Portanto, não podemos confiar apenas nas forças do mercado, que, por sua vez, podem exigir tempos ilimitados.

Os mercados consomem, acima de tudo, tempo, um recurso de que sempre precisam, porque, “mais cedo ou mais tarde, o equilíbrio certo emerge”; mesmo que seja verdade, não se diz quão longo é o “mais tarde”.

Por isso, precisamos ajudar os mercados com políticas clarividentes de investimento na inovação e na formação stem (science, technology, engineering, mathematics [ciência, tecnologia, engenharia, matemática]), de intervenções legislativas para promover a economia circular e de educação dos consumidores para fazerem escolhas mais inteligentes.

Não é pouco, mas pode ser feito e deve ser feito imediatamente. Não só para não jogar fora nada de comida, mas sobretudo para salvar os animais e os vegetais. Então, tudo são rosas com a nova aliança entre o verde e o azul?

Não exatamente. O digital não é uma panaceia. É um tratamento e, como tal, apresenta tanto custos quanto contraindicações. Pode fazer muito bem ao ambiente e à economia, mas não a custo zero ou sem riscos.

O desafio é que o impacto positivo salve o nosso planeta e a sociedade humana antes que outros fatores, incluindo o impacto negativo do digital, o destruam. O que significa que a contagem regressiva já começou. Não temos séculos à disposição, apenas décadas. Talvez algumas gerações.

Andrea Grillo

TRIPLO CONCERTO SOBRE O FUTURO DA TEOLOGIA

"Sem uma teologia rica de imaginação, nenhuma reforma da Igreja será possível. Mas sem uma reforma da Igreja, a teologia acabará por imaginar tudo, menos a realidade", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Na tarde romana de 5 de maio, e agora disponível aqui, três dos teólogos católicos mais renomados se revezaram em sequência para configurar um futuro para a teologia frente aos desafios culturais e institucionais das últimas décadas. A iniciativa vem do Instituto João Paulo II e representa sem dúvida, por um lado, o fruto de um profundo repensamento desta instituição acadêmica, mas, pelo outro, também o início promissor de um "canteiro de construção da imaginação". Um concerto triplo, portanto, que dura cerca de 150 minutos. Com três instrumentos, três estilos, três nações e três visões diferentes, em recíproca escuta, e que vale a pena considerar antes de tudo em suas peculiaridades. Gostaria de falar um pouco sobre isso, em uma ordem diferente daquela da "performance": prefiro o programa de casa, que privilegia a ordem alfabética e, portanto, é mais adequado para a escuta.

1. O violino: Salmann e o fenômeno a acompanhar

Vou começar com a leitura mais livre e surpreendente. Um olhar "de fora" sobre os últimos 70 anos, de Pio XII ao Papa Francisco, com uma grande mudança tanto na imagem de Deus como na consciência do homem. Sem saudade, mas sem ilusões. Uma teologia que “acompanha as metamorfoses” e está disposta a mediar os mistérios. Uma teologia concebida "na fronteira entre a Alemanha e a Holanda", mas aquecida pelo destinatário romano e pela carga metafórica da linguagem. Uma sabedoria que conjuga o Pai Todo-Poderoso e um verso poético sobre o Deus indesejado, numa espécie de “ataraxia emocional” e de “multiplicidade a reconciliar”. Palavra solta, acolhedora e livre, sem tecnicismos disciplinares, mas também sem mediações explícitas de caráter institucional.

2. O violoncelo: Sequeri e o logos a ser resgatado e rearticulado

O timbre é diferente, mais baixo, com menos agudos, mas elaborado em dois pontos de evidência: a saída dos lugares-comuns da "koiné teológica contemporânea", para redescobrir uma vocação originária da fé com o logos. Daí a concentração num “sagrado” que saiba, ainda hoje, como ontem, distinguir o que se deve consagrar e o que se deve sacrificar. Uma sabedoria teológica que saiba servir para a multidão e que queira entrar com coragem e confiança na cultura comum, trazendo a sua preciosa bagagem, sem pretender "ostentar erudição sobre o humano". Uma abordagem mais exigente, mais canônica, não menos paradoxal.

3. O piano: Theobald e a correlação entre teologia e magistério

O terceiro instrumento toca "a duas vozes": coloca claramente em relação a vocação da teologia e do magistério e preocupa-se em recuperar as intuições fundamentais do Vaticano II, superando as reduções sofridas até o Papa Francisco. Neste caso, é evidente que para a teologia católica uma mediação institucional explícita - autorizada e magisterial - deve ser aberta e claramente tematizada. Caso contrário, o risco da abstração recai sobre a teologia devido à correlação estrutural entre epistemologia e instituição. Mesmo a teologia mais solta seria vã se negligenciasse os arranjos estruturais, das hermenêuticas e das autoridades.

Todos os três discursos, aqui reduzidos ao mínimo, têm um som precioso. São o espelho de uma era e de escolas diferentes, mas não incompatíveis: vêm da união singular da sabedoria monástica e da fenomenologia, do conhecimento fundamental e estético, da hermenêutica e da história da teologia. Podem, assim, elaborar um novo olhar sobre a realidade, recuperar o lado "pensado" da fé, assumir a mediação institucional da tradição. No entanto, a integração dos três discursos não é tão simples, por pelo menos três motivos.

a) Para sair dos brejos de uma teologia "autorreferencial" - da qual falou principalmente o violoncelo de Sequeri - é inevitável acertar as contas não só com a realidade da vida, mas também com aquela da instituição. Um discurso sobre os direitos do "logos", assim como o formulou Sequeri, pode certamente encontrar uma consonância com modelos do passado - ele mencionou sobretudo o Concílio de Trento e Ratzinger - mas é certo que não pode mais se valer das formas de mediação institucional, nem do primeiro nem do segundo. Fé sem catecismo não é fé: isso é verdade. Mas um catecismo enrijecido e entrincheirado não é mais uma garantia, mas uma ameaça. Por isso, um cuidado pelo olhar “de fora” (à la Salmann) e uma reflexão sobre as “formas de mediação magisterial” (como em Theobald) torna-se decisiva para um efetivo repensamento da “vocação lógica” da fé.

b) A sabedoria que, a cada oportunidade, como um adivinho, descobre a vertente de água que mata a sede continua a ser uma virtude insubstituível. Mas o violino de Salmann sabe bem que para acompanhar homens e mulheres nas metamorfoses são necessárias linguagens comuns, formas comuns, ações comuns. Sobre o que deve ser "sacrificado" e o que "consagrado" - para usar a terminologia de Sequeri - são necessárias "decisões" formais. Não é por acaso que, justamente vindo do norte da Alemanha, a palavra de Salmann tenha aparecido tão iluminadora quanto discretíssima ao indicar as vias concretas para a solução do impasse. Quando se admite ler cada "imaginação" como cisma, torna-se muito difícil encontrar não digo uma nova vertente, mas até mesmo uma nova torneira que não seja imediatamente chumbada.

c) Uma hermenêutica do Vaticano II pode se tornar uma "lógica" e um "acompanhamento" apenas na condição de resistir à tentação da "normalização". Este ponto é decisivo, sobretudo para uma tentativa de "abertura à imaginação" que não pode ser pensada como "sob tutela". Mudanças na linguagem e razão também são mudanças de autoridade. Por isso, uma determinação apurada da “polaridade” entre o magistério da cátedra pastoral e magistério da cátedra magisterial deve ser explicitamente enfrentada ou torna inútil a tentativa da imaginação.

Portanto, os três instrumentos não só nos deram três linhas melódicas e perspectivas, mas também indicaram as correlações necessárias "entre" seus discursos: por assim dizer, os créditos e dívidas recíprocas entre eles. E isso foi possível precisamente porque havia, e era quase palpável, uma afinidade e semelhança entre eles que era superior até mesmo das evidentes diferenças e distâncias.

Pode parecer curioso: embora proceda de um Instituto por vocação dedicado ao estudo do matrimônio e da família, o Concerto triplo pouco falou desses dois temas. Por um lado, isso é óbvio, porque o tema da conferência era "imaginar a teologia" em um nível epistemológico. Por outro lado, é natural que seja precisamente o discurso sobre o matrimônio e a família, o primeiro dos temas que a Gaudium et Spes trata para instituir uma relação significativa com o mundo contemporâneo, para suscitar toda essa mobilização de conceitos e afetos.

Uma teologia católica do matrimônio e da família exige, hoje, esse longo caminho de respeito pelo fenômeno, de elaboração da razão e da hermenêutica conciliar. A confiança no futuro, que os três oradores deixam transparecer claramente no seu Concerto Triplo, é um grande conforto, embora não torne menos árdua a tarefa de tradução, de acompanhamento e de discernimento que as linguagens, as 'rationes' e formas institucionais devem preparar-se para empreender, sem mais delongas. Com a consciência de que sem uma teologia rica de imaginação, nenhuma reforma da Igreja será possível. Mas sem uma reforma da Igreja, a teologia acabará por imaginar tudo, menos a realidade.

Claudio Paudice

A vacina anti-Covid, grande negócio para a Pfizer

UM BILHÃO DE DÓLARES POR MÊS!

Mais de um bilhão de dólares por mês graças à vacina contra a Covid, um faturamento de 3,5 bilhões apenas no primeiro trimestre. Receitas em claro aumento, dividendos elevados, mas acima de tudo previsões ainda mais otimistas: os números divulgados pela Pfizer são assombrosos após os primeiros três meses de 2021, o ano da vacina contra a Covid. A reportagem é de Claudio Paudice, publicada por Huffington Post. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

A multinacional melhorou sua projeção para 2021 e agora espera que as receitas fiquem entre US $ 70,5 e US $ 72,5 bilhões no ano (entre US $ 3,55 e US $ 3,65 por ação). A previsão anterior, por outro lado, previa receitas de cerca de 60 bilhões de dólares. Mas basta olhar as contas e as estimativas recém-divulgadas para entender que 2021 será um ano inesquecível para a multinacional estadunidense: no primeiro trimestre de 2021, o faturamento foi de 14,58 bilhões de dólares, em claro aumento em relação aos 10,08 bilhões do ano passado. O resultado é ainda melhor do que as estimativas e, como é óbvio, pode ser atribuído em grande parte à comercialização da vacina contra a Covid desenvolvida em conjunto com a alemã BioNTech. A receita proveniente exclusivamente do medicamento BNT162b2 foi de 3,5 bilhões de dólares entre janeiro e março. Sem as vacinas, o aumento do faturamento é ″apenas″ de 8%. Por fim: o lucro líquido entre janeiro e março foi de 4,877 bilhões, em relação aos 3,5 do ano anterior.

Os próximos meses não ficarão atrás, já que a empresa farmacêutica dos EUA espera vendas em 2021 de US $ 26 bilhões relativas apenas à vacina, acima de sua previsão anterior de cerca de 15 bilhões, quase o dobro. A meta é administrar 1,6 bilhão de doses da vacina contra a Covid. Para se ter uma ideia, basta pensar que de acordo com os dados atualizados de 3 de maio, já foram entregues 430 milhões de doses em 91 países e territórios ao redor do mundo.

Mas já nos primeiros três meses do ano, o faturamento da Pfizer é impressionante. As receitas aumentaram US $ 4,5 bilhões, ou 45%, em relação ao trimestre anterior. A força motriz por trás das receitas da BNT162b2, no valor de 3,5 bilhões de dólares, fez com que o lucro por ação aumentasse 47% em comparação com o mesmo período do ano anterior.

A empresa sediada em Nova York declarou que teve um lucro de 93 centavos por ação. Os resultados superaram as expectativas de Wall Street: a estimativa média de cinco analistas entrevistados pela Zacks Investment Research era de 79 centavos por ação. Os acionistas receberam dividendos de US $ 0,39 por ação, para um total de US $ 2,2 bilhões pagos pela Pfizer nos primeiros três meses do ano. Ainda no segundo trimestre o Conselho de Administração deliberou o mesmo valor por ação.

Ganhos possíveis apenas graças às compras maciças dos países industrializados da União Europeia e da América do Norte. Em 2021 haverá um total de 600 milhões de doses que Pfizer e BioNTech entregarão aos 27 países membros da União Europeia, e 300 milhões para os Estados Unidos, além de vários milhões para Israel e Canadá, num total de 1,6 bilhão de doses, segundo os últimos contratos firmados pela multinacional em meados de abril. E não está excluído que até dezembro outros possam ser assinados, caso em que as previsões atualizadas serão revisadas.

Mas, embora o mundo inteiro precise de uma vacina, nem todos os países têm igual poder econômico e os números sobre o andamento das vacinações naqueles menos avançados são uma triste confirmação disso, além de representar uma condenação implícita contra aqueles que tiveram a sorte de nascer na parte "certa" do mundo. A pandemia de fato aprofundou mais ainda o abismo entre os países de renda média e alta - onde se concentra a maior disponibilidade de vacinas anti-SarsCoV2 - e os de baixa renda. Apenas 0,2% das doses disponíveis até o momento chegaram a estes últimos, segundo os números da OMS. O continente africano é aquele que sofre há meses a mais grave escassez de medicamentos contra a Covid.

Uma boa notícia para a África do Sul, que tem o maior número de casos e mortes por Covid-19 em toda a África, é a chegada de seu primeiro lote da vacina Pfizer de 325.260 doses. Espera-se que muitas outras remessas de vacinas da Pfizer sejam entregues nas próximas semanas, totalizando 4,5 milhões de doses até o final de junho e 30 milhões até o final do ano, além da entrega de 31 milhões de doses da vacina Johnson & Johnson: a meta declarada é imunizar 40 milhões de cidadãos, dos 60 milhões de habitantes, até fevereiro de 2022. De acordo com o African Center for Disease Control and Prevention, a África do Sul registrou um total de mais de 1,58 milhão de casos confirmados, incluindo mais de 54.000 mortes e até agora vacinou pouco mais de 317.000 de seus 1,2 milhão de trabalhadores de saúde. Olhando por um ângulo mais amplo, o número assusta: em todo o continente africano apenas 1,3% dos habitantes receberam a primeira dose.

No entanto são um bilhão e 134 milhões de doses da vacina administradas em todo o mundo, das quais mais de 20% - 240 milhões - nos Estados Unidos. Cerca de 272 milhões de pessoas completaram o ciclo de vacinação, o equivalente a 3,5% da população mundial. Mas 83% das vacinações realizadas, destaca o Comitê No Profit on Pandemic - que lançou uma campanha com o objetivo de um milhão de assinaturas para pedir à UE a suspensão das patentes de vacinas e medicamentos anti-Covid - está em alta em países de renda média. Apenas 0,2% das doses foram administradas em países de baixa renda. O resultado é que enquanto 47 em cada 100 pessoas na América do Norte receberam pelo menos uma dose da vacina e 30% na Europa, a porcentagem cai drasticamente na Ásia, onde 12% da população recebeu pelo menos uma dose. Sem mencionar a África.

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Edição 167, abril 2021

Carlo Petrini

O PLANETA LANÇOU O ÚLTIMO APELO: REGENERAÇÃO OU EXTINÇÃO

"A história e os factos que estamos vivendo mostram-nos claramente que o velho paradigma baseado na competitividade e no lucro é obsoleto. De facto, a prosperidade só é verdadeira se for inclusiva. Eis então que, a partir de agora, o caminho para um futuro não só feliz, mas também possível, é aquele em que a cooperação, o diálogo e os bens comuns são as diretrizes a seguir. Só assim poderemos colocar verdadeiramente no centro a dignidade humana e a saúde do planeta", escreve Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (Giunti e Slow Food Editore), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre a "ecologia integral” e o destino do planeta, em artigo publicado por La Stampa. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Todos os anos, neste dia de primavera do hemisfério norte, é celebrado o Dia Mundial da Terra. Um aniversário que nos lembra para ter cuidado e atenção pelo planeta que nos hospeda, e que este ano gostaria que fosse acompanhado por um sentimento de regeneração. De fato, concordo com aquela parcela cada vez mais ampla do mundo científico que afirma que a explosão da pandemia foi uma espécie de resposta biológica com a qual a nossa Mãe Terra tentou abrir nossos olhos para as consequências do nosso sistema consumista, sobre a profunda interconexão de tudo e a comunhão de destino da qual ninguém pode escapar. Portanto, o florescimento da natureza circundante deve andar de mãos dadas com o florescimento nas mentes de novos valores e comportamentos que acolham o apelo do planeta e enfrentem os problemas que nos esperam.

Vamos responder às mudanças climáticas de forma coerente e rápida? Vamos construir um modelo de desenvolvimento regenerativo? Vamos descontinuar o atual sistema agrícola dependente de insumos químicos e alto consumo de energia para praticar uma agricultura atenta aos recursos, à biodiversidade e aos ecossistemas? Adotaremos estilos alimentares conscientes, que, por exemplo, escolham carnes com menos frequência e com mais cuidado? Criaremos uma sociedade mais justa? Temos os conhecimentos para agir neste sentido, agora também devemos ter a vontade de transformá-los em ações.

A história e os fatos que estamos vivendo mostram-nos claramente que o velho paradigma baseado na competitividade e no lucro é obsoleto. De fato, a prosperidade só é verdadeira se for inclusiva. Eis então que, a partir de agora, o caminho para um futuro não só feliz, mas também possível, é aquele em que a cooperação, o diálogo e os bens comuns são as diretrizes a seguir. Só assim poderemos colocar verdadeiramente no centro a dignidade humana e a saúde do planeta.

Permitam-me agora dar alguns exemplos para que as minhas palavras não pareçam palavras ao vento, mas sim instâncias concretas que devem tornar-se cada vez mais numerosas. Nos últimos anos, aumentaram as feiras de produtores, os grupos de compras e outras formas de distribuição alternativas àquela organizada, que favoreceram a criação de relações e momentos de diálogo entre produtores e consumidores, com maiores ganhos para os primeiros e um custo praticamente inalterado para os segundos, mas com produtos sazonais mais frescos que não viajaram inúmeros quilômetros. Cooperação, transparência e solidariedade são necessidades que cidadãos cada vez mais responsáveis e informados vão pedir enfaticamente, mesmo aos grandes retalhistas e ao setor online, que registra taxas de crescimento impressionantes. Nesse caso, é a empresa individual que tem que garantir práticas que respeitem o meio ambiente e os trabalhadores, colocando assim o maior poder de que dispõe no mercado a serviço da cadeia de abastecimento.

Num sistema interligado, de fato, nenhum ator é mais importante do que o outro e, portanto, o valor só é verdadeiro se os recursos, instrumentos e conhecimentos forem compartilhados igualmente entre todos. Escolas, prisões, terras confiscadas das máfias e periferias das cidades são outros locais onde, através da agricultura social, está ocorrendo essa mudança de ritmo. Aqui, o alimento torna-se um bem comum, promove o convívio e torna-se um instrumento de emancipação para as camadas mais frágeis da população. Estas aqui listadas são transformações de baixo, mas quando são apoiadas pela política (europeia neste caso), e se tornam parte do novo acordo verde, da estratégia pela biodiversidade ou da estratégia pela alimentação, bem, então talvez o caminho seja justamente aquele certo. Já falei de alimento, mas a transformação será tal se este pensamento ecológico e de humana cooperação contaminar todas os âmbitos da nossa vida, adquirindo um valor social, ético e político. Só assim podemos dizer que aprendemos a lição que o Terra Madre tragicamente nos ensinou com a pandemia. Só assim salvaremos a humanidade e outras espécies vivas da extinção.

Ferdinando Camon

FUGIR OU MORRER (A INOCENTE MIGRAÇÃO)

"Quando fugiu pela primeira vez com a mãe, a criança sentiu que para ele e para ela a escolha era obrigatória: fugir para não morrer. Ele fugiu, eles o jogaram de volta, ele foge de novo, sempre convencido de que a escolha é uma só: fugir ou morrer. Mas talvez neste ponto ele comece a duvidar que seja uma alternativa, e a pensar que as duas possibilidades sejam uma só, fuga e morte se equivalem. Eles vêm e vão, capturados e sequestrados, libertados e de novo em fuga, nós não conhecemos todo esse emaranhado de vida e morte, de encontros com sequestradores e policiais, e liquidamos todo o fenômeno com uma única palavra inocente: migração", escreve Ferdinando Camon, escritor italiano, em artigo publicado por Avvenire. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Estamos dentro de um carro da polícia de fronteira no Texas, na fronteira com o México. O carro está parado. A porta dianteira esquerda, a porta do motorista, está aberta, mas o motorista está sentado em seu assento. Ao redor, uma paisagem vazia, de facto é o deserto. No deserto se materializa uma criança com cerca de 10 anos, com um casaco bem maior do que ele, que vem a passos lentos em direção ao carro e pergunta: 'Senhor, pode me ajudar?'. A voz é trêmula, não é uma voz, é um soluço, o menino está apavorado, se estivesse numa cova de leões tremeria menos. Estamos nos Estados Unidos, mas o menino fala espanhol. É nicaraguense. Lágrimas lavam seu rosto como uma chuva. É de manhã, o menino deve ter passado uma noite apavorante no deserto. Diz que caminhou para sair do deserto e encontrar um caminho, porque no deserto tinha medo de ser sequestrado. Raciocínio complexo. Eu pensei sobre isso. No deserto, eles podem te pegar vindo pela frente, por trás, da direita ou da esquerda. Ou de cima.

Na estrada não. Na estrada pode haver alguém que te salva. No deserto ele chegou com um grupo, depois o grupo o abandonou e foi embora. – “Seu pai estava no grupo?” pergunta o policial, “ou sua mãe?”. “Não - diz a criança -, eram muitos, mas deixaram-me aqui, não sei para onde ir”. A criança associa a solidão ao sequestro, portanto sabe que, se você estiver sozinho, irão te pegar e levar embora. Ele sabe que é uma presa, sabe que o mundo é feito de presas e predadores. Não está claro por que o policial está filmando a cena. Não é seu dever, seu dever é mandar de volta aqueles que cruzaram a fronteira: foi uma diretriz de Trump, virou uma diretriz de Biden.

Do México, tentam entrar nos Estados Unidos de todas as maneiras. Até improvisando. Tem garotos que se escondem nos ônibus de turistas estadunidenses, quando param na fronteira, esperando serem levados para o outro lado entre a bagagem e os estepes, depois, assim que passam a fronteira, fogem e pronto. Fiz uma viagem de Los Angeles a Tijuana, sou europeu e não sei dessas coisas, então no caminho de volta não entendia por que o motorista parava o ônibus apenas atravessada a fronteira, saia e verificava com a lanterna no porta-malas e embaixo dos bancos, um a um. É aí que as crianças se escondem, que fogem de casa sem avisar a mãe.

A mãe não é uma cúmplice dos pequenos migrantes, a mãe gostaria de ficar com os filhos, de morar com eles. Ou talvez fugir com eles. Também a mãe deste pequeno nicaraguense, que se chama Wilton Obregon, tinha fugido com ele, mas a polícia dos EUA os mandou de volta para o México e no México foram capturados por uma gangue de criminosos que imediatamente entraram em contato com o tio de Wilton, que mora em Miami, pedindo resgate. O tio enviou o máximo de dinheiro que pôde, US $ 5.000, mas a gangue achou que era o suficiente para libertar um refém, não dois. E assim libertou o menino.

Eles o levaram além do muro da fronteira e o abandonaram no deserto. O deixaram ao próprio destino, à vida ou à morte, como para dizer: “Esta criança pagou, já não vale nada para nós, leve-a”. Quando fugiu pela primeira vez com a mãe, a criança sentiu que para ele e para ela a escolha era obrigatória: fugir para não morrer. Ele fugiu, eles o jogaram de volta, ele foge de novo, sempre convencido de que a escolha é uma só: fugir ou morrer. Mas talvez neste ponto ele comece a duvidar que seja uma alternativa, e a pensar que as duas possibilidades sejam uma só, fuga e morte se equivalem.

Eles vêm e vão, capturados e sequestrados, libertados e de novo em fuga, nós não conhecemos todo esse emaranhado de vida e morte, de encontros com sequestradores e policiais, e liquidamos todo o fenômeno com uma única palavra inocente: migração.

Margot Kässmann

HANS KÜNG:

PROFETA DA CRÍTICA À IGREJA

"É preciso perseverança, força e um grande fôlego para apresentar visões. Mas precisamos de visões para moldar o futuro do mundo, da humanidade, das religiões, das Igrejas. Trata-se de garantir que as religiões não sejam mais um factor de agravamento dos conflitos, mas contribuam realmente para neutralizar os conflitos e alcançar a reconciliação. Hans Küng com sua Fundação Weltethos transmitiu essa visão para nós. É uma enorme contribuição de toda a sua vida", escreve pastora e teóloga alemã Margot Kässmann, ex-presidente do Conselho da Igreja Evangélica Alemã (EKD), a Igreja Luterana da Alemanha, em artigo publicado por Zeit. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Ela amava as contradições e unia as religiões com seu conceito de ética mundial. Obituário pessoal do teólogo Hans Küng. Há quase três anos, em 20 de abril de 2018, fui convidada à Universidade de Tübingen para fazer o discurso em honra de Hans Küng por seu 90º aniversário. O auditório estava lotado. Quando Hans Küng em uma cadeira de rodas foi apresentado por Stephan Schlensog, secretário-geral de sua Fundação Weltethos, todos os presentes se levantaram e o aplaudiram. Eles expressavam respeito pelo trabalho de uma vida de Hans Küng, mas também seu afeto e simpatia por esta pessoa especial. Homem erudito e culto, sua teologia foi importante não só no âmbito universitário, mas também na vida das pessoas e da sociedade. Eu experimentei isso por uma última vez em 2015, quando, após um evento em Tübingen, Hans Küng me convidou para sua casa na manhã seguinte para o café da manhã. Entre canapés e geleia, ele começou a discutir se perguntando se a ajuda para morrer poderia ser conciliável com a fé cristã. Estava convencido disso. Como muitas vezes acontecia, a contradição o deixava feliz, porque assim tinha a oportunidade de expressar suas convicções de forma extremamente clara. Foi muito estimulante poder discutir com Hans Küng. Com sua voz melódica com sotaque suíço e o brilho às vezes malicioso em seus olhos, Küng pode ser compreendido por qualquer pessoa que assista a seus programas na Sternstunde Religion no arquivo da televisão suíça.

Os piores quatro meses de sua vida

Já em 1977, eu ouvia fascinada Hans Küng em Tübingen. Para nós, jovens estudantes, ele era um exemplo, um rebelde que sustentava as suas convicções. Um católico com um habitus de Reforma. Especialmente porque havia escrito sua tese em 1957 sobre a doutrina da justificação de Karl Barth. Que foi publicada novamente como primeiro volume de sua Opera omnia - que será composta por 24 volumes. Küng ficou muito feliz com esta coletânea de suas obras. Ao período de Tübingen, seguiram-se aqueles que Hans Küng, com um olhar retrospectivo, definiu como os quatro piores meses de sua vida (de 18 de dezembro de 1979 a 10 de abril de 1980). Ele disse que não desejava tal experiência nem mesmo para seus piores adversários. A revogação de sua licença de ensino pela Igreja Católica o magoou profundamente.

Na coletiva de imprensa de 10 de abril de 1980, junto com o reitor da universidade Adolf Theis e seu amigo Walter Jens, ele nos explicou: "Independentemente da solução intra-universitária, as questões fundamentais permanecem e as disputas não cessarão".

Ainda permanece sem resposta por Roma e pelos bispos a questão de sua infalibilidade. Resta a questão de um anúncio cristão hoje credível na Igreja e na escola. Resta a questão da compreensão entre as denominações cristãs e o reconhecimento mútuo dos ministérios e da celebração da Eucaristia. Resta a questão das tarefas urgentes de reforma: do controle da natalidade aos matrimônios mistos e ao divórcio até à ordenação das mulheres, ao celibato obrigatório e à resultante catastrófica falta de padres”. Suas perguntas permanecem sem resposta 41 anos depois, essas perguntas continuam a estar agudamente presentes, em vista dos processos de reforma interna da Igreja Católica. Nisso, Küng foi profeta. E se tornou um visionário. Ele estava convencido de que a verdade do evangelho e a verdade das grandes religiões do mundo podem ser dialeticamente conectadas uma à outra. Segundo Küng, a busca pela identidade cristã não exclui, mas inclui a construção do consenso ecumênico e também inter-religioso.

Por meio de seus estudos e diversos encontros, Hans Küng chegou à conclusão de que - mesmo com todas as diferenças que não devem ser subestimadas em termos de fé, doutrina e rito - pode-se observar convergências entre as religiões do mundo. Todas as pessoas se deparam com as mesmas grandes questões, as questões primordiais como "de onde viemos" e "para onde vamos", como mundo e como seres humanos, de superação da dor e da culpa, das normas de vida e ação, do sentido de viver e morrer. Em analogia aos conceitos de política mundial, economia mundial, sistema financeiro mundial, Küng cunhou o conceito de ética mundial, “Weltethos”. E resumiu sua visão em quatro frases: “Não pode haver paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não pode haver diálogo entre religiões sem normas éticas globais. Não pode haver sobrevivência do nosso planeta sem uma ética mundial”.

Um homem de fé

É preciso perseverança, força e um grande fôlego para apresentar visões. Mas precisamos de visões para moldar o futuro do mundo, da humanidade, das religiões, das Igrejas. Trata-se de garantir que as religiões não sejam mais um fator de agravamento dos conflitos, mas contribuam realmente para neutralizar os conflitos e alcançar a reconciliação. Hans Küng com sua Fundação Weltethos transmitiu essa visão para nós. É uma enorme contribuição de toda a sua vida.

Em "Justificação", ele escreveu: "Apesar de sua enorme carga política, Lutero continua profundamente um homem de fé". Quinhentos anos depois, isso também vale para Hans Küng. E em suas memórias, publicadas em 2013, ele reconheceu ter vivido como um cristão de fé: "Quando eu atingir meu eschaton, no último de minha vida, não me espera o nada, mas o todo que é Deus. A morte é a passagem para a verdadeira pátria, é a entrada no encobrimento de Deus e na magnificência do homem”. Que ele agora veja o que ele acreditava. Obrigado, Hans Küng!

N.D.

Esta é a visão de uma discípula e já mestre em teologia, do ramo protestante. Todos os cristãos, elas e eles indistintamente, são discípulos de S. Paulo e seguidores do seu Evangelho. Não são discípulos de Jesus histórico nem seguidores do seu Evangelho. A fé que professam é a mesma de Paulo, antípoda da Fé de Jesus. A teologia que conhecem e ensinam nas suas cátedras e obras publicadas é de Paulo, não a de Jesus histórico, o filho de Maria. Nem neste início de milénio e em plena pandemia são capazes de ver que entre Cristo ou Messias e Jesus histórico, o abismo é intransponível. Como entre Deus que nunca ninguém viu e o Dinheiro. Mas que doutamente formatadas são as mentes de todas estas sumidades cristãs! Para mal delas e de quem as escuta e acolhe!

Edição 166, março 2021

Johan Bonny, bispo da Antuérpia

"ESSA NÃO É A LINGUAGEM DA AMORIS LAETITIA"

Gostaria de pedir desculpas a todos aqueles para os quais este “responsum” é doloroso e incompreensível: casais homossexuais católicos fiéis e comprometidos, pais e avós de casais homossexuais e seus filhos, agentes de pastoral e conselheiros de casais homossexuais. A sua dor com a Igreja também é a minha hoje. A opinião é de Johan Bonny, bispo de Antuérpia, Bélgica. O artigo foi publicado originalmente no sítio HLN e republicado em inglês na página do Pe. James Martin, SJ. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Em outubro de 2015, eu participei do Sínodo sobre o Matrimônio e a Família como representante dos bispos belgas. Eu ouvi os bispos tanto no auditório quanto nos corredores, ouvi todos os discursos, participei nas discussões de grupo e redigi emendas para o texto final.

Nesta semana, a Congregação para a Doutrina da Fé deu uma resposta negativa à pergunta sobre se os padres podem abençoar as uniões entre pessoas do mesmo sexo. Como me sinto depois do “responsum”? Mal. Sinto uma vergonha vicária pela minha Igreja, como disse um ministro do governo. E, especialmente, sinto uma incompreensão intelectual e moral.

Gostaria de pedir desculpas a todos aqueles para os quais este “responsum” é doloroso e incompreensível: casais homossexuais católicos fiéis e comprometidos, pais e avós de casais homossexuais e seus filhos, agentes de pastoral e conselheiros de casais homossexuais. A sua dor com a Igreja também é a minha hoje.

O presente “responsum” carece de zelo pastoral, de base científica, de nuance teológica e do cuidado ético que estiveram presentes entre os Padres sinodais que na época aprovaram as conclusões finais. Aqui está em ação outro procedimento de tomada de decisão e de formulação de políticas. A título de exemplo, gostaria de citar apenas três de suas partes.

Primeiro, o parágrafo que afirma que, no plano de Deus, não há remotamente nenhuma semelhança ou mesmo analogia entre o casamento heterossexual e o homossexual. Eu conheço casais homossexuais, civilmente casados, com filhos, que formam uma família calorosa e estável, e que também participam ativamente da vida paroquial. Vários deles atuam em tempo integral na pastoral ou são empregados da Igreja. Sou muito grato a eles. Quem tem interesse de negar que não há nenhuma semelhança ou analogia com o casamento heterossexual aqui? Durante o Sínodo, a falsidade factual dessa afirmação foi enfatizada repetidamente.

Depois, o conceito de “pecado”. Os parágrafos finais evidenciam a mais pesada artilharia moral. A lógica é clara: Deus não pode tolerar o pecado; os casais homossexuais vivem juntos em pecado; portanto, a Igreja não pode abençoar seu relacionamento. Essa é precisamente a linguagem que os Padres sinodais não quiseram usar, tanto neste quanto em outros casos denominados como situações “irregulares”. Essa não é a linguagem da Amoris laetitia, a exortação apostólica de 2016.

“Pecado” é uma das categorias teológicas e morais mais difíceis de definir e, portanto, é uma das últimas a ser aplicada às pessoas e ao modo como convivem. E, certamente, não a categorias gerais de pessoas. O que as pessoas querem e podem fazer, neste exato momento das suas vidas, com as melhores intenções em relação a si mesmas e aos outros, face a face com o Deus que amam e que os ama, não é um enigma fácil de resolver. Além disso, a teologia moral católica clássica nunca lidou com essas questões de uma forma tão simples. O tempora, o mores!

Por fim, o conceito de “liturgia”. Como bispo e teólogo, isso me envergonha ainda mais. Os casais homossexuais não são dignos de participar de uma oração litúrgica pelo seu relacionamento ou de receber uma bênção litúrgica sobre o seu relacionamento. De que bastidores ideológicos veio essa afirmação sobre a “verdade do rito litúrgico”? Este também não foi o dinamismo do sínodo.

Claramente, essa também não foi a dinâmica do Sínodo. Várias vezes, falou-se de ritos e gestos apropriados para integrar também os casais homossexuais, inclusive no âmbito litúrgico. Naturalmente, com respeito pela distinção teológica e pastoral entre um matrimônio sacramental e a bênção de um relacionamento. A maioria dos Padres sinodais não optou por uma abordagem litúrgica “preto no branco” ou por um modelo “tudo ou nada”. Ao contrário, o Sínodo impulsionou a busca sábia de formas intermediárias que façam justiça tanto à individualidade dessas pessoas quanto à singularidade dos seus relacionamentos.

A liturgia é a liturgia do povo de Deus, e os casais homossexuais também pertencem a esse povo. Além disso, soa desrespeitoso abordar a questão de uma possível bênção dos casais homossexuais com base nos chamados “sacramentais” ou no “Ritual de Bênçãos”, que também inclui a bênção de animais, carros e edifícios.

Uma abordagem respeitosa ao casamento homossexual só pode ocorrer dentro do contexto mais amplo do “Ritual do Matrimônio”, como uma possível variação do tema do matrimônio e da vida familiar, com um reconhecimento honesto das semelhanças e diferenças reais. Deus nunca foi mesquinho ou pedante ao abençoar as pessoas. Ele é nosso Pai. Essa era a mentalidade teológica e moral da maioria dos Padres sinodais.

Em suma, eu não encontro no presente “responsum” as linhas de força substanciais – do modo como eu as experimentei – do Sínodo dos Bispos sobre o Matrimônio e a Família de 2015. É uma pena para os casais homossexuais fiéis, suas famílias e amigos. Eles não se sentem justificados nem tratados com sinceridade pela Igreja. A reação já está ocorrendo.

É uma pena também para a Igreja. Esse “responsum” não é um exemplo de como podemos caminhar juntos. O documento mina a credibilidade tanto do “caminho sinodal” defendido pelo Papa Francisco quanto do anunciado ano de trabalho dedicado à Amoris laetitia. O verdadeiro Sínodo poderia fazer o favor de se levantar?

+Johan Bonny

Bispo de Antuérpia

Participante do Sínodo sobre o Matrimônio e a Família de 2015

16 de março de 2021

Adriana Zarri

O SILÊNCIO QUE FALA

"Adriana Zarri, em primeiro lugar, conseguiu fazer-se ouvir, desde os anos 1960, numa Igreja italiana bastante avessa em reconhecer a dignidade e o valor da voz dos leigos e das mulheres", escreve Gianni Di Santo, em artigo publicado por Vino Nuovo. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU.

A história de Adriana Zarri, teóloga, escritora, poetisa, divulgadora da beleza da criação e de um Deus que não permite acomodações (1919-2010), se encaixa perfeitamente na maior história do catolicismo na Itália no século passado. Embora a sua história tenha sido "mínima", vivida num processo histórico e eclesial que se ia compondo antes e sobretudo depois do Concílio Vaticano II, na realidade também a sua vida mais pública nem sempre teve repercussões em termos de um relato verídico. Mariangela Maraviglia, pesquisadora em Ciências da Religião e autora de interessantes ensaios sobre Primo Mazzolari e David Maria Turoldo, vem saldar esta dívida de reconstrução histórica, com um livro oportuno e fiel, Semplicemente una che vive. Vita e opere di Adriana Zarri (Simplesmente alguém que vive. Vida e obra de Adriana Zarri, em tradução livre, Il Mulino, 2020), escrita com base em fontes históricas, na história de quem a conheceu e um cuidadoso estudo de seus escritos e livros.

Um livro realmente precioso. Por duas razões fundamentais. A primeira é que nos propõe por inteiro a figura de uma mulher apaixonada por Deus, pela humanidade e pela criação, plenamente inserida num período histórico em que falar ou ser ouvida, sobretudo se mulher, sobretudo se com ideias à frente dos tempos e com viés polêmico, era realmente muito difícil. Uma história que os católicos italianos puderam fazer crescer, tanto dentro do movimento católico italiano como um todo, bem como leigos “individuais”, com seu testemunho profético pessoal e não vinculados a nenhuma instituição hierárquica.

Adriana Zarri, em primeiro lugar, conseguiu fazer-se ouvir, desde os anos 1960, numa Igreja italiana bastante avessa em reconhecer a dignidade e o valor da voz dos leigos e das mulheres. A própria Maraviglia defende que “ela dizia de si mesma, com um toque de ironia, que na Itália era a ‘líder histórica’ do valoroso grupo de teólogas que estava se afirmando no cenário das Igrejas cristãs. Ela, porém, ao contrário das mulheres que estudavam nas faculdades de teologia e que a partir dos anos 1970 também começavam a lecionar ali, não se formou por percursos acadêmicos, e seu jeito de ser teóloga também estava longe da academia”.

Uma história de amizades, de pesquisas teológicas, de avanços pastorais em um tempo histórico em que ser cristão significava em grande parte pertencer a um partido político ou frequentar movimentos e associações católicas. Uma mulher que soube encontrar a teologia e a busca de sentido: com Giannino Piana, Cettina Militello, Piero Coda, Marie-Dominique Chenu, Padre Benedetto Calati e Dom Luigi Bettazzi, escrevendo artigos e ensaios para L'Ultima, Il Gallo, Il nostro tempo, Humanitas, Studi Cattolici, Il Regno, Politica, Settegiorni, Rocca, L'Osservatore de domingo. Sua amizade com Rossana Rossanda é famosa - foi por causa dessa amizade verdadeira que escreveu para o Il Manifesto -, Sergio Zavoli, Pietro Ingrao: com eles compartilhou o entusiasmo pelas novidades prometidas pelo Concílio Vaticano II e por um diálogo entre ateus agnósticos e crentes sem vetos e muros intransponíveis.

Participou do programa de TV Samarcanda, de Michele Santoro, e apesar de viver uma vida em retiro e eremita, não deixou de participar das polêmicas da época, como as leis sobre o aborto e o divórcio. Com o padre Benedetto Calati, prior geral dos monges camaldulenses, promoveu roteiros e encontros entre intelectuais de diferentes culturas na ermida de Monte Giove, para se ouvirem e discutirem temas como a imagem de Deus, a lei e a liberdade, a pobreza e propriedade, morte e ressurreição, poder e trabalho, identidade e diferença sexual O segundo motivo da importância de Adriana Zarri reside na sua opção por um monaquismo laico vivido, como mulher, com orgulho e dignidade. Um silêncio que fala, poderíamos dizer hoje, definindo o carisma de Adriana Zarri.

“Foi talvez a primeira mulher italiana - relata a autora do livro - que escolheu o eremitismo, a vida solitária que havia desaparecido por séculos e que renascia na Itália a partir dos anos 1960. Foi uma escolha ditada por uma necessidade interior, não por decepção, como alguns pensaram, por causa do clima eclesial "restaurador" do pós-concílio. Ela escreveu sobre isso como uma exigência “de alegria e encontro com Deus e com os homens”, reivindicando a normalidade de uma vida como muitas outras e defendendo sua laicidade absoluta e sua autonomia de qualquer estrutura eclesiástica”.

Os eremitérios onde Adriana Zarri viveu logo se tornaram um oásis de harmonia e beleza, em que a fidelidade aos ritmos monásticos se entrelaçava com a liberdade de recriar ritos ancestrais que diariamente renovavam à espera do Senhor Jesus, louvando a terra e o cosmos.

Há muita Bíblia, enfim, em Adriana Zarri. Um pouco de São Francisco, Teilhard De Chardin, os Padres da Igreja, Jurgen Moltmann. Uma escritora competente e livre que, naturalmente, foi alvo de reprimendas públicas e privadas, mas, ao mesmo tempo, conquistou a amizade e o respeito de quem acreditava em um "catolicismo adulto", como Giorgio La Pira, Ernesto Balducci, padre Turoldo e bispos proféticos como Michele Pellegrino e Carlo Maria Martini.

Seu legado mais importante? Um eremitério não é a concha de um caracol, para retomar o título de um de seus ensaios mais conhecidos. O silêncio orante como arma pacífica para respirar o sopro de Deus na terra e na criação. Ao ler algumas polémicas sobre monaquismo, mosteiros e arredores, que surgem sob nossos olhos nestes tempos incertos, a história de Adriana Zarri não só não pertence ao passado, mas, com mais razão, contém em si vestígios do futuro, para uma Igreja verdadeiramente em saída.

Paul Crutzen

O ANTROPOCENO E A LONGA BATALHA PELO AMANHÃ

Morreu há um mês Paul Crutzen, teórico que enxergou o início, há 200 anos, de era perigosa, em que a humanidade torna-se força geológica. Leia o breve texto em que ele faz esta proposição e propõe articulação mundial pela sustentabilidade. O artigo foi publicado originalmente por GBP (Programa Internacional da Geosfera – Biosfera) e reproduzido por Outras Palavras. A tradução é de Piseagrama /IHU

O nome Holoceno (O Todo Recente) para designar a época pós-glacial dos últimos dez a doze mil anos parece ter sido proposto pela primeira vez por Sir Charles Lyell em 1833 e adotado pelo Congresso Internacional Geológico em Bolonha em 1885. Durante o Holoceno, as atividades humanas gradualmente se tornaram uma força geológica e morfológica significativa, o que foi rapidamente reconhecido por vários cientistas. Assim, ainda em 1864, G.P. Marsh publicou um livro intitulado Man and Nature (que corresponderia, em português, a O Homem e a Natureza), recentemente reeditado como The Earth as Modified by Human Action (que corresponderia a A Terra Modificada pela Ação Humana). Em 1873, Stoppani avaliou as atividades da humanidade como “uma nova força telúrica cujo poder e universalidade podem ser comparados às maiores forças da terra”. Stoppani já falava de uma era antropozoica. Hoje a humanidade já habitou ou visitou quase todos os lugares do planeta; ela já pisou até na lua.

Em 1926, o grande geólogo russo V. I. Vernadsky reconheceu o crescente poder da humanidade como parte da biosfera no excerto em que fala da “… direção na qual os processos de evolução devem seguir, a saber, rumo a uma consciência e a um pensamento expandidos, as formas tendo cada vez mais influência no seu entorno”. Vernadsky, juntamente com o jesuíta francês P. Teilhard de Chardin e E. Le Roy, em 1924, cunhou o termo “noosfera” – o mundo do pensamento – para marcar o papel crescente desempenhado pela habilidade mental e pelos talentos tecnológicos do homem na formação de seu próprio futuro e ambiente.

A expansão da humanidade, tanto em números quanto em exploração per capita dos recursos da Terra, tem sido impressionante. Alguns exemplos: durante os últimos três séculos, a população humana cresceu dez vezes, para 6 bilhões de pessoas, acompanhada por um aumento da população de gado para 1,4 bilhão (o que significa uma vaca por família de tamanho médio). A urbanização também cresceu dez vezes no último século. Em poucas gerações, a humanidade está exaurindo os combustíveis fósseis que foram gerados ao longo de centenas de milhões de anos.

A liberação de CO2 na atmosfera devido à queima de carvão e petróleo – cerca de 160 Tg/ano globalmente – é ao menos duas vezes maior do que a soma de todas as emissões naturais, que ocorrem principalmente como dimetilsulfureto marinho dos oceanos. Segundo Vitousek e colaboradores, 30% a 50% da superfície terrestre já foi transformada pela ação humana; mais nitrogênio é fixado sinteticamente e aplicado como fertilizantes na agricultura do que fixado naturalmente em todos os ecossistemas terrestres; o escape de NO originado de combustíveis fósseis e da combustão de biomassa até a atmosfera também é maior do que a emissão natural, causando a formação do ozônio fotoquímico (“smog”) em extensas regiões do mundo; mais do que a metade da água potável acessível é usada pela humanidade; a atividade humana aumentou a taxa de extinção de espécies entre mil e dez mil vezes nas florestas tropicais, e vários gases estufa importantes em termos climáticos aumentaram substancialmente na atmosfera: o CO2 aumentou mais que 30% e o CH4 mais de 100%.

Além disso, a humanidade libera várias substâncias tóxicas no ambiente, além dos gases de clorofluorcarbono, que não são tóxicos, mas que geraram o buraco na camada de ozônio na Antártida e que teriam destruído grande parte da camada se não tívessemos criado medidas regulatórias internacionais para acabar com a sua produção. Áreas úmidas costeiras também são afetadas pelos humanos, o que já resultou na perda de 50% dos mangues do mundo. Finalmente, a predação humana mecanizada (a indústria da pesca) remove mais de 25% da produção primária dos oceanos nas regiões de afloramento e 35% das regiões temperadas de plataformas continentais. Efeitos antropogênicos também são bem ilustrados pela história das comunidades bióticas que deixam restos em sedimentos de lagos. Os efeitos documentados incluem modificação do ciclo geoquímico em grandes sistemas de água potável e ocorrem em sistemas distantes de fontes primárias.

Considerando esses e vários outros crescentes impactos das atividades humanas na terra e na atmosfera, que acontecem em todas as escalas possíveis – inclusive global –, parece-nos mais do que apropriado enfatizar o papel central da humanidade na geologia e na ecologia propondo o uso do termo Antropoceno para a época geológica atual. Os impactos das atividades humanas vão continuar por longos períodos. Segundo um estudo de Berger e Loutre, devido às emissões de CO2 antropogênicas, o clima pode se afastar significativamente de seu comportamento natural ao longo dos próximos 50 000 anos.

Para designar uma data mais específica para o início do Antropoceno, embora pareça um pouco arbitrário, propomos a parte final do século XVIII, apesar de alertarmos que sugestões alternativas podem ser feitas (algumas pessoas podem até querer incluir todo o Holoceno). No entanto, escolhemos essa data porque, durante os dois últimos séculos, os efeitos globais das atividades humanas se tornaram claramente notáveis. Esse é o período em que, segundo dados acessados a partir de amostras de gelo glacial, iniciou-se o crescimento, na atmosfera, de concentrações de vários gases estufa, em particular CO2 e CH4. Essa data também coincide com a invenção, em 1784, por parte de James Watt, do motor a vapor. Por volta daquela época, meios bióticos na maioria dos lagos começaram a mostrar grandes mudanças.

A não ser que ocorram grandes catástrofes como uma enorme erupção vulcânica, uma epidemia inesperada, uma guerra nuclear em larga escala, um impacto de asteroide, uma nova idade do gelo ou o contínuo saqueamento dos recursos da Terra por tecnologias ainda primitivas (os últimos quatro perigos podem, no entanto, ser prevenidos em uma noosfera em funcionamento), a humanidade vai continuar sendo uma importante força geológica por muitos milênios, talvez por milhões de anos. Uma das principais tarefas futuras dos homens será desenvolver uma estratégia mundialmente aceita que leve à sustentabilidade de ecossistemas contra estresses induzidos por humanos, e isso vai requerer pesquisa intensiva e aplicação inteligente do conhecimento até aqui adquirido na noosfera, mais conhecida como sociedade do conhecimento ou da informação. Uma tarefa empolgante, mas também difícil e assustadora, se coloca para a comunidade mundial de pesquisa e engenharia, para que lidere a humanidade em direção a um gerenciamento ambiental que seja global e sustentável.

A informação é publicada por Repubblica

152 MILHÕES DE CRIANÇAS SÃO VÍTIMAS DE EXPLORAÇÃO EM TODO O MUNDO

A Save The Children as define como “pequenos escravos invisíveis”. No mundo hoje, ainda há 152 milhões de crianças vítimas do trabalho infantil. Metade delas, 73 milhões, são forçadas a atividades de trabalho perigosas que põem em risco a sua saúde, segurança e desenvolvimento moral. São vítimas de exploração sexual, laboral ou de mendicância forçada. Um fenómeno que permanece em grande parte submerso, presente também nos países mais avançados. A informação é publicada por Repubblica. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Na Itália, o trabalho infantil está proibido desde 1967, mas é um fenômeno que não só nunca desapareceu, mas também que a pandemia, as escolas fechadas e a ampliação das áreas de pobreza por causa dele correm o risco de se agravar. Existem poucos dados sobre a exploração do trabalho de menores e, sobretudo, não existe um monitoramento contínuo. Existem os dados da Inspetoria Nacional do Trabalho, relativos às sanções pela violação da lei (em 2019, foram 243, mas em breve sairá a atualização sobre 2020), mas naturalmente são a ponta de um iceberg que permanece em grande parte submerso.

Os últimos dados confiáveis datam de 2013 e são os de uma pesquisa realizada pela Fundação Di Vittorio e pela Save the Children, em colaboração com o Istat, que mapeou na Itália cerca de 340.000 menores de 16 anos ocupados Ilegalmente, ou seja, 7% da população em idade ativa. São babás, garçons assistentes, baristas, jovens trabalhadores temporários ou não qualificados, diz a investigação, depois da qual nada mais foi feito. Um vazio estatístico que deveria ser preenchido para dar a esse fenômeno as respostas legislativas e sociais que ele merece.

“A palavra-chave para entender o fenômeno do trabalho infantil é ‘submerso’ – explica Antonella Inverno, responsável pela seção Policy and Law da Save The Children – porque se refere a poucas verificações de violação, embora saibamos que o trabalho infantil é um fenômeno mais amplo e diz respeito tanto a estrangeiros quanto a italianos.”

A escola é a primeira guarnição de proteção das crianças, defende Inverno: “Onde as escolas permanecem abertas, elas combatem os riscos que os menores em situação de vulnerabilidade podem correr: e não se trata apenas de poderem ser exploradas em trabalhos pesados, mas também de acabarem nas mãos da criminalidade”, diz.

As crianças interceptadas pela Inspetoria do Trabalho da Itália estavam empregadas de maneira ilícita, em sua maior parte, em serviços de hospedagem e alimentação (142 violações), enquanto 36 violações diziam respeito ao setor do comércio atacadista e varejista, 17 em atividades artísticas, esportivas, de entretenimento e de diversão, 16 na manufatura, 13 no setor agrícola, quatro na construção (o restante em atividades diversas).

A emergência sanitária teve um impacto significativo sobre a gestão da cadeia agrícola e agroalimentar, fazendo emergir com mais força do que no passado as condições de exploração laboral a que estão submetidos os migrantes na zona rural italiana. Trata-se de jovens, que há anos se encontram em condições de exploração no setor agrícola e estão expostos às dinâmicas de intermediação ilícita (o chamado “caporalato”).

Em todo o mundo, a crise desencadeada pela Covid agravou a situação do trabalho infantil. Por isso, a Organização Internacional do Trabalho, em colaboração com a parceria global da Alliance 8.7, lançou em 2021 o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil. O objetivo dessa iniciativa é o de encorajar ações legislativas e políticas voltadas a evitar e a combater o trabalho infantil no mundo.

A resolução que proclama 2021 como o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil foi adotada por unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2019, para instar os governos a tomarem as medidas necessárias para promover o trabalho digno e alcançar o Objetivo 8.7 previsto pela Agenda 2030 das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável.

Tal objetivo pede que os Estados membros adotem medidas imediatas e eficazes para eliminar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de seres humanos, garantir a proibição e a eliminação das piores formas de trabalho infantil (incluindo o recrutamento e o uso de crianças soldados) e de pôr fim no trabalho infantil em todas as suas formas até 2025.

Edição 165, fevereiro 2021

José Luis Gómez de Segura

AS OUTRAS “LUTERO”. O MOVIMENTO MARIA 2.0 COLA SUAS TESES NAS PORTAS DAS CATEDRAIS E IGREJAS

As católicas alemãs dão um passo mais por uma igreja com rosto feminino. A reportagem é de José Luis Gómez de Segura, publicada por Religión Digital. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

Neste primeiro domingo de quaresma, o Movimento “Maria 2.0” colocou nas portas das catedrais e igrejas de toda a Alemanha um manifesto com sete teses (que pode ser lido neste link), que fazem referências às urgentes reformas que a Igreja necessita. Ao fazê-lo, as mulheres católicas ativistas reivindicam o gesto levado a cabo, há 500 anos, por Martinho Lutero.

“O fatco de Lutero pregar suas teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg é provavelmente uma lenda, porém suas teses deram início a algo importante, que é também o que querem as componentes do Maria 2.0”, dizem em um comunicado de imprensa.

As sete teses dirigem-se a “todos os homens de boa vontade”. Nelas, o movimento reivindica uma Igreja justa, onde todas as pessoas tenham acesso a todos os cargos, assim como o esclarecimento e a luta contra as causas da violência sexualizada. Ainda, exige-se uma atitude positiva para a sexualidade e a abolição do celibato obrigatório.

“Colamos nossas teses para uma igreja viva nas portas das catedrais e igrejas. Com este manifesto em toda Alemanha, acentuamos assim nossas exigências de reformas para uma Igreja fraternal e diversa, sem medo”.

A liderança da Igreja aposta pela credibilidade

Ademais, as teses voltam-se contra “toda classe de pompa, contra as transações financeiras duvidosas e o enriquecimento pessoal dos responsáveis da Igreja”. A Igreja deve gerir de forma responsável e sustentável os bens que lhe são confiados, seguindo os princípios cristãos.

A direção da Igreja se esvaziou de credibilidade, diz o manifesto. Por isso não consegue “fazer-se ouvir de forma convincente e trabalhar por um mundo justo no espírito do Evangelho”.

A Igreja segue sendo relevante para muitas pessoas, para a sociedade e o meio ambiente, por isso dizem: “nossa missão é a mensagem de Jesus Cristo, atuamos em consequência e participamos em desafios sociais”.

Desde seu ponto de vista, é necessário que a Conferência Episcopal Alemã comece a “abordar seriamente as reformas necessárias na Igreja Católica e a testemunhar a vontade de mudança com fatos”, diz a mensagem de Maria 2.0.

Sabemos que mudanças são necessárias

O porta-voz da Conferência Episcopal, Matthias Kopp, expressou sua compreensão pelo mal-estar que muitos católicos sentem. “Sabemos que mudanças são necessárias. Por isso, a Conferência Episcopal Alemã iniciou o “Caminho Sinodal” para seguir estas questões”, disse Kopp.

O protesto é um meio legítimo, “porém não podemos mudar a Igreja da noite para a manhã, mas sim por um diálogo aberto, marcado pela confiança”.

“A Assembleia de Bispos tratará os progressos do Caminho Sinodal. No entanto, a Igreja na Alemanha não adotará um caminho especial sem Roma”, quando se trate de questões de relevância para a Igreja mundial.

As teses das mulheres são muito claras”

Por outro lado, o vigário geral da diocese de Essen, Klaus Pfeffer, fala de um “sinal de grande força” a respeito da ação. A agudeza das teses expôs de forma inequívoca “até que ponto a situação de conflito chegou em nossa Igreja: a um ponto crítico”, disse Pfeffer. “Este protesto deve ser levado muito a sério, porque vem do seio de nossa Igreja e fala desde o coração de uma ampla maioria de fiéis”.

“Um número cada vez maior de fiéis católicos na Alemanha – inclusive os mais fiéis – já não estão dispostos a apoiar a nossa Igreja, a menos que haja mudança muito fundamentais que eliminem as causas de muitas tristes histórias de sofrimento”, explicou o vigário-geral de Essen, Pfeffer.

Ao mesmo tempo, fez um chamado a todos os participantes no debate “para que se tratem com respeito nesta fase difícil de nossa Igreja, inclusive com opiniões diferentes”.

Bispo de Mainz: “Não vou tirar os cartazes”

Em Mainz, o bispo Peter Kohlgraf disse às mulheres católicas: “Não vou tirar os cartazes”. E destacou que tinham simpatias por algumas teses. Porém na igreja, disse, nada pode ser levado a cabo tão rapidamente.

O bispo Bertram Meier, de Augbsurg, aceita a tese e promete sua abertura e disposição ao diálogo e se oferece para discutir os temas mais intensamente em uma reunião na primavera.

Peter Kohlgraf, Bispo de Mainz

IGREJA DEVE MUDAR SUA POSTURA SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE

O bispo Peter Kohlgraf, de Mainz, na Alemanha, defende as bênçãos para casais do mesmo sexo e uma revisão do Catecismo. A reportagem é de Christa Pongratz-Lippitt, publicada em La Croix International. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Em sua coluna semanal no jornal diocesano Glaube und Leben, o bispo de 53 anos explicou como chegou a se convencer de que a Igreja deve mudar a sua postura sobre a homossexualidade. Ele disse que, depois de se tornar bispo em 2017, foi logo informado de que muitas formas diferentes de bênçãos para casais homossexuais já existiam “e continuariam a existir”.

Abençoar o que há de bom em suas vidas

“Elas não seguem o modelo das cerimónias litúrgicas de matrimónio católicas, nem visam a alcançar uma liturgia padronizada. Os padres que acompanham esses casais abençoam aquilo que há de bom em suas vidas”, explicou. Foi por isso que ele apoiou a publicação de uma coleção de cerimónias de bênção para casais gays intitulada “Casais, ritos, Igreja”, que membros da Diocese de Mainz, junto com a Sociedade Alemã para o Planeamento Familiar Católico, compilaram e publicaram em novembro de 2020.

Kohlgraf reconheceu que a maioria dos cerimoniais de bênção descritos no livro são “contrários à lei da Igreja”. Mas ele disse que já estão sendo usados e continuarão sendo usados.

O bispo, que foi ordenado padre em 1993 pela Arquidiocese de Colônia, disse que achava que não faria muito sentido se ele, como bispo responsável, anulasse as bênçãos. “Eu realmente quero quebrar tantos pratos com pessoas que são fiéis?”, perguntou ele.

Um Catecismo nada delicado ou respeitoso

Ele destacou que, quando a Conferência dos Bispos da Alemanha realizou uma série de discussões sobre a homossexualidade em dezembro de 2019, especialistas médicos relataram que “a percentagem de pessoas que se sentem orientadas para a homossexualidade na sociedade não é de forma alguma pequena, e a homossexualidade é um fenômeno relevante no mundo animal”. Ele disse que sempre se fazia perguntas como: “As pessoas que se sentem orientadas à homossexualidade foram criadas de forma imperfeita? Deus cometeu um deslize?”.

Kohlgraf admitiu que, pessoalmente, achava difícil imaginar que algo tivesse dado errado na ordem da criação. Ele disse que muito poucos homossexuais consideram “delicada e respeitosa” a orientação do Catecismo da Igreja Católica de que eles pratiquem a castidade. O bispo assinalou que o Catecismo também afirma que a inclinação deles não é da sua própria escolha. E observou que o apelo do Catecismo à compaixão pelos homossexuais pode soar condescendente. “De modo geral, estou surpreso com o modo como a questão da homossexualidade ganhou ferocidade nos debates da Igreja”, disse Kohlgraf.

Bispos alemães favoráveis à bênção para casais homossexuais

Ele disse que o foco nas bênçãos para casais homossexuais aumentou significativamente na Igreja alemã nos últimos anos. O bispo Franz-Josef Bode, de Osnabrück, foi o primeiro bispo alemão a falar abertamente a favor da prática. Isso foi em 2018. “Ficar em silêncio ou transformar o assunto em tabu não nos leva a lugar algum”, disse o bispo de 70 anos na época, enquanto exigia mais debate sobre o assunto.

Naquele mesmo ano, o cardeal Reinhard Marx, de Munique, se pronunciou a favor da bênção para casais homossexuais em casos individuais, depois de serem acompanhados por um padre. E, então, em 2020, o bispo Heinrich Timmerevers, de Dresden, disse à agência de notícias católica KNA que acolheria as bênçãos para casais homossexuais. Ele disse ser contrário à exclusão das pessoas e que podia entender por que os casais gays querem uma bênção.

N. E. Por agora, as pessoas ainda são levadas a pensar que as 'bênçãos' de que fala o bispo são importantes. Quando crescerem de dentro para fora como pessoas humanas, perceberão que essas 'bênçãos' são de todo inúteis. Fundamental, é a fidelidade de cada casal heterossexual ou gay a um Projecto de vida que constitua uma mais-valia para a Humanidade, à medida que os meses e os anos de cada vida-a-dois se desenvolve na História.

José Beltrán

IGREJA CATÓLICA ALEMÃ PAGOU 19 MILHÕES DE EUROS ÀS VÍTIMAS DE ABUSO EM 2020

A Conferência Episcopal Alemã recebeu no ano passado 2.600 denúncias internas, enquanto somente em janeiro de 2021 já foram apresentadas pelo menos 116 novas solicitações. O escândalo do coral de Regensburg fez com que esta diocese pagasse até 9,6 milhões de euros em indemnizações. A reportagem é de José Beltrán, publicada por Vida Nueva Digital. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

O ano de 2020 teve como saldo na Igreja Católica da Alemanha uma entrega de 19 milhões de euros às vítimas de abusos. Assim se informa em um relatório de 27 dioceses alemãs e que desvela que ao longo dos doze meses receberam até 2.600 solicitações de algum tipo de indemnização.

Encabeça as indemnizações o bispado de Regensburg, atingido pelo escândalo do coral de meninos e que recaiu de forma indireta sobre o irmão de Bento XVI. Calcula-se que desta Igreja local chegaram a ser pagos 9,6 milhões de euros. Por outro lado, a diocese que se viu menos afetada foi a de Görlitz, que desembolsou apenas 4 mil euros por uma única denúncia.

Nova sistema de compensação

Esta auditoria veio a público justo quando a Conferência Episcopal Alemã modificou seu sistema de compensação econômica às vítimas, segundo o aprovado na Assembleia Plenária de outono que os bispos celebraram em Fulda. A partir de agora, os sobreviventes das agressões no seio da Igreja poderão receber até 50 mil euros de indenização em um pagamento único. Será um organismo independente que avaliará cada caso e tomará as decisões correspondentes. Ademais, a Igreja se compromete a custear também o acompanhamento psicológico que a pessoa precise, assim como a pertinente terapia de casal, se necessário.

Este novo protocolo tem ainda um caráter retroativo, isso é, aquelas pessoas que foram vítimas e que já receberam algum tipo de compensação, podem voltar a apresentar uma nova solicitação para que a comissão independente avalie novamente seu caso. Em princípio, este sistema apenas se aplicará à Conferência Episcopal Alemã, enquanto que a “CONFER” alemã deixa nas mãos de cada congregação para se somar ao procedimento lançado em razão dos abusos.

No tempo já decorrido em 2021, foram apresentadas pelo menos 116 novas denúncias, posto que nem todas as dioceses tinham informação atualizada a respeito. Segundo os estudos elaborados pela própria Igreja alemã, calcula-se que entre 1946 e 2014 até 3.677 menores foram vítimas de agressores sexuais no âmbito da Conferência Episcopal. No caso da vida religiosa, a Conferência Alemã de Superiores contabiliza 1.412 pessoas, das quais 774 teriam recebido algum tipo de compensação económica.

Branko Milanović

O PRIMEIRO ACONTECIMENTO GLOBAL NA HISTÓRIA HUMANA

É provável que a Covid-19 nos faça avançar quase uma década na consciência das possibilidades de dissociar o trabalho da presença física no local de trabalho. Embora em muitas atividades possamos, uma vez que a pandemia termine, voltar a compartilhar os escritórios físicos, a trabalhar nas fábricas, em muitos outros casos não será assim”, escreve Branko Milanović, economista sérvio-americano e professor da Universidade da Cidade de Nova York, em artigo publicado pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad. A tradução é do Cepat /IHU

A atual pandemia é o primeiro acontecimento global na história da espécie humana. Quando digo "global", quero dizer que afetou quase todas as pessoas, independentemente do país de residência ou da classe social. Se em alguns anos - quando, felizmente, a pandemia acabar e nós tivermos sobrevivido - encontrarmos amigos de qualquer canto da terra, todos compartilharemos as mesmas histórias: medo, tédio, isolamento, empregos e salários perdidos, quarentenas, restrições governamentais e máscaras. Nenhum outro acontecimento chegou perto.

As guerras, mesmo as mundiais, foram limitadas: as pessoas na Suíça, sem falar na Nova Zelândia, não tinham histórias significativas sobre a guerra para compartilhar com os habitantes da Polônia, Iugoslávia, Alemanha e Japão. E nos últimos 75 anos as guerras foram locais. Muitos jovens podem ter se manifestado contra a Guerra do Vietnam, mas a maioria não experimentou nenhum de seus efeitos. As pessoas ficaram horrorizadas com o cerco de Sarajevo, o bombardeio de Gaza e a estratégia de "choque e pavor" no Iraque. Mas para 99,9% da humanidade, esse susto não mudou em nada o seu dia a dia: levantavam-se cedo para ir estudar ou trabalhar, riam com os colegas de trabalho, talvez saíssem para beber e acabassem em um karaoke. Não tinham histórias para compartilhar com os residentes de Sarajevo, Gaza ou Bagdá, absolutamente nada em comum.

Nem sequer o futebol pode competir, mesmo que seus torcedores entusiasmados digam a si mesmos que os eventos mundiais imitam o futebol. A última final da Copa do Mundo foi assistida por 1,1 bilhão de pessoas, aproximadamente um em cada seis habitantes do planeta. Houve ainda muitos que ignoraram sua existência e aqueles que não se importaram nenhum pouco com qual time ganhou ou perdeu.

Entrar nos livros de história

A Covid-19 entrará nos livros de história como o primeiro acontecimento verdadeiramente global também em virtude de nosso desenvolvimento tecnológico: não apenas podemos nos comunicar com o mundo todo, mas também podemos acompanhar em tempo real o que está acontecendo em praticamente qualquer lugar. Dado que a infecção, a doença e uma possível incapacidade e morte ameaçam a todos, mesmo aqueles que por outros motivos têm pouco interesse nas notícias checam seus celulares para obter atualizações sobre mortes, taxas de infecção, vacinas e novas terapias.

A própria Covid-19 parece ter sido projetada para essa função. Embora seu nível de mortalidade aumente com a idade, seus efeitos são tão incertos que mesmo grande parte da população mais jovem e saudável não está totalmente livre de preocupação. Se a Covid-19 fosse menos aleatória, teria causado menos medo. No entanto, este acontecimento global é ao mesmo tempo estranho. Requer que as pessoas não interajam fisicamente umas com as outras e, assim, cria outra dimensão, uma nova. Nosso primeiro acontecimento global será aquele em que não nos encontramos cara a cara, em tempo real, com outras pessoas que também o experimentaram.

Se refletirmos sobre isso, faz sentido. Para ser global, o acontecimento tem que ser vivido mais ou menos da mesma forma e ao mesmo tempo por todos. Se nos limitamos ao contato físico e a presença, não podemos alcançar muitas pessoas, simplesmente porque não é possível para cada um de nós se encontrar com milhões de pessoas, muito menos com centenas de milhões. Portanto e ironicamente, o primeiro acontecimento humano global foi desprovido de qualquer contacto humano e físico: teve que ser experimentado de forma virtual.

É por isso também que essa pandemia é diferente da de um século atrás. Naquela época, as informações não podiam ser facilmente transmitidas ou compartilhadas. Na época em que as pessoas estavam morrendo na Índia de gripe espanhola, a Europa estava se recuperando e não sabia ou era indiferente às mortes na Índia. E a Índia também não tinha ouvido falar das mortes na Europa até que a pandemia a invadiu.

Globalização do trabalho

O que ficará deste acontecimento global, além da memória das pessoas? Existem apenas algumas coisas que podemos dizer com alguma certeza.

A pandemia acelerará a globalização no segundo fator de produção: o trabalho. (O primeiro fator, o capital, já está globalizado graças à abertura de contas nacionais de capital e a capacidade técnica de movimentar grandes somas de dinheiro em todo o mundo e de construir fábricas e escritórios em todos os lugares). É provável que a Covid-19 nos faça avançar quase uma década na consciência das possibilidades de dissociar o trabalho da presença física no local de trabalho. Embora em muitas atividades possamos, uma vez que a pandemia termine, voltar a compartilhar os escritórios físicos, a trabalhar nas fábricas, em muitos outros casos não será assim.

Isso não afetará apenas as pessoas que trabalham em casa, mas a mudança será muito mais profunda. Um novo mercado de trabalho global virá à luz sem a necessidade de migração. Em alguns segmentos da economia global (como centrais de atendimento e projetos de software), esse mercado já existe, mas se tornará muito mais habitual. A pandemia implicará um salto gigantesco em direção à mobilidade do trabalho, uma mobilidade peculiar, na qual os trabalhadores e as trabalhadoras individuais não se mudarão de seu local de residência, mas trabalharão em 'escritórios' e 'fábricas' a quilómetros de distância.

Aqueles que temem que a globalização possa retroceder ficarão surpresos. Devido à guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, as cadeias globais de valor e o comércio podem sofrer um revés temporário. Mas em termos de mobilidade do trabalho ou, mais precisamente, de concorrência trabalhista - que é extraordinariamente importante - a globalização avançará.

Edição 164, janeiro 2021

Nicoletta Dentico

UM ANO DEPOIS DE COVID-19 SOMOS REFÉNS DAS MULTINACIONAIS FARMACÊUTICAS

"O Covid-19 impõe um profundo repensar, uma nova cultura sanitária em chave europeia. Agora que estamos em um momento de pandemia, a Comissão precisa apoiar imediatamente a renúncia aos direitos de propriedade intelectual, conforme previsto pelo tratado fundador da Organização Mundial do Comércio, e como solicitado pela Índia e África do Sul: para liberar o conhecimento científico produzido com fundos públicos e incentivar o protagonismo de novos sujeitos na luta contra o Covid-19 é uma necessidade real, para derrotar o vírus", escreve Nicoletta Dentico, jornalista e analista sênior de políticas em saúde global e desenvolvimento, que atualmente lidera o programa de saúde global da Sociedade para o Desenvolvimento Internacional (SID), em artigo publicado por Giornale. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

A euforia em torno das vacinas e a campanha de comunicação ativada pelos governos no final de 2020, com o anúncio de que seu advento teria marcado o início do fim da pandemia, suscitaram algumas perplexidades na comunidade científica, devido às expectativas geradas. Claro, o fato de duas vacinas - Pfizer/Biontech e Moderna - terem sido descobertas e colocadas em produção em um tempo recorde, 10 meses em vez dos habituais 10-12 anos, e com uma eficácia inicial de tirar o fôlego, acima de 90%, é um verdadeiro milagre da medicina. E é uma ótima notícia que outras vacinas estão em estágio avançado de testes clínicos, em mais partes do mundo. Uma mobilização científica tão centrada contra o mesmo vírus nunca havia sido vista. Mas o cenário continua cheio de armadilhas, e não apenas pelas incógnitas sobre a evolução do vírus.

Para começar, a chegada das vacinas marca o fim do início da pandemia, na melhor das hipóteses. A gangorra de notícias sobre atrasos nas entregas de vacinas projetam o claro-escuro de um rude despertar, o primeiro banho de realidade após o atordoamento da propaganda natalina.

Vamos ser claros: colocar no mercado uma produção em larga escala em poucos meses para combater uma pandemia em regime de emergência não é brincadeira. Isso nunca aconteceu antes. Portanto, não deve surpreender que um terço dos 27 países europeus registou fornecimento insuficiente dos produtos e 6 governos (Suécia, Dinamarca, Finlândia, Lituânia, Letônia, Estônia) escreveram à Pfizer/Biontech para pedir "estabilidade e transparência no prazo entrega de vacinas". Acompanhar a demanda é um desafio que não contempla ambiguidades por parte da indústria, muito menos falsas promessas. Os atrasos nas tabelas de entrega acordadas não apenas impactam os cronogramas de vacinação para a administração da segunda dose, mas podem comprometer a eficácia geral do plano de vacinação. O cabo de guerra entre governos e empresas relembra fragmentos da história já vividos vinte anos atrás com a pandemia de HIV/AIDS. Não podemos repetir aquele script para as vacinas pandêmicas.

Também porque, desta vez, o financiamento público funcionou como uma alavanca em uma rota científica sem precedentes. Junto com as novas tecnologias, os fundos governamentais revolucionaram a pesquisa clínica, favorecendo sua aceleração extrema. O recente relatório da fundação KENUP revela que em 11 meses de atividade sobre o SARS-CoV-2, o setor público investiu 93 bilhões de dólares, 95% dos quais destinados às vacinas - 86,5 bilhões - e 5% para medicamentos e diagnósticos.

A injeção vem de países industrializados: 32% dos Estados Unidos (Operação WARP Speed), 24% da Comissão Europeia, 13% do Japão e Coréia do Sul.

A fatia financeira mais consistente foi para pequenas e médias empresas e 18% para os grandes produtores farmacêuticos. As biotech tiveram um papel determinante contra a Covid-19. Empresas desconhecidas como a estadunidense Moderna ou a alemã CureVac e a BionNThec, especializadas em tecnologia de RNA mensageiro, são as protagonistas absolutas dessa história de inovação, com resultados estratosféricos no mercado financeiro: em meados de agosto, a CureVac viu subir seus títulos em 249,4 % em 24 horas, 400% em dois dias. Para a alegria da Fundação Bill & Melinda Gates, um dos principais investidores.

No frenesi da corrida pela reserva, os governos ocidentais operaram na esteira de um incompreensível laissez faire em relação às indústrias, para as quais também distribuíram montanhas de dinheiro. Não negociaram as restrições comerciais e a flexibilidade de tempo e preço do regime pandêmico. Não estabeleceram cláusulas de transparência - os acordos são secretos - nem estabeleceram ex ante as condições de acesso à vacina segundo critérios de saúde pública, com um olhar além dos países ocidentais.

A vacina não existe em isolamento: precisamos de uma estratégia de vacinação adequada, condições de adaptação aos diferentes contextos. Quem e quando imunizar, e em que ordem de prioridade (se a disponibilidade da vacina for limitada), são decisões a serem tomadas com base nas informações epidemiológicas e nas propriedades da vacina que são suscetíveis a mudanças dependendo da evolução da doença e da eventual presença de outras vacinas, numa análise dinâmica e nunca tida como certa de riscos e benefícios. Ainda assim, com a Covid-19, esses objetivos de saúde pública correm o risco de se perder na prática confusa de acordos bilaterais - 44, segundo a OMS, 12 dos quais foram firmados apenas em 2021 - com as empresas para doses adicionais ad hoc.

O Covid-19 impõe um profundo repensar, uma nova cultura sanitária em chave europeia. Agora que estamos em um momento de pandemia, a Comissão precisa apoiar imediatamente a renúncia aos direitos de propriedade intelectual, conforme previsto pelo tratado fundador da Organização Mundial do Comércio, e como solicitado pela Índia e África do Sul: para liberar o conhecimento científico produzido com fundos públicos e incentivar o protagonismo de novos sujeitos na luta contra o Covid-19 é uma necessidade real, para derrotar o vírus. Além disso, a Europa precisa preparar o mais rapidamente possível uma pesquisa e produção públicas de produtos farmacêuticos e médicos essenciais, para emancipá-la da lógica individualista de cada estado membro na gestão das próximas pandemias, já no horizonte. Outra pesquisa farmacêutica é possível. Depois do Covid-19, indispensável.

Giannino Piana

É DESUMANO CONTINUAR A MORRER SOZINHOS

"Aqui tocamos claramente o nível mais baixo de desumanização de que nossa civilização tecnológica é capaz. E não digam que não poderia ter sido feito de outra forma", escreve por Giannino Piana, escritor, teólogo, ex-professor de Ética Cristã do Instituto Superior de Ciências Religiosas da Livre Universidade de Urbino e de Ética e Economia da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Torino, em artigo publicado por Huffington Post. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Entre os aspectos mais graves da pandemia de coronavírus em que ainda estamos imersos, o mais dramático foi (e é) sem dúvida constituído pelo estado de abandono em que acabaram ficando, nos hospitais e nas casas de repouso, pacientes graves e idosos que se viram viver as últimas horas de sua existência sem o acompanhamento de seus familiares ou entes queridos que gostariam de ter por perto.

Todos ainda temos impresso nos olhos - e não poderemos apagar por muito tempo - a imagem daquela macabra procissão de caminhões militares que transportavam para cemitérios distantes dos locais de origem os caixões de várias pessoas falecidas sem poderem receber o último adeus dos seus parentes aos quais, por um determinado período, foi até impedido de participar de um rito de despedida. Sabe-se que a morte é uma experiência individual, que comporta um nível marcante de solidão, mas os modos as modalidades com que foi vivida (e ainda é vivida) por muitos idosos (e não só) neste momento de pandemia tem algo de preocupante.

A ausência de um amigo que esteja ao seu lado, que lhe pegue pela mão ou lhe faça um carinho, torna tudo muito mais trágico e desolador. Sem falar no trauma dificilmente superável de quem soube da gravidade da situação do seu familiar, descobrindo mais tarde, talvez depois do momento em que havia ocorrido, a notícia do desaparecimento.

Aqui tocamos claramente o nível mais baixo de desumanização de que nossa civilização tecnológica é capaz. E não digam que não poderia ter sido feito de outra forma.

Claro, a necessidade de proteger do risco do contágio ambientes delicados como aqueles que hospedam doentes e idosos, evitando a propagação do vírus, era uma precaução correta que precisava ser respeitada. Mas talvez uma maior inventividade pudesse ter encontrado formas viáveis de combinar as necessárias medidas de proteção à saúde com as não menos importantes exigências de garantir a proximidade das pessoas em sofrimento de seus entes queridos, sem esquecer que isso também faz parte (e em grande medida) do processo de cura.

Por isso, merece um elogio especial o Conselho da Região da Toscana que, instado pela Associação "Tutto è vita onlus" e pela Fundação Meyer, bem como pelo parecer da Comissão Regional de Bioética (CRB), que aprovou por unanimidade as propostas das secretárias da Saúde Simone Berrini e dos Assuntos sociais Serena Spinelli de uma série de medidas concretas que permitem que pacientes internados em hospitais, asilos e residências de saúde recebam visitas de seus familiares, respeitando as normas anti-Covid. As medidas previstas, que dizem respeito principalmente (mas não exclusivamente) a pessoas que sofrem de patologias graves ou de prognóstico grave e que já parcialmente estão em vigor, são o testemunho claro da possibilidade de dar um passo em frente no campo da humanização da assistência e merecem ser destacadas na esperança de que medidas semelhantes também possam ser tomadas em todo o país. O que está em jogo, é o nível de civilização da nossa sociedade.

Lucia Vantini

AS INCÓMODAS TEOLOGIAS DAS MULHERES

"Pesa sobre o feminino a impressão de uma incompatibilidade natural com o sagrado e com o espaço público, uma incompatibilidade que tornaria as mulheres deslocadas em ambos os contextos", escreve Lucia Vantini, professora de Filosofia e Teologia no Instituto Superior de Ciências Religiosas e Estudos Teológicos de San Zeno, em Verona. Membro da comunidade filosófica Diotima. Vice-presidente do Coordinamento Teologhe Italiane "Donne Chiesa Mondo”,janeiro de 2021. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Estamos num tempo de incerteza, não é preciso lembrar isso. No óbvio, porém, nem tudo acontece por si só. Entre o que não podemos dar como certo, está nossa postura no fluxo dos eventos. Mesmo que muda, não para de dar voz à experiência. Embora invisível, continua a moldar a história. Apesar de ignorada, insiste em gerar saberes. Acontece, portanto, que as palavras e as práticas estão se transformando de uma forma nem sempre transparente e compartilhada: não sabemos exatamente de onde vêm, nem que efeitos estão tendo sobre nós.

Um dos pontos de observação dessas transformações gira em torno da vida dos corpos e de suas narrativas. As formas como se regulam as distâncias entre os corpos, de fato, produz sempre teorias, imaginários, discursos e hábitos. O Covid-19 mexeu nessas distâncias, às vezes encurtadas demais nas casas e dilatadas ao máximo nos locais de trabalho, nas escolas, nas lojas e nas praças.

Nas igrejas foram adotados os protocolos de segurança previstos, mas há no ar uma estranha mistura entre o medo do contágio e o medo de que o povo de Deus possa viver bem a fé mesmo sem celebrações presenciais. Seja como for, precisamente porque há uma mudança importante quanto à distância entre os nossos corpos, algo profundo e indecifrável acontece na nossa experiência, tocado no coração da sua vocação relacional. Poderíamos dizer sinteticamente que é nosso imaginário de proximidade que se sente convocado e abalado. Não é fácil reorganizar pensamentos, as palavras e as ações.

Abriu-se um conflito interpretativo sobre o que realmente significa viver boas relações em uma época em que as tensões econômicas, sociais e políticas são cada vez mais exasperadas. Também é difícil levar a sério e honrar a vulnerabilidade que nos distingue a todas e a todos, desmascarando as muitas hierarquizações com as quais sempre convivemos. Nas comunidades cristãs, a mesma questão se resume com eficácia no termo fraternidade, categoria que não pode se imunizar das tensões do mundo que habitamos juntos, como atesta também a última encíclica do Papa Francisco.

Escutar as mulheres

Para que esta oportunidade de reelaboração da história não seja desperdiçada, porém, é preciso também ouvir as mulheres. Não em geral: as mulheres não são detentoras da verdade (ou da falsidade) por natureza. Trata-se antes de ouvir as tantas mulheres que - entre infinitas perturbações - trazem o discurso sobre o sentido da diferença sexual, sobre as diferenças em que ela historicamente se entende e sobre os imaginários que as acompanham. São as mulheres que aprenderam por experiência a desconfiar dos discursos universais, neutros, a-históricos e desencarnados. Essas mulheres sabem muito bem que a injustiça não tem pudor e muitas vezes se disfarça com roupas de igualdade.

Elas nos lembram continuamente que não bastará falar de justiça social ou de fraternidade para transformar o mundo em um lugar efetivamente hospitaleiro para todos. Elas nos confrontam com o fato de que programas de boa vontade escorregam sobre a superfície da história sem se inscreverem em sua trama efetiva, se não olharmos para as singularidades concretas e o que realmente as atinge no silêncio das vidas. Na escuta dessas mulheres se aprende a urgência de questionar os imaginários da diferença sexual, porque algo injusto muitas vezes se esconde neles.

Aqui está a razão de algumas contradições no mundo, que levantam questões não resolvidas. Por exemplo, por que em uma ordem civil que não admite discriminações relacionadas à diferença sexual, as mulheres são as primeiras a perder o emprego, costumam receber menos, muitas vezes têm que assumir a cansativa gestão da casa, se sentem pouco adequadas para funções científicas, dificilmente alcançam cargos de topo e, caso sofram violência, tendem a culpabilizar-se e serem culpabilizadas? E por que, em uma versão eclesiológica centrada na dignidade batismal, os vínculos entre os sexos resultam desequilibrados nas tantas formas que conhecemos, oscilando entre a demonização e a idealização do feminino sem solução de continuidade? Não se pode responder sem mergulhar no reino sombrio dos imaginários culturais em que se expressa a diferença sexual.

Não se trata de uma sugestão para desviar a atenção do plano do discurso explícito e político: é antes um convite a refinar o olhar, porque as "explicações" também se aplicam ao não dito e às paixões que o agitam. Afinal, como bem mostrou o psicólogo e neurocientista Micheal Gazzaniga, tendemos a produzir muitos motivos para justificar os nossos sim e os nossos não à vida, mas muitas vezes se trata de confabulações: as razões do fazer estão em outro lugar, escondidas por discursos de cobertura postos em campo para governar o desequilíbrio da diferença Uma sabedoria feminina pode nos orientar nessa complexidade, reconhecível no pensamento filosófico da diferença (Diotima) e nas teologias de gênero do Coordinamento delle Teologhe Italiane (Cti).

Uma remoção antiga e sempre nova. A trama patriarcal que interrompe os vínculos justos entre mulheres e homens - justos no plano afetivo, interpretativo, jurídico, simbólico, prático - está repleta daquelas contradições que o inconsciente pode se permitir. Sem podermos fazer um exame aprofundado, destacamos como nele se instaura muitas vezes um imaginário patriarcal que exalta e despreza o feminino ao mesmo tempo. A mulher assim desenhada é paradoxalmente demasiado angélica e muito demoníaca para ser ouvida naquilo que ela tem a dizer ou para ser deixada agir.

Pesa sobre o feminino a impressão de uma incompatibilidade natural com o sagrado e com o espaço público, uma incompatibilidade que tornaria as mulheres deslocadas em ambos os contextos. Essa incompatibilidade é composta de "muito" e de "pouco": muito materna, muito afetiva, muito relacional e muito corpórea por um lado, mas também pouco racional, pouco sistemática, pouco política e pouco espiritual pelo outro, a mulher se torna irrelevante no plano da troca concreta das perspectivas sobre o mundo, mesmo teológicas. As remoções postas em ato partem daquela trama contraditória, ainda que muitas vezes as argumentações se aproveitem apenas do lado luminoso, o idealizador. As demonizações são caladas, porque não são reconhecidas ou por estratégia. O entrelaçamento é, de qualquer forma, deletério, porque neutraliza tudo que questiona o sentido unitário da realidade. Porque, sabe-se, é isso que as mulheres fazem: expressam desconfortos e desejos que desmascaram a parcialidade das tradições que não as previram e que ainda não as querem encontrar e, assim, abrem o discurso para muitas outras diferenças.

Nessa perspectiva, as teologias das mulheres são incômodas pelo pedido que trazem consigo: pedem para salvar o particular. Falam de corpos, sentimentos, opressões, vidas e histórias, talvez porque sejam menos preocupadas com o que está acabando e muito mais atraídas pelo que está nascendo.

Assim, elas se encaminham por sendas dos processos pascais que perpassam a existência. Nesse sentido, não se trata de teologias progressistas: não é o novo que atrai, mas o desabrochar do ser.

O sonho feminino não é só para as mulheres. Volta à memória o que a filósofa María Zambrano escreve sobre as ruínas, em um artigo de 1949 provavelmente escrito em Roma, durante uma das etapas do longo exílio a que o regime de Franco a obrigou.

Em frente ao Fórum Romano, Zambrano sente o pathos que emana das ruínas. Para ela, as ruínas são sempre uma metáfora da esperança que se obstina a doar-se mesmo nas crises e nos fracassos. Algo sagrado fica no ar: é o vestígio do passado que se perdeu, mas é também o canto daquilo que, vencido, não deixou de lançar seu próprio apelo. Assim, a hera, o musgo ou a erva que abre caminho pelas frestas das pedras que ficaram, que tanto encantaram Zambrano, são também a imagem daquela esperança obstinada das mulheres dentro das nossas comunidades, que no fundo nada mais é que o delírio da própria vida que pede expressamente para ser compartilhada.

Alain Durand, op

FALAR DE DEUS QUANDO DEUS NÃO INTERESSA MAIS A NINGUÉM

O Deus de Jesus é um Deus humano, um Deus próximo, um Deus que vacila conosco, enquanto nos enche com a sua ternura. Esse Deus não se impõe. E eu me absteria absolutamente de fazer dele um Deus necessário. Não, ele é até um Deus facultativo, isto é, que deixa ao ser humano a faculdade de deixá-lo de lado. É um Deus do qual se pode abrir mão, mesmo que ele não possa abrir mão de nós. A reflexão é de Alain Durand, dominicano francês do Convento La Tourette, perto de Lyon, na França. O artigo foi publicado em Garrigues et Sentiers. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

“A cultura cristã está em forte declínio, principalmente entre os jovens”: esse é o título de um artigo publicado no Le Monde do dia 14 de agosto, ao apresentar os resultados de uma pesquisa do IFOP [Instituto Francês de Opinião Pública] realizada no início de agosto de 2020. O comentarista Jérôme Fourquet escreve: “Há um fenômeno global de secularização da sociedade. Muitos não se interessam muito em conhecer essa cultura. Ela se tornou uma língua estrangeira ou até desconhecida para uma grande parte das gerações mais jovens”.

Essa é a situação em que nos encontramos. Nessa pesquisa, fala-se diretamente de “cultura cristã” e não de “fé cristã”. Pode-se ter uma boa cultura cristã sem ter a fé, enquanto o inverso praticamente não é possível, pois a fé nasce da palavra, e tal palavra necessariamente contém elementos de conhecimento e, portanto, de cultura.

Nos últimos anos, já houve muitas outras pesquisas que indicavam um declínio contínuo da prática religiosa e da adesão aos dados da fé. Existem bons motivos para acreditar que essa tendência continuará. Para quem é crente, essa situação é um verdadeiro desafio, sem falar do sofrimento que pode acarretar, principalmente para as pessoas idosas que constatam o abandono da religião nos seus filhos e ainda mais nos seus netos. A questão é saber como é possível hoje comunicar a fé, que palavra e que testemunho podem superar essa evidente falta de interesse pelas realidades da fé.

A secularização é um facto. Seria preciso saber como despertar o interesse pela questão de Deus fora de qualquer percurso religioso. Mas isso é possível? A questão não é totalmente nova, pois foi levantada profeticamente por Dietrich Bonhoeffer, cujas “Cartas da prisão” continuam sendo imprescindíveis. Sem dúvida, não há outra possibilidade para fazer compreender algo da fé do que falar de Deus a partir das nossas realidades humanas. A situação atual nos convida a superar um modo de proceder tradicionalmente dedutivo que consiste em partir de um Deus preliminarmente definido para posteriormente deduzir uma “visão cristã” do ser humano. Não se trata de falar do ser humano a partir das realidades religiosas. Em vez disso, trata-se de falar de Deus a partir do ser humano.

A questão de Deus não pode fazer sentido senão no prolongamento da questão do ser humano. Ela se situa no seu desenvolvimento. Deus se torna aquilo que constitui o coração da consistência humana. Deixa de ser aquele a partir do qual se poderia deduzir aquilo que é o ser humano, pois é aquele cujo rosto se constrói a partir da nossa humanidade.

Sim, é precisamente a partir do ser humano que podemos conhecer algo de Deus. Tal percurso só ganha forma no fato da revelação de Deus no homem Jesus. É precisamente a partir dessa humanidade singular que é a de Jesus de Nazaré que se delineia o rosto de Deus.

Isso é tão verdade que Jesus declara em João 14,9: “Quem me vê, vê o Pai”. Uma palavra que poderia ser qualificada, a partir dos nossos hábitos religiosos, como “reducionismo inaceitável”. “Não”, poderíamos responder a Jesus, “quem te vê não vê o Pai, o Pai é outro, alguém que não temos o direito de confundir contigo! Serias, talvez, o falso profeta de um Deus sem transcendência? Nós estamos fartos desse apelo permanente ao humano, nós precisamos de um Deus outro, de um Deus que eleve a nossa alma para o alto, longe dos nossos vales de lágrimas. Nós precisamos justamente de algo diferente do humano, e lá vens tu para rebaixar as nossas aspirações a ponto de pretender que basta ver a ti, o homem de Nazaré, para ver Deus. Que achatamento! Que confinamento! Nós esperávamos nos elevar rumo às esferas celestes, e tu nos rebaixas novamente ao nível do chão!”.

“Além disso, o homem que és e ao qual ousaste reduzir o Pai perdeu toda a atratividade humana na Cruz. Esse homem se tornou o último de todos, o flagelado, o condenado, e tu gostarias que Deus fosse reconduzido a tal decadência! Não, é preciso que mantenhamos a distância, o abismo entre Deus e ti, entre o ser humano e Deus. Senão, estamos perdidos. Não haveria mais razão, então, para nos apegarmos a Deus, se Deus fosse tão semelhante a nós! Nós precisamos de um outro Deus, de um Deus de verdade, de um Deus que não seja um homem, acima de tudo não um homem humilhado, afligido, martirizado, morto. Não, nós precisamos de um Deus forte, de um Deus todo-poderoso, de um Deus radiante, capaz de vir nos socorrer, em vez daquele Deus humilde que vem compartilhar a nossa sorte”.

Mas não é precisamente esse Deus, esse Deus das religiões, esse Deus prestigioso, esse Deus poderoso, que acabou de abandonar o nosso universo? Não é ele, talvez, o Deus que não interessa mais às pessoas apesar das demandas religiosas de um número cada vez menor de pessoas? Não é, enfim, o Deus da religião, esse Deus todo-poderoso, glorioso e condescendente, que deixou de ser credível para a maioria dos nossos contemporâneos?

Tomemos, como ponto de partida, o facto cada vez mais evidente de que aquilo que interessa aos homens de boa vontade é poder levar uma vida propriamente humana, sem fanfarras, uma vida com as suas alegrias simples e as suas pequenas satisfações do quotidiano, uma vida em que se possa viver com dignidade, em que se possa participar da festa da vida saboreando as doçuras da terra, a beleza das coisas e o calor das relações, uma vida em que cada um se encarrega de construir a fraternidade humana.

Tudo isso pode preencher as nossas vidas? Por que relativizar o nosso modo de vida, a partir de um ponto de vista que seria o de um Deus exterior que propõe algo muito mais grandioso? O humano, a partir do qual Cristo nos fala de Deus e delineia o seu rosto, é feito de tudo aquilo que dá valor à nossa vida, assim como dava valor à sua vida. Não havia apenas grandes coisas na sua vida, aquelas que se diz serem reservadas à elite, havia todos aqueles gestos simples e amigáveis que criam fraternidade, havia aquela atenção ao sofrimento alheio que era o primeiro passo dado para dar alívio para a tragédia humana, havia também aquelas refeições e aquelas bebidas que ele apreciava a ponto de ser tratado como glutão e beberrão pelos seus detratores. Havia a acolhida incondicional aos feridos da vida, aquele perfume derramado sobre a sua cabeça, aquelas refeições partilhadas com aqueles que ele nunca deveria ter frequentado segundo a moral vigente dos homens religiosos.

Sim, tudo isso nos remete a outro Deus. Um Deus humano, um Deus próximo, um Deus que vacila connosco, enquanto nos enche com a sua ternura. Esse Deus não se impõe. E eu me absteria absolutamente de fazer dele um Deus necessário. Não, ele é até um Deus facultativo, isto é, que deixa ao ser humano a faculdade de deixá-lo de lado. É um Deus do qual se pode abrir mão, mesmo que ele não possa abrir mão de nós. Um Deus que eu só posso encontrar descobrindo ao mesmo tempo que sou infinitamente precioso aos seus olhos. É um Deus que alegra o coração, um Deus que permite a vida, um Deus que não tenta pegar ninguém em falso, um Deus que se esconde no coração de toda relação de fraternidade, um Deus que dilata toda a riqueza do humano, porque ele mesmo é a plenitude interior do humano.

É um Deus de quem é possível falar humanamente, um Deus que se deixa abordar sem que o saiba, um Deus que não teme se deixar encontrar cobrindo-se de anonimato quando qualquer ser humano, crente ou não, acolhe qualquer outro ser humano, crente ou não. É um Deus que se descobre no “murmúrio de uma brisa leve” (1Rs 19,12) e não no furacão, no raio, nos tremores de terra, nos tsunamis, nos tanques, na violência das ditaduras, na barbárie dos atentados.

Um Deus tão discreto que está presente, mesmo quando não sabemos dele e não sentimos nada dele. Esse Deus é um Deus que é fonte daquilo que há de mais humano no ser humano. É a dimensão máxima da minha própria humanidade. A minha esperança é de que esse Deus desperte no nosso coração o desejo de encontrá-lo, de uma forma totalmente diferente daquilo que poderia fazer, do alto da sua grandeza, um Deus soberano fixado no absoluto. Nós somos responsáveis pelos traços do seu rosto quando falamos dele. Todo o resto pertence a ele.

Edição 163, dezembro 2020

Alain Badiou

SOBRE A CONJUNTURA ACTUAL

Todos estes movimentos, todas estas lutas em escala mundial são definitivamente ‘foristas’. Deseja-se a saída do dirigente, sem que se tenha a menor ideia, nem de quem o substituirá. Em síntese, a negação, que unifica, não transporta em si qualquer afirmação, qualquer vontade criativa, qualquer concepção activa da análise das situações e do que poderia ser, ou deve ser, uma nova política, afirma Alain Badiou, filósofo, professor aposentado da Universidade de Paris-VIII, em artigo publicado por A Terra é Redonda. A tradução é de Daniel Pavan /IHU

O assunto sobre o qual eu gostaria de intervir, esta noite, mas que dificuldades pessoais me impedem de fazê-lo, é uma resposta à seguinte questão, relativa à palavra que, a princípio, nos reúne: a palavra “lutas” e a expressão “depois de dois anos de luta”

Para ser breve, direi o seguinte: em escala quase mundial, há alguns anos, desde, sem dúvidas, aquilo que foi chamado de “a primavera árabe”, estamos em um mundo onde as lutas são abundantes. Mais precisamente: as mobilizações e as manifestações de massa. Eu proponho a afirmação de que a conjuntura geral é marcada, subjetivamente, pelo que chamarei de “movimentismo”, isto é, a convicção amplamente compartilhada de que importantes manifestações populares irão, sem a menor sombra de dúvidas, levar a uma mudança na situação. Vemos isso de Hong Kong a Alger, do Irã à França, do Egito à California, do Mali ao Brasil, da Índia à Polônia, e em muitos outros lugares e países.

Todos estes movimentos, sem exceção, parecem-me possuir três características:

(1) Eles são heterogêneos em sua composição social, na origem de sua revolta e em suas convicções políticas espontâneas. E esse aspecto multiforme também esclarece seu número. Não se trata de conjuntos de trabalhadores, ou de manifestações do movimento estudantil, ou de revoltas de lojistas esmagados por impostos, ou de protestos feministas, ou de profecias ecológicas, ou de dissidências regionais ou nacionais, ou de protestos do que costuma-se denominar os migrantes e que eu chamo de proletários nômades. Trata-se de um pouco de tudo isso, sob a dominação puramente tática de uma tendência dominante, ou de diversas, dependendo dos locais e das circunstâncias.

(2) Resulta, deste estado de coisas, que a unidade destes movimentos é, e não poderia ser diferentemente no estado atual das ideologias e das organizações, estritamente negativa. Essa negação, é verdade, carrega realidades distintas. Pode-se revoltar contra a ação do governo chinês em relação a Hong Kong, contra a apropriação do poder por gangues militares em Argel, contra o domínio da hierarquia religiosa no Irã, contra o despotismo no Egito, contra as investidas da reação nacionalista e racial na Califórnia, contra a ação do exército francês no Mali, contra o neofascismo no Brasil, contra a perseguição de muçulmanos na Índia, contra a interdição retrógrada do aborto e dos cuidados sexuais na Polônia, e assim por diante. Mas nada mais do que isso, em particular nada que fosse uma contraproposta de alcance geral, esta presente nestes movimentos. No fim das contas, por falta de uma proposta política comum que seja claramente extraída das condições do capitalismo contemporâneo, o movimento acaba exercendo sua unidade negativa contra um nome próprio, em geral aquele do chefe de Estado. Iremos do grito de “Fora Mubarak” ao “Bolsonaro fascista”, passando por “Modi racista, vá!”, “Fora Trump”, “Bouteflika, aposente-se!”. Sem esquecer, naturalmente, as injúrias, os anúncios de demissão, e as estigmatizações pessoais, de nosso alvo natural que, aqui, não é ninguém mais do que o pequeno Macron. Eu proponho, então, dizer que todos estes movimentos, todas estas lutas, são definitivamente “foristas”. Deseja-se a saída do dirigente, sem que se tenha a menor ideia, nem de quem o substituirá, nem do procedimento pelo qual, supondo que ele efetivamente saia, garantir-se-á que a situação mude. Em síntese, a negação, que unifica, não porta em si qualquer afirmação, qualquer vontade criativa, qualquer concepção ativa da análise das situações e do que poderia ser, ou deve ser, uma nova política. Sem elas, chegamos – é o sinal do fim dos movimentos – a essa forma última de sua unidade: levantar-se contra a repressão policial de que se foi vítima, as violências policiais que se teve que enfrentar. Em suma, a negação de sua negação pelas autoridades. Eu já vi isso em Maio de 68, quando, na falta de de afirmações comuns, ao menos no começo do movimento, gritava-se pelas ruas “CRS, SS!”. Felizmente, logo em seguida, passado o primado do negativo revoltado, surgiram ideias mais interessantes. Ao custo, porém, de um confronto entre concepções políticas opostas, entre afirmações distintas.

(3) Hoje, com o passar do tempo, todo o movimentismo planetário termina mantendo reforçados os poderes em vigor, ou produzindo mudanças de fachada, que podem se mostrar piores do que aquilo contra o qual se revoltava. Mubarak saiu, mas Al Sissi, que o substitui, é uma outra versão, talvez pior, do poder militar. O domínio chinês sobre Hong Kong acabou, no fim das contas, reforçado, com leis mais próximas daquelas que operam em Pequim e com prisões em massa dos revoltosos. A camarilla religiosa no Irã está intacta. Os reacionários mais ativos, como Modi ou Bolsonaro, ou a gangue clerical polonesa, encontram-se muito bem obrigado. E o pequeno Macron está em uma condição de saúde eleitoral muito melhor, com 43% de opiniões favoráveis. Não apenas melhor do que no começo de nossas lutas e movimentos, mas também melhor do que seus predecessores, os quais, seja o muito reacionário Sarkozy, ou o socialista em pele de cordeiro Hollande, após a mesma duração de mandato que Macron possui hoje, encontravam-se em torno de 20% de boas opiniões.

Uma comparação histórica me é imposta. Nos anos entre 1847 e 1850, houve, em uma boa parte da Europa, grandes movimentos operários e estudantis, grandes levantes em massa, contra a ordem despótica estabelecida pela Restauração de 1815 e sutilmente consolidada após a revolução francesa de 1830. Na falta de uma ideia clara do que poderia ser, para além de uma ardente negação, a representação de uma política essencialmente diferente, toda a efervescência das revoluções de 1848 não serviu para nada além da abertura a uma nova sequência regressiva. Especialmente na França, o resultado foi o interminável reino de uma representação do poder do capitalismo nascente, Napoleão III, também conhecido, segundo Victor Hugo, como Napoleão, o pequeno.

No entanto, em 1848, Marx e Engels, que tinham participado dos levantes na Alemanha, expuseram as lições de toda essa situação, tanto nos textos de análise histórica, como o fascículo intitulado “As Lutas de Classe na França”, quanto neste manual, finalmente afirmativo, descrevendo, de certa forma para sempre, o que deveria ser uma política inteiramente nova, que tem por título “O Manifesto do Partido Comunista”. É em torno desta construção afirmativa, relativa ao “manifesto” de um partido que não existe, mas que deve existir, que começa, no longo prazo, uma outra história das políticas. Marx se repetirá, extraindo, vinte e três anos mais tarde, os ensinamentos de uma admirável tentativa, à qual falta, mais uma vez, para além de sua defensiva heroica, a organização eficaz de uma unidade afirmativa – a Comuna de Paris.

Evidentemente, nossas circunstâncias são bem diferentes! Mas acredito que tudo gira, hoje, em torno da necessidade de que nossas palavras de ordem negativas e nossas ações defensivas sejam finalmente subordinadas a uma visão clara e sintética de nossos objetivos próprios. E estou convencido de que para chegar lá, é preciso, em todo caso, lembrar-se do que Marx declarava ser o resumo de todo o seu pensamento. Resumo, é claro, também negativo, mas em uma escala tal que não se sustenta sem uma grandiosa afirmação. Trata-se da palavra de ordem “abolição da propriedade privada”.

Quando observadas de perto, as palavras de ordem como “em defesa das liberdades” ou “contra a violência policial” são estritamente conservadoras. A primeira subentende que nós temos, na ordem estabelecida, verdadeiras liberdades a defender, enquanto que nosso problema central deveria ser que, sem igualdade, a liberdade é puro engodo: como o proletário nômade desprovido de seus documentos, a quem a vinda até nós é uma verdadeira epopeia, poderia afirmar-se ‘livre’ no mesmo sentido que o bilionário detentor do poder real, proprietário de um avião particular e de seu piloto, e protegido pela fachada eleitoral de seu representante político no Estado. E como poderíamos imaginar, se somos revolucionários consequentes, se desejamos afirmativa e racionalmente um mundo diferente deste que contestamos, que a polícia do poder em vigor fosse sempre amável, gentil e pacífica? Que ela diga aos revoltosos, dentre quais alguns encapuzadas e armados, qual é o caminho para o Eliseu? A grande grade, na rua à direita?

Melhor seria voltar ao núcleo da questão: a propriedade. A palavra de ordem geral, unificadora, pode imediatamente ser, de forma afirmativa: “colectivização de todo o processo de produção”. Seu correlato negativo intermediário, de uso imediato, pode ser “abolição de todas as privatizações decididas pelo Estado desde 1986”. Quanto a uma boa palavra de ordem puramente tática, atendendo àqueles a quem o desejo de negação domina, ela poderia ser: tomemos de assalto o local de um bastante importante serviço do Ministério da Economia e das Finanças, chamado: Comissão das participações e das transferências. Façamo-lo sabendo que este nome esotérico, “participações e transferências” não é mais do que a máscara transparente da Comissão da privatização, criada em 1986. E façamos com que se saiba que nós ocuparemos essa comissão da privatização até que a desaparição de toda forma de propriedade privada que concerne àquilo que, de perto ou de longe, parta de um bem comum.

Só com a popularização destes objetivos, tão estratégicos quanto táticos, nós já abriremos, acredite em mim, uma nova época, subsequente àquela das “lutas” e dos “movimentos” e dos “protestos”, cuja dialética negativa está a se esgotar, e de nos esgotar. Nós seríamos os pioneiros de um novo comunismo de massa cujo “espectro”, para falar como Marx, voltaria a assombrar não apenas a França e a Europa, mas o mundo inteiro.

Servizio Informazione Religiosa (SIR)

SUÍÇA: RECORDE DE ABANDONOS DA IGREJA CATÓLICA

Um recorde: nunca no passado houve tantas pessoas na Suíça que abandonaram a Igreja Católica quanto em 2019. A reportagem é do Servizio Informazione Religiosa (SIR). A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

As estatísticas do ano passado revelaram 31.772 abandonos e um aumento de quase 25% em comparação com 2018, com 25.366 saídas. É o que vem à tona a partir das últimas estatísticas do Instituto Suíço de Sociologia Pastoral (Spi) de St. Gallen.

Os dados estiveram no centro das discussões dos bispos reunidos (online) para a assembleia plenária no dia 1º de dezembro. “Em 2019 houve mais saídas da Igreja do que nunca no espaço de um ano”, afirma um comunicado divulgado pela Conferência Episcopal.

“Os bispos acreditam que a pandemia poderia acelerar ainda mais esse desenvolvimento nos próximos meses. Essa tendência é preocupante e será fonte de mudanças no médio e longo prazo. Os bispos confirmam, no entanto, que a Igreja como corpo de Cristo é muito mais do que um acúmulo de números e fatos.” O desafio é iniciar uma “missão de evangelização”.

O relatório do Instituto de Sociologia Pastoral mostra que a taxa de saída para a Suíça como um todo é em média de 1,1%, mas as diferenças cantonais são consideráveis. Os cantões de Genebra, Valais, Neuchâtel e Vaud têm muito poucos abandonos, o que pode ser explicado pelos diferentes métodos de cobrança do imposto eclesiástico. Nesses cantões francófonos, abandonar a Igreja não acarreta uma redução dos impostos, razão pela qual esse motivo não tem nenhum papel.

O relatório mostra que são muitas as razões que levam as pessoas a deixar a Igreja. As “mais importantes” são a perda/ausência de fé, o desacordo com as posições da comunidade religiosa de referência, os abusos sexuais.

“Nos últimos anos – afirma o relatório – observou-se uma segunda grande onda de afastamentos. As denúncias de abusos contra crianças, jovens, mulheres e homens abalaram a confiança na Igreja Católica. Além disso, a moral sexual católica, o acesso à comunhão para os divorciados recasados ou a posição das mulheres dentro da Igreja Católica são todas questões que se tornaram objeto de debate público e levaram a um forte aumento dos abandonos.”

Se a diferença sexual não interfere nas saídas (com uma predominância muito pequena entre os homens), o que preocupa o Instituto de Sociologia Pastoral é o aumento da evasão por parte das pessoas mais idosas, ou seja, aquelas que têm entre 51 e 60 anos, definindo o fenômeno como “alarmante”.

No que diz respeito às diferenças entre as categorias de idade, o relatório observa que, embora os jovens digam que nunca tiveram fé ou a perderam, as pessoas que têm entre 40 e 75 anos são mais propensas a não estar de acordo com as posições da sua comunidade religiosa.

O relatório também mostra que 885 pessoas ingressaram na Igreja Católica em 2019. Uma “taxa” baixa demais para “remediar” as saídas, já que, para cada 34 abandonos, conta-se apenas uma nova adesão.

Por fim, o instituto certifica que o problema dos abandonos não diz respeito apenas à Igreja Católica. A Igreja Evangélica Reformada também contou 26.198 abandonos em 2019, marcando um aumento de 18% em comparação com o ano anterior.

Para contrabalançar as tendências observadas, afirma o relatório, a Igreja é chamada a fazer “esforços para recuperar a sua credibilidade e reputação prejudicadas” e a “ser uma companheira fiel e confiável para a vida dos fiéis”. Para fazer isso, as Igrejas são chamadas a “rever e readaptar as suas prioridades pastorais”, ampliando também a oferta das propostas aos casais sem filhos, aos solteiros e a quem perdeu o cônjuge.

Pesquisas de 2 organismos da ONU

CRISE CLIMÁTICA: IMPACTOS NA SAÚDE E A NECESSIDADE DE UMA MUDANÇA SISTÊMICA

Pesquisas de dois organismos da Organização das Nações Unidas - ONU confirma o agravamento da crise climática, o aumento da temperatura global e o aumento das concentrações de dióxido de carbono (CO2). Caso continue assim, o planeta se dirige para o colapso climático, sanitário e social. Destacam a necessidade de reduzir as emissões de gases do efeito estufa (que provocam a mudança climática e o aumento de temperatura), diminuir os níveis de consumo, proteger a água e a biodiversidade. A reportagem é publicada por Tierra Viva e reproduzida por Rebelión. A tradução é do Cepat /IHU

Declaração sobre o estado do clima mundial 2019 é o título do relatório da Organização Meteorológica Mundial - OMM. Sistematizou estudos de uma vintena de instituições científicas e relatórios de organismos climáticos nacionais e destacou que o quinquênio 2015-2019 compreendeu os cinco anos mais quentes da história. Também destaca que houve um pico nas concentrações de CO2 (gás central no aquecimento global).

A OMM explica que os recordes de temperatura na Antártida foram acompanhados de “episódios de derretimento de gelo em grande escala, fatos que incidirão no aumento do nível do mar a um ritmo cada vez maior”. E destaca que também é “constante e prolongada” a perda de gelo no Ártico. Ao mesmo tempo, e com relação direta, em 2019, “o nível médio do mar em escala mundial chegou ao patamar mais alto em relação aos dados que se tem”.

O secretário geral da Organização das Nações Unidas, António Guterres, foi contundente no prólogo do relatório: “O tempo está se esgotando para evitar os piores impactos da alteração climática e proteger a nossas sociedades dos efeitos inevitáveis que se aproximam”.

A mudança climática é produto do aumento da temperatura pela ação humana e implica mudanças drásticas no ambiente (inundações, secas, derretimento de geleiras). A causa principal é a emissão de gases do efeito estufa, principalmente o dióxido de carbono (CO2). A queima de combustíveis fósseis (gás, petróleo, carvão) está entre as principais causas.

O relatório da ONU dá ênfase à mudança climática, mas não aponta os responsáveis. É que as grandes potências econômicas são as principais culpadas: 76% das emissões provêm dos países do G20, encabeçados por China, Estados Unidos, União Europeia, Índia, Rússia, Japão e Alemanha.

Muito pior que o coronavírus

O relatório da Organização Meteorológica Mundial afirma que a crise climática impactará de cheio na dimensão sanitária. “A saúde das pessoas e os sistemas sanitários pagam um preço cada vez mais alto por causa das condições de calor extremo”. Especifica que os efeitos na saúde incluem doenças e mortes relacionadas ao calor, lesões e perdas de vidas humanas associadas a tormentas violentas e inundações, incidência de doenças transmitidas por vetores e pela água, piora das doenças cardiovasculares e respiratórias pela poluição do ar.

Explica que as mudanças nas condições climáticas, a partir de 1950, facilitaram a transmissão do vírus da dengue pelo mosquito Aedes, o que aumentou o risco de contrair a doença.

“A incidência mundial da dengue aumentou de maneira drástica nos últimos decênios, e cerca da metade da população mundial corre atualmente o risco de contrair a infecção”, alertou a ONU. E especificou que, só em 2019, na América, foram registrados 2,8 milhões de casos de dengue.

O titular da OMM, Petteri Taalas, lamentou o que acontece com a pandemia de coronavírus e as milhares de mortes, mas alertou que a crise climática “é muito pior”. “O vírus terá um impacto econômico a curto prazo, mas as perdas serão massivas, se pensamos no aquecimento global. Estamos falando de um problema de maior magnitude, com consequências muito mais graves na saúde das pessoas e em nossas sociedades”, alertou.

Adotar medidas urgentes”

A Assembleia das Nações Unidas para o Meio Ambiente é o maior espaço internacional na temática. Sua pesquisa Perspectivas do Meio Ambiente Mundial ofereceu uma fotografia do clima global: 9 milhões de pessoas morrem por ano pela poluição do ar e da água, desapareceram 40% das áreas úmidas (a partir de 1970) e, em nível global, desperdiça-se 33% dos alimentos (a maior parte nos países “desenvolvidos”).

Um dos lemas do relatório, de 745 páginas, é “planeta sadio, pessoas sadias”. Especifica que 2,3 bilhões de pessoas (um em cada três habitantes do mundo) não têm acesso a serviços de saneamento adequados. Por ano, morrem 1,4 milhão de pessoas por doenças evitáveis (como a diarreia) associadas à água potável contaminada.

Nas conclusões, a ONU é concreta: “As atividades antropogênicas (humanas) degradam os ecossistemas da Terra e minam as bases ecológicas da sociedade”. Esclarece que é necessário “adotar medidas urgentes, em uma escala sem precedentes, para deter e reverter essa situação e assim proteger a saúde humana e ambiental”. Algumas das medidas essenciais são reduzir a degradação da terra, a perda de biodiversidade e a poluição do ar, a terra e as águas, melhorar a gestão da água, mitigar a mudança climática e reduzir a queima de combustíveis fósseis.

A ONU ressalta o papel central dos povos originários: “As populações indígenas desempenham um papel fundamental na proteção da diversidade biológica ao oferecer soluções inovadoras de ação na base e impulsionadas por elas mesmas, baseadas nos conhecimentos tradicionais e no enfoque ecossistêmico”.

Edição 162, novembro 2020

Juan José Tamayo

'ELLACURÍA DEVE SER ELIMINADO E NÃO QUERO TESTEMUNHAS'

O reitor da UCA teve excelentes professores

Ellacuría deve ser eliminado e não quero testemunhas”. Foi a ordem que o coronel René Emilio Ponce deu ao batalhão Atlacatl, o mais sanguinário do Exército salvadorenho. A ordem foi cumprida na noite de 16 de novembro de 1989, quando os jesuítas Segundo Montes, Juan Ramón Moreno, Amando López, Ignacio Martín Baró, Joaquín López y López, Ignacio Ellacuría e sua colaboradora Elba Ramos e sua filha Celina, de 15 anos, foram assassinados na Universidade Centro-Americana “José Simeón Cañas”, de San Salvador (UCA). Neste artigo vou me concentrar em Ellacuría, reitor da UCA, discípulo de Rahner e Zubiri, colaborador próximo deste último e editor de algumas de suas obras. Foi filósofo e teólogo da libertação, cientista social e promotor da teoria crítica dos direitos humanos, quatro dimensões difíceis de encontrar e harmonizar numa só pessoa, mas, neste caso, conviveram não sem conflitos internos e externos, e eles se desenvolveram com clareza intelectual e coerência vital. O artigo é de Juan José Tamayo, teólogo espanhol, publicado por Religión Digital. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

“Reverter a história, subvertê-la e lançá-la em outra direção”, “curar a civilização doente”, “superar a civilização do capital”, “evitar um desfecho fatídico e fatal”, “baixar os crucificados da cruz” (estas são as suas expressões) foram os desafios aos quais quis responder com palavras e escritos, compromisso político e experiência religiosa. E ele pagou por isso com sua vida.

31 anos após seu assassinato, Ellacuría ainda está vivo e ativo em suas obras, muitas delas publicadas postumamente. Em 1990 e 1991, dois de seus livros foram publicados: “Mysterium liberationis. Conceitos fundamentais da teologia da libertação” (Ed. Trotta), da qual é o redator junto com seu colega Jon Sobrino, então a melhor e mais completa visão da dita corrente teológica latino-americana e filosofia da realidade histórica – editada por seu colaborador Antonio González –, cujo fio condutor é a filosofia de Zubiri, mas recriada e aberta a outras correntes como Hegel e Marx, lê criticamente. Faz parte de um projeto mais ambicioso trabalhado desde os anos setenta do século passado e que foi truncado com o assassinato. Posteriormente, a UCA publicou seus Escritos Políticos 3 vols., 1991; Escritos Filosóficos, 3 vols., 1996, 1999, 2001; Escritos Universitários, 1999; Escritos Teológicos, 4 vols., 2000-2004.

Nos trinta e um anos desde seu assassinato, estudos, monografias, teses de doutorado, congressos, conferências, pesquisas, cursos monográficos, círculos de estudo, cátedras universitárias com seu nome continuaram existindo, demonstrando a “autenticidade” de sua vida e a criatividade e validade de seu pensamento nos diferentes campos do conhecimento e da atividade humana: política, religião, direitos humanos, universidade, ciências sociais, filosofia, teologia, ética, etc.

O que descobrimos com a publicação de seus escritos e os estudos sobre sua figura é que Ellacuría teve excelentes professores: Rahner em teologia, Zubiri em filosofia, dom Oscar Romero em espiritualidade e compromisso libertador e colegas como Jon Sobrino, colega da UCA e professor de Cristologia. Com eles aprendeu a pensar e agir alternadamente.

Mas o seu discipulado não foi acadêmico, mas sim criativo, visto que, inspirado pelos seus professores, desenvolveu o seu próprio pensamento e tornou-se professor, se por tal entendemos não só aquele que dá aulas magistrais em sala de aula, mas que, na expressão de Kant, se aplica ao professor de filosofia que ensina a pensar. Ellacuría faz parte do pensamento de seus professores, mas não fica com eles; avança, vai além, os interpreta no novo contexto e, em grande medida, os transforma. Sua relação com eles é, portanto, dialógica, de colaboração e influência mútua. Suas obras assim o provam e os estudos sobre ele o confirmam.

Teologia

Seu colega e amigo Jon Sobrino escreveu páginas de leituras necessárias sobre o “Ellacuría esquecido”, nas quais recupera três pensamentos teológicos fundamentais: o povo crucificado; trabalhar por uma civilização da pobreza, superando a civilização do capital; a historicização de Deus na vida de suas testemunhas, que Ellacuría cunhou com um aforismo memorável “com dom Romero, Deus passou pela história”. Ellacuría entende a teologia da libertação como teologia histórica do clamor ante a injustiça, estabelece uma correta articulação entre teologia e ciências sociais e assume um compromisso com a transformação da realidade histórica a partir da análise política e de seu papel como mediadora nos conflitos. São três aspectos que José Sols Lucia desenvolve.

O teólogo austríaco Sebastián Pittl recupera a primeira ideia destacada por Sobrino e a interpreta teologicamente: a realidade histórica dos povos crucificados como lugar hermenêutico e social da teologia. Também faz uma leitura da concepção ellacuriana de espiritualidade enraizada na história a partir da opção pelos empobrecidos.

O resultado é uma teologia pós-idealista cujo método não é o transcendental de seus professores, mas a historicização dos conceitos teológicos e a partir da práxis histórica. A teologia de Ellacuría tem um forte componente ético-profético. Aplicando-se a ela a consideração levinasiana da ética como filosofia primeira, bem se poderia dizer que para o teólogo hispano-salvadorenho a ética é a teologia primeira, o profetismo a manifestação crítico-pública da ética, a esperança ativa o caminho pelo qual caminhada e utopia o horizonte para a construção de um Outro Mundo Possível.

Filosofia

O objeto da filosofia ellacuriana é a realidade histórica como unidade física, dinâmica, processual e ascendente. Daqui emanam os conceitos e ideias fundamentais de sua filosofia: história (materialidade, componente social, componente pessoal, temporalidade, realidade formal, estrutura dinâmica), práxis histórica, libertação, unidade da história. Seu método é a historicização de conceitos filosóficos para libertá-los do idealismo e da idealização em que a filosofia, a teologia e a teoria universalista dos direitos humanos costumam incorrer.

H. Samour, um dos melhores especialistas e intérpretes do filósofo Ellacuría, reinterpreta o professor relacionando o seu pensamento com a realidade histórica contemporânea, ao mesmo tempo que considera a filosofia da história como uma filosofia da práxis. Recentemente está se desenvolvendo uma nova linha de investigação do pensamento filosófico do intelectual hispano-salvadorenho: aquela que faz uma leitura multidimensional com as seguintes derivações criativas, que enriquecem, recriam e reformulam sua filosofia:

a) Sua conexão com a dialética hegeliana-marxista, o que implica analisar a concepção dialética de Ellacuría, o uso do método dialético em sua análise política e histórica e a dialética entre a história pessoal – biografia – e a história coletiva – o povo salvadorenho –, em outras palavras, o impacto e a capacidade transformadora de sua vida e morte na história de El Salvador (Ricardo Ribera).

b) A sua conexão com a teoria crítica da primeira Escola de Frankfurt, que integra dialeticamente as diferentes disciplinas dando origem a um saber emancipatório, bem como a sua incidência na negatividade da história (L. Alvarenga).

c) Sua conexão com a filosofia utópica de Bloch em um dos últimos textos mais emblemáticos de Ellacuría: “Utopia e profetismo na América Latina” (Tamayo).

d) Sua teoria original do “mal comum” como mal histórico, a crítica da civilização do capital e as diferentes formas de superá-la (Hector Samour).

e) O resgate filosófico do cristianismo libertador (Carlos Molina).

f) O fundamento moral da atividade intelectual, a relevância do lugar dos oprimidos nos diferentes campos e facetas do trabalho teórico e a crítica da ideologia (J. M. Romero).

g) As contribuições para o pensamento decolonial com sua caracterização da conquista como a imposição de um sistema de dominação múltipla: cultural, política, econômica e religiosa, ecológica, que perdura até hoje (J. J. Tamayo).

Teoria crítica dos direitos humanos

Ellacuría fez contribuições relevantes no campo da teoria e da fundação dos direitos humanos. Nesse sentido, vale destacar sua contribuição para a superação do universalismo jurídico abstrato e de uma visão desenvolvimentista dos direitos humanos, e para a elaboração de uma teoria crítica dos direitos humanos (J. A. Senent, A. Rosillo).

O pensamento de Ellacuría não é atemporal, mas histórico, e deve ser interpretado não de uma forma essencialista (embora algumas de suas primeiras obras escritas sob o discipulado escolar e a influência de Zubiri tenham essa orientação), mas historicamente, em diálogo com os novos climas culturais. Assim lido e interpretado, pode abrir novos horizontes e iluminar a realidade histórica contemporânea. O cineasta Imanol Uribe está rodando o filme “La mirada de Lucía” com roteiro de Daniel Cebrián, baseado na história verídica do massacre de seis jesuítas e duas mulheres colaboradoras em novembro de 1989 em El Salvador, que chocou o mundo. “É, para além do seu pano de fundo político e social, uma história de personagens, da sua luta pela verdade e da justiça num país em guerra e do seu desejo de ultrapassar aquele momento de horror”.

Nota:

As ideias apresentadas neste artigo têm um desenvolvimento posterior e bem fundamentado no livro Ignacio Ellacuría. 30 anos depois. Anais do Colóquio Comemorativo Internacional. San Salvador, 17-21 de novembro de 2019, editado por Héctor Samour e Juan José Tamayo, que aparecerá na editora Tirant Lo Blanc em janeiro de 2021.

Elvira Eliza França

SONHAR, SUSPENDER O CÉU E CUIDAR DA TERRA NO SONHO DOS KRENAK

"Durante a leitura do livro, chamou-me a atenção o texto 'Sonhos para adiar o fim do mundo' (p. 33-47), no qual Krenak aborda como os sonhos possibilitam fazer a conexão entre a realidade cósmica e a vida quotidiana, estabelecendo e orientando a vida de caçadores e agricultores de seu grupo, numa relação harmoniosa com a natureza. Krenak lembra que os sonhos podem ser premonitórios e dão forma à vida em grupo, numa experiência de consciência coletiva, que orienta as escolhas das pessoas sobre o que devem fazer depois que acordam". O comentário é de Elvira Eliza França, mestre em Educação pela Unicamp, pós-graduanda em Neurociência e Comportamento, especialista em Programação Neurolinguística e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP), em resenha publicada por Amazônia Real /IHU

Ailton Krenak não é um xamã ou pajé; é um líder tradicional do povo indígena Krenak, da região de Minas Gerais. Desde a juventude, vem alertando a nação brasileira sob a forma capitalista predadora de pensar e de agir na relação com a natureza, colocando em risco a vida dos povos tradicionais do país e de outros seres que fazem parte da diversidade da vida vegetal e animal. Ao contestar a forma vida consumista e destruidora, que ele denomina de “necrocapitalista“, diz que o branco banaliza e brinca com a terra, de forma irresponsável, sem levar em conta o direito à própria vida, assim como a dos demais seres vivos e também do planeta como um todo. Cita como necrocapitalista a agricultura, que para uns é “pop” em tudo, mas que utiliza produtos químicos danosos à saúde, e outros elementos que poluem rios e mares. As quedas das barragens em Mariana e Brumadinho, também são exemplos da irracionalidade necrocapitalista, nas palavras de Krenak.

Em 2019, Ailton Krenak publicou, pela editora Companhia das Letras, o livro “Ideias para adiar o fim do mundo” e, em 2020, lançou “A vida não é útil”. Nesta última publicação, incluiu a reflexão “O amanhã não está à venda”, que ficou disponível para leitura no site da editora, no mês de junho deste ano, em meio à pandemia do novo coronavírus.

Utilizando evidências e ironia, o sábio indígena Krenak cria, com a sua linguagem, estratégias para estimular o pensamento crítico do leitor sobre como é viver em sociedade e a relação que as pessoas estabelecem com a natureza e com o planeta. Compartilha aspectos da cultura indígena, em especial os do povo Krenak, para ajudar os brancos a compreenderem como é o modo de viver e de pensar dos povos tradicionais indígenas de sua etnia. Suas palavras alimentam a percepção de como os Krenak se relacionam com as árvores, animais e a natureza de um modo geral, e também com o planeta Terra: a grande mãe de todos os seres vivos.

Durante a leitura do livro, chamou-me a atenção o texto “Sonhos para adiar o fim do mundo” (p. 33-47), no qual Krenak aborda como os sonhos possibilitam fazer a conexão entre a realidade cósmica e a vida cotidiana, estabelecendo e orientando a vida de caçadores e agricultores de seu grupo, numa relação harmoniosa com a natureza. Krenak lembra que os sonhos podem ser premonitórios e dão forma à vida em grupo, numa experiência de consciência coletiva, que orienta as escolhas das pessoas sobre o que devem fazer depois que acordam.

“Sonhar é uma prática que pode ser entendida como regime cultural, em que, de manhã cedo, as pessoas contam o sonho que tiveram. Não como uma atividade pública, mas de caráter íntimo. Você não conta o sonho em uma praça, mas para as pessoas com quem tem uma relação. O que sugere também que o sonho é um lugar de veiculação de afetos. […] Quando o sonho termina de ser contado, quem o escuta já pode pegar suas ferramentas e sair para as atividades do dia: o pescador pode ir pescar, o caçador pode ir caçar e quem não tem nada a fazer pode se recolher. Não há nenhum véu que o separa do cotidiano e o sonho emerge com maravilhosa clareza” (p. 36-7).

A relação estreita entre o mundo dos sonhos e as vivências do cotidiano, tem como foco a mãe terra e a criação, que é explicada pelo líder indígena, por meio de uma história antiga de seu grupo étnico. Segundo a tradição dos Krenak, depois que criou a humanidade, o Criador foi para bem longe. Então, um dia resolveu voltar disfarçado, com o objetivo de conferir como as pessoas estavam se comportando com tudo o que haviam recebido dele. Assim, transformou-se em um tamanduá, mas assim que foi visto, foi caçado por um grupo de caçadores e levado para o acampamento para ser comido. Quando estava próximo de ser levado ao fogo, dois meninos resgataram o animal, impedindo que fosse morto e assado. Foi então que o Criador se revelou às crianças e elas acobertaram a sua fuga.

Por essa falta de sensibilidade para perceber o que é sagrado, o povo Krenak sempre desconfia dos humanos e Ailton diz: “a gente se afilia ao rio, à pedra, às plantas e a outros seres com quem temos afinidade. É importante saber com quem podemos nos associar, em uma perspectiva existencial mesmo, em vez de ficarmos convencidos de que estamos com a bola toda” (p. 42). Nesse sentido, a caça que é realizada em sintonia com o que é sagrado na natureza, é caracterizada como sendo uma oferta que o animal faz de si ao caçador, para que possa se servir dele como alimento. Mas tudo isso faz parte de um ritual sagrado, que prima pelo respeito à mãe natureza, na qual todos são considerados seres irmãos.

Krenak explica que não há uma confiança plena de que existe uma qualidade humana especial, já que as pessoas se sentem indiferentes em relação à “morte e destruição da base da vida no planeta” (p. 42). É justamente essa indiferença em relação à morte que leva ao questionamento acerca do que seja a humanidade. Segundo o líder indígena, a pandemia, foi uma possibilidade de reconfigurar o mundo, e de possibilitar às pessoas compreenderem que a “biosfera é exatamente o nosso corpo”, e que nela estão contempladas outras formas de vida, que precisam ser respeitadas no seu direito de viver.

Quando menciona a pandemia, Krenak ironiza o fato de as pessoas estarem resistindo a fazer uso de máscara, ao mesmo tempo em que outros se propõe ao desafio de explorar e viver em outros planetas. Ele critica e repudia a desatenção com a poluição dos lagos, rios e mares, onde é jogada grande quantidade de lixo nas águas, comprometendo a vida de outros seres, sendo que muitos também servem de alimento para o homem. Demonstra indignação em relação ao tratamento que é dado à terra e ao planeta, sem que as pessoas façam qualquer coisa para mudar essa situação, porque o que desejam é consumir cada vez mais, não importando o dano que causem ao meio ambiente.

Krenak explica como seu povo observa o movimento do céu e a relação dele com a terra, percebendo quando o povo está dissociado dos demais seres. Quando sentem a pressão de que o céu está muito perto da terra, sentem que é o momento de realizarem o ritual de canto e dança, com a finalidade de suspender o céu. Esse ritual é realizado na entrada da primavera.

“Então, é preciso dançar e cantar para suspendê-lo [o céu], para que as mudanças referentes à saúde da Terra e de todos os seres aconteçam nessa passagem. Quando fazemos o taru andé, esse ritual, é a comunhão com a teia da vida que nos dá potência” (p. 46).

Dando mais detalhes sobre o ritual de suspender o céu diz: “Suspender o céu é ampliar os horizontes de todos, não só dos humanos. Trata-se de uma memória, uma herança cultural do tempo em que nossos ancestrais estavam tão harmonizados com o ritmo da natureza que só precisavam trabalhar algumas horas do dia para proverem tudo que era preciso para viver. Em todo o resto do tempo você podia cantar, dançar, sonhar: o cotidiano era uma extensão do sonho. E as relações, os contatos tecidos no mundo dos sonhos continuavam tendo sentido depois de acordar” (46-7).

Sobre essa aproximação entre o céu e a terra, como possibilidade de causar o fim da humanidade, outro líder indígena da etnia yanomami, Davi Kopenawa, juntamente com o antropólogo Bruce Albert, publicaram, em 2015, pela mesma editora: “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami”. Eles também dão o alerta sobre os desastres ambientais que estão ocorrendo no planeta, tomando como referência a devastação da floresta amazônica pelos garimpeiros, fazendeiros, madeireiros, grileiros etc. Lembram sobre a importância do respeito à natureza e aos povos tradicionais, como detentores de um saber que orienta para a manutenção da vida na Terra, respeitando a diversidade das formas vivas, presentes nos reinos vegetal e animal.

Boaventura de Sousa Santos

PORTUGAL: CRÓNICA DE UMA OPORTUNIDADE PERDIDA

"Em Portugal, Partido Socialista e Bloco de Esquerda desentendem-se no debate crucial sobre o Orçamento e abrem, em momento delicado, espaço para a direita. Como a dificuldade de compreender a conjuntura levou-os a exagerar suas divergências", escreve Boaventura de Sousa Santos, doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Outras Palavras /IHU

Perdeu-se uma oportunidade política que dificilmente se repetirá com estes dirigentes. Acima de tudo, o desentendimento concedeu em dez anos uma segunda oportunidade de ouro à direita (e agora também à extrema-direita) para, sem grande esforço nem mérito, voltar ao poder e produzir retrocesso.

Para quem recentemente publicou um livro intitulado Esquerdas do Mundo, Uni-vos! (Almedina, 2018), as últimas semanas foram particularmente desalentadoras. Mas também foram muito reveladoras.

Tive o privilégio de acompanhar de perto as negociações entre o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Socialista (PS) sobre o Orçamento do Estado (OE). Uma análise superficial do discurso dos porta-vozes fez-me crer que provavelmente desde o início nenhum dos dois partidos quisera o acordo. No entanto, à medida que se aproximava a conclusão do processo e analisava a documentação disponível, comecei a suspeitar que a resistência vinha sobretudo dos órgãos dirigentes do BE. Pela seguinte razão. O órgão que tomou a decisão é a mesa nacional constituída por quase 80 pessoas, as quais votaram unanimemente contra a viabilização do OE, quando as sondagens indicavam que quase 70% dos eleitores do Bloco defendiam a viabilização do OE. É possível imaginar um divórcio maior entre os dirigentes de um partido e o seu eleitorado? Não é ainda mais estranho que isso ocorra no partido que defende a democracia participativa? Não houve naquele conclave uma só voz e voto que chamasse a atenção para a gravidade deste divórcio, sobretudo no período dramático de crise sanitária que o país atravessa? Uma tal unanimidade, sobretudo nas atuais circunstâncias, não pode deixar de suscitar perplexidade.

As condições de hoje são diferentes das de 2011 e a posição do BE não significa necessariamente uma crise política, embora enfraqueça a posição do partido governante. Mas não deixa de ser frustrante que, mais uma vez, o BE se una à direita para derrotar um governo de esquerda. Sobretudo, um governo de esquerda que, ao longo dos últimos quatro anos, foi melhor que o anterior governo do PS, em boa medida devido à colaboração do BE. Saliente-se que em 2011 o comportamento do bloco formado pelo Partido Comunista Português e pelo Partido Ecologis “Os Verdes (PCP-PEV) foi o mesmo do BE, o que não aconteceu desta vez. Tudo leva a crer que o PCP analisou melhor as consequências políticas do voto de 2011. Se a situação de 2011 era diferente da de hoje, isso não quer dizer que seja menor a responsabilidade política do voto do BE.

Em 2011, a crise era interna ao capitalismo (a crise financeira) e ao sistema político europeu. O BE, como partido anticapitalista, podia facilmente lavar as mãos. Ao contrário, a crise de hoje é externa, decorre da pandemia e está a atingir de modo descontrolado todos os países. Sabemos que as políticas neoliberais das últimas décadas visaram incapacitar os Estados de proteger eficazmente a vida dos cidadãos. A saúde pública, um investimento público crucial para a garantir o maior número de anos de vida saudável aos cidadãos, foi transformada em custo ou gasto público e por isso alvo das políticas de austeridade e de privatização. Pode afirmar-se que o Sistema Nacional de Saúde (SNS) estava mais bem preparado há dez ou vinte anos para proteger a saúde dos cidadãos do que agora. Mesmo assim, e considerando tudo isto, não restam dúvidas de que, dada a dimensão da pandemia atual, nenhum governo poderia estar adequadamente preparado para enfrentar o grau de emergência de saúde pública que ela representa. Este é o fato político mais decisivo da conjuntura e só por cegueira política poderia não ser levado em conta. Tragicamente, foi isto o que sucedeu.

Por coincidência, o desentendimento entre os dois maiores partidos de esquerda consumou-se no mesmo dia em que, na vizinha Espanha, o governo de coligação entre o PSOE e Unidas Podemos apresentava uma proposta conjunta e com uma lógica orçamental semelhante à portuguesa, ainda que mais corajosa. Nas entrelinhas pode ler-se como se acomodaram as diferenças para travar o passo à direita e não irritar demasiado os países do Norte da Europa. O que faltou em Portugal para que o mesmo ocorresse?

Posto isto, diga-se em abono da verdade que as exigências do BE são justas e visam proteger mais eficazmente a saúde dos portugueses e garantir-lhes uma mais robusta proteção do emprego e do rendimento dos que mais precisam dela. Tal como o PS se orgulha de ter contado entre os seus dirigentes um visionário consequente do SNS, o saudoso António Arnaut, o BE orgulha-se do mesmo, na pessoa do saudoso João Semedo, não menos visionário e consequente. Não pode pôr-se em causa que ambos os partidos defendem o SNS, mas o BE entende, e bem, que para defender a prazo o SNS são necessárias mudanças estruturais que têm a ver não só com remunerações e número de profissionais, mas também com carreiras e dedicação exclusiva. Por incrível que pareça aos portugueses depois de tanta azeda discussão, o PS pensa do mesmo modo, como aliás está no seu programa, só que entendeu, e bem, que, neste momento, as mudanças estruturais iriam causar um ruído político incompatível com a necessidade de concentrar a governação no enfrentamento da pandemia. Ambos os partidos sabem que Ordem dos Médicos está hoje na mão de forças políticas conservadoras vinculadas aos interesses da saúde privada e tem sido nesta crise a oposição mais insidiosa ao Governo. Para estes médicos (felizmente não para todos), a prioridade é a economia da saúde, não a saúde pública. Sendo tudo isto evidente, não seria fácil um entendimento se houvesse, de parte a parte, vontade de negociar?

O BE tem igualmente razão nas questões laborais, sobretudo na reversão da precarização do trabalho que ocorreu com o governo de PSD-CDS. Também aqui o PS não está longe do BE, já que ele próprio se manifestou nesse sentido no passado. Mas também aqui a resistência do PS teve uma justificação que deve ser entendida, mesmo quando não se considere convincente. As alterações podiam levar os países do Norte da Europa, ditos frugais, a dificultar a aprovação do Plano Nacional de Recuperação e Resiliência (PRR) para 2021/2026, como aliás esses países tiveram o cuidado de avisar. Aqui o PS tinha obrigação de ler melhor a conjuntura e ver que há uma UE pós-“Brexit” relativamente distinta da anterior, ainda que nem sempre por boas razões. Havia condições para arriscar mais, libertar-se da tutela e não ser refém das eleições de março próximo na Holanda. Mas sendo verdade que quem ganhou as eleições foi o PS e não BE, teria sido possível encontrar uma acomodação, por exemplo calendarizando as mudanças para uma data determinada.

A falta de visão política pode ter posto em causa o que mais se pretendia defender, a estabilidade que tornasse possível uma luta eficaz e consensual contra a pandemia e travasse tanto o avanço da direita como as facções mais dogmáticas dos dois partidos, que sempre estiveram contra entendimentos interpartidários.

Finalmente, o BE tem igualmente razão na questão do Novo Banco. O “negócio” com o fundo abutre que se apoderou de um banco importante não só é um roubo que para ser “legal” tem que ser total (extorquir até ao último centavo), como é um ataque à auto-estima de um país europeu posto na condição de república das bananas. Aqui, sim, havia uma incompatibilidade, e a única maneira de a superar seria pôr o Novo Banco fora do OE. Não era impossível mas, de novo, pressuponha vontade recíproca de pactuar, além de um pouco de sabedoria popular: vão-se os anéis, fiquem os dedos, sendo os dedos, neste caso, a estabilidade política em tempos de emergência sanitária extrema.

Phyllis Zagano

AS MULHERES ESTÃO NUMA RELAÇÃO TÓXICA COM A IGREJA?

O texto é de Phyllis Zagano, teóloga estadunidense e pesquisadora da Hofstra University, em Nova York, publicado por National Catholic Reporter. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo / IHU

Não é o que eles dizem, mas a forma como eles dizem. Documentos e traduções das Escrituras irritantemente tangenciam o gaslighting* [Gaslighting é uma forma de abuso psicológico contra as mulheres no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade. Casos de gaslighting podem variar da simples negação por parte do agressor de que incidentes abusivos anteriores já ocorreram, até a realização de eventos bizarros pelo abusador com a intenção de desorientar a vítima. O termo deve a sua origem à peça teatral Gas Light e às suas adaptações para o cinema, quando então a palavra popularizou-se. O termo também tem sido utilizado na literatura clínica. Nota IHU]. Não é um grande evento que as manipulam até deixarem-nas loucas, mas apenas uma dissonância cognitiva que desliza em relações grandes e pequenas.

Você sabe, “ele me ama, ele não me ama...”.

Dissonância cognitiva inclui dizer uma coisa que significa outra. Isso existe, dolorosamente, na Igreja. Nós sabemos o que a Igreja diz, mas nós sabemos o que ela faz.

Reflicta: estão as mulheres numa relação tóxica com a Igreja?

Talvez sim, talvez não, mas eu penso que as mulheres estão cansadas de ouvir o que eles dizem “ter uma presença mais incisiva na Igreja” e “mais posições de responsabilidade”, etc., etc., etc. Como Eliza Doolittle disse (ou cantou) em “Minha Bela Dama”: “Demonstrem”.

Essa é a pena de tudo. O papa Francisco é um homem maravilhoso. Seu papado reabriu janelas que se fecharam muito cedo após o Concílio Vaticano II. Seu último documento, Fratelli Tutti, é lindo, realmente é. Mas, aparentemente, é dirigido aos homens. Não importa como você o faça, “fratelli” significa irmãos em qualquer idioma e em qualquer cultura. Em seguida, considere o fato de que o documento inclui as palavras “fraternidade” cerca de 55 vezes, “fraterna” cerca de 18 vezes e se refere à igreja como “ela” pelo menos cinco vezes. Para piorar, nenhuma mulher é citada ou referenciada.

Oh, parece que eles tentaram consertar. Uma pesquisa no computador parece ter substituído “irmão” por “irmão e irmã” quase 30 vezes, até mesmo mudando as traduções das Escrituras. Por exemplo, a tradução de 1 João 2, 10-11 aprovada pela Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos começa com “quem ama seu irmão”, não com “quem ama um irmão ou irmã”, como cita a Fratelli Tutti.

O documento critica implicitamente a si mesmo e à Igreja, apoiando-se nas palavras de Francisco de sete anos atrás: “De modo análogo, a organização das sociedades em todo o mundo ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas as decisões e a realidade gritam outra. Com efeito, ‘duplamente pobres são as mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos’”.

Esse é precisamente o tipo de dissonância cognitiva, até mesmo gaslighting, que figurativamente enlouquece as mulheres.

O que, exatamente, significa incluir mulheres na Igreja? O que significa para as mulheres estarem presentes? O que significa, mesmo, que as mulheres sejam reconhecidas como metade da raça humana?

É um mundo de homens, sem dúvida. Pensando bem, Fratelli Tutti foi escrita por um homem (Francisco) que recebeu o título de um homem (São Francisco de Assis) que falava a homens (seus frades), e agora este documento é dirigido a homens. Bem, e por que não ser assim? Não são as mulheres que estão arruinando o mundo.

Embora Francisco não pretenda insultar as mulheres, escrever o que é publicado sob seu nome muitas vezes erra o alvo e é desnecessariamente ofensivo.

Como tantas outras coisas que saem das impressoras do Vaticano, este maravilhoso documento e tantos outros não se beneficiam da presença de mulheres à mesa. Sim, pode ter havido mulheres conselheiras. “Irmãos e irmãs” são bem conhecidos do começo ao fim. E pode ter havido mulheres entre os tradutores. O inglês é extremamente bom, e o documento publicado no site do Vaticano contém apenas um pequeno erro tipográfico.

Mas sua linguagem, como a de São Jerônimo, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, pode ser desanimadora. Então o que fazer? Como conciliar o que foi dito com o que se quer dizer? A mágoa com este e outros documentos é que a escolha das palavras muitas vezes obscurece os significados. Palavras usadas, não usadas ou mal usadas não apresentam o pensamento e a visão do escritor.

Isso tem que parar. Tem que parar porque as pequenas alfinetadas de linguagem se acumulam até que toda a conversa morra, e as pessoas que podem ouvir não ouvem mais o que é dito. Tem que parar porque as pessoas que precisam de ajuda, os pobres famintos abraçando este planeta enfermo, os migrantes e os sem-teto, os doentes e os frágeis, todos ouvem uma voz a menos levantada em seu nome.

Não se trata apenas das mulheres, mas principalmente.

*Gaslighting é uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade. Casos de gaslighting podem variar da simples negação por parte do agressor de que incidentes abusivos anteriores já ocorreram, até a realização de eventos bizarros pelo abusador com a intenção de desorientar a vítima. O termo deve a sua origem à peça teatral Gas Light e às suas adaptações para o cinema, quando então a palavra popularizou-se. O termo também tem sido utilizado na literatura clínica. (Nota do IHU com informações de Wikepedia.)

Edição 161, Outubro 2020

Marco Revelli

COMO O DESUMANO ENTROU NO HUMANO

O inumano é o Nada que se assenta no posto e no lugar da Humanitas: é a ruptura irreparável do mecanismo do reconhecimento dentro do gênero humano que chegou a constituir a própria cifra do tempo presente como tempo extremo do niilismo realizado. A opinião é do cientista político italiano Marco Revelli, professor da Universidade do Piemonte Oriental “Amedeo Avogadro”, em artigo publicado em La Stampa. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Segundo ele, "a Des-humanitas, assim como a In-humanitas, tornou-se hoje, para todos os efeitos, a trama íntima da nossa realidade. O nosso modo de ser homens em um universo de não homens".

Foi suficiente que uma entidade biológica não humana – um vírus – entrasse no espaço celular do ser humano e se estabelecesse lá para que toda a superestrutura que constitui a arquitrave do nosso humanismo virasse de cabeça para baixo, impondo as regras impiedosas (e frias) da immunitas sobre as amigáveis (e calorosas) da communitas.

Foi o que ocorreu com o “valor de vínculo”, que agora se inverteu em desvalor, no momento em que a proximidade, de sinal de benevolência (de filantropia, ou seja, de amor pelo ser humano), torna-se ameaça (misantropia), e a distância entre indivíduos da mesma espécie se afirma como dever cívico.

O mesmo vale para o princípio de igualdade, carro-chefe da modernidade, subvertido no momento em que o homo aequalis das leis humanas é substituído pelo homo hyerarchicus do código genético da natureza (especialmente nas fases mais dramáticas da pandemia, quando foi necessário selecionar o acesso às terapias intensivas), e o humanum genus se rachou e se dividiu com base em classes de idade, estado de saúde, esperança de vida, ou seja, entre jovens e velhos, fortes e fracos, saudáveis e doentes.

Cristianismo, Renascimento, Iluminismo, apesar das suas diferenças, compartilhavam no fundo a mesma dupla certeza: que a humanitas entendida como philantropia, ou seja, “comunhão consciente”, era a essência do ser humano, em relação à qual o inumano se colocava como antítese externa, como uma espécie de “fora do ser humano”. E ao mesmo tempo que a humanitas era o conteúdo e o resultado de toda autêntica aculturação. Ou seja, nas palavras de Werner Jaeger, que ela era o resultado de toda Paideia bem-sucedida, entendida como educação do ser humano à sua verdadeira forma... Pois bem, essa crença se despedaçou há menos de um século.

Basta a citação de um breve texto de um grande autor. Diz ele: “Nós viemos depois. Agora sabemos que um homem pode ler Goethe ou Rilke à noite, pode tocar Bach ou Schubert e, depois, na manhã seguinte, ir ao seu trabalho em Auschwitz”. São palavras de George Steiner e evocam o verdadeiro ponto de ruptura entre o antes e o (nosso) depois: Auschwitz. O lugar onde a longa história do pensamento ocidental sofreu a sua própria dilaceração catastrófica com a irrupção em massa do desumano no humano (irrupção no pensamento, não apenas na história, onde não seria um novum). O desumano teorizado e programado racionalmente (mediante aquela mesma ratio que, na visão clássica, deveria ter fundado a philantropia).

Com Auschwitz – por isso o assimilamos ao mal absoluto – não só o desumano se afirma como protagonista exclusivo, mas também ocupa o núcleo central do humano. E se instala nele como sua autêntica essência: como monstruosa metamorfose da Humanitas (a Elie Wiesel que se perguntava: “Onde estava Deus em Auschwitz?”, Primo Levi respondia perguntando onde estava o ser humano). E, ao mesmo tempo, se apresenta não como separado, mas interno ao processo de aculturação que constitui o aspecto não formal da Humanitas.

Em Auschwitz – é Steiner quem ainda nos lembra – a barbárie prevaleceu no próprio terreno do humanismo cristão, da cultura renascentista e do racionalismo clássico, portanto, não como negação antitética e extrínseca dele, mas como torção (e variante) interna ao seu desenvolvimento.

Mostrando, na forma mais feroz, aquilo que o homem ousou fazer ao Homem, como escreveu Primo Levi, Auschwitz ultrapassou irremediavelmente a linha que separa humano e desumano: revela o quanto e como o des-umano é, em sentido próprio e literal, “in-umano”, isto é, in-scrito no humano, parte dele, expressão da mesma raiz.

O inumano – foi o que afirmou Carlo Galli, com razão – não é baudelaireanamente o mal de viver (“Um oásis de horror em um deserto de tédio”). Nem a leopardiana estranheza da natureza ao humano (o nosso ser Nada para a Natureza).

“O inumano é, antes, a apresentação atual da possibilidade de que o homem nada seja para o outro homem, ou seja, que o homem considere nada o outro homem.” Ele constitui a refutação prática e mental do postulado segundo o qual todos os seres humanos participam da humanidade: uma queda do olhar (a incapacidade de se ver no outro). Do ouvido (a incapacidade de escutar a palavra do outro, o seu “relato”). Do pensamento (que o outro homem seja pensável como pensante, Sujeito e não só Objeto).

O inumano é o Nada que se assenta no posto e no lugar da Humanitas: é a ruptura irreparável do mecanismo do reconhecimento dentro do gênero humano que chegou a constituir a própria cifra do tempo presente como tempo extremo do niilismo realizado.

Mas, se isso for verdade, a Des-humanitas, assim como a In-humanitas, tornou-se hoje, para todos os efeitos, a trama íntima da nossa realidade. O nosso modo de ser homens em um universo de não homens.

O que mais nos mostra o espetáculo atroz, prolongado por anos, da morte em massa dos migrantes nos nossos mares, observado primeiro com pena, depois cada vez mais com desatenção, hábito, finalmente aborrecimento e até ódio, senão a imagem dessa redução do homem a nada para o outro homem?

E o caso mesquinho do acolhimento, primeiro sofrido com os dentes cerrados, depois pouco a pouco rejeitado, negado, hostilizado, em todo o continente europeu mobilizado para confinar novamente, contrastar, reduzir e possivelmente extinguir os fluxos, mesmo que por trás dessa extinção haja – nós sabemos disto, mas nos recusamos a pensá-lo – a morte em série? O que é isso senão a reproposição de algum modo homeopática do mesmo paradigma da desumanização do Outro experimentado então na escala anormal da excepcionalidade e que agora se tornou quotidianidade, mesmo que de uma forma menos chocante, por não ser guiada por uma explícita ideologia do desumano e por uma declarada intencionalidade da destruição?

Milena Gabanelli

OS RICOS DO MUNDO MAIS RICOS COM A COVID

Se há uma coisa que a covid-19 não parou, é o crescimento da riqueza dos bilionários. Só nos Estados Unidos, o saldo bancário de 643 pessoas cresceu US$ 845 bilhões de março a setembro. Ao mesmo tempo, 50 milhões de trabalhadores estavam perdendo seus empregos (14 milhões ainda estão desempregados). É um crescimento que não para. A reportagem é de Milena Gabanelli, publicada por Corriere della Sera. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

O património pessoal de Jeff Bezos na sexta-feira, 16 de outubro, alcançou 192 bilhões de dólares (+ 69,9% desde março), Elon Musk 91,9 bilhões (+ 273,8%), Mark Zuckerberg 97,9 bilhões, (+ 78,6%), só para citar os mais famosos. O lockdown também foi uma bênção para o fundador e CEO da Zoom, Eric Yuan, que passou de 5,5 para 24,7 bilhões de dólares (+ 349%), graças às videoconferências a que fomos obrigados a recorrer. O criador do videogame Fortnite, Tim Sweeny, que hoje possui 5,3 bilhões de dólares, apareceu no ranking.

A peste suína também cria riqueza

Depois dos Estados Unidos, a China ocupa o segundo lugar, com 456 bilionários na lista. Em abril, o maior aumento de riqueza foi garantido por Qin Yinglin, maior criador de porcos do mundo: passou de 4,3 bilhões de dólares em 2019 para 23,4 bilhões hoje por causa de outra epidemia – a peste suína – que fez com que o preço da carne disparasse. Além disso, a covid-19 modificou a classificação. Jack Ma não está mais no topo: o criador do gigante do comércio eletrônico Alibaba, com 53 bilhões, caiu para o terceiro lugar. Ele foi ultrapassado por Ma Huateng, presidente e CEO da Tencent, a super holding que controla o WeChat entre outros: em março possuía 38 bilhões, hoje ultrapassa 61,6 bilhões.

Em segundo lugar subiu Zheng Shanshan: de 1,9 para 55,9 bilhões de dólares em seis meses graças à cotação em bolsa de dois de seus grupos, as águas minerais Nongfu Spring e a Wantai Biological Pharmacy.

Os bilionários italianos

Na Itália, a Forbes assinala 40 (havia 36 em abril). Em primeiro lugar Giovanni Ferrero com 26,5 bilhões de dólares, seguido por Leonardo Del Vecchio com 20,8, a família Aleotti (Menarini Industrie Farmaceutiche) com 10,2 bilhões (1 bilhão de evasão perdoado), Giorgio Armani passou de 5,4 no início de abril para 8,5 bilhões hoje, Stefano Pessina com 8 bilhões, Silvio Berlusconi com 6,4 bilhões e Gustavo Denegri (5,9 bilhões), primeiro acionista do grupo de biotecnologia Diasorin.

Capitalismo de relacionamento

Mas de onde vem essa riqueza, cada vez mais concentrada em poucas mãos? A maior parte não é por méritos próprios. De um terço a 60 por cento dos super-ricos (dependendo de como a origem das fortunas é classificada) herdou os bilhões que possuem, começando com pela nova chegada Mackenzie Scott com $ 62 bilhões: a sua fortuna é a de ter sido esposa de Bezos. Oito das dez mulheres mais ricas do mundo estão no ranking graças ao pai ou marido bilionário. Pelo menos outro terço é formado por protagonistas do capitalismo de relação, ou seja, fazem negócios graças ao apoio de governos com leis favoráveis, olhos fechados da autoridade antitruste, lobby parlamentar.

Por exemplo, o mexicano Carlos Slim (US$ 53,1 bilhões) é o homem dos telefones no México. Na Rússia, os dez maiores bilionários lidam com matérias-primas e hidrocarbonetos: Vladimir Potanin (22,9 bilhões) possui a maioria da Nornickel (paládio e níquel); Vladimin Lisin (22,6 bilhões) é o rei do aço. Leonid Mikhelson (20,7 bilhões), produtor de gás natural, Roman Abramovich, (12,6 bilhões) graças principalmente ao carvão, níquel e paládio. O filipino Enrique Razon Jr. (4,8 bilhões) é a terceira geração da dinastia que controla os portos do país asiático. O malaio Robert Kuok, de US$ 11,1 bilhões, fez fortuna com o óleo de palma. As plantações comportam a derrubada de florestas tropicais inteiras, contribuindo fortemente para a mudança climática; o óleo usado como combustível fóssil é poluente, enquanto o palmiste, usado na indústria alimentícia, é uma das gorduras saturadas mais perigosas. São 21 bilionários que estão no ramo dos cassinos. Poucos impostos e funcionários com contratos de colaboração continuada.

Quando você tem muito dinheiro, você também pode pagar os melhores especialistas em impostos para criar fundos, holdings, veículos offshore para mudar a residência fiscal para onde for mais conveniente.

A maioria das multinacionais faz isso. De acordo com uma análise recente do Mediobanca, os gigantes da web pagaram US$ 46 bilhões a menos em impostos apenas nos últimos 5 anos. Entre eles, a Microsoft é a que menos pagou em impostos: apenas 10% dos lucros em 2019. Além disso, cerca de 80% de sua liquidez (638 bilhões no final de 2019) é mantida em paraísos fiscais para subtrai-la das autoridades fiscais dos países de origem.

O dinheiro também se acumula economizando na mão de obra, aplicando contratos indignos aos funcionários na parte inferior da cadeia de produção ou recorrendo a subcontratados que, por sua vez, usam trabalhadores mal pagos. Marcas de luxo italianas conhecidas obrigaram seus artesãos durante a emergência Covid a aplicar um desconto de 2% nos pedidos já acordados. Bezos, que é o homem mais rico do planeta e CEO da Amazon, paga na Itália a um funcionário com contrato de colaboração mais ou menos 700 euros por mês.

As desigualdades estão aumentando

Segundo a ONG Oxfam 2.153 pessoas detêm 60% da riqueza global, ou seja, têm mais dinheiro do que juntos todos os 4,6 bilhões de habitantes da Terra. Como fazer frente a essa riqueza que se concentra cada vez mais nas mãos de poucos, enquanto o nível de desigualdade continua se ampliando? As propostas de economistas e políticos vão da eliminação das proteções legais aos oligopolistas para aumentar a concorrência até o aumento dos impostos sobre herança para os grandes patrimônios, mas elas param nas mesas de negociação.

Nos Estados Unidos, onde entre 1980 e 2018 os impostos pagos pelos bilionários caíram 79%, há quem proponha taxar as fundações em que os mega-bilionários canalizam suas riquezas, com a única obrigação de doar apenas 5% ao ano de seu patrimônio. Ao escolher como e onde intervir, as fundações filantrópicas efetivamente privatizam as políticas de bem-estar. O bilhão que chega ao orçamento da OMS proveniente da Fundação Gates e da Gavi Allance permite que Bill Gates, como maior contribuinte, oriente suas decisões de política sanitária global. Hoje, Gates pede aos estados que aumentem os impostos para os super ricos, mas ele não diz uma palavra contra o turismo fiscal de gigantes como a Microsoft, graças à qual ganhou bilhões.

Quanto tirar para criar empregos

A esquerda estadunidense nas atuais eleições propôs com Bernie Sanders um imposto de 60% sobre os lucros dos bilionários durante a pandemia para custear os gastos em saúde. Alguns bilionários também concordam, começando com o financista Warren Buffett, de US$ 80,2 bilhões, o quarto homem mais rico do mundo. Mas hoje o candidato é outro, Joe Biden. E do outro lado está Donald Trump, colocado no posto 1.092 no ranking mundial com 2,5 bilhões de dólares. Por 15 anos, ele pagou zero dólares em impostos, graças a seus consultores fiscais.

De abril a setembro, enquanto a covid-19 parava os EUA, sua riqueza cresceu 20%. Segundo cálculos da Oxfam, um aumento de 0,5% na tributação do 1% mais rico do mundo possibilitaria em dez anos pagar 117 milhões de postos de trabalho em escolas e na assistência e cuidado de idosos e doentes. Além disso, uma carga tributária maior sobre os ricos aliviaria parte da carga tributária sobre o trabalho.

Bispo da Prelazia do Marajó /IHU

À BUSCA DE APLAUSOS, NÃO DO ESTABELECIMENTO DE DIÁLOGOS”

A Prelazia do Marajó lançou por estes dias uma nota, assinada pelo seu bispo, Dom Evaristo Pascoal Spengler, onde critica a visita do presidente Jair Bolsonaro. O momento eleitoral e a pandemia da Covid-19, que na ilha atinge números preocupantes, são considerados empecilhos que desaconselham a visita. A nota afirma a disposição da prelazia em tudo o que promove o “desenvolvimento socio-econômico e do bem estar da população marajoara”, sobretudo o que faz referência à superação das dívidas históricas, cuidado do meio ambiente e valorização da cultura regional. Ao mesmo tempo, se referindo ao programa Abrace o Marajó, critica que não seja fruto do diálogo com as diferentes instâncias políticas e sociais. Eis a nota.

“Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). O presidente Jair Bolsonaro, acompanhado de uma comitiva governamental, chega à cidade de Breves, no Arquipélago do Marajó, para o anúncio de medidas do Programa Abrace o Marajó. A solenidade em pleno período eleitoral integra um espetáculo midiático com questionáveis efeitos concretos. Soa estranho, também, em plena pandemia, em uma região com um sistema de saúde precário, a realização de atividades que favoreçam a aglomeração social, sem respeito às normas sanitárias, onde as taxas de contágio e óbitos em decorrência da Covid-19 são preocupantes.

A Prelazia do Marajó se associa às iniciativas democraticamente construídas com vistas à promoção do desenvolvimento socioeconômico e do bem estar da população marajoara. Sobretudo, aquelas medidas destinadas a superar dívidas históricas com o povo da região, com a proteção do meio ambiente e com a valorização da cultura regional. “A Amazônia (inclua-se o Marajó) hoje é uma beleza ferida e deformada, um lugar de dor e violência. Os ataques à natureza têm consequências negativas na vida dos povos” (DF 10).

O Programa Abrace o Marajó poderia ser uma iniciativa governamental com vistas a oferecer respostas públicas às demandas da região. Para isso, seria indispensável um diálogo com o governo do Estado, com os poderes municipais e, principalmente, com as lideranças da sociedade civil. Um diálogo sincero, franco, responsável, envolvendo a pluralidade do tecido social da região: as lideranças religiosas das diferentes denominações, as lideranças dos variados setores da atividade econômica, formal e informal, as lideranças dos trabalhadores, das populações tradicionais, dos artistas, das juventudes, das mulheres, bem como lideranças de movimentos sociais e ambientais. Para se constituir em um programa de governo, com efetivos resultados econômicos e sociais, com responsabilidade ambiental, demandaria o envolvimento daqueles que trabalham em defesa da cidadania, da convivência democrática, do respeito à pluralidade, da justiça social e do cuidado com a “Casa Comum”. Como ensina o Sínodo para a Amazônia: “Para os cristãos, o interesse e a preocupação com a promoção e o respeito dos direitos humanos, tanto individuais quanto coletivos, não são opcionais. O ser humano é criado à imagem e semelhança de Deus Criador, e sua dignidade é inviolável. É por isso que a defesa e a promoção dos direitos humanos não são meramente um dever político ou uma tarefa social, mas também, acima de tudo, um requisito de fé” (DF 70).

A história brasileira tem demonstrado fartamente o fracasso de iniciativas governamentais que veem o povo como destinatário e não como interlocutor, que dispensaram o seu conhecimento e as suas contribuições. Somar é a melhor estratégia para chegar aonde não se pode chegar sozinho (cf. DF 39) e o diálogo é o meio mais adequado para se conferir audiências aos interlocutores legítimos e às suas demandas. Portanto, é importante indagar sobre esta visita repentina do presidente e sua comitiva ao Marajó: Com quem o governo do presidente Jair Bolsonaro estará somando em pleno processo eleitoral? A que interlocutores estará conferindo audiência? Que mensagens estará veiculando?

Esta solenidade do anúncio de medidas do programa Abrace o Marajó não contará com a acolhida da Prelazia do Marajó porque não está inscrita em uma estratégia de somar forças, de estabelecer diálogos com a sociedade e de impulsionar iniciativas. Como estratégia midiática e eleitoral, parece claro que o presidente Jair Bolsonaro não veio ao Marajó para construir parcerias. Sua postura unilateral, com absoluto desprezo às autoridades constituídas, à população residente e às lideranças marajoaras, sinaliza que o objetivo de sua viagem está mais inclinado à busca de aplausos e não do estabelecimento de diálogos; reflete mais o desejo por plateias e menos a busca de interlocutores e de parcerias para um empreendimento público, orientado para a resolução de demandas regionais importantes.

A Prelazia do Marajó está disponível, como sempre esteve, ao diálogo construtivo e democraticamente cultivado. Contudo, recusa-se, por convicção ética e evangélica, a participar de eventos que favoreçam apropriações político-partidárias, especialmente no curso de processos eleitorais. Não compactuaremos com ações que confisquem a voz do povo marajoara e exonerem as suas agendas. Acolheremos, com especial atenção, dedicação e envolvimento, todas as ações destinadas ao Marajó que se abram à participação das populações locais, dando-lhes voz e vez nas decisões, considerando suas necessidades, respeitando suas tradições e culturas e garantindo a preservação do meio ambiente saudável.

Aproveitamos a oportunidade para desejar a todos os marajoaras e paraenses, um Círio de paz, de alegria, e de fraternidade. Que a Virgem de Nazaré nos inspire a sermos fiéis discípulos de Jesus, caminhando guiados pelo seu Evangelho.

Gilvander Moreira

O GRANDE INQUISIDOR, DE DOSTOIÉVSKI, NOS INTERPELA

"O fundamentalismo religioso do neopentecostalismo está sendo trombeteado aos quatro ventos por igrejas eletrônicas que reduzem Deus a um quebra-galho, autoajuda e fomentando uma falsa teologia, que é a chamada Teologia da Prosperidade, afundando as pessoas em água benta, em desencarnação da fé cristã e em amputação da dimensão social do Evangelho de Jesus", escreve Gilvander Moreira, frei e padre da Ordem dos Carmelitas. É doutor em Educação pela FAE/UFMG, licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR, bacharel em Teologia pelo ITESP/SP, mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália, assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas e professor de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

A convite do ator Celso Frateschi assisti e comentei a peça teatral “O Grande Inquisidor”, de Fiódor Dostoiévski, que é de leitura indispensável. O Grande Inquisidor é um pequeno, mas denso, eloquente e contundente capítulo do último romance de Fiódor Dostoiévski: “Os Irmãos Karamazov”, publicado como uma série no Mensageiro Russo, de janeiro de 1879 a novembro de 1880. Assistir à belíssima apresentação de O Grande Inquisidor com Celso Frateschi foi para mim um momento inesquecível e fez passar um filme na minha cabeça. Recordou-me as muitas vezes em que, como a maioria do povo brasileiro, eu também senti na pele estar sob certo tipo de inquisição por algum Grande Inquisidor. A peça O Grande inquisidor me fez recordar quando eu trabalhava em latifúndios como família agregada. Ao ver nossa produção, fruto da mãe terra e do nosso trabalho, sendo levada no caminhão do fazendeiro, dois gritos irrompiam no meu coração: “Isso não é justo!”, “Isso não é justo!” e “Deus não quer isso!”, “Deus não quer isso!” Esses gritos retinam nos meus ouvidos para sempre. Marcado por essa experiência de ser explorado pelo latifúndio e por latifundiários, tenho dedicado minha vida a lutar por justiça no seu sentido mais profundo: justiça agrária, justiça urbana, justiça ambiental e respeito aos direitos humanos fundamentais. A violência perpetrada pelo Grande Inquisidor, seja ele cardeal, latifundiário ou outro carrasco gera indignação nas pessoas violentadas.

Andar na contramão do Grande Inquisidor exige muito amor, paixão pela causa dos violentados e coragem. Segundo Dostoiévski, em O Grande Inquisidor, em Sevilla do século XVI, na Espanha, em tempos de chumbo e auge da mais terrível inquisição, Jesus reaparece esbanjando ternura, amor, afabilidade, com uma luz irradiante de amor que humanizava o ambiente. Porém, Jesus é submetido a um cruel processo inquisitorial por um cardeal. Eis uma metáfora da nossa realidade de mundo sob cruel super-exploração, em 2020, e especialmente do Brasil, país imerso novamente em violência generalizada, tortura, com relações sociais escravocratas e ditadura, de mil formas. Muitas afirmações e perguntas de O Grande Inquisidor são emblemáticas e nos interpelam, tais como: “Por que vieste para nos estorvar?”, “Como pode um rebelde ser feliz?”, “Que liberdade é essa se a obediência é comprada com pão?”, “Os homens anseiam por comunidades de culto”, “Tu vieste só para os eleitos?”, “Quem retém o pão em suas mãos?”, “Mesmo que haja outra vida, não será para escravos obedientes”, “Não digas nada”, “Cala-te!”, “Te julgarei e te condenarei como o maior dos hereges”, “Não existe nada mais insuportável para a humanidade que a liberdade”, “Nada é mais irresistível que a atração do pão”, “Existem três poderes, três forças na terra: o milagre, o mistério e a autoridade”, “O homem busca muito mais o milagre do que Deus”, “Tu mereces ser queimado na fogueira da inquisição”, “Os grãos de areia são fracos, mas se amam”, “Amanhã eu te queimarei”, “Vai e não voltes nunca mais!”, e tantas outras afirmações e perguntas que cortam como navalha.

Realmente, há no meio do povo ânsia imensa por “comunidades religiosas de culto”. O fundamentalismo religioso do neopentecostalismo está sendo trombeteado aos quatro ventos por igrejas eletrônicas que reduzem Deus a um quebra-galho, autoajuda e fomentando uma falsa teologia, que é a chamada Teologia da Prosperidade, afundando as pessoas em água benta, em desencarnação da fé cristã e em amputação da dimensão social do Evangelho de Jesus Cristo. Orar faz bem, mas não qualquer tipo de oração, pois há determinados tipos de oração que transferem para Deus responsabilidades que são nossas.

Faz necessário recordar que o bom pastor do capítulo dez do Evangelho de João, na Bíblia, convida as ovelhas para saírem do curral e as conduz para verdes pastagens, para campo aberto – espaço de liberdade, não abstrata, mas com condições objetivas que viabilizem o ser livre efetivamente. Lamentavelmente, no neopentecostalismo brasileiro, os falsos líderes religiosos, sejam padres ou pastores, incitam o povo a ficar entocado nos espaços religiosos, tiram as pessoas dos espaços públicos e, assim, aprisionam as pessoas domesticando-as com moralismos que são Grande Inquisidor, chegando a aberrações tais como furtar do povo doações para construir templos luxuosos e até sino de 17 milhões de reais. Absurdo! Idolatria! Não esqueçamos: o neopentecostalismo foi exportado dos Estados Unidos para o Brasil e América Latina, como analisa o mineiro Délcio Monteiro de Lima, no livro Os demônios descem do norte, e fomentado pelos papas João Paulo II e Bento XVI.

Há vários sentidos para Religião: no sentido original, Religião vem de re-ligar, re-ler, re-eleger e, assim, pode nos religar com o mistério de amor infinito e profundo que nos envolve com o próximo, com todos os seres vivos e com o nosso Eu mais profundo. Entretanto, com o andar histórico, as Religiões se tornaram Instituições com dogmas, doutrina, funcionários e tendem a se auto-reproduzirem em estruturas de poder opressor.

Parece-me que Dostoiévski critica de forma contundente não o ensinamento e a práxis de Jesus de Nazaré, vista da perspectiva da Teologia da Libertação, mas critica a versão do ensinamento e da práxis de Jesus, segundo a teologia dogmática clássica, que sob muitos aspectos deturpa o que o Galileu revolucionário ensinou e testemunhou. Dostoiévski denuncia de forma implacável a Igreja Instituição e a diabólica inquisição que excomungou Jesus de Nazaré revolucionário, porque ele estorvava e estorva os podres e violentos poderes. Para se deleitar em podres poderes e comodismo, muitos não mudam de vida como propõe Jesus, mas mudam Jesus adocicando-o ou enquadrando-o a escusos interesses. Se Jesus voltasse agora, ele não teria lugar na estrutura do próprio Cristianismo, como tanta gente marginalizada e violentada na sua dignidade. Por exemplo, as três palavras com as quais, segundo O Grande Inquisidor, se domina todos: “milagre, mistério e autoridade”. Para a Teologia da Libertação, milagre não é mágica, não é algo feito por Jesus que seja impossível de ser feito por outra pessoa humana. Milagre não estupra a natureza. “A graça supõe a natureza”, já dizia o filósofo e teólogo Tomás de Aquino. Jesus não tinha um superpoder sobrenatural inacessível aos outros humanos. Jesus não nasceu Cristo, porque se humanizou de forma esplêndida. Milagre é um processo de solidariedade gratuita que questiona dogmas, leis e regras que geram marginalização e, por isso, liberta as pessoas, mas sempre nas entranhas das relações humanas e sociais. Um aparente bom pastor, mas na realidade inquisidor, opressor, dominador, muitas vezes invoca o mistério para impor um “cale-se!”, porém diante do mistério, conforme dizia o filósofo Wittgenstein, “devemos nos calar somente após dizermos a última palavra”. Assim como Jesus revolucionário estorva os Grandes Inquisidores da história, sigamos estorvando os inquisidores da atualidade.

Maurício Abdalla

A ESPERANÇA É REVOLUCIONÁRIA

Manter a esperança é a mais sublime atitude revolucionária. É o último bastião de luta que impede que a guerra seja vencida por completo, escreve em artigo Maurício Abdalla, professor na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e membro da Rede Nacional de Assessores do Centro de Fé e Política Dom Helder Câmara (CEFEP/CNBB).

"Esperar" é aguardar algo de que se tem certeza ou forte crença que virá.

"Esperança" é a atitude subjetiva de crer além do que está dado pela configuração do presente. É esperar além das certezas e teimar em superar as inclinações mais pessimistas.

Esperar em tempos favoráveis não é ter esperança. A esperança só floresce e se mostra em tempos de adversidade. É ela que nos torna humanos. Foi por causa da atitude humana da esperança que o mundo e sua materialidade jamais eternizaram seus decretos de impossibilidade. Tudo que apareceu como impossível foi superado pela esperança.

A esperança cria a utopia e nenhum projeto humano que transformou o mundo foi possível sem utopia. Dos primórdios da epopeia do Homo sapiens aos nossos dias, tudo foi obra da teimosia do ser humano em não se contentar apenas em esperar o que já estava disposto, mas ter a postura ativa da esperança no ainda-não.

A esperança é a única atitude que distingue, na essência, o(a) verdadeiro(a) revolucionário(a). Não é a indignação, não é a vontade imediata de lutar, não é a atitude de denúncia e a revolta. Embora importantes, tais posturas podem ser compartilhadas também por quem não é revolucionário. A esperança, não. Só cultiva a esperança em tempos sombrios os(as) que estão realmente dispostos a transformar o mundo de forma radical. Ter esperança é ter a arma mais poderosa na luta contra a tirania e a opressão.

Não foi por acaso que Dante, na descrição da entrada do Inferno, imaginou uma placa na porta com os dizeres "Deixai toda esperança, vós que entrais".

Os inimigos querem tirá-la de nós. Pois assim nos tiram a vida e toda força que temos para derrotá-los. Deixar de ter esperança é deixar-se vencer pelo inimigo, entregar os pontos, aceitar a derrota sem nenhuma perspectiva de resistência.

Mesmo que não possamos mudar as coisas de forma imediata, mesmo que nos tirem tudo que nos resta, mesmo que vençam diversas batalhas, a esperança é algo cuja existência só depende de nós. Só a levam se a entregarmos – mesmo quando tentamos culpá-los por isso. Ter esperança é fruto de nossa liberdade, de nosso arbítrio, não do deles.

Por isso, manter a esperança é a mais sublime atitude revolucionária. É o último bastião de luta que impede que a guerra seja vencida por completo. Se abrirmos mão dela, mesmo que vejamos motivos para tanto, renunciamos à própria vida.

E, assim, Virgílio disse a Dante: "Não tenhas medo, mas não sejas fraco! Aqui chegamos ao lugar, do qual antes te falei, onde encontraríamos as almas sofredoras que já perderam seu livre poder de arbítrio. Não temas, pois tu não és uma delas, tu ainda vives."

E nós, ainda vivemos?

Edição 160, Setembro 2020

Yanis Varoufakis

UMA ALTERNATIVA AO CAPITALISMO QUE JÁ NÃO FUNCIONA MAIS

"Numa tentativa de incorporar ao meu projeto socialista diferentes perspectivas, e muitas vezes conflitantes, decidi conjurar três personagens complexos [em Another Now] cujos diálogos narrariam a história – cada um representando diferentes partes do meu pensamento: uma marxista-feminista, uma ex-banqueira libertária e um especialista em tecnologia rebelde. Suas divergências a respeito de 'nosso' capitalismo formam o pano de fundo contra o qual meu projeto socialista é projetado – e avaliado", escreve Yanis Varoufakis, economista e ex-ministro de Finanças da Grécia, em artigo publicado por The Guardian e reproduzido por Carta Maior. A tradução é de Clarisse Meireles /IHU

Quando Margaret Thatcher cunhou a “Tina” – de sua máxima dos anos 1980, There Is No Alternative (“Não há alternativa”) – fiquei furioso porque, no fundo, senti que ela tinha razão: a esquerda não tinha uma alternativa nem plausível nem desejável ao capitalismo. A esquerda é ótima em apontar os males do capitalismo. Falamos de forma poética sobre a possibilidade de um "outro" mundo, em que cada um contribuiria segundo suas capacidades e receberia de acordo com suas necessidades. Mas, quando pressionados a descrever uma alternativa madura ao capitalismo contemporâneo, por décadas temos oscilado entre a feia (um socialismo de quartel, semelhante ao soviético) e a esgotada (uma social-democracia inviabilizada pela globalização financista).

Durante a década de 1980, participei de muitos debates em pubs, universidades e câmaras municipais cujo objetivo declarado era organizar a resistência ao thatcherismo. Lembro-me de pensar baixinho toda vez que ouvia Maggie falar: "Ah se tivéssemos um líder como ela!". É claro que eu não tinha ilusões: o programa de Thatcher era despótico, antissocial e um beco sem saída econômico. Mas, ao contrário do nosso campo, ela entendeu que vivíamos um momento revolucionário. O armistício da luta de classes do pós-guerra havia acabado. Se quiséssemos defender os desfavorecidos, não podíamos ficar na defensiva. Precisávamos defender nossas causas com a mesma firmeza com que ela defendia as suas: abaixo o sistema antigo, aqui está o novo. Não aquele novo sistema distópico de Maggie, mas ainda assim novo.

Infelizmente, nosso campo não conseguiu vislumbrar um novo sistema. Estávamos ocupados fazendo curativos em cadáveres enquanto Thatcher abria covas para dar espaço a seu novo capitalismo vigarista. Mesmo quando travávamos uma luta esplêndida em defesa de comunidades que mereciam ser defendidas, nossas causas tinham o selo do anacronismo – da luta para preservar as sujas usinas de carvão ou pelo direito de sindicalistas de direita de fechar acordos sórdidos, a portas fechadas, com tipos como Robert Maxwell e Rupert Murdoch.

Assim como quando a União Soviética entrou em colapso, em 1991, nós da esquerda – social-democratas, keynesianos e marxistas – tínhamos a sensação de que viveríamos o resto de nossos dias como os perdedores da história, em 2008, com o colapso do Lehman Brothers, aqueles que viviam a ideologia do neoliberalismo viram a história entrar em erupção com uma força de destruição semelhante. Alguns anos depois, o capitalismo de vigilância também obrigou os evangelistas da tecnologia, que pensavam ver na internet uma força democrática global irresistível, a abandonar suas ilusões.

Dois anos antes, decidi que precisávamos de um plano, de um projeto de como o socialismo democrático pudesse funcionar hoje, com as tecnologias atuais e apesar de nossas falhas humanas. Minha relutância em me lançar em tal tarefa era imensa. Duas pessoas me ajudaram a superá-la. Uma foi Danae Stratou, minha companheira. Desde que nos conhecemos, ela diz que minha crítica ao capitalismo não significa nada se eu for capaz de responder à pergunta: “Qual é a alternativa? E como exatamente as coisas – dinheiro, empresas e moradia – funcionariam?”.

A segunda, e mais improvável, influência foi de Paschal Donohoe, ministro das finanças da Irlanda e presidente do Eurogrupo. Opositor político sem grande apreço por mim como ministro das finanças (uma avaliação mútua), ele teve a gentileza de escrever uma crítica generosa de um livro anterior meu. Embora Donohoe tenha gostado do meu relato sobre o capitalismo, ele achou o fim do livro, onde tentei esboçar algumas características de uma sociedade pós-capitalista, "muito decepcionante".

Numa tentativa de incorporar ao meu projeto socialista diferentes perspectivas, e muitas vezes conflitantes, decidi conjurar três personagens complexos cujos diálogos narrariam a história – cada um representando diferentes partes do meu pensamento: uma marxista-feminista, uma ex-banqueira libertária e um especialista em tecnologia rebelde. Suas divergências a respeito de “nosso” capitalismo formam o pano de fundo contra o qual meu projeto socialista é projetado – e avaliado.

O capitalismo decolou para valer quando o eletromagnetismo encontrou os mercados de ações no fim do século 19. Este casamento deu origem a megafirmas em rede, como a Edison, que produzia de tudo, de usinas elétricas a lâmpadas. Para financiar o enorme empreendimento e o comércio massivo de suas ações, surgiu a necessidade de megabancos. No início dos anos 1920, o capitalismo financeiro prosperou, até que todo o rolo compressor quebrasse em 1929.

A década atual começou com outro casamento que parece impulsionar a história a uma velocidade vertiginosa: entre a enorme bolha com a qual os estados vêm alimentando o setor financeiro desde 2008, e o Covid-19. As provas não são difíceis de encontrar. Em 12 de agosto, dia em que foi divulgado que a economia britânica havia sofrido a maior queda de sua história, a Bolsa de Valores de Londres deu um salto de mais de 2%. Nada comparável jamais ocorreu. O capital financeiro parece finalmente ter se desconectado da economia real.

Another Now começa no fim dos anos 1970, atravessa as crises de 2008 e 2020, mas também esboça um futuro imaginário e termina em 2036. Há um momento na história, em uma noite de domingo de novembro de 2025 para ser preciso, em que meus personagens tentam dar sentido às circunstâncias de então a partir dos eventos de 2020. A primeira coisa que observam é como o confinamento mudou drasticamente a percepção das pessoas sobre a política.

Antes de 2020, a política parecia quase um jogo, mas com o Covid veio a constatação de que os governos de todos os países tinham poderes imensos. O vírus trouxe toques de recolher de 24 horas, o fechamento de pubs, a proibição de caminhar nos parques, suspendeu o esporte, esvaziou os teatros, silenciou as casas de shows. Todos os princípios de um estado mínimo, consciente de seus limites e pronto a ceder o poder aos indivíduos viraram pó.

Muitos salivaram com essa demonstração de poder puro do Estado. Até mesmo os defensores do livre mercado, que passaram a vida rejeitando qualquer sugestão até do mais modesto estímulo aos gastos públicos, exigiram um tipo de controle estatal da economia que não se via desde que Leonid Brejnev controlava o Kremlin. Em todo o mundo, o estado financiou as folhas de pagamento de empresas privadas, renacionalizou serviços públicos e adquiriu ações de companhias aéreas, de montadoras de automóveis e até de bancos. Desde a primeira semana de confinamento, a pandemia removeu qualquer verniz da política e revelou a realidade nua e crua que existe por baixo: algumas pessoas têm o poder de dizer o que o resto deve fazer.

As intervenções de peso do governo levaram alguns esquerdistas ingênuos ao devaneio de que o redescoberto poder do estado se tornaria uma força para o bem. Esqueceram o que Lenin disse certa vez: a política é uma questão de quem faz o quê a quem. Permitiram-se ter esperança de que algo de bom pudesse acontecer se as mesmas elites que já condenaram tanta gente a incalculáveis indignidades recebessem um poder desmedido.

As pessoas mais pobres e de pele mais escura foram as que mais sofreram com o vírus. Por quê? Sua pobreza deles foi causada pelo seu alijamento das esferas de poder. Dessa forma, envelheceram mais rápido. E ficaram mais vulneráveis a doenças. Enquanto isso, as grandes empresas, sempre contando com o estado para impor e garantir os monopólios em que prosperam, aumentaram sua posição de privilégio.

As Amazons deste mundo prosperaram, naturalmente. As emissões letais que haviam diminuído temporariamente voltaram a sufocar a atmosfera. Em vez de cooperação internacional, fronteiras foram fechadas e as persianas abertas. Os líderes nacionalistas ofereceram aos cidadãos desmoralizados uma troca simples: poderes autoritários em troca de proteção contra um vírus letal – e dissidentes.

Se as catedrais foram o legado arquitetônico da Idade Média, a década de 2020 será lembrada por cercas eletrificadas e revoadas de drones zumbindo. As finanças e o nacionalismo, já em alta antes de 2020, são os claros vencedores. A grande força dos novos fascistas foi que, ao contrário de seus antecessores de um século atrás, eles não precisaram usar camisas marrons nem mesmo entrar no governo para obter poder. Os partidos do establishment, em pânico – compostos de neoliberais e social-democratas –, disputam-se para fazer o trabalho dos novos fascistas, através do poder dos gigantes da tecnologia.

Para impedir novos surtos do vírus, os governos monitoraram cada movimento nosso com aplicativos sofisticados e pulseiras que estão na moda. Sistemas projetados para monitorar a tosse agora também monitoram o riso. Eles tornaram repentinamente jurássicas organizações especializadas em vigilância e “modificação de comportamento”, como as infames KGB e Cambridge Analytica.

Em que momento a humanidade perdeu o rumo? Teria sido em 1991? Em 2008? Ou ainda tínhamos uma chance em 2020? Como as epifanias, a teoria da bifurcação na história não passa de uma mentira conveniente. A verdade é que enfrentamos uma bifurcação todos os dias de nossas vidas.

Suponhamos que tivéssemos aproveitado o momento em 2008 para fazer uma revolução pacífica e tecnológica que levasse a uma democracia pós-capitalista. Como seria ela? Para ser desejável, teria mercados de bens e serviços, já que a alternativa – um sistema de racionamento do tipo soviético, que confere poder arbitrário aos piores burocratas – é triste demais. Mas para ser à prova de crises, há um mercado que o socialismo de mercado não pode se permitir incluir: o mercado de trabalho. Por quê? Porque, uma vez que o tempo de trabalho tem um preço de aluguel, o mecanismo de mercado o empurra inexoravelmente para baixo, enquanto comoditiza todos os aspectos do trabalho (e, na era do Facebook, também do nosso lazer).

Uma economia avançada pode funcionar sem mercados de trabalho? Claro que pode. Considere o princípio de um empregado-uma ação-um voto na base de um sistema que, em Another Now, chamo de corpo-sindicalismo. Alterar a legislação societária de modo a transformar cada empregado em um sócio igual (embora não igualmente remunerado) é tão inimaginavelmente radical hoje quanto o sufrágio universal era no século 19.

Em meu plano, os bancos centrais oferecem a cada adulto uma conta bancária gratuita na qual uma renda fixa (chamado dividendo básico universal) é creditada mensalmente. Como todos usam suas contas no banco central para fazer pagamentos domésticos, a maior parte do dinheiro cunhado pelo banco central é transferida dentro de seu livro-caixa. Além disso, o banco central concede a todos os recém-nascidos um fundo fiduciário, para ser usado quando crescerem.

As pessoas recebem dois tipos de renda: os dividendos creditados em sua conta no banco central e o pagamento pelo trabalhar em uma empresa corpo-sindical. Nenhuma das duas rendas é tributada, pois não há imposto de renda ou imposto sobre vendas. Em vez disso, dois tipos de impostos financiam o governo: um imposto de 5% sobre as receitas brutas das firmas corpo-sindicais; e receitas do arrendamento de terras (que pertencem, em sua totalidade, à comunidade) para uso privado, por tempo limitado.

Quanto ao comércio e pagamentos internacionais, o Another Now apresenta um sistema financeiro global inovador que transfere continuamente riqueza para o sul global, evitando, ao mesmo tempo, os conflitos e as crises causadas por desequilíbrios. Todo o comércio e todas as movimentações de dinheiro entre diferentes jurisdições monetárias (por exemplo, entre o Reino Unido e a zona do euro ou os EUA) são denominados em uma nova unidade de contabilidade digital, chamada Kosmos. Se o valor em Kosmos das importações de um país exceder o de suas exportações, é cobrada uma taxa proporcional ao déficit comercial. Mas a taxa é cobrada da mesma forma se as exportações de um país excederem suas importações. Outra taxa é cobrada na conta em Kosmos de um país sempre que muito dinheiro entrar ou sair muito rapidamente do país – uma espécie de taxa sobre os movimentos especulativos que causam tantos danos aos países em desenvolvimento. Todas essas taxas são transformadas em investimentos verdes diretos no sul global.

Mas a chave dessa economia é a garantia de uma única ação não negociável a cada empregado-sócio. Ao conceder aos empregados-sócios o direito de voto nas assembleias gerais das corporações, uma ideia proposta pelos primeiros anarcossindicalistas, a distinção entre salários e lucros é encerrada e a democracia, finalmente, se instala no local de trabalho.

Dos engenheiros seniores e principais pensadores estratégicos de uma empresa a suas secretárias e zeladores, todos recebem um salário básico mais um bônus decidido coletivamente. Como a regra de um funcionário-um voto favorece as unidades menores de tomada de decisão, o corpo-sindicalismo faz com que os conglomerados se dividam voluntariamente em empresas menores, recuperando assim a competição no mercado. Ainda mais notável é que os mercados de ações desaparecem completamente, uma vez que as ações, como as carteiras de identidade e os cartões de biblioteca, não serão negociáveis. Quando os mercados de ações desaparecem, a necessidade de dívidas gigantescas para financiar fusões e aquisições se evapora – junto com os bancos comerciais. E como o Banco Central fornece uma conta bancária gratuita a todos, os bancos privados encolherão até se tornarem insignificantes.

Algumas das questões mais espinhosas que precisei abordar ao escrever Another Now para garantir sua consistência com uma sociedade totalmente democratizada foram: o medo de que os poderosos manipulem as eleições mesmo sob o socialismo de mercado; o fato de o patriarcado se recusar a morrer; a política sexual e de gênero; o financiamento da transição verde; as fronteiras e a migração; um código de direitos digitais, entre outros.

Teria sido insuportável escrever este livro em forma de manual. Eu seria obrigado a fingir ter tomado partido sobre questões que permanecem sem solução na minha cabeça – muitas vezes no meu coração. Tenho, portanto, uma imensa dívida de gratidão com meus espirituosos personagens, Iris, Eva e Costa. Acima de tudo, eles me permitiram ponderar seriamente sobre a mais difícil das questões: uma vez que concebemos um socialismo viável, que implode a máxima “Tina”, de Thatcher, o que devemos fazer e até onde estamos dispostos a ir para que ele se concretize?

Jorge Alemán

NEOLIBERALISMO: TERROR E ÓDIO

A tonalidade afetiva que é impregnada pelo mundo de vida neoliberal é o Terror. Não é o Terror das ditaduras clássicas, nem o dos absolutismos despóticos ou totalitários. O Terror procede de um modo mais invisível e chega a seu clímax em momentos de concentração catastrófica, como agora na pandemia”, escreve Jorge Alemán, psicanalista e escritor, em artigo publicado por Página/12. A tradução é do Cepat /IHU

Conforme afirmam os estudiosos, o Neoliberalismo é um tempo histórico onde, por um lado, a natureza se perdeu, enquanto, ao mesmo tempo, o “homem econômico” naturaliza a desigualdade, a exploração, a definitiva introdução da subjetividade na lógica do Mercado.

Este paradoxo confirma o neoliberalismo como um extraordinário produtor de vida precária. Aqui, entendemos vida precária conforme propõe José Luis Villacañas, vida precária não é só a flagrante vulnerabilidade dos sectores populares e excluídos. Os exploradores também não podem ter uma vida humana já que são obrigados a sustentar a produção ilimitada do Capital, em uma permanente atualização da Acumulação primitiva, agora endossada ao capital financeiro e às diferentes operações de desapropriação das matérias-primas de países emergentes.

Também se apropria de tudo aquilo que no mundo faz parte do Comum. Obviamente, esta precariedade não apaga os antagonismos entre as oligarquias e os povos, mas caso se tem presente que o Neoliberalismo, por seu poder unificador, em princípio não permite pensar seu exterior e nem sua saída histórica, neste sentido, a vida precária é a essência da grande criação neoliberal: a vida inteiramente reduzida a valor e competição de uns com outros e também em relação a si mesmo.

A tonalidade afetiva que é impregnada pelo mundo de vida neoliberal é o Terror. Não é o Terror das ditaduras clássicas, nem o dos absolutismos despóticos ou totalitários. O Terror procede de um modo mais invisível e chega a seu clímax em momentos de concentração catastrófica, como agora na pandemia.

Não é o Terror ao Leviatã que a qualquer momento nos faz sentir a sua violência, é muito mais a violência sistêmica e sinistra que implica estar preso num movimento circular que sempre retorna ao mesmo lugar. Pode haver pandemias, insurreições, catástrofes ecológicas, crises de representação, crises orgânicas, explosões de bolhas financeiras, etc.

Ao despertar, o Neoliberalismo segue aí. O Terror sinistro de que a humanidade já não possa sair desta circularidade, deste ponto de não retorno às grandes experiências humanas transformadoras, tanto num sentido existencial como político é a conquista, acima dos governos de direitas, da gestação de subjetividade neoliberal como novo desenho do humano.

Costuma-se acentuar o gozoso consumo incessante de objetos, mas em seu caráter compulsivo e repetitivo permanece secreta a obscura pulsão de morte e sua tradução sempre possível ao canal privilegiado do ódio. Este contexto do Terror específico do neoliberalismo, que cada vez torna mais difícil decidir qual seria uma vida fora do êxito ou do fracasso, do velho ou do novo, do que nos cura ou nos mata e onde o amor só se oferece a alguns como vida humana, é o que o caráter unívoco e totalmente dirigido das ultradireitas oferecem como salvação: “Já que nunca sairá do círculo sinistro do terror, oferecemos a você estar do lado sádico dos castigadores”.

Por isso, não se compreende estas ultradireitas atuais em seu verdadeiro alcance, caso não sejam concebidas como emanações do novo terror neoliberal. Por isso, o novo projeto mundial é que as direitas governem com uma reafirmação de ultradireitas. Já não se trata de derrotar governos de esquerdas ou nacionais e populares. Agora, para que o Terror se impregne até o rincão mais remoto da comunidade, para eles é imprescindível destruir a Democracia. Mas as latências da História pré-neoliberais sempre podem retornar. Por isso, o crime nunca é perfeito.

N.E. O Texto tem a sua valia, enquanto o Autor se mantém no campo da Ciência. Mas quando passa para o campo teológico, o Texto contém a maior das barbaridades da Humanidade, ao falar da morte crucificada de Jesus como auto-imolação. Um horror e um vómito!

Cho Hyun-chul

COVID-19 E ECOLOGIA: DA GLOBALIZAÇÃO À LOCALIZAÇÃO

"A globalização tem sido eficiente para o investimento de capital, mas o ecossistema natural foi massivamente destruído", escreve Cho Hyun-chul, jesuíta sul-coreano e professor da Escola de Pós-Graduação em Teologia da Universidade Sogang em Seul, Coreia do Sul, em artigo publicado por La Croix International. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

A Covid-19 é um problema de saúde, mas é fundamentalmente um problema de desenvolvimento e economia, ou seja, de sociedade. Se você abordar a Covid-19 apenas como um problema médico, você perderá a essência e a raiz do problema.

A fim de examinar o desastre da Covid-19 em um contexto social, é necessário prestar atenção à estreita relação entre o surto de doenças infecciosas virais e a globalização. Em primeiro lugar, no mundo interconectado de hoje por redes de transporte de alta velocidade, as doenças infecciosas virais se espalham rapidamente pelo mundo assim que ocorrem. Em segundo lugar, constatou-se que a destruição dos ecossistemas naturais pelos humanos promove a infecção viral de várias formas.

A economia global tem sido desregulamentada em todo o mundo para um investimento eficiente de capital, e, como resultado, o ecossistema natural foi massivamente destruído por projetos de desenvolvimento e extração negligentes.

À medida que a produção se desloca para lugares com regulamentação ambiental mínima, as emissões de gases do efeito estufa aumentaram significativamente, e as mudanças climáticas se aceleraram. Nesse contexto, devemos imaginar o período após o coronavírus no que diz respeito à própria globalização.

Charles Perrow argumentou que existem acidentes que ocorrem inevitavelmente devido à natureza do sistema de complexidade interativa e de acoplamento forte, e ele chamou esse tipo de acidente de “acidente normal”.

Pode-se entender que, com o processo de globalização, o mundo se tornou um sistema composto por inúmeros subsistemas de alta complexidade e de acoplamento forte. Se assim for, a pandemia da Covid-19, que está intimamente relacionada à globalização, pode ser vista como um acidente normal.

A lição mais importante dos acidentes normais é que os dispositivos de segurança não podem prevenir acidentes. Para evitar acidentes normais, você deve mudar o próprio sistema. A única contramedida fundamental para os desastres causados pela globalização é escapar da globalização. A contramedida fundamental está na “localização”, que transforma o acoplamento forte em acoplamento fraco.

As economias localizadas não pretendem ser completamente autossuficientes, mas buscam uma autossuficiência em grau considerável, produzindo e consumindo produtos locais sempre que possível.

As criaturas de Deus estão conectadas umas às outras por um vínculo invisível e profundo. Essa é a ordem da criação que Deus implantou no mundo, e essa ordem exige respeito e consideração pelo bem das outras pessoas e da natureza.

Nesse sentido, enquanto a globalização foi o processo de destruição da ordem da criação, a localização é o processo da sua recuperação. Se a economia global exigia crescimento, a economia localizada exige “moderação”.

A localização requer que nos convençamos de “reduzir um determinado ritmo de produção e consumo pode dar lugar a outra modalidade de progresso e desenvolvimento” (Laudato si’, n. 191). A localização requer a mudança de consciência dos indivíduos, junto com mudanças institucionais (LS 71, 237).

O sábado, em que a pessoa deixa de trabalhar intencionalmente no sétimo dia, é um ato de autolimitação voluntária para si mesmo e para os outros. Para os cristãos, o exemplo de autolimitação voluntária é Jesus Cristo. A encarnação e a cruz são eventos de “autoesvaziamento” (Fl 2,6-8) e são o nível mais alto de autolimitação. A vida de Jesus foi uma continuação fiel da encarnação e resultou na morte de cruz.

Nas realidades do surto do vírus e da crise ecológica, os cristãos devem perceber que uma vida de autolimitação voluntária é a maneira mais fiel de seguir Jesus hoje. A conversão ecológica é a determinação de respeitar e proteger o próximo e a natureza pelo ato de uma autolimitação voluntária para seguir Jesus (LS 217). Essa conversão ecológica deve ser realizada como uma vida de simplicidade e moderação (LS 222). Uma vida de frugalidade e de parcimônia será a resistência à globalização e o impulso para a localização.

Boaventura de Sousa Santos

EM BUSCA DE SAÍDAS PARA O BRASIL

"Névoa do fascismo paira sobre o país: medo, apatia e um presidente com chances de se reeleger. Para dissipá-la, será preciso recuperar a efervescência do campo popular e pressionar Judiciário, para punir crimes do clã Bolsonaro e da Lava Jato", escreve Boaventura de Sousa Santos, doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Outras Palavras

O Brasil está numa encruzilhada existencial de uma dimensão difícil de imaginar. É o país do mundo com um dos maiores desastres humanitários causados pela pandemia. O Brasil tem cerca de 2,8% da população mundial, mas tem 13,9% das mortes por covid-19. É o país que viveu dois graves atentados à democracia e ao primado do direito num curto espaço de tempo: o golpe jurídico-político contra a Presidente Dilma Rousseff, em 2016, e a grotesca manipulação judicial-política que levou à condenação sem provas do ex-presidente Lula da Silva, em 2018, até hoje o mais popular presidente da história do Brasil. É o país governado por um presidente, Jair Bolsonaro, que ganhou as eleições depois de o seu rival ter sido ilegalmente neutralizado e, mesmo assim, com a ajuda de uma avassaladora avalanche de notícias falsas. É o país governado por um presidente não só manifestamente incompetente para exercer o cargo, como também pró-fascista (defensor da ditadura militar, que governou o país entre 1964 e 1985, e da tortura de opositores democráticos, e que chega a pôr sob vigilância defensores dos direitos humanos, por alegadas atividades…antifascistas); é ainda cúmplice ativo do genocídio em curso no Brasil contra a população indígena e contra a população em geral. É o único governante do mundo que continua a negar a gravidade da situação pandêmica e recusa declarar luto nacional pela morte de tantos milhares de brasileiros.

Um governante que faz propaganda de um produto sem comprovação científica da sua eficácia, a cloroquina, produzida por um empresário bolsonarista, a quem o governo adquiriu um estoque suficiente para abastecer o país durante 18 anos a um preço seis vezes superior ao preço por que comprou o mesmo medicamento no ano passado. É o país onde os grandes meios de comunicação mostraram ao longo dos anos um total desprezo pelas regras de convivência democrática. É o país onde os EUA puderam infiltrar o sistema judicial com mais facilidade e eficácia para fazer alinhar a política externa do país com os interesses norte-americanos no continente e para destruir o tecido econômico do país em algumas áreas concorrentes com as empresas norte-americanas (construção civil, aeronáutica e combustíveis fósseis). É, finalmente, o país onde, apesar de tudo isto, e no aparente funcionamento normal das instituições democráticas, a popularidade do presidente, que desceu bastante nos primeiros meses da pandemia, volta a crescer e o posiciona para um segundo mandato a partir de 2022.

Perante isto, a única saída possível para o Brasil é, o mais tardar em 2022, poder pôr fim democraticamente ao pesadelo infernal do bolsonarismo. Apesar de muito dano irreversível ter sido, entretanto, feito, a saída consistirá em os brasileiros e as brasileiras sentirem política e psiquicamente que acordaram de um pesadelo, que estão vivos apesar de tantos entes queridos perdidos e que um novo dia nasce e um novo começo volta a ser possível. Quais são as condições para isso?

Primeiro, o presidente e o seu clã devem ser investigados seriamente e, por tudo o que se conhece, se o forem, concluir-se-á que há indícios suficientes para serem acusados, julgados e presos. Aliás, no plano internacional, já foram apresentadas várias queixas-crime no Tribunal Penal Internacional da Haia contra a pessoa do Presidente Bolsonaro pelo modo como conduziu o país durante a crise pandêmica, queixas por crime contra a humanidade e, no caso dos povos indígenas, por genocídio, o mais grave deste tipo de crimes. Segundo, os artífices da grave degradação da democracia nos últimos anos, os juízes e procuradores do Ministério Público que conduziram as “investigações” a partir de Curitiba, cometeram tantos e tais atropelos que devem ser não só irradiados da função judicial que desonraram, como devem ser julgados, com respeito por todas as garantias processuais, as mesmas que eles negaram às vítimas da sua macabra manipulação.

Particularmente Sérgio Moro, o candidato dos EUA para as eleições presidenciais de 2022, deve ser definitivamente afastado da vida política. Como foi possível que um medíocre juiz federal de primeira instância assumisse jurisdição nacional e se arrogasse o poder de violar as mais elementares hierarquias do sistema judicial? Que ninguém tenha pena dele, pois os EUA encontrarão meio de o compensar pelos serviços prestados, nomeadamente com um cargo internacional. Terceiro, o ex-presidente Lula da Silva deve quanto antes recuperar em pleno os seus direitos políticos em face da diabólica armadilha judicial-política de que foi vítima e cujos mais grotescos traços começam a ser conhecidos. Quarto, as forças políticas de esquerda têm de se convencer de que estão perante uma situação política excepcional a exigir comportamentos excepcionais e que discutir neste momento se o PSB (Partido Socialista Brasileiro) ou o PDT (Partido Democrático Trabalhista) são ou não de esquerda ou furtar-se a articulações com um amplo leque de forças democráticas com vista às próximas lutas eleitorais são atos de suicídio político que o país se encarregará de lhes lembrar nos próximos anos. Quinto, os movimentos sociais e organizações da sociedade civil têm de acordar da sonolência inquietante que lhes foi incutida pela vida relativamente fácil que tiveram durante os governos de Lula da Silva. O país do Fórum Social Mundial é hoje um embaraço para todos os democratas e ativistas do mundo que viram no Brasil, no início da década de 2000, o país líder de uma nova época de mobilizações sociais incisivas e pacíficas guiadas pela ideia inaugural de que “um outro mundo é possível”.

Estas são as principais condições. As três primeiras estão nas mãos do poder judicial do Brasil. Há indícios de que os tribunais superiores se deram conta de que o futuro da democracia depende em boa medida deles. Cometeram muitos erros no passado recente, foram lassos, se não mesmo cúmplices, ante flagrantes violações do garantismo processual que é a razão de ser do sistema judicial numa democracia. Mas há sinais de que serão a primeira instituição a acordar do pesadelo bolsonarista, e não há neste momento razões para duvidar de que estarão à altura do encargo histórico que lhes cabe. Certamente já se deram conta de que serão as próximas vítimas, se a ilegalidade continuar à solta e impune. Não devem deixar-se intimidar por grupelhos extremistas nem pelo gabinete do ódio. Têm alguns bons exemplos no continente de que os tribunais sabem por vezes assumir a responsabilidade que lhes cabe num dado momento histórico. Afinal, quem poderia imaginar que o mais poderoso político da Colômbia, Álvaro Uribe, senador, ex-presidente do país, responsável impune por muitos crimes e pela destruição dos acordos de paz com a guerrilha, fosse posto em detenção domiciliária para não obstruir a justiça que o vai julgar por uma decisão unânime do tribunal supremo?

Edição 159, Junho 2020

Antoine Duprez

DA PARTIÇÃO DO PÃO À MISSA

"A Eucaristia parece ter sido um dos lugares onde uma evolução foi mais elaborada com a retomada da teologia judaica do sacrifício e do ritual do templo. A teologia católica eucarística centrou-se amplamente no sacrifício sob a influência dos ritos do Antigo Testamento e das liturgias sacrificiais judaicas. Ao longo dos séculos, os teólogos tentaram definir essa presença na Eucaristia com o risco de materializá-la em conceitos explícitos", escreve Antoine Duprez, em artigo publicado por Garrigues et Sentiers. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Essas reflexões limitadas sobre textos bíblicos têm o objetivo de melhor entender a origem da Eucaristia e sua evolução na Igreja Católica. Elas se referem a estudos de teólogos recentes, segundo os quais, inspirada pelas práticas e representações dos sacrifícios do Antigo Testamento, a Igreja Católica passou progressivamente da partição de pão para à missa. De fato, mesmo que ela não tenha adotado de forma idêntica suas práticas e ritos, inspira-se em seu espírito e valores. Deveriam ser complementadas por pesquisas históricas sobre a liturgia.

Do Primeiro ao Segundo Testamento

Os sacrifícios do Antigo Testamento e seu ritual são minuciosamente descritos nos livros do Levítico e dos Números. Esses textos revelam em parte a natureza da religião do Antigo Testamento; são animados por uma lógica comum: Deus é o Totalmente Outro, o Santo, Inacessível que não pode ser visto sem morrer. Manifesta-se em um local sagrado, a Tenda do Encontro e, mais tarde, no Templo, no centro de manifestações como raios e trovões destinados a despertar o terror no povo rebelde e impuro; somente os sacerdotes da tribo de Levi, descendentes de Aarão, separados do todo do povo, podem se aproximar dele. Sua principal missão é oferecer sacrifícios e garantir ritos litúrgicos e as leis de pureza e impureza. Por isso, eles viverão inteiramente do culto e para o culto. Quanto ao povo rebelde, ele vive à parte, em um estado de impureza ritual, principalmente as mulheres, por causa de suas "impurezas" menstruais.

É toda essa religião, com seu caráter sagrado, seus ritos baseados na separação "puro / impuro" que Jesus rejeitará: ele próprio não é sacerdote nem escriba, o que lhe tira toda a autoridade no âmbito institucional religioso. Embora ele provavelmente tenha frequentado as seitas batistas, logo se separou delas, assim como das comunidades essênias, muito legalistas. Seu Deus e sua mensagem também diferem daqueles batistas, cujo Deus da cólera que vem fazer justiça não é o Deus de ternura para os "pequeninos" que Jesus anuncia.

Jesus é um profeta itinerante. Anuncia a vinda iminente do reino de Deus, no qual as noções de puro e impuro são substituídas pela pureza de coração e pela generosidade para com os irmãos, especialmente os mais pobres... Não pertence à estirpe sacerdotal, mas à estirpe dos profetas que anunciam o Reino de Deus sem querer instituir uma nova religião. Toda a sua atitude e seu ensinamento proclamam que não há alimento, nem animal, nem, muito menos, pessoa que seja pura ou impura. O amor do Pai é dirigido a todos os seres humanos. Estreita relações privilegiadas com "impuros", mulheres, cobradores de impostos, pessoas doentes...

Há um eco indireto dessa pregação de Jesus em sua aparição em frente ao Sinédrio, onde ele é acusado de querer destruir o templo, e especialmente no julgamento de Estêvão que será acusado ​​pelos escribas e anciãos de reivindicar que Jesus, aquele nazareno, destruiria aquele lugar e "subverteria os costumes que Moisés nos transmitiu" (Atos 6,14), o que incluía os ritos e o pessoal do templo O livro dos Atos dos Apóstolos narra o tsunami mental que a primeira comunidade cristã vive, especialmente por ocasião do encontro de Pedro e Cornélio (Atos 10). Pedro ouve aquela revelação inacreditável: "nenhum alimento e, com mais razão, nenhuma pessoa é impura". O amor do Pai, através do Espírito, é dirigido a todos os homens. A narrativa precisa ser repetida cinco vezes para que essa verdade extraordinária ("Deus não faz exceção entre as pessoas") seja aceita por Pedro e pela primeira comunidade. Sob a pressão dos judaizantes, Pedro logo recuará. Paulo terá que repreendê-lo severamente, censurando-o por trair uma experiência cristã fundamental.

A Última Ceia de Jesus

Qual era a intenção de Jesus ao compartilhar a Ceia? Nenhum exegeta sério pode responder a essa pergunta com certeza. Mas falar sobre a "instituição da Eucaristia" já orienta inconscientemente no sentido da prática atual da Eucaristia, após séculos de disputas e definições dogmáticas. Embora essa última refeição tenha sido próxima da Páscoa judaica, vários exegetas pensam que a última Ceia de Jesus não fosse uma refeição pascoal "porque não há alusões à liturgia pascoal, não há menção a cordeiro ou ervas amargas que devem ser servidas naquela ocasião; não há nenhum chamamento ritual à saída do Egito”.

Além disso, como a refeição pascoal era a refeição mais importante do ano para as famílias judias, seria impensável que os grandes sacerdotes passassem a noite condenando Jesus. Portanto, é uma refeição de despedida, certamente uma refeição solene que talvez não fosse reservada somente aos apóstolos. Para a partição do pão, o celebrante, muitas vezes o chefe da família, transmitia a bênção de Deus aos convidados. Disso decorre o escândalo para os escribas e fariseus, quando Jesus compartilhava o pão com publicanos e pecadores.

As palavras exatas de Jesus não podem ser reconstituídas, tanto que foram retomadas e enriquecidas pelas liturgias eucarísticas das várias comunidades cristãs das quais elas estão na origem. Mas, de acordo com J.P. Meier, o logion de Marcos 14,25 ("Em verdade vos digo que nunca mais voltarei a beber do fruto da videira até o dia em que o beber, novo, no reino de Deus") permite remontar a uma palavra autêntica de Jesus, pronunciada durante a última refeição. Sua convicção é baseada na pluralidade de fontes e, sobretudo, no critério da descontinuidade. "Não tem nada a ver com cristologia, soteriologia e escatologia da primeira geração cristã".

Jesus anuncia sua morte próxima. É sua última refeição de festa; a próxima será no Reino de Deus. Ele está ciente do fracasso: aqueles a quem ele havia anunciado o amor do Pai o rejeitaram e estão prestes a suprimi-lo. No entanto, ele mantém um sentimento indefectível de confiança no Pai. "Ele está convencido de que sua causa seja a causa de Deus e que, consequentemente, apesar de sua morte e seu fracasso pessoal, Deus acabará justificando sua causa e seu profeta, acolhendo-o em seu reino e fazendo-o sentar-se no banquete final onde beberá novamente o vinho da festa. A profecia em Marcos 14,25 é, portanto, um último grito de esperança de Jesus, no qual ele expressa sua confiança em Deus que fará vir o seu reino, apesar da morte de Jesus. Afinal, o que está no centro da fé e do pensamento de Jesus não é ele mesmo, mas o triunfo final de Deus, quando virá exercer sua soberania sobre sua criação e seu povo rebelde. Ou seja, o que é central é o reino de Deus".

Naquele logion, Meier observa que Jesus não se atribui nenhum título messiânico nem qualquer papel no triunfo final do reino. Não é ele quem salva os outros da morte, mas é ele quem precisa ser arrebatado da morte, por Deus. Meier não encontra relação entre a morte de Jesus e a vinda do reino, nenhuma alusão ao caráter de sacrifício expiatório da morte de Jesus e muito menos de afirmações explícitas de sua ressurreição e de sua exaltação ou parúsia. “Jesus não é apenas o mediador que permite que outros acessem o banquete escatológico, mas nada indica que ele se beneficiará de um lugar especial naquele banquete, mesmo como convidado. Seu lugar é simplesmente à mesa festiva para beber vinho, ele é salvo, nada mais, nada menos. A dimensão comunitária ou eclesiológica também está ausente do logion; nenhuma referência particular é feita aos discípulos e à sua relação com Jesus ... É um conforto que Jesus se dirija para si mesmo e não para seus discípulos ... Jesus aguardava ansiosamente a vinda futura de Deus e continuou a esperá-la até o final de sua vida".

Não causa surpresa que Mateus tenha modificado aquela palavra não cristológica substituindo "o reino de Deus" por "o reino de meu Pai", acrescentando "convosco" (Mt 26,29) para o vinho novo e, assim, mostrar o vínculo entre Jesus e seus discípulos.

Meier lembra o perigo do anacronismo ao emprestar a Jesus e à comunidade primitiva algumas representações teológicas que são nossas. Jesus foi o profeta do Reino que Deus instauraria em breve e que já estava presente na pessoa de Jesus, com suas palavras e seus gestos de acolhimento e cura para todos os homens, especialmente os mais pobres, os excluídos e as pessoas doentes. Nesse contexto, a Ceia é a última refeição de um condenado que compartilha essa última refeição com seus amigos. Lembra todas as refeições consumidas juntos, bem como as refeições bíblicas da aliança, e anuncia o banquete escatológico. Pedindo a seus amigos que se lembrem dele, pede que compartilhem sua fé no amor do Pai, na vinda do Reino. Ele incentiva a continuarem o que ele começou e o que eles começaram com ele: anunciar e celebrar as Boas Novas do Evangelho, servindo os irmãos, até a doação da própria vida. Apesar da situação desesperadora, ele conserva toda a sua confiança no Pai, dele e deles.

A memória da última ceia do Senhor nas primeiras comunidades cristãs, depois entre os católicos

Com a ressurreição, os discípulos manterão a experiência de uma presença inaudita de Jesus, especificamente durante uma refeição. Então, o memorial da Ceia se tornará um momento alto da presença do Ressuscitado. Logo Paulo coloca a ênfase nem tanto no anúncio das Boas Novas do Reino e nos gestos e palavras de Jesus, quanto sobre o próprio mensageiro: "Jesus Cristo é o Senhor", mensagem universal de salvação para todos os homens.

A Eucaristia parece ter sido um dos lugares onde uma evolução foi mais elaborada com a retomada da teologia judaica do sacrifício e do ritual do templo. A teologia católica eucarística centrou-se amplamente no sacrifício sob a influência dos ritos do Antigo Testamento e das liturgias sacrificiais judaicas[8]. Ao longo dos séculos, os teólogos tentaram definir essa presença na Eucaristia com o risco de materializá-la em conceitos explícitos. O quarto concílio de Latrão (1215), depois o concílio de Trento (1545-1563), definiram o dogma da transubstanciação. A presença real nas espécies eucarísticas do pão e do vinho, consagradas apenas por um padre, ele mesmo consagrado, agente "in persona Christi", tornou-se um desafio importante por ocasião do cisma de Lutero. A insistência sobre a materialidade das coisas foi feita, certamente, às custas daquela sobre a presença de Cristo que atua dentro da comunidade cristã viva, graças ao Espírito do amor de Deus e do amor dos irmãos.

Essa abordagem sobre a dinâmica da interpretação levanta a questão da lacuna existente entre os textos do Evangelho, nossas representações teológicas atuais e nossas práticas litúrgicas. É normal e aceitável que o homem de todas as épocas tente entender e interpretar o que recebe de tradições anteriores, de acordo com as representações e a cultura de sua época, desde que permaneça ciente disso. O problema que surge, constatando essa lacuna, é: “e depois?; é progresso ou desvio? onde está a verdade de um texto do evangelho? relativa ou absoluta? ". Perguntas desafiadoras que eu gostaria de abordar com vocês...

Christophe Henning

NOVA BIOGRAFIA MOSTRA O LADO SOMBRIO DE JOÃO PAULO II

Autores franceses não mostram misericórdia pelo papa santificado que liderou a Igreja por quase três décadas. A reportagem é de Christophe Henning, publicada por La Croix International. A tradução é de Isaque Gomes Correa /IHU

O longo pontificado de João Paulo II estendeu-se além dos 26 anos (1978-2005) com grande fanfarra. Será que o papa polonês pensou que estaria revivendo a Igreja Católica? Ou será que a sua marcha forçada a enfraqueceu e dividiu mais ainda? Não há dúvida de que João Paulo deixou uma impressão profunda na Igreja. A questão é sobre se esta impressão foi para melhor ou para pior.

Os autores franceses Christine Pedotti e Anthony Favier não têm dúvida quanto à resposta a esta pergunta. Em uma nova biografia de Karol Woytila – intitulada Jean-Paul II: L’ombre du saint –, os escritores mostram-se intransigentes na análise dos danos causados pelo polonês enquanto chefe temporal da Igreja Católica.

“A canonização de João Paulo II marca o fim de um longo ciclo na história do catolicismo, aquele sonho de uma volta do poder, que o pontífice polonês pôs em marcha desde o começo”, escrevem Pedotti e Favier no livro de 330 páginas, no momento disponível apenas em francês.

Os autores, ambos católicos confessos e de esquerda, observam dezanove momentos simbólicos e questões espinhosas da vida do falecido papa. Eles criticam o pontificado, deixando de lado temas como a liturgia, o sacerdócio, o diálogo inter-religioso, o anticomunismo e outros.

Reclericalização”

Embora haja algumas coisas óbvias a condenar – como a impunidade de Marcial Maciel e sua negligência na gerência dos casos de abuso sexual –, é lamentável que Pedotti e Favier considerem inclusive algumas das realizações de Wojtyla como tendo sido equívocos. Por exemplo, o avanço que ele fez no diálogo inter-religioso, a modelagem de uma nova geração de católicos que ele promoveu através das Jornadas Mundiais da Juventude e a elaboração da doutrina católica sobre temas relacionados à vida que o pontífice encabeçou.

Não nos deve surpreender que Pedotti, católica feminista, liste como um dos maiores pecados de João Paulo II a promoção da “reclericalização na Igreja” e uma “visão sobrenatural do sacerdócio”. Essa linha de ataque é adotada várias vezes na obra, em particular quando os autores falam do papa sofredor.

“Eis ele aqui, brincando de Cristo, ascendendo, pouco a pouco, ao Gólgota”, escrevem. “Quando um papa, sobrecarregado de doenças, não se queixa, quem poderá dizer que a missão é demasiado pesada, que o sacrifício é demasiado grande?”

Ambição persistente

Com pouca preocupação em governar a Cúria Romana durante os 26 anos de seu pontificado, João Paulo II deixou sua marca na Igreja no ano 2000. “No rearmamento doutrinal que o papa estava realizando, não havia espaço para dúvidas. As verdades do catecismo foram reafirmadas com firmeza. A moralidade, especialmente aquela referente à afetividade e à sexualidade, foi restabelecida com firmeza. E não houve a necessidade de repensar os sacramentos em nome da missão”, denunciam os autores.

Na verdade, de um tema a outro, o livro descreve um Karol Wojtyła tenazmente ambicioso, figura que queria ardentemente uma Igreja poderosa, política e missionária, enquanto quem permanecia no comando era um João Paulo II exausto. Eis a contradição de um papa que foi solitário e teimoso, enquanto o barco inundava, como disse o seu sucessor Bento XVI.

Pedotti e Favie também exploram a imagem do João Paulo II idoso e enfraquecido a abrir a porta da Basílica de São Pedro na inauguração do Grande Jubileu do Ano 2000. “A fraqueza humana na face dessa porta maciça (...) Não é uma metáfora da fragilidade da Igreja?”

Boaventura de Sousa Santos

XEQUE MATE ÀS HIERARQUIAS

"Fracasso norte-americano revela como tornou-se frívola a arrogância do Norte diante do Sul. E a ideia de uma Natureza disponível e consumível – típica da Bíblia que o Ocidente adotou – desaba sob o peso do sistema que ela própria concebeu", escreve Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Outras Palavras e IHU

Dizia Santo Agostinho: “O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei. Se alguém me perguntar, eu não sei”. O enigma do tempo deriva do facto de o tempo, por ser mudança, não se deixar aprisionar em medições estanques. Há sempre um antes e um depois que fica fatalmente de fora de qualquer medição. Foi por esta razão que as ciências sociais e as humanidades inventaram as estruturas – modos de pôr o tempo entre parêntesis. Mas a grande razão do enigma é que o tempo, enquanto mudança, é ambíguo, já que tanto significa mutação como cristalização da mutação. Vejamos as duas perguntas seguintes. Por quanto tempo nos vamos lembrar da pandemia? Como vai a pandemia caracterizar o “nosso” tempo? A primeira pergunta aponta para mudança e a segunda para cristalização da mudança. Por essa razão, o facto de, eventualmente, nos esquecermos da pandemia não significa que a pandemia se esqueça de nós. Lembrar-se-á sempre pela marca que imprimirá às consequências, adaptações e hábitos que decorrerão dela, mesmo que nós as atribuamos a outras causas.

Qual será a marca da pandemia do novo coronavírus? A resposta é, por enquanto, especulativa, mas merece a pena ensaiá-la. Penso que vai provocar um abalo tectônico no nosso modo de ver e sentir a sociedade em duas linhas de fratura: a hierarquia temporal entre o antes e o depois, e a hierarquia natural entre o inferior e o superior. As opções serão a prazo dramáticas e, no melhor dos casos, duas novas ordens temporais emergirão com destaque: contemporaneidade e complementaridade. Nas suas versões hegemônicas (liberal e marxista), o pensamento eurocêntrico é dominado pelo evolucionismo, nos termos do qual a relação entre o antes e o depois é sempre uma relação entre o pior e o melhor. Esta ideia tem sido expressa de muitas formas: civilização, progresso, desenvolvimento, globalização. Foi esta ideia que, sobretudo a partir do século XIX, consolidou a divisão do mundo entre o Norte e o Sul. Os países do Sul global, que em grande parte estiveram sujeitos ao colonialismo europeu, foram considerados países de povos primitivos, atrasados, do terceiro mundo, subdesenvolvidos. A hierarquia temporal foi a justificação para a hierarquia econômica, social, política, cultural e epistémica.

A atual pandemia veio abalar profundamente este senso comum, na medida em que alguns países considerados menos desenvolvidos mostraram ter sabido defender melhor a vida dos seus habitantes do que países mais desenvolvidos. Apesar de a pandemia se espalhar pelo mundo a várias velocidades, as estatísticas sugerem não haver uma correlação direta entre a defesa da vida em face da pandemia e o nível de desenvolvimento do país atingido. Se os dados algo revelam é que, pelo contrário, países ditos muito desenvolvidos revelam um grau de resposta e de desempenho na contenção da propagação da pandemia inferior ao dos países ditos menos desenvolvidos. O exemplo paradigmático são os EUA, “o país mais desenvolvido do mundo”, a primeira economia do mundo, cujo combate à pandemia é próprio de um Estado falido, um conceito inventado pelo Norte global para designar (estigmatizar) alguns dos países do Sul global.

A designação Estado falido foi posteriormente substituída pela de Estado frágil, mas a avaliação da realidade que visava retratar em nada mudou. Pode contra-argumentar-se que o fracasso da luta contra o vírus foi um acidente, que em nada altera os conceitos e as hierarquias de base. É verdade que a defesa da vida, da quantidade e da qualidade de vida foi sempre um critério de hierarquização dos países; por muitos indicadores, a hierarquia entre o Norte e o Sul globais mantém-se. Mas há um dado novo e uma pergunta nova potencialmente desestabilizadora. Os desempenhos inferiores na defesa da vida por parte dos países do Sul, além de serem medidos por critérios formulados pelos países do Norte, ocorrem num contexto de relações internacionais que insistem em submeter os países do Sul a sucessivas invasões, imposições, interferências, guerras e saques por parte dos países do Norte. Ao contrário, estes nunca sofreram tais assaltos por parte dos países do Sul. E se, por hipótese, tivessem sofrido?

Os EUA estão “protegidos” de interferência e de invasão por dois oceanos. Quando se sentiram ameaçados na fronteira sul começaram a construir milhares de quilômetros de muro, insondáveis eletrificações e vigilâncias e internaram os potenciais invasores em campos de concentração, incluindo crianças. O coronavírus é o primeiro invasor da história dos EUA, um invasor cuja força não pode ser neutralizada pelo poderio militar. Por ser tão novo, até lhes custa a crer que seja de facto um invasor. De tão habituados a invadir países, os EUA tiveram uma real dificuldade em se porem na pele do invadido. Perante tal invasor, revelaram a mesma debilidade que sempre imaginaram ser a dos países que invadiram, tantas vezes impunemente. Só que, desta vez, a debilidade é real. Os EUA imaginaram armas de destruição em massa no Iraque, que facilmente poderiam neutralizar. Agora, parecem ser vítimas de uma arma real, e não imaginária, de que não parecem ser capazes de se defender.

A pandemia não inverte as atuais hierarquias no sistema mundial. Este assenta em três dominações: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Enquanto elas se mantiverem, o Norte global continuará a impor as suas regras desiguais ao Sul global. O que a pandemia revela é que não é a superioridade que gera a hierarquia, é a hierarquia que gera a superioridade. Revela, também, que a hierarquia temporal é o resultado de uma violenta amputação de tempos históricos. Os países do Sul não vieram depois, não chegaram “atrasados” à história global. Existiam antes e por vezes com culturas milenares que antecederam o contato com o Norte. São posteriores porque o colonialismo separou violentamente o seu passado do seu futuro. A pandemia abre a oportunidade para uma transformação epistêmica, cultural e ética que permita ver a diversidade entre países como diferentes formas de a sociedade global ser contemporânea de si mesma. E a diversidade não enriquece a experiência do mundo senão pela via da complementaridade. O que só será possível na exata medida em que forem ganhando força as lutas anticapitalistas, anticolonialistas e antipatriarcais.

A segunda hierarquia, essa arquetípica, da modernidade eurocêntrica é a hierarquia natural, a que define, ex natura, o inferior e o superior. Tem muitas vertentes. Interessa-me aqui apenas uma delas. A hierarquia entre a natureza e a sociedade/humanidade. Curiosamente, a hierarquia natural tem implícita uma hierarquia temporal, mas inversa da anterior. Neste caso, quem vem depois é superior a quem esteve antes. Esta narrativa natural-temporal é muito específica e contextual, e muitas outras narrativas competiram com ela, dando conta de outros modos de conceber as relações entre a natureza e a humanidade.

Como sabemos, a Bíblia não é um documento ocidental, longe disso, mas foi cedo apropriada pelo cristianismo ocidental e convertida em ordem filosófica natural. Na ordem bíblica da criação, o ser humano é a última criação, aquela em que o criador pôs mais complacências. A partir do século XVI, a superioridade natural do ser humano transformou-se no privilégio de submeter a natureza aos seus interesses e desígnios. Esse privilégio foi como que uma compensação para a inferioridade esmagadora do ser humano em relação à divindade. A infinitude indisponível com que a divindade se impunha ao ser humano foi compensada com a infinitude disponível da natureza, a natureza infinita, infinitamente disponível para servir a humanidade.

Também esta hierarquia está a ser desestabilizada pela pandemia, tanto pelo que ela é como pelo que através dela se anuncia. A sociedade global não está em guerra defensiva ante o vírus. Como tenho escrito, não penso que a metáfora da guerra nos ajude a compreender a condição do nosso tempo. Mas se há guerra, então faz mais sentido imaginar que quem está a se defender é a natureza. O novo coronavírus é um emissário que só insidiosa e violentamente impõe a sua missão de ser recebido pelos poderes do mundo. E a sua mensagem é clara: um Basta! dito na única linguagem em que aprendemos a temer a natureza, a linguagem dos perigos que não podem transformar-se em riscos seguráveis.

É hoje consensual que a recorrência das pandemias está ligada aos modelos de economia que dominaram nos últimos séculos. Estes modelos provocaram a desestabilização fatal dos ciclos vitais de regeneração da natureza, e, portanto, de toda a vida que compõe o planeta e de que a vida humana é uma ínfima fracção. A poluição atmosférica, o aquecimento global, os acontecimentos meteorológicos extremos e a iminente catástrofe ecológica são as manifestações mais evidentes dessa desestabilização. O Basta! é um grito cujos decibéis se medem pelo número de mortos.

Tal como aconteceu com a hierarquia temporal, para que a sociedade humana escute este grito, o entenda e se disponha a tomá-lo em conta tem de passar uma transformação epistêmica, política e ética. A natureza e a humanidade são contemporâneas e complementares. A natureza somos nós vistos do outro lado da dicotomia. E, dessa perspectiva, considerar a natureza como totalmente disponível e consumível e empenhar-se na exploração sem limite dos recursos naturais foi um processo histórico de autodestruição. O conceito de autonomia da humanidade em relação à animalidade natural, de que tanto falavam Theodor Adorno e Max Horkheimer – embora compreensível no contexto histórico em que o fizeram – tem de ser substituído por um conceito de autonomia sustentável, construída na complementaridade com a vida do planeta no seu conjunto. A autonomia que implica a escravatura do outro acaba sempre em auto-escravização. Ser escravo desta autonomia vale o mesmo eticamente que a autonomia dos escravos.

Ricardo Antunes

O LABORATÓRIO E A EXPERIMENTAÇÃO DO TRABALHO NA PANDEMIA DO CAPITAL

"A pandemia do capital tratou de demonstrar sua impostura: “colaboradores” estão sendo demitidos aos milhares, “parceiros” estão podendo optar entre reduzir os salários ou conhecer o desemprego e os pequenos empreendedores não encontram consumidores e veem sua renda se esvanecer". O artigo é de Ricardo Antunes, professor titular de Sociologia do Trabalho do IFCH-Unicamp, autor de Coronavírus: o trabalho sob fogo cruzado (e-book, Boitempo, São Paulo, 2020) e uma nova edição atualizada de O privilégio da servidão (Boitempo, 2020), em artigo publicado por Le Monde Diplomatique /IHU

Primeiro acto

O mundo principiou este trágico ano de 2020 de modo muito diferente. Não bastasse a recessão econômica global e em curso acentuado no Brasil, já visualizávamos no radar sinais de expressivo aumento dos índices de informalidade, precarização e desemprego, quer pela proliferação de uma miríade de trabalhos intermitentes, ocasionais, flexíveis etc., quer pelas formas abertas e ocultas de subocupação, subutilização e desemprego, todos contribuindo para a ampliação dos níveis já abissais de desigualdade e miserabilidade social.

Paralelamente a esse quadro social crítico, o léxico empresarial que se expandia no universo maquínico-informacional-digital estampava muita pomposidade: platform economy, crowd sourcing, gig-economy, home office, home work, sharing economy, on-demand economy, entre tantas outras denominações, sem esquecer que os altos gestores (outrora presidentes e diretores das grandes corporações) foram renomeados como chief executive officer (CEO). Até o coaching foi inventado, afinal seria preciso alguém que ganhasse um bom cacau para realizar algum afago espiritual.

E esse novo palavrório, propalado pela gramática do capital, somou-se àquele já consolidado e que adulterava os reais significados etimológicos das palavras, que todos conhecemos: manter sempre a resiliência, atuar com muita sinergia, converter-se em autêntico colaborador e em verdadeiro parceiro, vangloriar-se da nova condição de empreendedor, exercitar o trabalho voluntário (em verdade uma “sutil” imposição, visto que o voluntariado se tornou condição sine qua non para obtenção de emprego), entre tantos outros vitupérios à linguagem, que lhe imputam novas “significações”.

Mas o inesperado fez essa fumegante nomenclatura, que parecia tão bela, virar pura balela. A pandemia do capital tratou de demonstrar sua impostura: “colaboradores” estão sendo demitidos aos milhares, “parceiros” estão podendo optar entre reduzir os salários ou conhecer o desemprego e os pequenos empreendedores não encontram consumidores e veem sua renda se esvanecer.

É bom recordar, porém, que mesmo antes da explosão da pandemia a realidade cotidiana do labor já vinha expressando um inteiramente outro: pejotização, trabalho intermitente, subocupação, subutilização, infoproletariado, cibertariado, escravidão digital, professor delivery, frila fixo, precári@s inflexíveis etc., terminologia essa que, com tom irônico e crítico, se originou da própria lavra do trabalho. É por isso que uberização tem hoje o mesmo traço pejorativo que walmartização ostentou quando se falava das condições de trabalho nos hipermercados.

Se esse ainda era o cenário no Natal de 2019, com Trump, Bolsonaro, Orban e outras aberrações assemelhadas, tudo começou a se agravar com o advento da pandemia. Com a propagação global do coronavírus, o que era desanimador se tornou desolador. E a crise econômica que atingia duramente o Brasil passou a ser amplificada pelas crises do governo Bolsonaro-Guedes, uma simbiose nada esdrúxula entre concepções ditatoriais e fascistas e uma variante de neoliberalismo primitivo, devastando ainda mais nosso chão social já bastante desertificado.

Alguns dados estampam essa crueza. Na mensuração referente ao primeiro trimestre de 2020, o IBGE apresentou uma intensificação das condições desumanas da classe trabalhadora: atingimos o contingente de 12,9 milhões de desempregados, e a informalidade (flagelo que se tornou leitmotiv da ação do capital) superou a casa de 40%, com cerca de 40 milhões de trabalhadores e trabalhadoras à margem da legislação social protetora do trabalho.

Vale ressaltar que esses dados não refletem o que vem se passando no presente (segundo trimestre), dada a expansão exponencial da pandemia no Brasil, mas tão somente o pouco que era visível até os primeiros dias de março, visto que o desemprego (tanto aberto quanto aquele por desalento) está em grande medida invisibilizado pela paralisação de amplos setores da economia, permitindo tão somente uma aproximação sintomática da realidade. Se a esses dados incluirmos os subocupados (que trabalham menos de 40 horas) e os subutilizados (que segundo o IBGE englobam tanto os subocupados como os desocupados e a força de trabalho potencial), teremos uma ideia mais precisa do tamanho da tragédia social que não para de se amplificar no país que em fins de maio se encontra no epicentro da pandemia.

Segundo acto

Foi nessa situação verdadeiramente catastrófica, em que a simultaneidade da crise econômica, social e política se verificou, que a nova pandemia aterrissou em nossos aeroportos. Muito distante de um vírus cuja responsabilização se devesse a algum desmando da natureza, tão ao gosto da apologética da ignorância que hoje se esparrama aqui e alhures, o que estamos presenciando, em escala global, é resultante da expansão e generalização do sistema de metabolismo antissocial do capital.

Carregando uma lógica essencialmente destrutiva, esse metabolismo só pode viver e se reproduzir por meio da destruição, seja da natureza, que jamais esteve em situação tão deplorável, seja da força de trabalho, cuja derrelição, corrosão e dilapidação se tornaram absolutamente insustentáveis. Sendo expansionista e incontrolável, desconsiderando a totalidade dos limites humanos, societários e ambientais, o sistema de metabolismo antissocial do capital alterna-se entre produção, destruição e letalidade. Senão, o que significa a enorme pressão de amplas parcelas do empresariado predador que exige junto ao governo-de-tipo-lúmpen a imediata volta ao trabalho e à produção, em meio à explosão de mortes que não param de crescer por conta da pandemia? Será para preservar os empregos, como dizem?

A resposta é de singela clareza e está estampada não só no país, mas em todos os rincões do mundo. Da China à Suécia, da Alemanha à África do Sul, da Índia aos Estados Unidos, da França ao México, do Japão à Rússia, com a eclosão da pandemia do capital, a criação de riqueza e de lucro se estancou, dada a paralisação da produção, com exceção das chamadas atividades essenciais (aliás, ao ampliar ou restringir essa definição, cada governo estampa seu nível de maior sujeição e servilismo ao capital).

Como as corporações globais sabem melhor do que ninguém que a força de trabalho é uma mercadoria especial, uma vez que é a única capaz de desencadear e impulsionar o complexo produtivo presente nas cadeias produtivas globais que hoje comandam o processo de criação de valor e de riqueza social, os capitais aprenderam bem, ao longo destes quase três séculos de dominação, a lidar com (e contra) o trabalho.

Sabedores de que, se efetivassem a completa eliminação do labor, eles se veriam na incômoda posição de extinguir seu próprio ganha-pão, sua alquimia diária, cotidiana e ininterrupta está voltada indelevelmente para reduzir ao máximo o trabalho humano necessário à produção. E assim se faz por meio da introdução compensadora do arsenal maquínico-informacional-digital disponível, ou seja, pelo uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC), “internet das coisas”, impressão 3D, big data, inteligência artificial, tudo isso enfeixado, em nossos dias, na mais do que emblemática proposta da indústria 4.0.

Que esse complexo tecnológico-digital-informacional não tenha como finalidade central os valores humano-sociais, isso é mais do que uma obviedade. Ou será que alguém acredita que a guerra entre a norte-americana Apple e a chinesa Huawei tenha como principal objetivo melhorar substantiva e igualitariamente as condições de vida e trabalho dos bilhões de homens e mulheres, brancos, negros, indígenas, imigrantes, que perambulam entre o desemprego, subemprego, informalidade e intermitência? Alguém pode imaginar que o objetivo das grandes corporações globais seja dar-lhes trabalho digno, salários justos, vida dotada de sentido, atendimento pleno de suas necessidades materiais e simbólicas?

Um breve olhar para as condições de trabalho da terceirizada global Foxconn, em suas unidades na China onde produz a marca Apple, nos revelou dezessete tentativas de suicídio em 2010, das quais treze lamentavelmente se concretizaram. Podemos lembrar também as rebeliões contra o famigerado “sistema 9-9-6”, praticado pela Huawei (e tantas outras empresas chinesas do ramo digital, como a Alibaba), que significa trabalhar das 9 às 21 horas (9 horas), seis dias por semana. Fácil, não?

Mas, se assim caminhava o admirável mundo do trabalho antes da explosão do coronavírus, o que está sendo gestado no presente, em plena pandemia do capital? Quais experimentações do trabalho estão sendo maquinadas nos laboratórios do capital, enquanto uma parte expressiva da classe trabalhadora preenche os túmulos que, a céu aberto, estão acolhendo seus corpos?

Terceiro acto

Se nossa análise está na direção certa, se estamos apreendendo o cheiro da coisa, a principal forma experimental do labor pós-pandêmico se encontra no trabalho uberizado. Utilizando-se ilimitadamente da informalidade, flexibilidade, precarização e desregulamentação, traços marcantes do capitalismo no Sul global (e que se expandem intensamente também no Norte), coube às grandes plataformas digitais e aplicativos, como Amazon (e Amazon Mechanical Turk), Uber (e Uber Eats), Google, Facebook, Airbnb, Cabify, 99, Lyft, iFood, Glovo, Deliveroo, Rappi etc., dar um grande salto pela adição das tecnologias informacionais.

E aqui os algoritmos se destacam, visto que são programas cuidadosamente preparados para processar imenso volume de informações (tempo, lugar, qualidade), capazes de conduzir a força de trabalho segundo as demandas requeridas, dando-lhes a aparência de neutralidade. Juntamente com a inteligência artificial e todo o arsenal digital canalizado para fins estritamente lucrativos, isso vem possibilitando a criação de um novo monstrengo que adultera a concretude e efetividade das relações contratuais vigentes. Os trabalhos assalariados transfiguram-se em “prestação de serviços”, o que resulta em sua exclusão da legislação social protetora do trabalho. Impulsionados pelo ideário da empulhação, que os fazia sonhar com um “trabalho sem patrão”, converteram-se no que, em O privilégio da servidão, denominei escravidão digital.

Realizando jornadas de trabalho frequentemente superiores a 8, 10, 12 ou mais horas por dia, muitas vezes sem folga semanal; percebendo salários baixos e que estão sendo subtraídos durante a pandemia, sem explicação por parte das plataformas digitais; padecendo das demissões sem nenhuma justificativa; tendo de arcar com os custos de manutenção de veículos, motos, celulares e equipamentos etc., começamos a desvendar, nos laboratórios do capital, os múltiplos experimentos que pretendem implantar depois da pandemia, que se pode assim resumir: exploração e espoliação acentuadas e nenhum direito do trabalho.

Se a desmedida empresarial continuar ditando o tom, teremos mais informalização com informatização, “justificada” pela necessidade de recuperação da economia pós-Covid-19. E sabemos que a existência de uma monumental força sobrante de trabalho favorece sobremaneira essa tendência destrutiva do capital pós-pandêmico.

Há ainda outros exemplos ilustrativos das experimentações do capital em curso. A simbiose entre trabalho informal e mundo digital vem permitindo que os gestores possam sonhar com trabalhos ainda mais individualizados e invisibilizados. Ao perceberem que o isolamento social realizado durante a pandemia vem fragmentando a classe trabalhadora e assim dificultando as ações coletivas e a resistência sindical, eles procuram avançar na ampliação do home office e do teletrabalho. Desse modo, além da redução de custos, abrem novas portas para uma maior corrosão dos direitos do trabalho, acentuando a desigual divisão sociossexual e racial do trabalho e embaralhando de vez o tempo de trabalho e de vida da classe trabalhadora.

Os bancos, que exercitam uma pragmática de enorme enxugamento há décadas, uma vez que têm se utilizado intensamente do arsenal digital, já devem estar fazendo os cálculos de quanto vão lucrar com a introdução do home office e do teletrabalho.

Vale, por fim, destacar outro exemplo que tem sido emblemático: o EAD (ensino a distância). Essa prática, que vem se intensificando durante a pandemia, tanto no ensino privado como no público e especialmente nas faculdades privadas, além de objetivar a redução dos custos e aumentar os lucros, visa fortalecer grandes conglomerados privados “educacionais”. Recentemente, como noticiou amplamente a imprensa, a Laureate, que congrega várias faculdades privadas, além de utilizar robôs na correção de trabalhos sem conhecimento dos alunos, demitiu mais de uma centena de professores.

Assim, por meio desses e de outros mecanismos, novas modalidades de corrosão do trabalho vêm ganhando forte impulsão durante a pandemia e se ampliando nas mais diversas atividades econômicas, invadindo também o espaço público e as empresas estatais. Poucas semanas atrás, o CEO da Petrobras somou-se ao coro ao dizer que a estatal pode “trabalhar com 50% das pessoas em casa” e assim “liberar vários prédios que custam muito”. Vale recordar que, logo antes da eclosão do coronavírus, houve uma importante greve nacional dos petroleiros.

Em meio a tanta maquinação, imaginar que o apoio de R$ 600 (por três meses) para os que se encontram na informalidade seja suficiente para reduzir o flagelo e o vilipêndio a que estão submetidos só é possível para um governo que pratica a necropolítica e a necroeconomia, o que o levou a “descobrir” que existem mais 40 milhões de trabalhadores/as invisíveis, dura constatação do principal resultado de sua política genocida.

Edição 158, Maio 2020

Mario Menin

PARA QUEM TOCA O SINO EM TEMPO DE IGREJAS VAZIAS?

"E por que culpar o coronavírus, que apenas evidenciou - de maneira lamentável - o esvaziamento das igrejas já em andamento? No entanto, já havíamos recebido sinais de alarme desde o Concílio Vaticano II, especialmente na Europa e em grande parte do Ocidente, onde muitas igrejas, mosteiros e seminários foram se esvaziando ou fechados. Nós os esnobamos como se não fossem dirigidos a nós e às nossas comunidades. Em vez disso, nos obstinamos em atribuir o esvaziamento a causas externas, sobretudo ao fenómeno da secularização - em suas várias dimensões e etapas -, sem perceber, como recentemente afirmou pelo Papa Francisco, que "não estamos mais em um regime de cristandade", escreve Mario Menin, missionário xaveriano, diretor da revista Missione Oggi, em artigo publicado por Viandanti. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

No ano passado, antes da Páscoa, testemunhamos assombrados o incêndio da catedral de Notre-Dame em Paris. Este ano, participamos em streaming à Páscoa das igrejas vazias. Milhares de igrejas vazias! O que fazer? É discutido em todos os níveis. Os bispos italianos chegaram a levantar a voz com o governo para reabri-las para as celebrações com as pessoas. Por que esse frenesim de reabrir? Para voltar à normalidade? Qual, após essa pandemia? Não seria melhor, primeiro, ler esse esvaziamento como um sinal que vem de mais longe e mais alto do que o coronavírus? E se Deus - o Deus de Jesus, quero dizer - quisesse nos dizer algo precisamente com a linguagem absurda das igrejas vazias? Certamente é embaraçoso aceitar o esvaziamento de nossos espaços - e tempos - sagrados como um aviso profético.

Deveríamos ter olhos mais penetrantes, como aqueles dos profetas bíblicos, que viam além dos medos do povo, os anseios dos reis e o formalismo dos sacerdotes. Deveríamos entrar em um processo de discernimento espiritual, ao qual, infelizmente, nossas comunidades cristãs não estão acostumadas, nem mesmo as de vida consagrada, muitas vezes prisioneiras de emoções e visões religiosas que têm pouco em comum com a escuta contemplativa e desarmante da palavra de Deus. Um sinal de premonição. Por que não reconhecer nas igrejas vazias um sinal do que poderá acontecer em um futuro não muito distante, se não reformamos - mais evangelicamente – as nossas comunidades?

E por que culpar o coronavírus, que apenas evidenciou - de maneira lamentável - o esvaziamento já em andamento? No entanto, já havíamos recebido sinais de alarme desde o Concílio Vaticano II, especialmente na Europa e em grande parte do Ocidente, onde muitas igrejas, mosteiros e seminários foram se esvaziando ou fechados. Nós os esnobamos como se não fossem dirigidos a nós e às nossas comunidades. Em vez disso, nos obstinamos em atribuir o esvaziamento a causas externas, sobretudo ao fenómeno da secularização - em suas várias dimensões e etapas -, sem perceber, como recentemente afirmou o Papa Francisco, que "não estamos mais em um regime de cristandade..."

Talvez esse tempo de igrejas vazias possa nos ajudar a trazer à tona o vazio oculto em nossas comunidades, as nostalgias litúrgicas tridentinas, que tornam mais problemática a reconexão da Igreja à sociedade de hoje e a recuperação do atraso de "duzentos anos" denunciado pelo cardeal Martini. Chegou a hora de refletir.

Talvez tenhamos nos preocupados demais - nós também, institutos missionários - em converter o mundo e pouco em converter a nós mesmos, colocando o Evangelho de Jesus no centro: "Pois que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, e perder-se ou destruir a si mesmo?". Deveríamos aceitar a atual abstinência de serviços religiosos e atividades pastorais como um kairós, uma oportunidade para um discernimento mais radical, diante de Deus e com sua Palavra.

Chegou a hora de refletir sobre como continuar o caminho da reforma, constantemente indicado a nós pelo Papa Francisco, com gestos e palavras inequívocas. Talvez devêssemos também dar mais crédito às palavras do Evangelho: "Onde dois ou três estão reunidos em meu nome, eu estou entre eles". Elas nos ensinam que os problemas das nossas comunidades não são tanto a falta de vocações ou a escassez de padres, mas uma nova maneira de ser Igreja, onde a ministerialidade dos leigos, das mulheres e das famílias seja reconhecida como constitutiva da própria Igreja. Por isso, devemos levar mais a sério as propostas do Sínodo Pan-Amazônico, mesmo na Itália. Aquele silêncio fantasmagórico que envolveu as liturgias solitárias dos últimos dois meses não estaria gritando o novo rosto - sinodal - da Igreja? Para quem toca o sino em tempos de igrejas vazias?

John L. Allen Jr

VATICANO APOSTA TUDO NA APROXIMAÇÃO À CHINA

A China, em certo sentido, tornou-se o terceiro trilho da geopolítica, no sentido de que qualquer coisa que a toca automaticamente se torna controversa, desde os celulares (“Eles estão espionando?”) até o coronavírus (“Eles estão mentindo?”). O comentário é de John L. Allen Jr., publicado em Crux. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Assim, não deveria surpreender que mesmo um gesto aparentemente inocente – como o facto de a revista jesuíta La Civiltà Cattolica, que goza de um status vaticano semioficial, ter lançado uma nova edição em chinês no mês passado – levou a tensões mais amplas em torno da China, incluindo o seu histórico em relação aos direitos humanos e o seu papel no mundo.

A edição, que foi publicada no dia 20 de abril, estava em circulação há cerca de apenas uma semana quando um padre-blogueiro na China, chamado Shanren Shenfu, que faz parte da Igreja oficial, ou seja, a Igreja reconhecida pelo governo, lamentou que o Vaticano estava aconselhando a “tolerar o mal como algo bom”.

O comentário de Shenfu veio em resposta a um artigo escrito pelo padre jesuíta Federico Lombardi, ex-porta-voz do Papa Emérito Bento XVI, sobre a história das relações entre o Vaticano e a China, originalmente publicado pela Civiltà Cattolica no ano passado.

Entre outras coisas, Lombardi defendia um controverso “acordo provisório” assinado entre Roma e Pequim em 2018, que concedia ao governo chinês um papel na seleção de bispos do país.

“Se o significado e o espírito do acordo assinado no dia 22 de setembro de 2018 fossem entendidos correta e positivamente, o apoio e a comunhão dos fiéis católicos chineses e de todo o povo de Deus com o papa poderiam dar uma contribuição preciosa à continuação de uma jornada que já começou, produzindo um fruto cada vez mais sólido”, escreveu.

Shenfu rejeitou aquilo que Lombardi chamou de “apoio” dos católicos chineses ao Estado, observando que apenas alguns dias antes, no Domingo de Páscoa, funcionários do governo haviam arrancado uma cruz de uma igreja em Henan e que algo semelhante ocorreu em outras igrejas desde que o acordo foi assinado.

“Considerar e aceitar a remoção das cruzes como um evento cotidiano, portanto, parece ser a única grande contribuição que os fiéis católicos chineses e todo o povo de Deus podem dar para a continuação do acordo”, escreveu Shenfu sobre o artigo da Civiltà Cattolica, afirmando que isso equivale a dizer que “o carvão é branco” e definindo isso como uma “piada muito triste”.

O acordo do Vaticano com Pequim tem sido polêmico desde o início, em parte porque seus termos permanecem secretos – teoricamente, talvez, já que um “acordo provisório” não viola a proibição da Convenção de Viena sobre os tratados secretos – e, em parte, porque seus críticos acreditam que o Vaticano cedeu demais por um retorno relativamente pequeno.

Em uma recente entrevista à versão italiana da revista Wired, o padre jesuíta Antonio Spadaro, editor da Civiltà Cattolica e um dos confidentes mais próximos de Francisco, defendeu a decisão de lançar uma edição chinesa.

“Uma objeção que havia sido feita é de que tal escolha foi feita precisamente agora, no meio da pandemia, quando se elevam vozes discordantes e conflitantes, e há tensões muito fortes que também dizem respeito à China”, disse Spadaro.

“Eu diria, talvez, que era o pior momento e, portanto, o melhor momento”, afirmou. “Este é o momento em que os desafios devem ser aceites e as pontes devem ser construídas.” (Spadaro também observou com orgulho que a nova edição está disponível no WeChat, um aplicativo de mensagens altamente popular na China.)

Provavelmente, a principal constatação é de que, não importa o que as pessoas pensem, o Vaticano está avançando a todo o vapor em sua aproximação a Pequim, em que o prêmio final continuam sendo as relações diplomáticas completas, uma posição legal segura para a Igreja e parcerias no cenário global. Essa não é uma política que começou com o Papa Francisco, mas foi compartilhada por todos os pontífices desde a tomada comunista em 1949.

Quanto ao porquê de o Vaticano ser tão cobiçoso de uma relação com a China, e muitas vezes estar aparentemente disposto a reprimir as objeções e a abrir mão de muitas coisas, existem quatro fatores de longa data.

Primeiro, a China abriga um quinto da população humana total, e você não pode pretender ser uma força global ignorando 20% do globo. Além disso, a China desempenha um papel cada vez mais crucial nos assuntos globais, e a crença consagrada pelo tempo do Vaticano é de que é preciso construir pontes com as grandes potências para exercer uma influência humanitária no decurso dos eventos.

Segundo, o Vaticano é mais reticente em recuar em relação à China em parte por causa da história – a controvérsia dos Ritos Chineses, o legado das aventuras coloniais como as Guerras do Ópio, o Levante dos Boxers e assim por diante. Eles sabem que uma parte da população chinesa já considera o catolicismo como “ocidental” e os católicos como potencialmente desleais, e não querem alimentar esse viés. Como resultado, as autoridades vaticanas geralmente acham mais fácil criticar, digamos, um ministro italiano que fecha os portos do país aos botes dos migrantes do que um ministro chinês que autoriza a remoção das cruzes das igrejas.

Terceiro, a China, de certa forma, é a última vasta fronteira missionária restante. O mapa religioso da maior parte do mundo está bem definido – a Índia será maioritariamente hindu, a maioria norte-americana será cristã, a África será uma mistura entre Islão e cristianismo, e assim por diante. Somente na China é que se tem uma situação em que um bilhão de pessoas estão famintas espiritualmente após décadas de ateísmo imposto pelo Estado, e a identidade nacional não se baseia em nenhuma religião individual. Como resultado, o cálculo é de que levar Pequim a deixar de ver os católicos como uma ameaça poderia abrir possibilidades significativas para a difusão da fé.

Quarto, o Vaticano também vê a longa divisão na China entre uma Igreja “oficial” e uma “subterrânea” como prejudicial à saúde da Igreja e há muito aspira a curar a divisão. Pôr fim ao cisma sempre esteve no topo das listas de tarefas papais, e a China não é diferente.

Os críticos podem considerar tudo isso ingênuo, ou frágil, ou até ilusório, e sem dúvida eles podem ser sinceros ao dizer isso. Nada disso, no entanto, parece impedir que o Vaticano se posicione não apenas no meio do caminho, mas também às vezes no seu próprio campo de defesa – até mesmo em espaços virtuais como o WeChat.

Andrés Torres Queiruga

DÊ UMA OLHADA NO VERBETE ESPERANÇA

"Quem acredita em Deus tem a tarefa urgente de tornar sua imagem atual. Um Deus que cria por amor e vive consignado à sua criação, mas com uma presença que não pode ser evidente, porque funda e promove sem interferir respeitando a autonomia das criaturas: tanto a das leis físicas (Whitehead fala felizmente de Deus como "poeta do mundo"), especialmente aquelas da liberdade", escreve o teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga, em artigo publicado por Settimana News. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

De repente, um "pequeno" vírus transtorna o mundo, fazendo de todos (pan) um único povo (demos): pela primeira vez uma "aldeia global". Transtorna até as fundações, fazendo cair, uma a uma, casas de papel, seguranças vazias, preocupações superficiais.

Apresenta o cenário mais verdadeiramente humano na inesperada explosão de generosidade fraterna que nos une diante do sofrimento e da morte. Impondo o domínio do que a psicologia chama de "princípio da realidade" e do que a Bíblia descreve há milhares de anos como a tentação de querer ser como Deus. Com uma diferença: a psicologia, pelo menos um tipo de psicologia, nos deixa indefesos diante do instinto de morte: o livro de Gênesis acende uma esperança de salvação para o futuro.

Mas a esperança – já o sabia Péguy - é uma criança pequena e frágil. Precisa de atenção. A humanidade está em uma encruzilhada onde tem uma nova oportunidade para aprender. A modernidade, em seu entusiasmo pela emancipação, criou maus hábitos, típicos de toda adolescência: os jovens, cheios de razões para protestar, exageram no que propõem; os idosos defendem o passado já acabado, mas conservam valores que não devem ser abandonados (o último livro de Habermas, Auch eine Geschichte der Philosophie, de mais de 1.700 páginas, insiste na sabedoria dos noventa anos). Falando a partir da teologia, isso implica que, diante do desafio do mal, todos, tanto a tradição religiosa quanto o protesto ateu, precisam aprender.

É urgente unir-se na luta: através do diálogo crítico nas interpretações, aproveitando o que nos une na prática, antes de chegar às diferenças na teoria. Felizmente, nós seres humanos somos complexos, e muitas vezes colocamos em prática também o que não sabemos. Algo novo está acontecendo. Na saúde, nos serviços, na vizinhança, assistimos a um trabalho unido e conjunto, sem carteirinha de partido ou certificado de batismo, sem distinção de sexo e também sem fronteiras na investigação. Perder-se em ataques ou acusações, convertendo o mal em apologética defensiva ou na acusação de ser a "rocha do ateísmo", representa uma reação estéril.

Além disso, é uma reação culturalmente anacrônica. Porque as posições atuais participam ambas, conservadoras e progressistas, no mesmo preconceito acrítico: acreditar na possibilidade de um mundo-sem-mal. Hoje sabemos que esse é apenas um mito obsoleto, que sonha religiosamente com paraísos primitivos e freudianas fantasias infantis de onipotência. Fora das discussões a favor ou contra a teodiceia, todos sabemos hoje que o mal é o produto inevitável de um mundo necessariamente finito. Sabem isso os filósofos que, com Spinoza, ensinam que "toda determinação é uma negação" e, com Hegel, que a contradição é a lei de toda realização finita. O senso comum também sabe disso, ensinando que não se pode beber e soprar ao mesmo tempo e que não é possível fazer omelete sem quebrar os ovos.

Em não perceber isso aí está a armadilha, invisível por ser pré-moderna, do famoso dilema de Epicuro: ou Deus pode e não quer, e então ele não é bom; ou quer e não pode, e então não é onipotente ... Portanto, se o mundo-sem-mal é um conceito impossível e contraditório, tirar conclusões dele seria equivalente a dizer que Deus não é bom porque não quer fazer a quadratura de círculo ou não é todo-poderoso porque não faz ferros de madeira.

Quando essa evidência se torna explícita, é igualmente anacrônico continuar acreditando em um Deus admitindo que, se quisesse, poderia não apenas acabar com o coronavírus, mas com todo o sofrimento do planeta, bem como negar sua existência, reconhecendo a autonomia do mundo e sabendo que o que nele acontece sempre tem uma causa intramundana.

A religião precisa atualizar sua imagem de Deus e responder a ela com procissões ou súplicas que tenham sentido apenas assumindo que um mundo-sem-mal é possível. Pela mesma razão, o ateísmo precisa ser consequente e não negar a Deus porque não interfere nas leis físicas ou não controla a liberdade humana.

Dar esse passo tem consequências importantes, claras em um nível prático, mas mais obscuras para o significado da vida e da história. Primeiro de tudo: estamos progredindo. O mundo é hoje iluminado por uma onda quase gravitacional de solidariedade fraterna que nos une a todos contra o mal, o inimigo comum. Dura lição, mas ainda assim, lição.

As diferenças aparecem em outro nível. Quem não acredita em Deus tem diante de si a tarefa de configurar sua vida e dar-lhe sentido dentro da simples imanência. Nela poderemos vencer o coronavírus: no entanto, devemos levar em conta o fato de que o mal continuará presente com outras faces, incluindo a última: a morte, esse "senhor absoluto" de que Hegel falava.

Quem acredita em Deus tem a tarefa urgente de tornar sua imagem atual. Um Deus que cria por amor e vive consignado à sua criação, mas com uma presença que não pode ser evidente, porque funda e promove sem interferir respeitando a autonomia das criaturas: tanto a das leis físicas (Whitehead fala felizmente de Deus como "poeta do mundo"), especialmente aquelas da liberdade.

O Evangelho, dando forma a mais profunda nostalgia do coração humano, consiste em propor a descoberta que Deus, porque ele é capaz de nos criar do nada e tem o poder de não nos deixar voltar ao nada, redimindo-nos da morte, tornada assim o "último inimigo” a ser derrotado. Enquanto isso, há um companheiro no caminho: a história não é prova, mas uma condição de possibilidade de existência; e o mal não é castigo, mas o inevitável pedágio de crescimento em toda existência finita.

A esperança é possível, apesar do mal. E a humanidade tem o direito de se sentir acompanhada. Mesmo nisso Whitehead teve palavras que eu admiro e que vale a pena mencionar neste momento especialmente necessitado: "Deus é o grande companheiro, o amigo do sofrimento, aquele que entende".

N.E. Absolutamente lamentável a cedência que o meu amigo A. Torres Queiruga faz a S. Paulo, o perseguidor de Jesus histórico. Precisamente no penúltimo parágrafo do seu texto, quando escreve, 'redimindo-nos da morte, tornada assim o "último inimigo” a ser derrotado'. Porque, com Jesus histórico, pudemos finalmente entender que morrer é tão natural como nascer. A morte não é 'o último inimigo', mas a nossa irmã gémea que, quando acontece, nos faz chegar à plenitude da Vida. Tal com 'vemos' em Jesus que, ao morrer na cruz, nos dá o seu último Sopro. No qual somos e existimos. Para sempre, ao modo da invisibilidade.

National Catholic Reporter

EUA: CARDEAL DOLAN ENTREGA A IGREJA A TRUMP E AO PARTIDO REPUBLICANO

"A voz católica, capaz de uma contribuição inestimável para o debate público, foi vendida a preço baixo a vendilhões políticos", assevera editorial de National Catholic Reporter, ao comentar o encontro de Trump com os cardeais Dolan e O'Malley juntamente com o presidente da Conferência Episcopal dos EUA. Eis o editorial.

A capitulação está completa

Sem um pio de qualquer um de seus irmãos bispos, o cardeal arcebispo de Nova York ligou inextricavelmente a Igreja Católica dos Estados Unidos ao Partido Republicano e, em particular, ao presidente Donald Trump. Já era bastante ruim que os cardeais Timothy Dolan, de Nova York, e Sean O’Malley, de Boston, acompanhados pelo arcebispo de Los Angeles, José Gomez, atualmente também presidente da Conferência dos Bispos dos EUA, participaram da versão telefônica de um comício de campanha de Trump no dia 25 de abril.

Com centenas de outras pessoas na teleconferência, incluindo educadores católicos, os bispos foram mais uma vez manipulados com maestria. Anteriormente, eles deram a Trump muitas imagens de campanha quando levaram os católicos ao seu discurso no comício da Marcha pela Vida, em Washington, no início do ano.

Agora, Trump terá em mãos o que Dolan falou no telefonema, ao dizer a todos que ele se considera um “grande amigo” de Trump, por quem ele expressou admiração mútua como “um grande cavalheiro”. O cardeal continuou dizendo que estava “honrado” por liderar os comentários do telefonema.

Toda a troca digna de tristeza (sim, Trump se autodescreveu como “o melhor” presidente da “história da Igreja Católica”) foi agravada no dia seguinte, quando Dolan forneceu mais imagens de campanha dentro da Catedral de São Patrício, ao anunciar que o presidente estava “rezando conosco”, supostamente assistindo a transmissão da missa na Casa Branca.

No passado, existiram amizades entre presidentes e príncipes da Igreja dos EUA. O modo como elas afetavam o envolvimento da Igreja na política e nas políticas, negativa ou positivamente, diferia de uma circunstância para outra. Mas é raro, senão sem precedentes, que o aparato da liderança da Igreja seja cooptado no grau visto no caso de Trump.

Certamente, é sem precedentes que as lideranças se aconcheguem tão covardemente a um presidente cujo atributo mais consistente é uma propensão incontrolável à mentira, continuamente e sobre tudo. Ele está perigosamente desconectado da realidade e é definido por características que normalmente são condenadas nos púlpitos.

Em “People of Hope”, uma longa conversa que Dolan teve com o jornalista John L. Allen Jr., publicado em 2012, um capítulo é dedicado às políticas em que o cardeal admite que há uma percepção compreensível de que os bispos dos EUA estão em uma aliança “de facto”, nas palavras do interlocutor, com o Partido Republicano. Dolan afirma que a realidade é mais complexa. “A minha experiência é de que nós, bispos, na verdade, somos bastante escrupulosos ao querer evitar qualquer sabor partidário.”

Hoje, pode-se concluir razoavelmente que essa escrupulosidade se foi pela janela. Para Dolan e seus companheiros de viagem episcopal, a questão que tudo consome é o aborto. Ela encabeça a agenda em qualquer consideração política. Allen perguntou: “Você está dizendo que a percepção de ‘estar na cama’ com os republicanos, ou com a direita política, é o preço de relações públicas que deve ser pago por se ter um forte posicionamento sobre o aborto?”. “Sim, é exatamente isso”, respondeu Dolan.

Infelizmente, os bispos pagaram um preço muito mais alto do que as más relações públicas em sua estratégia política nas últimas quatro décadas. O aborto é um assunto sério que eles transformaram em uma disputa política em um jogo sem vencedores, exceto os grupos extremos da questão, que embolsam dinheiro a cada quatro anos, sustentando carreiras e um debate sem fim.

Em uma interessante concessão à realidade, Dolan observa durante aquela conversa que ninguém menos do que um herói conservador como o falecido teólogo e cardeal jesuíta Avery Dulles perguntava muitas vezes se uma proibição legal ao aborto poderia ser imposta, observando que Tomás de Aquino aconselhava a não buscar leis não executáveis.

Essa é uma pergunta razoável, particularmente no contexto atual. O NCR sempre defendeu a eficácia do ensino da Igreja sobre as questões da vida, especialmente do modo como isso se encarna na consistente ética da vida do cardeal Joseph Bernardin. Ao mesmo tempo, objetamos regular e fortemente contra aquilo que os bispos fizeram em praça pública em relação à questão do aborto, porque a estratégia se mostrou mais eficaz em dividir a comunidade católica e em transformar a Igreja institucional em um empreendimento partidário.

Se uma proibição seria executável é uma questão legítima. Isso diz respeito à realidade política, algo que até os bispos abordam em seu tristemente datado guia de votação intitulado “Formando Consciências para uma Cidadania Fiel”. No parágrafo 32 do documento, os bispos reconhecem que leis imperfeitas e injustas podem existir, e mudá-las pode ser um processo gradual sujeito à “arte do possível”.

Por fim, é razoável notar que, neste momento particularmente, os bispos têm pouca credibilidade por duas razões. A primeira é que pesquisas após pesquisas têm mostrado, ao longo dos anos, que eles têm sido incapazes de persuadir até mesmo os católicos sobre o seu ponto de vista em qualquer proporção diferente do consenso que já existe no público em geral.

A segunda razão pela qual eles não têm credibilidade tem a ver com o seu próprio comportamento. Essa regra absoluta para as mulheres vem de uma cultura totalmente masculina que se mostrou bastante apta a acomodar um nível de violência contra crianças já nascidas, a encobri-la e a desejar ir além dos fatos e das vidas destruídas de milhares de vítimas e suas famílias.

É muito difícil assumir o papel de um moral absolutista na questão do aborto quando você demonstra uma capacidade de se engajar com um grau de relativismo que é realmente de tirar o fôlego ao lidar com o horrível abuso de menores. Seu próprio comportamento, ao longo de décadas de encobrimento de abusos, põe a mentira em uma postura santimoniosa em relação à dignidade absoluta de cada pessoa.

Essa aliança profana com Trump, junto com o empilhamento de republicanos da Suprema Corte, pode dar aos bispos a proibição do aborto que eles tanto desejam, mas isso não encerrará o debate. Eles podem até receber a verba federal de que precisam desesperadamente para prolongar a vida evanescente das escolas católicas. Mas tudo isso terá sido comprado às custas de toda uma série de outras questões relacionadas à vida e à justiça.

Isso terá sido comprado em conjunto com um presidente cujo principal modus operandi é o de um valentão desprovido de empatia ou preocupação pelo bem comum. Se alguém realmente acredita na atual defesa de Trump das escolas católicas e do direito à vida, Dolan também está caindo no conto do vigário.

Não precisa ser assim. Os próprios bispos, na conclusão do documento “Cidadania fiel”, descrevem uma abordagem diferente. Vale a pena repetir os pontos aqui:

- “A Igreja está envolvida no processo político, mas não é partidária. A Igreja não pode defender nenhum candidato ou partido.”

- “A Igreja está engajada no processo político, mas não deve ser usada. Acolhemos o diálogo com líderes e candidatos políticos; procuramos nos engajar e persuadir funcionários públicos. Eventos e fotos não podem substituir um diálogo sério.”

A Igreja tem princípios, mas não ideologias.” A aliança acrítica dos bispos católicos com os republicanos e Trump oblitera esses princípios e permite que os católicos descartem o documento por falta de intenção séria. A aliança também distancia ainda mais a Igreja de qualquer alavancagem que ela possa possuir em uma série de questões da agenda da justiça social católica que afetam profundamente a vida dos vulneráveis e dos marginalizados, assim como de qualquer esperança de intermediar modificações no aborto sob demanda com os democratas.

A voz católica, capaz de uma contribuição inestimável para o debate público, foi vendida a preço baixo a vendilhões políticos.

Manuel Castells

A HORA DO GRANDE RESET

"Nem a Ciência pode salvar-nos da barbárie ultraliberal. Sobreviver como espécie exigirá uma 'reencarnação colectiva' no mundo pós-pandemia: novas formas de viver, pensar e organizar a Economia. É isso, ou nostalgia masoquista", escreve Manuel Castells, sociólogo, em artigo publicado por OutrasPalavras. A tradução é de Simone Paz /IHU

Nunca imaginamos isso. Ninguém imaginou. E ainda parece um pesadelo do qual vamos acordar ao amanhecer. É claro que, algum dia, vai acabar. Quanto mais nos ajudarmos entre todos, mais cedo vai acabar. E isso inclui todos aqueles que tiram proveito da tragédia em prol de seus interesses. Deixemos de lado nossas diferenças, já já acertaremos as contas.

Nunca tínhamos enfrentado uma ameaça do tipo, nem sequer com a gripe de 1918, porque, hoje em dia, a globalização e a trama de economias, culturas e pessoas têm uma repercussão em tempo real para qualquer barbaridade cometida em qualquer canto do planeta, como aconteceu com os mercados de espécies selvagens. Humanos predadores, se protejam de vocês mesmos. Nem nossos extraordinários avanços científicos e tecnológicos conseguem nos salvar da nossa imensa estupidez. Por isso, se sobrevivermos, não voltaremos ao mesmo. E, se voltarmos, a pandemia vai retornar, a mesma ou outras, até que ocorra um reset daquilo que éramos.

Só existe futuro se pensarmos numa reencarnação coletiva da nossa espécie. Isso não tem nada a ver com o mofado debate ideológico entre capitalismo e socialismo, porque até o socialismo real e palpável também já teve sua vez. Falamos em mudança de paradigmas. E algo do tipo está acontecendo. Por exemplo, essa pandemia deve deixar claro que a saúde, incluindo a higiene pública e a saúde preventiva, é nossa infraestrutura de vida. E que não vamos poder viver apoiados de forma permanente no heroísmo de profissionais da saúde, que adoecem dia após dia por falta de equipamentos de proteção.

Teremos de investir, com prioridade, na saúde pública, porque a particular serve para aquele que serve — e, em situações de emergência, deve ser absorvida pela pública. Esse investimento é quantitativo e qualitativo, em termos de materiais, aparelhos hospitalares, atenção primária, educação à população, pesquisa, remuneração dos sanitaristas e formação de médicos, enfermeiros e profissionais da saúde, de modo geral, com faculdades e escolas melhor preparadas para acolher um grande leque de vocações para o serviço

Fica evidente, agora, para além do sistema de saúde, a necessária prioridade do setor público na organização da economia e da sociedade. E não se trata de estatizar, porque cada fórmula de defesa do interesse público deve se adaptar às características de cada sociedade. Da mesma forma que a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial exigiram romper com o fundamentalismo do mercado para proteger os direitos sociais e a vida, de modo geral, mas conservando o dinamismo do mercado para tudo o que é útil. Da mesma forma, torna-se necessário revitalizar o setor público e reformá-lo, livrando-o da burocracia e da politicagem.

Por exemplo, pudemos constatar a hipocrisia social e institucional no âmbito do respeito aos idosos, que são abandonados em situações extremamente precárias quando as famílias não conseguem mais tomar conta deles. Em parte, pela privatização das casas de repouso, o que demonstra que a lógica de ambição não combina com cuidados que são caros em funcionários e equipamentos. Mas, também, nas casas de repouso públicas, pois os cortes orçamentários e a negligência de muitas instituições acabaram abandonando nossos idosos à sua própria sorte, como vimos no altíssimo número de mortes registradas nesses autênticos campos de extermínio, durante a pandemia. Somente uma grande intervenção — não somente em gastos, mas em gestão — pode evitar que isso ocorra novamente.

A pergunta imediata é: como pagar. É evidente que com novos impostos e com um aumento da produtividade. Não temos outra opção. Mas isso não quer dizer mais impostos para as pessoas, e sim, obter recursos lá onde se concentra o 75% da riqueza mundial, isto é, dos mercados financeiros globais e as grandes multinacionais que evadem impostos legalmente, precisamente, graças à sua mobilidade fiscal e administração da papelada jurídica. Aplicando, também, o aumento da produtividade, que envolve recursos humanos, isto é, setor público; ciência (de novo, setor público); infraestrutura tecnológica (parcerias público-privadas); e a transformação empresarial por meio da aplicação de novos conhecimentos e tecnologia na gestão das empresas. Além disso, deve-se adentrar o complexo território da produtividade e eficiência do setor produtivo, desde a administração, até a educação.

Porém, o maior reset, é aquele que está acontecendo em nossas cabeças e vidas. É termos percebido a fragilidade de tudo o que acreditávamos garantido, da importância dos afetos, do recurso da solidariedade, da importância do abraço — e que ninguém vai nos tirar, porque mais vale morrer abraçados do que viver atemorizados. É sentir que o desperdício consumista no qual gastamos erroneamente nossos recursos não é necessário, pois não precisamos mais do que uns comes e bebes com os amigos na varanda. Sabiam que as escandalosas transferências multimilionárias do mundo do futebol acabaram? E não por isso os Messi do mundo vão parar de jogar, porque o futebol corre pelas veias deles.

O reset necessário é um portal para uma nova forma de vida, outra cultura, outra economia. É bom que o valorizemos, pois a alternativa a ele é a nostalgia masoquista de um mundo que se foi para não voltar. A vida segue, mas outra vida. Depende de nós torná-la maravilhosa.

Edição 157, Abril 2020

Branko Milanović

TRUMP E O TRIUNFO DEFINITIVO DO NEOLIBERALISMO

Há aqueles que se queixam que Trump, nesta crise, carece da compaixão humana mais elementar. Ainda que tenham razão no diagnóstico, não conseguem entender a origem desta falta de compaixão. Como qualquer proprietário rico, não acredita que seu papel seja demonstrar compaixão a seus assalariados, mas, ao contrário, decidir o que deveriam fazer e, inclusive, se tiver a oportunidade, baixar seus salários, obrigá-los a trabalhar mais ou descartá-los sem compensação”, escreve Branko Milanović, economista sérvio-americano e professor da Universidade de Nova York, em artigo publicado por Letras Libres. Tradução do Cepat /IHU

As sociedades modernas capitalistas estão construídas sobre uma dicotomia. No espaço político, as decisões são tomadas (ou devem ser tomadas) seguindo um princípio de igualdade, onde a voz de todos conta igual e a estrutura do poder é plana. No espaço econômico, o poder é ostentado pelos proprietários do capital, as decisões são ditatoriais e a estrutura do poder é hierárquica. Sempre foi muito complicado manter o equilíbrio nesta dicotomia.

Às vezes, os princípios políticos de igualdade nominal costumam se intrometer no espaço econômico para limitar o poder dos proprietários: os sindicatos, a habilidade de processar empresas, as regulamentações contra a discriminação, a contratação e a demissão. Em outras ocasiões, é a esfera econômica que invade a política: os ricos são capazes de comparar políticos e impor as leis que desejam.

A história do capitalismo pode ser entendida rapidamente como a luta entre estes dois princípios: é o princípio democrático que se “exporta” da política para governar também a economia ou é o princípio hierárquico das organizações empresariais que invade a esfera política? Na social-democracia, geralmente, era o do primeiro. No neoliberalismo, o segundo.

O neoliberalismo justificou e promoveu a introdução de princípios puramente econômicos e hierárquicos na vida política. Ainda que tenha mantido a pretensão de igualdade (uma pessoa, um voto), a erodiu graças à habilidade dos ricos em selecionar, financiar e eleger os políticos que se simpatizam com seus interesses. O número de livros e artigos que documentam o poder político crescente dos ricos é enorme. Não resta qualquer dúvida de que é o que vem ocorrendo, há quarenta anos, nos Estados Unidos e em muitos outros países.

A introdução das regras de comportamento empresariais na política traz como consequência que os políticos deixem de ver as pessoas que governam como concidadãos e comecem a vê-las como empregados. Os empregados podem ser contratados e demitidos, podem ser humilhados e menosprezados, exauridos, enganados e ignorados.

Antes da chegada de Trump ao poder, a invasão do espaço político pelas regras de comportamento econômicas foi mantida oculta. Existia a pretensão de que os políticos tratavam as pessoas como cidadãos. A bolha explodiu com Trump. Incapaz de aplicar a sutileza da dialética democrática, não viu nada de ruim em aplicar regras empresariais à política. Provinha do setor privado e de setores especialmente inclinados à pilhagem, como o mercado imobiliário, as apostas e Miss Universo, e pensou com razão – apoiado pela ideologia neoliberal – que o espaço político é simplesmente uma extensão da economia.

Muitos acusam Trump de ignorante. Mas acredito que esta é uma maneira equivocada de olhar as coisas. Talvez não esteja interessado na constituição estadunidense, nem nas regras complexas que regulamentam a política em uma sociedade democrática, pois, conscientemente ou intuitivamente, acredita que não deveriam importar ou inclusive existir. As regras com as quais está familiarizado são as regras das empresas: “Está demitido!”, uma decisão puramente hierárquica, baseada em um poder consagrado pela riqueza e sem o controle de qualquer outro tipo.

Ao introduzir a economia na política, os neoliberais causaram muito dano ao valor “público” da tomada de decisões e à democracia. Levaram muitos países a um estágio inferior ao das sociedades governadas por déspotas egoístas. Mancur Olson, em sua famosa distinção entre governantes nômades e sedentários, conta a anedota de um camponês siciliano que apoia o governo déspota de um só homem porque o governante tem um “interesse muito amplo”. Para manter seu poder e maximizar as receitas por impostos, deve ter um interesse na prosperidade de seus súditos. É algo diferente, e muito melhor, segundo Olson, que um bandido nômade que, como os invasores mongóis, tem interesse apenas na extração temporal de seus súditos.

Por que um governante neoliberal é melhor que um déspota com um “interesse muito amplo”? Justamente porque carece desse “interesse muito amplo”, em sua ordem política, e não vê a si mesmo como parte dele. Em vez disso, é o dono de uma empresa enorme chamada, nesse caso, Estados Unidos da América, onde decide quem deve fazer o quê.

Há aqueles que se queixam que Trump, nesta crise, carece da compaixão humana mais elementar. Ainda que tenham razão no diagnóstico, não conseguem entender a origem desta falta de compaixão. Como qualquer proprietário rico, não acredita que seu papel seja demonstrar compaixão a seus assalariados, mas, ao contrário, decidir o que deveriam fazer e, inclusive, se tiver a oportunidade, baixar seus salários, obrigá-los a trabalhar mais ou descartá-los sem compensação. Ao se comportar assim com seus supostos compatriotas, simplesmente está aplicando a uma área chamada “política” os princípios que aprendeu e usou, durante muitos anos, nos negócios. Trump é, pois, o melhor estudante do neoliberalismo, porque aplica seus princípios sem dissimulação.

Federico Rampini

A SEGUNDA PANDEMIA

"À medida que o custo da Grande Depressão se torna visível e concreto, também em termos de vidas humanas, é possível que os EUA decidam não querer seguir uma estratégia chinesa: também porque das medidas draconianas aplicadas por Xi Jinping, não conhecemos os danos colaterais". O comentário é de Federico Rampini, jornalista italiano, publicado por La Repubblica. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

A segunda pandemia está chegando, devemos enfrentar e curar essa também. Chama-se Grande Depressão e terá um número de vítimas paralelo ao do vírus. Nos Estados Unidos, ninguém mais usa o termo recessão porque é muito brando. As previsões para o desastre econômico foram atualizadas. Elas variam do cenário da Oxford Economics mencionado no New York Times, que prevê uma queda de 12% do PIB no segundo trimestre, ao da Goldman Sachs duas vezes mais pessimista: menos 24% do PIB de abril a junho. A própria Goldman Sachs estima que em uma semana, quando os dados de desemprego de março forem divulgados, haverá mais dois milhões de desempregados apenas nos EUA. No final do ano, os estadunidenses desempregados poderiam ultrapassar os 16 milhões. Mas o secretário do Tesouro, Steve Mnuchin, no Congresso, apresentou hipóteses inclusive mais alarmantes: a taxa de desemprego saltaria de 3,5% atual para 20%.

Esses números fazem empalidecer a lembrança da última grande crise experimentada pelas nossas gerações, a de 2008-2009: foi coisa pequena em comparação com o que está prestes a desabar sobre nós. O único precedente comparável é a Depressão de 1929-1933, quando a economia perdeu um terço de sua riqueza e o desemprego subiu para 25%. No entanto, a Depressão da década de 1930, embora tenha causado um sofrimento terrível, teve um desenvolvimento "em câmera lenta" em comparação com a crise atual: a atual nos atinge com um choque imediato, devido às medidas drásticas que bloqueiam muitas atividades econômicas. Mesmo assumindo que 2020 termine bem e que a emergência sanitária termine em doze meses (um cenário do Center of Disease Control, a autoridade sanitária dos EUA, que implica um milhão de mortes), o PIB terá perdido 8,4% e a economia estadunidense terá sofrido um empobrecimento de 1.800 bilhões.

As bolsas já destruíram 30% de seu valor, e isso não é um dano que afeta apenas os ricos com poupanças investidas em ações: uma parte dos fundos de pensão está vinculada a esses índices. Além disso, por trás da queda dos mercados financeiros, há a expectativa de uma cadeia de falências empresariais, inadimplência de títulos, falências em setores que vão do transporte aéreo ao turismo, do petróleo à logística. As demissões já começaram e os primeiros a sofrer são os mais pobres e precários, aqueles 34 milhões de trabalhadores com contratos temporários ou precários. A crise econômica também matará. Não se morre apenas de Covid-19.

Uma megarrecessão sempre arrasta consigo um aumento de mortes por doenças, suicídios, dependência de drogas, alcoolismo, violência doméstica; bem como uma deterioração geral das condições de saúde. Uma nação já aflita por patologias de massa, como obesidade e diabetes, sofrerá mais se comer pior ainda e se os hospitais se concentrarem em outras doenças. Por esse motivo, a resposta ao dano econômico já está sendo organizada, de maneira mais eficaz e rápida do que no setor sanitário ou em outros países.

A Casa Branca e o Congresso negociam uma maximanobra para mitigar o choque econômico, cujo valor total acabará por ficar entre 1.400 e 2.100 bilhões de dólares. Trata-se de um esforço de gastos públicos que varia de 7% a 10% do PIB: o dobro do que o governo Obama disponibilizou para enfrentar a crise de 2008-2009; e um múltiplo do que os países da zona do euro estão fazendo. A medida mais imediata será o envio para a maioria dos estadunidenses de cheques do tesouro, 2.400 dólares por casal mais 500 dólares por cada filho dependente. Muitas ajudas serão destinadas a pequenas empresas, desde que não demitam. Mas já começou um repensamento crítico sobre as medidas restritivas que paralisam a economia.

Elas vão desde o progressista Washington Post, que pede ao governo "que não estrangule a sociedade para salvá-la", até o conservador Wall Street Journal, que se pergunta se "a cura não é pior que o mal". À medida que o custo da Grande Depressão se torna visível e concreto, também em termos de vidas humanas, é possível que os EUA decidam não querer seguir uma estratégia chinesa: também porque das medidas draconianas aplicadas por Xi Jinping, não conhecemos os danos colaterais.

Edição 156, Março 2020

Eduardo Crespo

O CORONAVÍRUS E O CURSO DA HISTÓRIA

Após a Revolução Industrial, a humanidade conseguiu superar com orgulho os limites ao crescimento econômico e demográfico que outrora era imposto pela natureza, como os derivados do lento crescimento da produtividade agrícola, do desmatamento e a salinização da irrigação. Desde então, a população mundial se multiplicou por 7, e as condições de vida melhoraram em todos os continentes. Não é improvável que a natureza comece a nos cobrar a fatura com novas restrições”, escreve Eduardo Crespo, doutor em economia, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, em artigo publicado por El Economista. A tradução é do Cepat /IHU

Nos próximos anos, o fulminante surto de coronavírus que hoje assola o planeta será objeto de vários estudos econômicos, políticos, biológicos, médicos, epidemiológicos e filosóficos. Quais características tinham as organizações sociais que melhor responderam à crise? Quais fracassaram terminantemente? Que condições ambientais favoreceram ou dificultaram a propagação da pandemia? Quais foram suas consequências econômicas e políticas?

Os economistas e cientistas políticos poderiam classificar o coronavírus como um exemplo de “Cisne Negro”, de acordo com a terminologia de Nassim Taleb, um evento surpresa de enorme impacto socioeconômico. Embora muitos analistas e cientistas nas últimas décadas advertiram sobre os perigos inerentes à propagação de novas epidemias, poucos imaginavam que em poucas semanas algo semelhante poderia desmoronar os preços das ações, paralisar as economias, precipitar o fechamento das fronteiras nacionais e colocar países inteiros em quarentena. Vários alertavam para os perigos do terrorismo antes de 2001, mas poucos imaginavam algo semelhante ao atentado às Torres Gêmeas. Não é impossível que uma enorme erupção vulcânica produza a derrubada dos fundamentos de nossa civilização capitalista, mas não são muitos os que fazem planos contemplando um acontecimento assim no futuro próximo.

Impossível de prever, as epidemias de grandes proporções tiveram consequências sociais altamente relevantes. A história ambiental ensina que as pestes, juntamente com as guerras, o crescimento populacional, as revoluções e a crescente sofisticação no uso de fontes de energia são talvez as principais forças que guiam o curso da História. Os vírus foram um agente fundamental, por exemplo, na conquista europeia do mundo. Estudos recentes indicam que a queda do Império Romano se deve, entre outras coisas, a uma combinação de mudança climática (uma pequena era glacial) com uma disseminação generalizada de pestes. Um padrão semelhante foi observado durante a conquista da América pelos espanhóis.

Jared Diamond se pergunta em sua obra mestre, “Armas, Germes e Aço”, como foi possível acontecer que 142 espanhóis derrotassem o poderoso Império Inca. Embora em sua explicação combine vários fatores, os germes teriam desempenhado um papel fundamental para desorganizar e desmoralizar os nativos. Estima-se que aproximadamente 95% dos nativos americanos pereceram por causa das pestes trazidas por europeus e africanos, circunstância agravada com as guerras e as condições extremas de exploração.

Outro marco na história foi a Peste Negra, de meados do século XIV, que acabou com aproximadamente um terço da população da Eurásia, ajudada pela mudança climática, o comércio e a “globalização” das trocas que da China até a Inglaterra garantiam os mongóis. Alguns intérpretes apontam que em certas regiões da Europa a peste depositou o próprio Feudalismo no cemitério da história, ao empoderar camponeses e trabalhadores urbanos.

A grande crise do século XVII, que segundo algumas estimativas reduziu a população da Eurásia em mais um terço, teria coincidido com outra pequena era glacial que reduziu a produtividade da agricultura, causou uma maior instabilidade nas colheitas e, sobretudo, espalhou epidemias em vários lugares, plantando as sementes da mudança social que um século depois germinariam com a Revolução Industrial. Na era moderna, o único fato comparável ao atual surto é a Gripe Espanhola de 1918, ainda que naquele caso seus efeitos na economia mundial não foram facilmente distinguíveis das consequências da Primeira Guerra.

Essas histórias sugerem dois ensinamentos. Um é que, embora pagaremos a conta, a pandemia é uma a mais de várias e eventualmente passará. A outra é que, quando a crise do coronavírus acabar, não deveria ser considerada um cisne negro de improvável repetição. As epidemias costumam reaparecer com alguma regularidade cíclica, ainda que com letalidade decrescente ao impactar populações com maior imunidade, sendo que os mais vulneráveis geralmente perecem durante os primeiros ciclos.

A epidemia de coronavírus assusta em razão de sua dinâmica vertiginosa, mas também existem outras catástrofes em desenvolvimento que não são atendidas com tanta decisão pela política pública mundial. A maior parte da comunidade acadêmica aponta que o aquecimento global, a instabilidade climática, o derretimento das calotas polares e o desaparecimento de milhares de espécies, caso não impere uma intervenção global decisiva, terão consequências irreversíveis na vida do planeta. O Chifre da África, nesse momento, sofre uma massiva invasão de gafanhotos-do-deserto que se acelera com o aquecimento, e cujas repercussões poderiam ser catastróficas.

Após a Revolução Industrial, a humanidade conseguiu superar com orgulho os limites ao crescimento econômico e demográfico que outrora era imposto pela natureza, como os derivados do lento crescimento da produtividade agrícola, do desmatamento e a salinização da irrigação. Desde então, a população mundial se multiplicou por 7, e as condições de vida melhoraram em todos os continentes. Não é improvável que a natureza comece a nos cobrar a fatura com novas restrições.

Armando Matteo

'ACABOU O TEMPO DE REFLECTIR SOBRE O FUTURO DA IGREJA. É HORA DE PÔR AS MÃOS NA IGREJA DO FUTURO'

Hoje, o adulto não representa mais o polo de cumprimento e de maior esplendor da existência humana: ele literalmente eclipsou, comprometendo radicalmente a transmissão da fé entre gerações. É dessa conscientização que parte o livro “Pastoral 4.0: eclissi dell’adulto e trasmissione delle fede alle nuove generazioni” [Pastoral 4.0: eclipse do adulto e transmissão das fés às novas gerações], o novo ensaio (Àncora Editrice, 118 páginas) de Armando Matteo, professor de teologia fundamental na Pontifícia Universidade Urbaniana. Nesse livro, o autor propõe uma verdadeira revolução copernicana da mentalidade pastoral. Desse texto, publicamos alguns grandes trechos tirados da sua introdução, intitulada “A loucura da pastoral”. O texto foi publicado em Avvenire. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Atribui-se a Albert Einstein uma observação tão elementar quanto iluminadora sobre o ritmo das coisas do mundo, que se adapta bem para delinear sinteticamente o cenário da Igreja atual; em particular, o cenário ligado ao contexto ocidental.

A observação é a seguinte: “Não podemos pretender que as coisas mudem se continuarmos fazendo sempre as mesmas coisas”. Pensando bem, é exatamente isso: esperar obter resultados diferentes, colocando sempre em ação os mesmos mecanismos, no fim das contas, nada mais é do que uma pura pretensão ou, para sermos ainda mais precisos, uma autêntica forma de loucura.

Somente quem está tomado por uma espécie de loucura, na verdade, pode imaginar anunciar para a estação seguinte a venda de feijões (os resultados novos), enquanto joga na terra do seu campo sementes de ervilha (as ações de sempre). No entanto, com relutância, é claro, não podemos deixar de reconhecer que está em curso uma verdadeira “loucura” por parte de inúmeros operadores pastorais.

O caso mais surpreendente diz respeito à administração dos sacramentos, autênticos gols contra do sistema eclesial contemporâneo. Mais do que representar o cumprimento de um caminho de crescimento dentro da experiência de fé, eles se tornaram, há muito tempo, na grande maioria dos casos, a celebração pública do início de um caminho fora da vida eclesial, até aquele ponto, de algum modo, frequentada por aqueles que se preparavam para o sacramento, mesmo que apenas para participar dos encontros preparatórios.

Todos sabem, por exemplo, o que acontece com a administração da Crisma, ou seja, que é precisamente com ela que é sancionada oficialmente a ruptura entre as novas gerações e a Igreja, mas nada de substancial mudou nos últimos anos a esse respeito, exceto talvez a convicção cada vez mais enfraquecida ao longo do tempo com que se anunciava e ainda se anuncia que se quer mudar alguma coisa.

Enquanto isso, continuamos administrando esse sistema falimentar, esperando sempre resultados diferentes: ou seja, que, com a Crisma, podemos celebrar o ingresso dos jovens no mundo dos fiéis adultos. Algo de análogo poderia ser dito, e é dito ainda mais amargamente, sobre o modo em que é celebrada a Eucaristia dominical: aqueles que a frequentam são cada vez menos e, em geral, cada vez mais velhos, assim como é cada vez menor a atenção que a comunidade dirige a esse momento central da vida de fé (pense-se que, em alguns lugares, continuam sendo previstas até quatro eucaristias dominicais, enquanto os participantes de cada missa continuam diminuindo vistosamente), e são cada vez mais velhos os cantos executados, quando são executados.

Repete-se corretamente e com correta convicção que a Eucaristia dominical é o coração da vida de fé, e que tudo deve ter nela o seu início e o seu cumprimento. Também se desejaria que essas palavras correspondessem a pelo menos alguma coisa na realidade, mas o que se faz para que as palavras se tornem realidade é quase sempre e apenas repetir o que levou a fazer com que a realidade se afaste cada vez mais das convicções de fé a respeito da Eucaristia dominical: os mesmos horários, os mesmos cantos (quando há), a mesma preparação, o mesmo estilo homilético; em suma, a mesma pretensão inédita de que as coisas ocorram de maneira diferente, embora fazendo as coisas de 50 ou 60 anos atrás.

Os exemplos de tal “loucura” da pastoral, no sentido referido acima de esperar resultados diferentes com a implementação dos mesmos mecanismos, obviamente poderiam se multiplicar. O ponto delicado da questão é agora, que, nessas condições, certamente não se anuncia um bom futuro para a Igreja. O fosso cada vez mais largo, que a comunidade dos fiéis deve registrar entre o seu universo e o das novas gerações, por um lado, e o fosso não menos largo das mulheres que transitam para uma maturidade, por outro (apenas para citar os “casos sérios” da pastoral das últimas décadas) também deveriam constituir, para os operadores pastorais, aquela pedra de tropeço capaz de abrir os olhos para a estranha loucura que parece dominar o seu agir. E deveriam levá-los a uma irrefutável evidência: a “mentalidade pastoral” que governa a vida diminuta das paróquias não está mais à altura da situação.

Para resultados diferentes, são necessárias ações diferentes; para ações diferentes, é necessária uma mentalidade diferente. Mas as coisas nem sempre são assim. Basta pensar, por um momento, na timidez com que a questão da irrelevância da fé para as novas gerações foi abordada no Sínodo dos Bispos celebrado em outubro de 2018.

De qualquer forma, é precisamente na direção da necessária renovação da mentalidade pastoral que, desde os seus primeiros passos, o magistério do papa Francisco se move corajosamente. Falando com autoridade no Congresso Internacional da Pastoral das Grandes Cidades, em novembro de 2014, ele afirmou que o primeiro e talvez o mais difícil desafio que a comunidade cristã tem diante de si hoje é o de “implementar uma mudança de mentalidade pastoral”. E exclamou com força: “É preciso mudar!”.

Trata-se, aliás, de uma atitude totalmente coerente com o seu olhar sobre a realidade. Há algum tempo, na verdade, ele convida os fiéis a reconhecerem que não se encontram diante de uma época de mudança, mas sim de uma verdadeira e radical mudança de época; à qual só pode corresponder uma mudança de mentalidade pastoral igualmente verdadeira e radical.

Em suma, não é apenas da base da realidade das coisas, mas também do alto do magistério petrino que chega um claro sinal aos responsáveis locais da pastoral. Eles devem reconhecer que agora é o tempo de parar de crer no absurdo de poder obter resultados diferentes – pensamos aqui apenas em uma presença renovada e em um protagonismo eclesial renovado das novas gerações ou em eucaristias dominicais capazes de marcar o tempo e o espaço das comunidades que as celebram – levando em frente as coisas que sempre são feitas.

Para um futuro possível da Igreja, pelo menos no Ocidente, portanto, está em jogo uma necessária mudança da mentalidade pastoral, isto é, do modo com que se organiza a sua vida e o seu agir em geral, em um tempo e em um lugar: e, portanto, neste tempo e neste lugar. A esse respeito, é preciso repetir as palavras do pontífice: é preciso mudar (...).

O contexto em que os cristãos se veem testemunhando a sua fé, de fato, não concede mais qualquer confiança a uma antropologia do crescimento, do amadurecimento, do tornar-se grandes e adultos. As novas coordenadas econômicas, os progressos da medicina e da farmacêutica, a emancipação e as inúmeras conquistas culturais e sociais das mulheres, dos homossexuais e de todos os grupos marginalizados, sem esquecer a incrível longevidade masculina, tornam as atuais gerações adultas as primeiras verdadeiramente apaixonadas por esta terra.

Para elas, a Salve Regina, com as suas lágrimas, o seu exílio, os seus gemidos talvez seja agora apenas uma citação piedosa; e um certo cristianismo, totalmente ligado à angústia da morte, à imitação da paciência do Cristo sofredor e da Virgem sempre obediente, à necessidade da contenção da frustração e ao recurso permanente ao sentimento de culpa para despertar sentimentos de responsabilidade e de dívida em relação a Deus, à Igreja e à sociedade, de repente, se tornou simplesmente irreal.

O ponto é que realmente estamos diante de uma total transvaloração dos valores fundantes e fundamentais da existência humana. No lugar de uma antropologia que atribuía ao adulto o pleno cumprimento do humano, impôs-se aquilo que o papa Francisco chamou, de modo pertinente, de “adoração da juventude”. O humano jovem é hoje o único modelo e o modelo único de toda vida plenamente desejável.

Assim, vem à tona uma antropologia jovem, “anti-age”, leve, poderosa, inocente, que pode ser fácil e constantemente reescrita, que é cada vez mais exaltante e que, dia após dia, conquista o coração dos homens e das mulheres do nosso tempo.

Certamente, como toda coisa humana, tal antropologia da juventude não é desprovida de efeitos colaterais e de custos, que afetam particularmente as novas gerações. De fato, onde todos desejam permanecer jovens para sempre, os jovens de verdade – isto é, de 20 e 30 anos de idade – são literalmente expulsos. Assim como não é desprovida de efeitos discutíveis para os próprios adultos: pensemos apenas no poder de persuasão que a publicidade tem em relação a eles, que os leva a acreditar, por exemplo, na existência de produtos capazes de parar a perda de cabelos e consequentemente, a gastar de modo imbecil uma grande quantidade de dinheiro, quando todos sabem que a única realidade realmente capaz de parar a queda de cabelo é o chão!

E esse é apenas um pequeno sintoma daquela economia da imbecilidade que hoje governa muitas coisas na existência daquele que já foi “homo sapiens sapiens” antes de se tornar “homo iuvenis iuvenis”!

De todos os modos, essa é a mudança de época com a qual é preciso fazer as contas: os adultos não querem crescer, e os jovens não podem crescer; os adultos se imbecilizam, e os jovens se deprimem.

Para corresponder a isso, este ensaio propõe aos fiéis uma “revolução copernicana” da mentalidade pastoral: do compromisso voltado a acompanhar as novas gerações para entrar naquela que foi a “porta estreita” da condição adulta, à qual a religião cristã, precisamente, oferecia palavras de encorajamento e de consolação, a um trabalho de acompanhar a todos (crianças, jovens, adultos e também alguns anciãos) a se cruzarem com Jesus – o homem da alegria e a alegria do homem.

Portanto, a proposta, em extrema síntese, é a de passar de um cristianismo da consolação para um cristianismo do enamoramento: isto é, graças ao qual possamos nos enamorar de Jesus e nos tornar cristãos.

Tal passagem também é recomendada, além disso, a fim de redescobrir a aventura e a plenitude que só podem brotar de uma existência plenamente doada à felicidade alheia; e, portanto, a fim de dar novo crédito ao processo de humanização ligado ao acesso à condição adulta da existência, mesmo que nas condições socioeconômicas em transformação mencionadas acima.

De facto, existe uma beleza secreta de ser adulto que deve ser “salva” a todo o custo, para não perder a humanidade do humano. O adulto é alguém que conhece as fadigas da vida e, mesmo assim, não deixar de crer nos recursos da vida e de testemunhar essa confiança para as gerações que vêm ao mundo. E tal beleza necessária do ser adulto é revelada levada a cumprimento precisamente por Jesus: ninguém foi mais humano do que ele, porque ninguém foi mais adulto do que ele. Ou seja, mais doado à felicidade alheia e mais crente na vida até mesmo dentro da morte.

Trata-se, então, de reconhecer a necessidade de passar de uma Igreja que, por meio dos seus ritos e das suas promessas, dá luz à vida (ainda supostamente dura) dos adultos para uma Igreja que dá à luz os adultos que hoje são necessários, graças ao encontro com Cristo; aqueles adultos que hoje são necessários para a vida boa das novas gerações e, mais em geral, do mundo inteiro. Por isso, acabou o tempo de reflectir sobre o futuro da Igreja. É hora de pôr as mãos na Igreja do futuro.

Robert Ellsberg

RELEMBRAR O PADRE E POETA REVOLUCIONÁRIO ERNESTO CARDENAL

Na juventude, a vida de Ernesto Cardenal tomou um rumo diferente. Em 1957, ele entrou no mosteiro trapista de Nossa Senhora do Getsêmani, no Kentucky, EUA, onde seu mestre de noviços foi ninguém menos do que Thomas Merton. O relato é de Robert Ellsberg, editor-chefe da Orbis Books. Ele é autor de “Blessed Among Us: Day by Day with Saintly Witnesses” (Liturgical Press). O artigo foi publicado em America. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Provavelmente a imagem mais famosa de Ernesto Cardenal, padre, poeta, místico e revolucionário nicaraguense que morreu no último dia 1º de março de 2020, aos 95 anos de idade, surgiu quando o Papa João Paulo II visitou Manágua em 1983. Cardenal, usando sua conhecida blusa camponesa, tirou a boina preta, ajoelhou-se na pista e tentou beijar o anel do papa.

Daniel Ortega acompanha o Papa João Paulo II, que levanta o dedo para o ministro da Cultura e padre Ernesto Cardenal, durante as cerimônias de boas-vindas no aeroporto de Manágua, Nicarágua, em março de 1983 (Foto: America)

Na época, Cardenal era um dos quatro padres, incluindo seu irmão, o jesuíta Fernando Cardenal, que atuavam no governo revolucionário sandinista. Cardenal acreditava que seu serviço como ministro da Cultura era uma extensão do seu ofício sacerdotal, mas o papa discordava. Ele apontou dramaticamente o dedo para Cardenal e disse-lhe para “regularizar” a sua situação.

Foi uma prévia do resto da viagem do papa. Ele não escondeu a sua oposição ao governo sandinista – com sua pretensão de integrar ideais cristãos e marxistas – e a sua desaprovação àqueles cristãos, como Cardenal, que viam na revolução nicaraguense uma oportunidade de promover uma “caridade eficaz”.

Quando os padres do governo rejeitaram o pedido do papa de que deixassem seus cargos, eles foram privados de suas faculdades sacerdotais. No caso de Cardenal, essa situação continuou até o ano passado, quando sua saúde declinou rapidamente, e o Papa Francisco lhe concedeu a “absolvição de todas as censuras canônicas”, e ele pôde celebrar a missa novamente pela primeira vez em mais de 30 anos.

Anteriormente, Cardenal havia ficado famoso pelas liturgias que ele celebrava na comunidade de artesãos e camponeses que fundou no arquipélago nicaraguense de Solentiname. Após as leituras do Evangelho, ele convidava os camponeses a compartilhar suas próprias reflexões sobre o texto.

Durante o período da ditadura de Anastasio Somoza, não era difícil para esses camponeses ver os paralelos com a mensagem de boas novas de Jesus aos pobres e o seu confronto com os poderes corruptos do seu tempo. Cardenal gravou e publicou esses diálogos no livro “El Evangelio en Solentiname”. Como uma janela para reflexões semelhantes que ocorrem em comunidades de base na América Latina, esses livros se tornaram clássicos na literatura emergente da teologia da libertação.

Isso não passou despercebido a Somoza, que enviou sua Guarda Nacional para destruir a comunidade. Muitos dos jovens camponeses pegaram em armas e se juntaram à insurreição sandinista. Com a bênção de Cardenal.

Na juventude, Cardenal havia participado de um levante malogrado contra a ditadura do general Somoza pai. Mas, depois, sua vida tomou um rumo diferente. Em 1957, ele entrou no mosteiro trapista de Nossa Senhora do Getsêmani, no Kentucky, EUA, onde seu mestre de noviços foi ninguém menos do que Thomas Merton. Dois anos depois, por motivos de saúde, ele deixou o mosteiro. Mas sua profunda relação com Merton continuou.

Merton apoiou sua decisão de buscar a ordenação na Nicarágua e incentivou a decisão de Cardenal de iniciar a comunidade experimental em Solentiname. Um livro sobre suas correspondências mostra como Merton se identificou profundamente com Cardenal, um poeta e místico, e com seus sonhos de ser pioneiro em um novo modelo de monasticismo. O próprio Merton sonhava em se juntar a Cardenal. Mas isso não era para ser.

Antes de morrer, Merton escreveu uma introdução a um livro profundamente lírico de reflexões de Cardenal, “'Vida en Amor”. Merton escreveu: “Em um tempo de conflito, ansiedade, guerra, crueldade e confusão, o leitor pode se surpreender ao ver que este livro é um hino de louvor ao amor, dizendo-nos que ‘todas as coisas se amam’”.

Os leitores mais familiarizados com o apoio posterior de Cardenal a uma insurreição de guerrilha podem ficar especialmente surpresos. No entanto, até o fim de sua vida, Cardenal acreditava que essa obra refletia o seu consistente esforço para reconhecer a presença amorosa de Deus na natureza, no cosmos e em todas as dimensões da vida.

Como ele escreveu nas linhas de abertura: “Todas as coisas se amam. A natureza toda tende a um ‘tu’. Todos os seres vivos estão em comunhão com outros ... A condensação de um floco de neve é o mesmo que a explosão de uma estrela nova. O besouro abraçado à sua bola de esterco e o amante abraçado à sua amada: tudo na natureza é um querer abaixar os próprios limites, transpassar as barreiras da individualidade, encontrar um ‘tu’ a quem se entregar, transformar-se no outro”.

Essas ideias continuaram em livros de poesia traduzidos em várias línguas. Mas, com a revolta contra Somoza, Cardenal se sentiu chamado a traduzir a poesia em ação em favor dos pobres e oprimidos. No contexto nicaraguense, ele escreveu que “uma luta não violenta não é prática”. Gandhi, afirmou, “estaria de acordo conosco”. Nem todos concordavam.

Daniel Berrigan, SJ, por exemplo, se envolveu em uma troca de cartas acalorada com Cardenal, citando uma declaração que ele fez aos membros da esquerda antiguerra que foram tentados pela violência: “A morte de um único humano é um preço muito alto a ser pago pela reivindicação de qualquer princípio, por mais sagrado que seja”.

Cardenal permaneceu no cargo até 1987. Três anos depois, após os anos de guerra com os Contras, os sandinistas sofreram uma derrota eleitoral. Cardenal voltou a Solentiname, retomando sua poesia e continuando a promover a causa dos pobres. Mas, em 1994, junto com seu irmão Fernando, ele rompeu publicamente com o Partido Sandinista, protestando contra as tendências cada vez mais autoritárias de seu líder, Daniel Ortega, que havia retornado ao poder. “Acho que um capitalismo autêntico seria mais desejável do que uma revolução falsa”, disse ele.

Nos últimos dois anos, quando jovens se levantaram em protesto contra o governo sandinista, Cardenal falou em seu apoio. Infelizmente, a disputa com Ortega o seguiu até o túmulo. A missa fúnebre de Cardenal na Catedral Metropolitana de Manágua, no dia 3 de março, foi interrompida por militantes sandinistas que o denunciaram raivosamente como traidor. Certamente pouquíssimos dos que interromperam a missa, se é que algum deles, estavam vivos há 40 anos, quando jovens de Solentiname foram mortos na insurreição ou quando esse padre teve que escolher entre celebrar a missa ou manter a fé na causa do povo.

Eu nunca conheci Ernesto Cardenal, embora ele tenha desempenhado um papel misterioso na minha vida. Em 1976, logo após ingressar na comunidade Catholic Worker, eu escrevia cartões de agradecimento aos muitos colaboradores que apoiavam o trabalho. Eu fiquei surpreso ao ver que um deles era do famoso padre-poeta de Solentiname. Eu havia lido algumas de suas poesias e escrevi para expressar a minha apreciação particular por um poema que ele havia escrito após a morte de Merton.

Para minha surpresa, ele respondeu com uma carta manuscrita, pedindo-me para “ir até Maryknoll” e procurar seu amigo, o Pe. Miguel D’Escoto, fundador da Orbis Books (mais tarde, D’Escoto se juntaria a ele como um dos padres do governo revolucionário, atuando como ministro das Relações Exteriores). Na verdade, eu não segui esse conselho. Mas foi a voz do destino.

Dez anos depois, eu entrei para a equipe da Orbis, onde trabalho desde então e onde tive mais uma oportunidade de me corresponder com o Pe. Cardenal, reeditando seus livros e publicando as memórias de seu irmão Fernando*, “Faith and Joy: Memoirs of a Revolutionary Priest” [Fé e alegria: memórias de um padre revolucionário], publicado pouco antes da sua morte em 2016.

Ao saber da morte de Ernesto, lembrei-me da introdução de Merton a “Vida en Amor”, na qual ele elogiava seu ex-noviço como alguém que apontava para a renovação da Igreja na América Latina, para um futuro no qual os cristãos algum dia alcançariam a libertação temporal, “mas também aprenderiam a cantar hinos à vida e ao amor”. E isso trouxe à minha mente as frases do poema que Cardenal dirigiu mais tarde a seu ex-mestre de noviços:

Amado é o tempo da poda

Serão dados todos os beijos que não pudeste dar

As romãs estão florescendo

Todo amor é um ensaio da morte.

Jesus del Mazo Martínez

A POLUIÇÃO SILENCIOSA QUE ESTÁ ROUBANDO A NOSSA FERTILIDADE

A queda na capacidade reprodutiva das populações animais e humanas pode estar no mesmo nível da ameaça da mudança climática sobre o futuro do planeta”, escreve Jesus del Mazo Martínez, do Centro de Pesquisas Biológicas Margarita Salas, em artigo publicado por El Diario. A tradução é do Cepat /IHU

A cada ano, a qualidade e a concentração de espermatozoides por ejaculação masculina são reduzidas em 1%. É o que diz uma meta-análise sobre mais de 100 estudos publicados entre 1934-1996 que alertam para essa diminuição acumulativa nas populações de homens de diferentes áreas geográficas do planeta. O motivo? Tudo aponta para o efeito da exposição a “desreguladores endócrinos”.

O termo foi usado pela primeira vez nos anos 1990 para se referir a todas essas substâncias, artificiais ou naturais, poluentes ambientais, que interferem em algum aspecto do equilíbrio hormonal. Afetam o desenvolvimento e a função de diferentes células, gerando riscos para a saúde reprodutiva, a função da tireoide, o desenvolvimento neuronal, o crescimento e alguns tipos de câncer dependentes de hormônios, entre outros.

Estamos cercados

Atualmente, os desreguladores endócrinos estão onipresentes em nosso entorno em uma multidão de produtos de uso cotidiano. Isso inclui os plásticos das garrafas e recipientes, os pesticidas, os cosméticos, os lubrificantes industriais, os fungicidas, etc.

Segundo o último relatório da Organização Mundial da Saúde, cerca de 800 compostos são conhecidos ou suspeitos de interferir na síntese hormonal, em seus receptores e mecanismos de ação. E podem ser muito mais, porque dos mais de 100.000 produtos químicos presentes no meio ambiente, só foram estudados seus potenciais efeitos adversos em uma ínfima proporção.

O sistema endócrino desempenha sua função mediante a elaboração e secreção de uma série de substâncias chamadas hormônios que, ao se ligarem a receptores nas células-alvo, provocam uma resposta. Entre elas, aquelas que afetam a capacidade reprodutiva e o desenvolvimento sexual, como estrogênios, androgênios ou progestagênios.

Os desreguladores endócrinos podem interferir nessa armação de duas maneiras. Como os “agonistas” dos hormônios, que os “suplantam” ativando seus receptores, ou como “antagonistas”, que bloqueiam o receptor e impedem que o hormônio realize a sua função.

Menos é mais

Uma peculiaridade dos desreguladores é que, às vezes, “menos é mais”. Ou o que é o mesmo, sua ação pode ser maior em baixos níveis de exposição do que em altos níveis de exposição. O que passou a ser chamado de “efeito de baixa dose”.

Se levarmos em conta que, além disso, o habitual é que seres humanos e animais sejam expostos a vários compostos ao mesmo tempo (“efeito coquetel”) e que sua capacidade acumulativa é enorme, o impacto na saúde pública e animal é altamente preocupante. Tanto que a queda na capacidade reprodutiva das populações animais e humanas pode estar no mesmo nível da ameaça da mudança climática sobre o futuro do planeta.

E não só isso. O sistema hormonal também participa ativamente na regulação metabólica de gorduras, carboidratos e proteínas. Portanto, o desequilíbrio hormonal causado por exposições pré-natais em alguns desreguladores induz a alterações metabólicas que se traduzem em obesidade, outro dos males de nosso tempo. Se somarmos a isso que o acúmulo corporal dos desreguladores ocorre fundamentalmente em tecidos gordurosos, a espiral da obesidade e da acumulação se retroalimenta perigosamente.

A fertilidade em cheque

Uma boa parte dos desreguladores interfere nos hormônios envolvidos no desenvolvimento sexual e na formação de gametas em ambos os sexos. São poluentes reprotóxicos, muito perigosos quando a exposição começa no período pré-natal, dado que o desenvolvimento gonadal e a diferenciação das células germinativas se inicia em mamíferos na vida embrionária.

Conforme avançamos no início do texto, nos últimos 50 anos, a concentração e a qualidade dos espermatozoides foram reduzidas pela metade. Além disso, detectou-se um aumento das malformações em genitais e a prevalência de câncer de testículo. Em meu laboratório, detectamos que, em nível molecular, os desreguladores desregulam a expressão de mais de 2.000 genes testiculares que são chaves na formação de gametas funcionais.

Isso, sim, a maior parte dessas pesquisas sobre desreguladores foi realizada no sexo masculino, pois é mais fácil obter os espermatozoides e devido à enorme complexidade biológica da diferenciação dos oócitos durante o desenvolvimento feminino.

Ultimamente, começamos a apresentar um remédio. Do nosso laboratório e de muitos outros, foram iniciados estudos em modelos animais, utilizando métodos de cultivo ‘in vitro’ do ovário, a partir de estágios embrionários de desenvolvimento.

Outro dado preocupante é que o efeito de certos desreguladores pode ser transmitido transgeracionalmente. Ou seja, indivíduos não expostos diretamente podem manifestar alterações epigeneticamente transmitidas através de células germinativas parentais que estiveram expostas aos poluentes.

Tudo isso indica que precisamos de estudos mais aprofundados, além de uma regulamentação mais rigorosa desses reprotóxicos, se não queremos prejudicar nossa saúde reprodutiva.

Edição 155, Fev.º 2020

Umberto Gentiloni

QUANDO O SABER TEM CHEIRO DE LIBERDADE

"Compreender é impossível, mas conhecer é necessário", afirma Liliana Segre*, sobrevivente do Holocausto, citando Primo Levi, no discurso proferido na Universidade La Sapienza, Roma. "A cultura como um possível antídoto para o ódio, para o medo do diferente, para as discriminações que se movem facilmente das palavras aos fatos, "das tirinhas satíricas às leis contra os judeus". O retorno à vida não é simples nem dado como certo. O estudo "retomado com grande esforço" torna-se, assim, um percurso incessante "uma salvação para recuperar um lugar no mundo", para agarrar lembranças e momentos perdidos para quem "permaneceu, apesar de tudo, ávida por conhecimento". As palavras da senadora vão direto ao coração, traçando um caminho tortuoso de renascimento que acompanha o longo período do pós-guerra que temos às nossas costas", escreve Umberto Gentiloni, historiador italiano, professor de história contemporânea na Universidade La Sapienza de Roma, em artigo publicado por La Repubblica, comentando o discurso de Liliana Segre. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Liliana Segre coloca de lado as páginas de um texto preparado para um dia especial e fala como uma avó, levantado o olhar para os rostos dos estudantes que lotam a aula magna da Sapienza. Ela faz isso com emoção e participação, pesa as palavras, as memórias, as referências a momentos distantes da biografia de uma menina devastada pela violência da Segunda Guerra Mundial.

A inauguração do 717 ano acadêmico de fundação da Universidade é a ocasião para a concessão do Doutorado honoris causa em História da Europa à senadora Liliana Segre. No silêncio que acolhe suas palavras, a primeira referência leva à lição de Primo Levi "compreender é impossível, mas conhecer é necessário" e, a partir dessa frase, um itinerário de reflexões sobre o saber e suas extraordinárias virtudes, sobre a força do conhecimento, sobre o nexo entre liberdade e cultura.

Ela lembra com carinho e emoção um professor de história, um francês desconhecido encontrado em Auschwitz, um precioso interlocutor guardião de "instantes roubados ao horror" para falar sobre história, para aprofundar eventos do passado como se fosse possível voltar para trás, antes do final de um mundo de afetos e hábitos. Encontros entre prisioneiros para construir em um campo de concentração a comunicação possível entre um professor e uma aluna, arrancada da frequência diária de um programa da oitava série. Momentos inesquecíveis e preciosos "éramos livres como só se poder ser livres diante do conhecimento".

Uma liberdade perdida que reaparece inesperadamente. Como quando ela se encontra em uma sala na frente de uma amiga checoslovaca; "não sei que fim ela teve”, encontrada por acaso enquanto o corte de cabelo ceifava corpo e certezas de meninas inertes. Elas não sabiam se comunicar, aparentemente nenhuma língua em comum, mas depois, como que por magia, a referência ao latim, a poucas frases simples de uma civilização compartilhada que ainda podia abrir pontes e canais de comunicação: “Foi fantástico encontrar um idioma para nos comunicar, nos conhecer mesmo com poucas frases simples”. Uma descoberta inesperada, a força da razão que tenta se opor às razões da força, o saber clássico une e presenteia "duas horas de comunidade com uma garota desconhecida" marcada pelo mesmo terrível destino.

A cultura como um possível antídoto para o ódio, para o medo do diferente, para as discriminações que se movem facilmente das palavras aos fatos, "das tirinhas satíricas às leis contra os judeus". O retorno à vida não é simples nem dado como certo. O estudo "retomado com grande esforço" torna-se, assim, um percurso incessante "uma salvação para recuperar um lugar no mundo", para agarrar lembranças e momentos perdidos para quem "permaneceu, apesar de tudo, ávida por conhecimento". As palavras da senadora vão direto ao coração, traçando um caminho tortuoso de renascimento que acompanha o longo período do pós-guerra que temos às nossas costas.

A escolha pela vida na construção de uma Europa de paz, sinal de um novo tempo capaz de derrotar medos, destruição e lutos. Fazer parte de uma união de povos que caminha para a cooperação, o diálogo, o conhecimento mútuo. Não é um dado adquirido para quem veio depois. Para os mais jovens, repete insistentemente que o ódio aberto ou oculto continua sendo o principal alvo a ser derrotado: alimenta-se de medos e ignorâncias, atinge a liberdade de ciência e cultura ameaçadas por aqueles que erguem muros ou contraposições. Uma comunidade científica vai além das fronteiras de linguagens e pertencimentos, vive de trocas e encontros em busca de pistas de pesquisa, pontos de chagada comuns, verificações inspiradas no espírito crítico de quem quer conhecer para construir o futuro.

Nota IHU

*Liliana Segre é uma sobrevivente do Holocausto italiano, nomeada Senadora para a vida pelo Presidente Sergio Mattarella em 2018 por méritos patrióticos de destaque no campo social e que tem sido violentamente atacada por grupos da extrema-direita italiana.

CARTA DE GONZÁLEZ FAUS

AO PAPA SOBRE “QUERIDA AMAZÔNIA”

"Em tua cúria romana, irmão Francisco, há uma legião de presbíteros que vivem em celibato e não têm praticamente trabalho ministerial algum. Seria tão absurdo enviar todos esses padres da Cúria a regiões perdidas do Brasil, Peru, Chade ou Tehuantepec, para que aqueles cristãos pudessem ver cumprido seu direito a celebrar a eucaristia? A cúria romana poderia ficar ocupada por leigos fiéis (“viri probati” também), casados e pais de famílias. Porque nenhuma lei eclesiástica exige o celibato para trabalhar em escritório, por mais importante ou sagrado que seja o escritório. Seriam alguns excelentes “burocratas cristãos” (nessa expressão resignada e bem-humorada de um irmão nosso jesuíta, que passou toda sua vida como secretário)". A pergunta é de José Ignácio González Faus, espanhol, teólogo e jesuíta, em carta aberta ao papa Francisco sobre os críticos do Sínodo Pan-Amazônico, publicada por Religión Digital. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo/ IHU

Nem sequer sei se lerás esta carta. O estilo epistolar tornou-se para mim um gênero literário: porque imaginar um interlocutor me ajuda a se expressar.

Em qualquer caso, quis comentar um pouco tua recente decisão sobre a ordenação presbiteral de homens casados, a propósito do Sínodo da Amazônia. Mais que uma negativa, trata-se de uma não-decisão: não abriu a porta, porém tampouco a trancou. Suponho que por temor de um cisma nesta Igreja onde há um setor que não se cansa de te colocar travas nas rodas e que se viu ajudado esta vez por todo esse clamor midiático que dava a impressão de que isso era a única coisa que importava no tema da Amazônia. E também por todos aqueles aos quais já se referia Engels, em uma célebre carta sobre o socialismo nascente, em que dizia que enquanto aparece uma empresa nova, todos os frustrados recorrem a ela para usá-la em benefício próprio e não em favor dos destinatários dessa empresa.

Por todas essas razões tento te compreender. Posso presumir ademais de ter escrito algumas páginas de elogio ao celibato, reconhecendo também o enorme perigo de perseguição e concluindo que somente poderá dar um bom testemunho sobre o celibato aquele que humildemente se atreva a confessar que seu celibato lhe ensinou a amar.

A partir desta postura quis contribuir com algumas reflexões com a pretensão – tão estranha hoje – de que não valham pela autoridade das quais as disse (que neste caso é nula), mas sim pela verdade do que dizem.

1. Há uma frase do Evangelho que creio levar gravada na alma e são aquelas duras palavras de Jesus: “Hipócritas! Quebrantais a vontade de Deus porque vos apegais às tradições dos homens” (Mc 7, 6-8). Quando era jovem, e gostava mais de provocar, escrevi que essas palavras deveriam estar escritas na fachada de São Pedro do Vaticano, no lugar daquela “tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”...

Pois bem, quando releio essas palavras de Jesus, duas coisas me parecem evidentes: é vontade de Deus que todos os cristãos (também os da Amazônia) possam celebrar a eucaristia. O encargo aquele: “fazei isso em memória de mim” (Lc 22, 19) vale para todos os cristãos, sejam corubos ou piripkuras ou romanos. Por outro lado, a lei do celibato não é um mandato divino, mas sim uma tradição humana: venerável, mas uma tradição humana.

2. Também penso no conselho que te deu um bispo brasileiro quando te confiou o ministério de Pedro: “Não te esqueça dos pobres”. E vale agora o argumento que outras vezes se deram das posições mais conservadoras: lembrar-se dos pobres não é somente lembrar-se de seus direitos humanos pisoteados, mas também de que possam receber a Cristo. Se a norma do celibato é distinta no mundo dos pobres do que é em nosso mundo rico, não parecerá isso uma aplicação daquele celebérrimo discurso do bispo Bossuet sobre a eminente dignidade dos pobres na Igreja? Ali dizia o famoso orador: “no mundo os primeiros são os ricos, na Igreja os primeiros são os pobres; no mundo os favores e privilégios são para os ricos, enquanto que na Igreja de Jesus Cristo as graças e bênçãos são para os pobres”...

Estamos muito longe disso, infelizmente. Porém ao menos não viria mal que algum gesto bem sonoro nos recordasse.

3. E senão, em plano um pouco mais esquisito e bem-humorado, resta outra solução para que aqueles pobres não fiquem privados da eucaristia. Em tua cúria romana, irmão Francisco, há uma legião de presbíteros que vivem em celibato e não têm praticamente trabalho ministerial algum. Inclusive vários deles são bispos sem igreja, contra a proibição expressa do Concílio da Caledônia (já no 451). Tenta-se eludir essa proibição assinalando a uma Igreja inexistente. A qual parece uma verdadeira hipocrisia, que já Bento XVI quis eliminar, porém a cúria não permitiu.

Pois bem: seria tão absurdo enviar todos esses padres da Cúria a regiões perdidas do Brasil, Peru, Chade ou Tehuantepec, para que aqueles cristãos pudessem ver cumprido seu direito de celebrar a eucaristia? A cúria romana poderia ficar ocupada por leigos fiéis (“viri probati” também), casados e pais de famílias. Porque nenhuma lei eclesiástica exige o celibato para trabalhar em escritório, por mais importante ou sagrado que seja o escritório. Seriam alguns excelentes “burocratas cristãos” (nessa expressão resignada e bem-humorada de um irmão nosso jesuíta, que passou toda sua vida como secretário).

Parece tudo isso um disparate? Talvez sim. Porém o melhor é que onde há problemas extremos há de se buscar soluções extremas, e onde as coisas estão mal repartidas há que se procurar reparti-las bem. Em qualquer caso poderia ser uma excelente ocasião para que homens como o cardeal Sarah ou o cardeal Müller demonstrassem o sentido ministerial do celibato.

4. E voltando ao que é sério: todos cremos estar buscando aqui a vontade de Deus. Por que então não colocar toda a Igreja em estado de oração para pedir o que queria Santo Inácio: “que conheçamos e cumpramos a Sua santa vontade”? Quando pedimos isso na oração, está comprovado que essa petição sim que é escutada.

Um abraço bem fraterno e bem reverente, por virtual que seja.

Gilles Lipovetsky

AS SOLUÇÕES VIRÃO DA INTELIGÊNCIA, NÃO DA MORAL”

Gilles Lipovetsky (Millou, França, 1944), filósofo, sociólogo, professor da Universidade de Grenoble e membro do Conselho de Análises da Sociedade, está durante toda essa semana em Madri, convidado pelo Instituto de Empresa, Universidade que há alguns meses está integrando as Humanidades no campo dos negócios. A reportagem é de Jacinta Cremades, publicada por El Cultural. A tradução é do Cepat /IHU

O filósofo convidado pelo Instituto de Empresa é uma referência no mundo cultural, desde que publicou, em 1983, seu famoso ensaio “A Era do Vazio”, no qual questionava a mudança de rumo da nossa sociedade atual. Segundo Lipovetsky, uma das terríveis consequências desse momento que chama de hipermodernidade é que todos nós, manipulados pela sociedade de consumo, globalizada e capitalista, somos vítimas do individualismo. Onde encontrar marcas de identidade quando a cultura se desmorona, desaparece diante de nossa inatividade, como um desenho na areia?

Lipovetsky, que sempre argumentou que o pós-modernismo não existiu, por meio de uma aula magistral intitulada “O reino do individualismo hipermoderno”, que se conecta com vários de seus mais famosos títulos, como “Os Tempos Hipermodernos” (2004), “A felicidade paradoxal” (2007), “A tela global. Mídias Culturais e Cinema na Era Hipermoderna” (2009), “A cultura-mundo” (2011) e “A globalização ocidental: controvérsia sobre a cultura planetária” (2012), centrou sua fala no individualismo. “O ser humano se vê arrastado por uma sociedade que perdeu seus valores diante de uma prepotência do indivíduo que chega ao extremo do narcisismo”, afirma Lipovetsky, que chama isso de “a segunda revolução individualista”.

Em seus últimos ensaios, como “A estetização do mundo” (2015) e “Da leveza: Rumo a uma civilização sem peso” (2016), Lipovetsky põe em questão o conceito de pós-modernidade convertido em hipermodernidade que se apresenta sob o signo do excesso, tanto na economia como na cultura, na arte e no esporte, um problema universal que mudou a vida das pessoas.

Ao longo de sua conferência, o professor se baseou em seis pontos para demonstrar essa transformação, iniciando todos eles a partir de uma imagem mitológica. O primeiro, o culto ao hedonismo, que não é outro senão o desejo de sentir prazer através da sociedade de consumo que transformou nossa forma de viver, nossos valores e nossa cultura. “A sociedade cristã concebia o prazer como pecado. Hoje em dia, qualquer coisa nos convida a desfrutar desta vida, prevalecendo uma cultura epicurista”.

Lipovetsky articulou seu segundo postulado com o culto ao corpo, que se manifesta tanto através da comida como do esporte, e na preocupação com a saúde que nos leva a nos anteciparmos às doenças. Neste último aspecto, o filósofo vê uma clara dominação dos esportes individuais, que não buscam nem a competição, nem o sentido de equipe, mas as sensações. Proliferam os spas, as massagens e a cirurgia estética. “Esse neoindividualismo é uma nova forma de narcisismo, já que o próprio corpo se torna o objeto mais precioso”. Em tudo isso, Lipovetsky vê um paradoxo, uma vez que “nossas normas se opõem. Podemos desfrutar, mas ao mesmo tempo somos bombardeados por avisos de saúde. Não coma carne, faça esportes, etc. Assim, o indivíduo fica ansioso”.

O que o leva ao terceiro ponto de sua palestra, o culto ao psicológico, que considera “uma supervalorização do pensamento individual. A educação das crianças, por exemplo, cultiva a expressão quando antes lhes era pedido para se calar. Isso vai contra uma educação baseada em princípios, e os pais agora têm novos medos, novas ansiedades, ao impedir ou educar de forma rigorosa seus filhos, com medo de que parem de amá-los”, explica Lipovetsky. “O indivíduo deseja se expressar e ser ouvido. Antes havia a religião para responder às perguntas, mas agora a busca de significado leva a humanidade a se refugiar nas terapias alternativas e psicológicas que se proliferam”, afirma.

O quarto culto é o da conexão, argumenta o filósofo, que alerta para o estranho paradoxo resultante do facto de que na sociedade de hoje “o indivíduo precisa de aprovação. Por um lado, somos uma geração que cultiva a autonomia, mas, ao contrário, não podemos viver sem o olhar do outro. Quanto mais progride o individualismo, menos nos suportamos sós. Isso acarreta, explica, “o fracasso das grandes ideologias políticas, muitas delas desenvolvidas durante os séculos XIX e XX. As pessoas se encontram, hoje em dia, sem confiança em seus líderes, sem acreditar em suas promessas”.

Aproximando-se do final de sua conferência, Lipovetsky explanou o culto à autonomia individual e, para isso, remonta ao século XVIII, que viu nascer e prosperar ideias como liberdade e igualdade, embora sem chegar realmente a colocá-las em prática. Segundo o escritor, é nesse momento que nasce o individualismo atual. “O estabelecimento desses princípios de igualdade e liberdade foram únicos em toda a história da Humanidade e despertou em nós esse desejo de ser os atores de nossas vidas”, afirmou. No entanto, Lipovetsky criticou aqueles que lamentam que o passado tenha sido melhor, porque “não sou contra a revolução tecnológica e as transformações do indivíduo, muito pelo contrário”.

Para concluir, o filósofo também se referiu ao problema da mudança climática e reconheceu que tudo indica que, em vinte anos, seremos tantos seres humanos na Terra que teremos que inventar novas formas de nos alimentar. Diante deste grave problema de sustentabilidade, Lipovetsky apela à nossa inteligência, pois “embora tentemos, é pouco provável que o ser humano atue de forma moral. Acredito na inteligência humana e em encontrar novas formas de lidar com as paixões. Inventar outras paixões, como dizia Espinosa? Talvez. Somente a inteligência humana trará as soluções. Não a moral”.

Enzo Bianchi

NO CAMINHO, O SENTIDO DA VIDA

Caminhar é decisivo para nós, humanos, mas, infelizmente, descobrimos isso tarde, assim como percebemos tarde que a vida é um caminho a percorrer dia após dia, rumo a uma meta que nem sempre temos claramente diante de nós. A reflexão é do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado em La Repubblica. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Caminhei muito na minha vida e agora que estou velho não posso mais caminhar muito, mas paradoxalmente cresceu muito em mim o desejo de fazer caminhadas.

Caminhar significa colocar um pé na frente do outro e ir para outro lugar, deixando que o próprio corpo se mova e percorra um trajeto marcado por outros que caminharam antes de nós, até deixarem as suas pegadas.

“Caminhando se abre o caminho”, intuiu bem o grande poeta Machado. Caminhar é decisivo para nós, humanos, mas, infelizmente, descobrimos isso tarde, assim como percebemos tarde que a vida é um caminho a percorrer dia após dia, rumo a uma meta que nem sempre temos claramente diante de nós. Portanto, não reflito sobre o caminho dos peregrinos pelos caminhos sagrados que levam a Compostela, Roma ou Jerusalém.

Hoje, caminhar não é mais uma prática quotidiana necessária, porque recorremos ao carro ou aos meios públicos. Antigamente, no entanto, ao longo da estrada, sempre havia pessoas que caminhavam com as suas malas, com as suas “trouxas” e com os seus pesos para carregar, às vezes esmagadores.

Hoje, os médicos recomendam dedicar pelo menos meia hora por dia para caminhar rapidamente, porque é um exercício benéfico para a saúde do corpo, mas, na minha opinião, é sobretudo para a saúde da mente e do espírito. Até porque, se caminharmos velozmente, fazemos isso sozinhos e, então, na concretude de dar um passo atrás do outro, silêncio e solidão se tornam fecundos, estimulados por todos os sentidos acesos pelo caminhar.

Não por acaso o filósofo grego Diógenes repetia, diante das interrogações mais difíceis: “Solvitur ambulando”, “caminhando, o problema será resolvido”. E, quando se caminha a dois, então a conversa, os olhares cruzados, tornam-se linguagens repletas de cumplicidade, afetividade e ternura.

Caminhar com um outro nunca é inútil, nunca é tempo perdido, mas ai de fazer uma caminhada, no meio da natureza, eliminando o silêncio com músicas ou vozes inseridas diretamente nos fones de ouvido. Só no silêncio, de facto, pode-se ter a experiência de que “nada é sem voz”, como escrevia Paulo de Tarso. Sim, quando eu caminho e não permaneço distraído ou fechado em mim, cada coisa tem uma mensagem para me oferecer ou, melhor, ela mesma se torna uma palavra.

É assim que emergem presenças inesperadas, perguntas essenciais e também ocorrem diálogos imaginários com uma raposa que nos observa ou com um corvo que salta na nossa frente... Ao caminhar, especialmente no campo e na floresta, há uma adesão do corpo à terra que nos faz sentir mais do que nunca terrestres. Caminhar sobre esta terra é imergir em um fluxo de vida em que somos cocriaturas, todas convivendo – humanos, animais, árvores, musgos, flores, pedras –, e, nesse rio, cabe a nós fazermo-nos a voz e o pensamentos delas, em uma comunhão real.

Dizia-me um monge de Athos: “Caminhei muito na minha vida e, agora que estou velho e paralisado nas pernas, posso dizer para mim mesmo: ‘Senta-te e caminha!”.

Edição 154, Janeiro 2020

Yanis Varoufakis

IMAGINEMOS UM MUNDO SEM CAPITALISMO

2019 foi um péssimo ano para os anticapitalistas, porém também foi para o capitalismo. É possível avançar a uma sociedade realmente liberal, pós-capitalista, tecnologicamente avançada? Como pode se desenvolver uma ‘imaginação pós-capitalista’ nesta nova década? O artigo é de Yanis Varoufakis, economista e ex-ministro de Finanças da Grécia, publicado em inglês por Project Syndicate, e em espanhol por Nueva Sociedad, janeiro de 2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

Enquanto a derrota do Partido Trabalhista de Jeremy Corbyn no Reino Unido, em dezembro passado, subtraiu o ímpeto da esquerda radical, particularmente nos Estados Unidos (onde estão as primárias para as eleições presidenciais), o capitalismo recebeu críticas de lugares inesperados. Milionários, executivos de negócios e até a imprensa financeira reuniram intelectuais e líderes comunitários em uma sinfonia de arrependimentos pela brutalidade, insensibilidade e insustentabilidade do capitalismo rentista. A incapacidade de continuar fazendo negócios como sempre foram feitos parece ser uma ideia difundida nas salas de reunião das maiores corporações do mundo.

Cada vez mais pressionados e justificadamente culpados, os ultra-ricos (ou pelo menos os mais razoáveis entre eles) sentem-se ameaçados pela avassaladora precariedade em que a maioria está afundando. Como Karl Marx previu, eles formam uma minoria com poder supremo, incapaz de liderar sociedades polarizadas que não podem garantir uma existência digna àqueles que não possuem ativos.

Presos em seus condomínios fechados, os mais inteligentes dos ricos defendem um novo "capitalismo de partes interessadas" e até pedem impostos mais altos para a sua classe. Eles entendem que a democracia e o estado redistributivo são a melhor apólice de seguro possível. Mas, infelizmente, ao mesmo tempo, eles temem que, como classe, esteja na sua natureza evitar pagar o prêmio.

Os remédios propostos variam de insignificantes a ridículos. A ideia de que os conselhos de administração não pensem somente no valor para os acionistas seria maravilhosa se não fosse um detalhe: a remuneração e a designação das reuniões são de decisão exclusiva dos acionistas. Além disso, os apelos para limitar o poder exorbitante das finanças seriam grandes se não fosse o fato de a maioria das empresas responder a instituições financeiras que possuem a maior parte de suas ações.

Confrontar o capitalismo rentista e criar empresas para as quais a responsabilidade social não é apenas um golpe publicitário exige nada menos do que reescrever o direito das empresas. Para entender a magnitude da tarefa, é conveniente voltar ao momento da história em que o surgimento de ações negociáveis transformou o capitalismo em arma e nos perguntamos: estamos prontos para corrigir esse "erro"?

Esse momento ocorreu em 24 de setembro de 1599. Em um prédio de madeira nos arredores de Moorgate Fields, não muito longe de onde Shakespeare estava ocupado terminando Hamlet, foi fundada a Companhia das Índias Orientais, um novo tipo de empresa cuja propriedade era subdividida em pequenos fragmentos que podiam ser comprados e vendidos livremente.

As ações negociáveis possibilitaram o surgimento de empresas privadas maiores e mais poderosas que os Estados. A hipocrisia fatal do liberalismo era usar os elogios dos virtuosos açougueiros, padeiros e cervejeiros do bairro para defender os piores inimigos do livre mercado: as empresas das Índias Orientais, que nada sabem sobre comunidades ou ética, que decidem preços, devoram concorrentes, governos corruptos e transformar liberdade em farsa.

Então, no final do século XIX, com a formação das primeiras megaempresas interconectadas (como Edison, General Electric e Bell), o gênio divulgado pela ação negociável deu outro passo. Como nem os bancos, nem os investidores tinham dinheiro suficiente para alimentar o motor dessas novas megaempresas conectadas, o megabanco apareceu, na forma de um cartel global de bancos e fundos escuros, cada um com seus próprios acionistas.

Um nível nunca antes visto de dívida foi criado para transferir valor para o presente, com a esperança de que os lucros seriam suficientes para pagar no futuro. O resultado lógico: megafinanças, megacapital, megafundos de pensão, megacrises financeiras. Os fracassos de 1929 e 2008, a ascensão incontrolável da grande tecnologia e os outros ingredientes do atual mal-estar contra o capitalismo tornaram-se inevitáveis.

Neste sistema, as vozes que se erguem para pedir um capitalismo mais amável são somente modas passageiras, sobretudo na realidade posterior a 2008, que deixou claro que megaempresas e megabancos têm o controle total da sociedade. A menos que estejamos dispostos a anular a criação de 1599, a ação negociável, não haverá mudanças apreciáveis na distribuição atual do poder e da riqueza. Para imaginar como poderia ser na prática superar o capitalismo, há que se reconsiderar o modelo de propriedade das corporações.

Imaginemos que as ações fossem como um direito a voto, que não se pode comprar, nem vender. Assim como ao entrar na universidade recebe-se o carnê da biblioteca, uma equipes novas nas empresas receberiam uma única ação por pessoa que garantisse o direito a emitir um voto em eleições abertas a todos os acionistas, nas quais se decidirão todos os assuntos da corporação: desde as questões de gestão e planejamento até a distribuição de lucros líquidos e bonificações.

De repente, a distinção entre lucros e salários não faria mais sentido, e as empresas são reduzidas a um nível que estimula a concorrência no mercado. Para cada pessoa nascida, o banco central concede automaticamente um fundo fiduciário (ou uma conta pessoal de capital), onde um dividendo básico universal é periodicamente depositado. Quando a adolescência chega, o banco central adiciona a uma conta corrente gratuita.

Os trabalhadores mudam de empresa com total liberdade, levando consigo o capital de seu fundo fiduciário, que eles podem emprestar à empresa em que trabalham ou a outros. Como não há necessidade de turbinar ações com a emissão de capital fictício em larga escala, as finanças tornam-se deliciosamente entediantes (e estáveis). Os Estados eliminam impostos pessoais e de vendas e apenas tributam lucros, terras e atividades corporativas que são prejudiciais ao bem público.

Mas nós já sonhamos o suficiente. A ideia é sugerir, neste novo ano, as maravilhosas possibilidades de uma sociedade verdadeiramente liberal, pós-capitalista e tecnologicamente avançada. Aqueles que se recusarem a imaginar isso serão escravos do absurdo que meu amigo Slavoj Žižek apontou: ter mais facilidade para conceber o fim do mundo do que imaginar a vida após o capitalismo.

Ademir Guedes Azevedo

O SER ERÓTICO DE JESUS

"Contemplar a força erótica de Jesus, a partir de uma ótica universal, nos faz pensar onde hoje ele se encontra. Se uma das dimensões do Eros é a atração pelos corpos, temos que aceitar que no caso de Jesus os corpos que o atraíam eram os pobres, os famintos, os prisioneiros, os publicanos, as viúvas, os leprosos, os cegos, os coxos", escreve Ademir Guedes Azevedo, padre, missionário passionista e mestrando em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.

Já escrevi em outros artigos sobre a energia erótica. Trata-se de uma força espectacular que cada um possui. O Eros não pode ser reduzido à ideia de desejo carnal. É o impulso vital de estar com outra parte que nos complete e nos traga sentido para viver. É o antídoto para a depressão, para o vírus da autorreferência que a atual sociedade do cansaço gerou. Mas não é apenas isso.

A tradição filosófica de matriz grega ensinou que o Eros está directamente ligado à instrumentalização do outro para a satisfação do desejo sexual. Por outro lado, a tradição judaica sublinha o encontro de duas partes opostas (homem e mulher) que se completam. No relato da criação, Deus viu que algo estava faltando: criou uma companheira para o homem. Assim, ambos passaram a se desejar de tal forma que seria absurdo um viver sem o outro. Eles se completam pelo Eros que Deus pôs dentro de cada um deles. Desde então, são destinados a se desejarem para sempre.

Porém, para Jesus Nazaré, o Eros não é nem a satisfação do desejo sexual (mundo grego) nem para completar as partes opostas (mundo judaico). Isto só entendemos a partir do modo de agir de Jesus, o qual inaugura outra perspectiva. Ele purifica o Eros de todo interesse de instrumentalização do corpo humano, a partir da compaixão. Veja-se aqui o caso do bom samaritano: ele enfaixa as feridas e cuida do corpo do outro com óleo. Com Jesus, o corpo do outro é para ser cuidado, é um fim em si mesmo, nunca um meio para alcançar um simples prazer sexual, como faziam os gregos em seus famosos banquetes. A energia erótica de Jesus o conduz rumo a uma alteridade universal. Ele se encontra com homens, mulheres, judeus, pagãos, gentios, pecadores, enfim toda a humanidade. Falar do ser erótico de Jesus significa contemplarmos um coração universal, onde há espaço para todos. O Ágape (a cruz), contudo, é a concretização do impulso erótico de Jesus Nazaré.

O aspecto erótico que vemos em Jesus vai muito mais além do que estamos habituados a pensar. O seu grande desejo incontrolável, ou seja, aquilo que ele pensava dia e noite sem conseguir desapegar-se e que foi sua única paixão; ou então, para usar uma expressão conhecida, “o seu primeiro amor” foi absolutamente este: O Reino de Deus que seria instaurado unicamente no fazer e viver a vontade do seu Pai. Jesus era fissurado, louco, apaixonado, gamado exclusivamente nisso. Para Ele, toda a sua existência, desejos e amor maior era trabalhar para isso. Em uma passagem do Evangelho, vemos como Ele se apresenta possuído por sua energia erótica, ao afirmar: “Eu vim para trazer fogo sobre a terra e como gostaria que já estivesse em chamas!” (Lc 12, 49). Esse fogo é o Reino de Deus, o projeto libertador inédito, que não se confundia com nenhuma forma de império até então existente.

O Eros que Jesus traz em seu ser é um divisor de águas. Se para os gregos, sempre o corpo do outro era usado para o prazer sexual, critério decisivo no assim chamado inebriamento divino, Jesus ao contrário usa o seu Eros para dar o próprio corpo para a salvação de todos. Sua energia erótica ultrapassa qualquer interesse pessoal.

Contemplar a força erótica de Jesus, a partir de uma ótica universal, nos faz pensar onde hoje ele se encontra. Se uma das dimensões do Eros é a atracção pelos corpos, temos que aceitar que no caso de Jesus os corpos que o atraíam são os pobres, os famintos, os prisioneiros, os publicanos, as viúvas, os leprosos, os cegos, os coxos. São estes os corpos que ele mesmo quis desejar de modo preferencial. O ser erótico de Jesus o fez mover-se para a compaixão com essas categorias sempre abandonadas por sua sociedade. Para irmos mais a fundo, era o Espírito Santo que nutria o Eros de Jesus. A partir daqui podemos entender melhor o programa de vida dele, narrado por Lucas: “O Espírito do Senhor está sobre mim, me ungiu para anunciar boas novas aos pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos, e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos” (Lc 4,18).

O que temos que aprender é que não existe ágape sem Eros, uma vez que este é o desejo incontrolável para servir e ser solidário. Você já reflectiu sobre o poder de sua energia erótica? Como você a usa? Que tal aprender a usá-la a partir de Jesus Nazaré? O mundo será bem melhor, sem dúvidas! 

Massimo Faggioli

IGREJA CATÓLICA COMEÇA SEUS PRÓPRIOS “LOUCOS ANOS VINTE”

"A crescente influência dos media sociais na elaboração de narrativas sobre a Igreja Católica faz parte da virtualização, da modificação da realidade e da despersonalização da identidade religiosa na última década". A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado em La Croix International. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU. Segundo o teólogo e historiador, "Dois papas" é poderoso porque não captura algo que ocorreu, mas sim algo que ainda está em andamento – um pontificado que foi terminado canonicamente, mas que ainda não entrou realmente para a história".

“Nós estamos vivendo em uma era de staccato, não de legato”, escreveu George Gershwin em 1925. “Devemos aceitar isso”, disse ele. O compositor estadunidense, filho de imigrantes russos, falava pela sua época: os anos 1920 e 1930.

Talvez a Igreja Católica, notória por se adaptar bastante tardiamente às revoluções ao longo da história (como as revoluções científica, democrática, sexual e mediática), finalmente tenha chegado à sua própria era de staccato.

É uma era marcada por interrupções cada vez mais perceptíveis em cada transição. Não mais guiada pelo legato, a transição suave e ininterrupta de uma nota para outra, ela agora segue o padrão do staccato, um ritmo interrompido pelo silêncio ou pelo espaço entre as notas.

Catolicismo staccato

Na última década, muitos dos laços eclesiais e eclesiásticos do catolicismo se desfizeram. Nos anos 2010, interrupções inegáveis e às vezes até violentas esclareceram várias coisas. Por exemplo, muitos membros do cristianismo global de hoje, incluindo os católicos, vivem com medo da violência e da perseguição. E a posição da Santa Sé nos assuntos internacionais não pode mais ser assumida como evidente por nenhuma grande potência mundial, como demonstrado pela evolução das relações do papado com os Estados Unidos e a China.

A crise dos abusos sexuais na Igreja Católica é agora de escala global. O envolvimento direto de cardeais e autoridades vaticanas nesses crimes sexuais e em seu encobrimento forçou uma reavaliação do sentido da imunidade papal. Ela estava intacta desde a resolução da “questão romana” entre a queda dos Estados pontifícios em 1870 e a criação do Estado da Cidade do Vaticano em 1929.

A crise dos abusos também se tornou uma parte da luta do cristianismo contra a redefinição massiva, radical e sem precedentes dos papéis de gênero e da sexualidade. Por causa dessa crise, assim como pelos escândalos financeiros envolvendo bispos e cardeais, “a maior vítima da década [até mesmo na Igreja] foi a confiança”.

Isso também se deve ao modo como alguns meios de comunicação relataram e comentaram o pontificado do papa Francisco, mostrando que os problemas da era pós-eclesial e pós-cristã são muito pequenos em comparação com os da era da informação pós-confiança e pós-verdade.

A crescente influência dos media sociais na elaboração de narrativas sobre a Igreja Católica faz parte da virtualização, da modificação da realidade e da despersonalização da identidade religiosa na última década.

Papado romano, canonizado e abdicado

Os anos 2010 também foram a década em que Francisco canonizou três papas que atuaram durante o Concílio Vaticano II (1962-1965) e o período pós-conciliar inicial. Ele declarou formalmente santos João XXIII e João Paulo II em 2014. Depois, reconheceu a santidade de Paulo VI em 2018.

Papas canonizando seus antecessores recentes – de facto, canonizando o próprio papado em si mesmo – remontam ao século XX, algo que nem mesmo “a impossível ironia do Vaticano I” poderia imaginar. E provavelmente é algo do qual a Igreja se afastará, especialmente por causa das revelações contínuas de que papas e cardeais recentes encobriram ou simplesmente descartaram a existência do abuso sexual clerical.

Mas a maior história dos católicos de 2010 ainda não acabou. É a luta contínua da Igreja de Roma para se “reinicializar” institucionalmente cerca de sete anos depois que Bento XVI se tornou o primeiro papa em seis séculos a renunciar voluntariamente ao papado.

O principal precursor desse novo staccato católico é o papa Francisco e a sua própria jornada rumo à eleição como bispo de Roma. O fluxo interrompido é traçado pelo “noviciado” pré-papal do cardeal Jorge Mario Bergoglio entre 2005 e 2013; o início da transição (ainda inacabada) desencadeada pelo impressionante anúncio de renúncia de Bento em fevereiro de 2013; depois, o conclave, um mês depois, que elegeu Francisco; e, finalmente, a onda de oposição teológica, institucional e política ao seu pontificado, especialmente por parte de certas forças nos EUA.

A Igreja entre factos e ficção

Não é por acaso que, nesta década, também houve um ressurgimento de filmes ambientados no Vaticano, com foco em papas históricos e semificcionais. Eles vão de cinebiografias como o da vida anterior de Bergoglio, intitulado “Pode me chamar de Francisco”, a ficções ao estilo Fellini, como o exagerado “The Young Pope”. Eles também incluem outros gêneros, como o documentário comovente de Wim Wenders sobre Francisco, “Um homem de palavra”.

Quem está no auge agora é “Dois papas”, que está exatamente correto ao enquadrar este momento católico entre as confissões mútuas de dois tipos diferentes de catolicismo. Situado no meio dos conclaves de 2005 e 2013, o filme imagina um conjunto fictício de encontros entre o papa Bento e o cardeal Bergoglio para explicar os eventos históricos reais que ocorreram na Capela Sistina em 2013.

“Dois papas” é poderoso porque não captura algo que ocorreu, mas sim algo que ainda está em andamento – um pontificado que foi terminado canonicamente, mas que ainda não entrou realmente para a história.

Reformas no Vaticano e na vida da Igreja global

A primeira grande mudança dos “Loucos Anos Vinte” da Igreja provavelmente será a reforma da Cúria Romana com a publicação da constituição apostólica Praedicate Evangelium. Essa promete ser a reforma curial mais significativa em pelo menos um século.

Mas o staccato papal vai muito além da Praça de São Pedro. Já está levando a novos modos de se fazer e de ser Igreja que muitos católicos provavelmente nunca imaginaram que fossem possíveis.

Por exemplo, o papa Francisco introduziu o método e a mentalidade da sinodalidade, começando pelas duas assembleias do Sínodo dos Bispos sobre o matrimônio e a família em 2014 e 2015. Esses dois encontros levaram a outras assembleias sinodais – uma sobre os jovens (2018) e a mais recente sobre a região amazônica (2019).

Francisco libertou os ensinamentos da Igreja sobre matrimônio, família e sexualidade de uma camisa de força ideológica e foi além de qualquer um de seus antecessores ao internacionalizar o Colégio dos Cardeais, especialmente em contraste com a re-europeização do catolicismo por Bento XVI.

O papa argentino também reabilitou defensores da teologia da libertação e abriu um novo debate sobre o papel das mulheres na Igreja. Isso foi abordado recentemente no suplemento feminino do jornal do Vaticano, o L’Osservatore Romano, que publicou artigos de teólogas que Roma (e os bispos italianos) consideravam antigamente como personae non gratae.

A emergente compreensão da modernidade por parte do catolicismo

Este momento atual de transição – a partir dos anos 2010 que agora terminam e a nova década que acaba de começar – pode ser distinguido por um novo imaginário católico da modernidade semelhante aos anos 1920.

Há um século, o catolicismo estava lidando com os desafios ideológicos e políticos pós-Primeira Guerra Mundial, com uma transição do dualismo para a dialética. “Depois da Grande Guerra, o catolicismo passou a ser imaginado por certas elites culturais e intelectuais não apenas como completamente compatível com a ‘modernidade’, mas, de um modo ainda mais enfático, como a expressão mais verdadeira da ‘modernidade’”, escreveu o jesuíta Stephen Schloesser em seu livro de 2005 intitulado “Jazz Age Catholicism”.

“Suas verdades eternas foram capazes de uma adaptação infinita a circunstâncias em constante mudança”, escreveu o historiador jesuíta estadunidense. “Em uma década que lamentou a dizimação de seus jovens, o catolicismo poderia ser jovem para sempre”, observou.

Estamos entrando nos “Loucos Anos Vinte”, mais uma vez, no século XXI. Como escreveu Gershwin em 1925, “estamos vivendo uma era de staccato, não de legato. Devemos aceitar isso. Mas isso não significa que, a partir dessa expressão muito staccata, algo bonito não possa ter evoluído”. Até mesmo na vida da Igreja.

José Luís Fiori

CONSEQUÊNCIAS PARA O MUNDO DO PETRÓLEO DO ATAQUE DOS EUA AO IRÃO

O mundo está chegando mais perto de um enfrentamento directo entre dois Estados Nacionais, envolvendo, inevitavelmente, seus aliados nas duas direções, mas é pouco provável que este assassinato internacional tenha as mesmas consequências do assassinato de Sarajevo que deu início à Primeira Guerra Mundial”. O artigo é de José Luís Fiori, professor titular de Economia Política Internacional, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicado pelo IHU.

O reconhecimento do presidente Donald Trump, e a comemoração de algumas autoridades norte-americanas, transformam o “ataque americano ao aeroporto de Bagdá” numa operação direcionada e bem-sucedida de eliminação de um general iraniano de alta patente, em território iraquiano, por cima de toda e qualquer ideia de direito internacional, ou de respeito pela “soberania” das nações, ou pelo “direito universal” dos indivíduos. Deste ponto de vista, a ação norte-americana só pode ter sido uma de duas coisas: um assassinato internacional, premeditado e por cima da lei, ou então foi um “ato de guerra”, ou mais precisamente, uma “declaração de guerra” feita sem o consentimento do Congresso norte-americano.

E, em qualquer dos dois sentidos, um acto unilateral de afirmação do interesse e do arbítrio dos Estados Unidos por cima da soberania de todos os demais Estados Nacionais que não contem com o poder militar suficiente para barrar a intenção e o objetivo americano de afirmação de um novo direito baseado no seu poder global, ou no seu projeto de um império militar global. Que vem acirrando as tensões geopolíticas entre as grandes potências do sistema mundial.

Sem dúvida alguma, esta foi a demonstração mais ostensiva, explícita e festejada ambição americana de exercício de um poder militar global, ou simplesmente da afirmação unilateral de que o poder e os interesses americanos são superiores a qualquer convenção ou qualquer tipo de acordo ou instituição multilateral construída no último século de supremacia americana.

Neste sentido, este episódio não é inteiramente novo, nem original, em particular durante a Administração Trump, que tem dado abundantes demonstrações de que só existe uma bússola na política externa americana: o interesse e arbítrio dos Estados Unidos.

Mesmo assim, não há a menor dúvida que este foi o ato mais ousado e arrogante de afirmação do direito americano de intervir, julgar e punir a quem queira e onde queira. Tendo em vista que o general Qassem Soleimani era talvez a segunda pessoa mais importante da hierarquia de poder do estado iraniano e o Comandante da Guarda Revolucionária Islâmica, é inevitável concluir que a ação do governo americano se trata de um “ato de guerra”.

A ação americana deve ser associada à escalada que começou no mês de julho de 2019 com a “crise dos petroleiros” seguida de mais três episódios: 1, o ataque dos rebeldes houthis às refinarias sauditas em setembro de 2019; 2, o ataque e a morte de um técnico americano em uma base militar no território iraquiano em dezembro de 2019; 3, o cerco da Embaixada Americana em Bagdá no mesmo mês e 4, os exercícios navais realizados pela China, Rússia e Irão, no Golfo de Oman, realizados exatamente entre os dias 27 e 31 de dezembro. Este último foi um desafio objetivo e incontestável ao poder naval americano no Oriente Médio, e de forma ainda mais ampla, da Organização de Shangai ao poder estendido da OTAN.

Como consequência, o mundo está chegando mais perto de um enfrentamento directo entre dois Estados Nacionais, envolvendo, inevitavelmente, seus aliados nas duas direções, mas é pouco provável que este assassinato internacional tenha as mesmas consequências do assassinato de Sarajevo que deu início à Primeira Guerra Mundial. Apesar da gravidade do episódio, o distanciamento entre os dois Estados envolvidos e o improvável envolvimento dos seus aliados num confronto militar não sinalizam um acontecimento, pelo menos agora, de uma guerra mais abrangente ou frontal. Mas sinaliza com certeza que o Oriente Médio, seu petróleo e seus recortes étnicos e religiosos, que foram utilizados e transformados um dia pelas potências coloniais europeias num espaço dividido e conflagrado por guerras quase contínuas, deverá seguir seu caminho trágico como uma espécie de “buraco negro” do sistema mundial, onde as grandes potências praticam o seu próprio terrorismo, e se utilizam do terrorismo dos outros como instrumento de sua própria dominação regional.

Neste contexto é quase impossível que não haja uma resposta iraniana ao 'acto de guerra’ norte-americano. E do ponto de vista do direito internacional, do Direito da Guerra, ou ainda do debate milenar sobre a “guerra justa”, a resposta do Irão seria inteiramente legítima, e não se trataria apenas de um “acto de vingança”. Mas esta resposta não deverá ser imediata, e provavelmente será dada em vários momentos diferentes, em vários lugares diferentes, e com diferentes níveis de destrutividade. E como sempre essa resposta irá, mais uma vez, envolver a disputa em torno do fornecimento e do preço do petróleo.

O assassinato já teve um impacto sobre os preços do petróleo, chegando a provocar uma elevação média de 4%. Este aumento deverá se manter e talvez até escalar se os grandes atores do sistema perceberem que a escalada regional deve seguir e a ameaça de guerra deve permanecer no ar. Ou seja, um possível crescimento da incerteza em torno da forma e da intensidade da resposta iraniana e, principalmente, dos seus principais aliados – incluindo os grandes produtores e consumidores de petróleo, como os russos – pode resultar numa maior volatilidade com possível elevação dos preços no médio prazo.

É importante lembrar que, além de grande produtor, o Irão é um dos países que controla o Estreito de Ormuz a passagem que liga o Golfo Pérsico ao oceano, onde é escoado cerca de um quinto da produção petrolífera global. Um eventual bloqueio do transporte pode ter efeitos gigantescos em termos de fornecimento e preços no curto prazo.

A despeito dessas possibilidades, a história mostra que episódios dessa magnitude tem repercussões significativas sobre o preço do petróleo e é capaz de mudar o equilíbrio de poder entre os grandes produtores, consumidores e empresas petrolíferas. Dessa vez, não deve ser diferente.

Edição 153, Dezembro 2019

Juan Arias, jornalista

O QUE SE SABE SOBRE A SEXUALIDADE DE JESUS?

"Os Evangelhos que a Bíblia católica nos oferece são uma fonte de sabedoria. Basta ter a coragem de lê-los sem preconceitos, sem artifícios de sacerdotes e pastores", escreve Juan Arias , jornalista, em artigo publicado por El País. Tradução e divulgação IHU.

Entre os muitos mistérios contidos nos Evangelhos canónicos e suas ainda muitas perguntas sem respostas, acredita-se que pôde ter existido um Evangelho secreto de Marcos, anterior ao que hoje conhecemos como um dos quatro Evangelhos canônicos e considerado o mais antigo. E até mesmo um Evangelho erótico.

“Quanto à possibilidade de que tenha existido um Evangelho secreto de Marcos, há por exemplo uma passagem muito concreta que difere claramente do Marcos oficial. Um texto que criou muitos problemas, pois houve algumas seitas, como os carpocracianos, que o interpretaram em chave homossexual ou erótica. Por isso deve ter desaparecido da versão posterior, que é a oficial atualmente. O texto diz: “E chegaram a Betânia. Havia ali uma mulher cujo irmão tinha morrido. Aproximando-se de Jesus, ajoelhou-se e lhe disse: ‘Filho de David, tem misericórdia de mim”, mas os discípulos a afastaram, e Jesus, "enfurecido, saiu com ela para o jardim, onde estava o monumento, e logo depois ouviu-se um grito procedente dali.” Jesus se aproximou e removeu a pedra da entrada do monumento. Em seguida, entrando no local onde estava o jovem, estendeu sua mão e o ressuscitou. “Levantando os olhos, o jovem o amou e começou a lhe pedir que o deixasse ficar com ele. E, ao sair do monumento, eles entraram na casa do jovem, que era rico. Passados seis dias, Jesus lhe disse o que tinha que fazer e, durante a noite, o jovem veio até ele, usando um vestido de linho sobre seu corpo nu. E ficou com ele naquela noite, pois Jesus lhe mostrou o mistério do reino de Deus.”

A ideia que estudiosos da Bíblia, como John Dominic Crossan, têm sobre essa passagem é que esta versão figurava no Marcos secreto, sendo depois censurada. Acredita-se que poderia ser um texto usado durante o ritual nudista do batismo, razão pela qual alguns fiéis teriam lhe dado uma interpretação de tipo erótica. Por isso, teria sido excluído da versão oficial. Mas há quem pense que, mais do que ser eliminado, esse texto foi diluído em diversas partes no texto oficial de Marcos. Por exemplo, restos daquele texto estariam no curioso episódio de Marcos que conta que, no momento em que foram deter Jesus no Jardim das Oliveiras, “todos o abandonaram e fugiram” e que “um jovem, envolto em um lençol sobre o corpo nu”, seguia Jesus e, após tê-lo alcançado, “largando o lençol, fugiu nu”. E depois, levantando-se, se voltou à margem do Jordão.

Crossan afirma que, nos tempos de Clemente de Alexandria, chegaram a existir três versões do Evangelho de Marcos: o secreto, o canônico e o erótico, e que o Marcos secreto deve ter exercido um papel muito importante na liturgia do batismo, pois, do contrário, simplesmente o teriam destruído. Por outro lado, Jesus não batizava, embora tenha sido batizado por João Batista, e o batismo nudista não tinha por que ser visto de forma homossexual como fizeram algumas seitas dissidentes.

Tudo isso, explicam os especialistas bíblicos, revela a importância que muitos Evangelhos considerados apócrifos teriam tido se não tivessem sido censurados e inclusive eliminados muitas vezes só porque podiam ferir a sensibilidade dos legalistas e dos alérgicos a qualquer tipo de sexualidade.

Hoje não se descarta que Jesus, se for verdade que não se casou —coisa cada vez mais difícil de provar, considerando a cultura daquele tempo, em que era inconcebível que um homem não se casasse e tivesse uma família—, pode ter sido homossexual, como, por sinal, aparece na sátira produzida pelo Porta dos Fundos, um produto humorístico que não deveria escandalizar ninguém. Chegou-se a supor que o companheiro de Jesus fosse o jovem discípulo João, um dos poucos dos quais não se fala que tenha formado uma família.

A questão do possível casamento de Jesus com Madalena, que não era a prostituta que a Igreja afirmou durante anos, e sim uma mulher de alta formação intelectual, do movimento gnóstico, do qual existe um Evangelho escrito por ela entre os manuscritos encontrados no Alto Egito, é outro dos temas sobre os quais a Igreja prefere fechar os olhos.

Há quem tenha visto, por exemplo, na passagem da crucificação, onde se conta que foi Madalena, e não sua mãe ou os apóstolos, por exemplo, a primeira pessoa à qual Jesus apareceu após ser ressuscitado, a demonstração de que ela era sua mulher. Até mesmo São Tomás de Aquino, doutor da Igreja, atormentava-se pensando por que Jesus não tinha aparecido primeiro aos apóstolos e o havia feito a uma mulher, já que, além disso, naquele tempo o testemunho de uma mulher não tinha valor nem durante um julgamento. Não se acreditava na palavra da mulher.

Jesus, que já havia quebrado todos os preconceitos burgueses e culturais para pregar a força da liberdade do espírito, quis naquele momento fundamental, como foi a passagem da morte à vida, deixar o registo, ainda que de maneira metafórica, de que ele não aceitava preconceitos sociais. E que se para ele não existia diferença entre judeus e gentios, entre justos e pecadores, tampouco existia entre homem e mulher. Foi para outra mulher, a Samaritana, perto de um poço, que revelou que chegaria o dia em que os filhos de Deus não precisariam disputar templos e catedrais para a adoração de Deus; renderiam culto em seu próprio coração e na liberdade de espírito.

Os Evangelhos que a Bíblia católica nos oferece são uma fonte de sabedoria antiga e moderna ao mesmo tempo. Apesar de terem sido censurados, a maioria dos outros Evangelhos existentes nos primeiros anos e séculos do cristianismo constituem ainda hoje não só uma importante fonte literária, mas libertadora de tabus. Basta ter a coragem de lê-los sem preconceitos, sem artifícios de sacerdotes e pastores. Esses textos possuem uma grande força espiritual e humana. E nos convocam a nos libertarmos de preconceitos e imposições externas castradoras da cultura. Querer domesticá-los e usá-los para acorrentar consciências seria o maior pecado, para o qual Jesus dizia que não havia perdão.

Alberto Melloni

OS ABUTRES DO VATICANO

"Francisco está mais sozinho, de uma solidão institucional: as pessoas que estão em Roma certamente são leais e próximas - eu diria pelo menos seis - podem confortar o peso existencial que ela gera, mas não a anular; e podem apenas olhar para o círculo dos velhos abutres. Mas não é mais aquele de 1960. Os abutres de hoje não são velhos", escreve Alberto Melloni, historiador italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII de Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

"A Roma que você conhece e da qual foi exilado não mostra sinais de mudança, como se imaginava que deveria ser no fim. O círculo dos velhos abutres, após o primeiro susto, retorna. Lentamente, mas retorna. E retorna com sede de novos tormentos, de novas vinganças." Assim, Dom De Luca escrevia ao cardeal Montini, em julho de 1960: e lia com o devido fatalismo o conflito entre a paciência mortal da cúria mais integralista e a primavera conciliar. Um conflito que havia favorecido a "recomposição" de um círculo antes fragmentado. Trata-se de um pensamento, este de 1960, que se adapta a essa fase em que o pontificado está entrando em um momento de solidão institucional.

O Papa, como todos sabem, fala que o tempo é superior ao espaço, os processos superiores às normas; e, portanto, não fez normas nem acelerou (com a única exceção do Secretário de Estado) a mudança de pessoas nas funções mais altas: com o resultado de que é ele mesmo que precisa cuidar de muitas coisas. A descrição do último escândalo financeiro que o papa forneceu aos jornalistas no avião que durante o retorno do Japão foi exemplar e comovente sob esse ponto de vista: o Papa mais evangélico de todos os tempos que deve bancar o "Papa-rei", fazer funcionar em seus pequenos domínios justiça e polícia, deve pedir demais, deve autorizar muitos e em demasia, e com isso perde os seus. E, portanto, é cercado por uma solidão não psicológica (esta, a um jesuíta, não incomoda em nada), mas uma solidão institucional, gerada após o incurável conflito político entre o secretário de Estado Parolin e o vice Becciu, foi resolvida tirando a Becciu seu escritório, mas dando a ele um título de cardeal.

A solidão institucional do Papa se revelou em uma sequência de sinais que marcam sua vastidão. Primeiro sinal, em março de 2018, a demissão de Dom Dario Viganò: atraído para a armadilha por uma carta assinada Ratzinger: em seu lugar foi uma pessoa de valor como Paolo Ruffini, mas o sinal havia sido dado. Depois foi a vez, em dezembro de 2018, de D. Zanchetta, amigo do Papa e em função na APSA, atingido por acusações de assédio sexual, que chegaram imediatamente após o início das investigações sobre o caso de Londres. Depois, em outubro passado, pediu demissão, com o senso de dever e honra de um grande militar, Domenico Giani, o comandante da Gendarmaria: foi parado enquanto estava trabalhando, o que era um sinal. Finalmente, em 1º de dezembro, o padre Fabian Pedacchio deixou a função de secretário do papa: cargo invisível, mas decisivo para regular voz o acesso ao pontífice.

Sinais casuais? Até poderiam ser: mas não são casuais os efeitos que recaem todos sobre o Papa. Francisco está cada vez mais sem voz: basta pensar na condenação da posse de armas atômicas proferida do Japão, cujo peso geopolítico foi imenso e cujo eco foi nulo.

Francisco está mais vulnerável: porque os procedimentos de controle típicos dos Estados não impedem as operações opacas, nem as fotocopiadoras de investidores decepcionados, nem as tipografias que lembram os anos de Pecorelli.

Francisco está mais sozinho, de uma solidão institucional: as pessoas que estão em Roma certamente são leais e próximas - eu diria pelo menos seis - podem confortar o peso existencial que ela gera, mas não a anular; e podem apenas olhar para o círculo dos velhos abutres. Mas não é mais aquele de 1960. Os abutres de hoje não são velhos.

Agustín Ortega Cabrera

ELLACURÍA E O TESTEMUNHO DA FILOSOFIA DA VIDA

"Ellacuría compreende o propósito da filosofia em sua função libertadora, na busca do verdadeiro ser e sentido na realidade, promovendo a vida, a liberdade e a justiça libertadora com os pobres, com uma tarefa ‘desideologizadora’ do real”, escreve Agustín Ortega Cabrera (Espanha), missionário leigo, doutor em ciências sociais (Departamento de Psicologia e Sociologia, da Universidade de Las Palmas de Gran Canaria - ULPGC), em artigo publicado por Rebelión. A tradução é do Cepat /IHU

Diz-se muito bem que se entende melhor a obra de um autor, e com mais razão tratando-se de um filósofo, quando se une ao que foi sua vida. Em Ignacio Ellacuría, um dos conhecidos como jesuítas mártires da Universidade Centro-Americana – UCA [El Salvador], de quem fazemos memória pelo Dia Mundial da Filosofia, no trigésimo aniversário de seu martírio, essa união de obra e vida é luminosa.

Nesse sentido, em nossas atividades acadêmicas e formativas, para esta semana de comemoração do trigésimo aniversário do martírio dos queridos Ellacuría e jesuítas da UCA, apresentamos o livro ELLACURÍA EN LAS FRONTERAS, editado pela Universidade Jesuíta Iberoamericana do México. Nesta publicação, sou co-autor e escrevo um capítulo com o título: “Filosofia da ação-formação social no horizonte da espiritualidade. Chaves a partir de Ellacuría, Martín-Baró e os jesuítas mártires da UCA”. Fizemos esta apresentação em alguns centros universitários de Lima, onde atualmente realizo minha missão na América Latina e sou professor e pesquisador.

Como mostra um dos conhecedores, A. González, é “a forma socrática de filosofar e ser filósofo a primeira chave para nos aproximarmos da obra de Ignacio Ellacuría. Parafraseando Zubiri, poderíamos traçar um paralelo com Sócrates dizendo que a característica do trabalho intelectual de Ellacuría não consiste tanto em colocar a práxis histórica de libertação no centro de suas reflexões filosóficas, mas em ter feito da filosofia um elemento constitutivo de uma existência dedicada à libertação”.

De forma similar a outros pensadores e filósofos, além do próprio Sócrates, E. Mounier e S. Weil e mesmo o professor que foi L. Milani, Ellacuría apreendeu o pensamento em unidade inseparável da ação, com a práxis e o compromisso solidário pela justiça com os pobres, oprimidos e vítimas da história. Uma filosofia a serviço da vida e da promoção libertadora e integral das pessoas, povos e excluídos frente à violência estrutural do mal, desigualdade e injustiça social (global), a violência repressora e pessoal, com um compromisso claro com o diálogo, a reconciliação, a não-violência, a paz, a liberdade e a igualdade.

É com essa inteligência social e histórica, a partir de uma filosofia comprometida com o real, usando mediações socioanalíticas como são as ciências sociais, que assume a realidade, analisando criticamente suas possibilidades, capacidades e estruturas com seus poderes e dominações. Toma a realidade com essa inteligência ética da compaixão, assumindo solidariamente o sofrimento dos povos crucificados que são sempre o sinal dos tempos, em uma hermenêutica histórica da realidade da “passionis”. E assume a realidade com a inteligência que se faz práxis libertadora dos povos crucificados para descê-los da cruz, na opção pelos pobres como sujeitos de sua libertação integral.

Nesse sentido, González afirma: “Ellacuría mostrou com sua vida (e - por que não considerar? - também com a sua morte) que a função social da filosofia não é primeiramente uma função acadêmica, muito menos uma função legitimadora de um ou de outro poder, mas - ao menos como uma possibilidade - uma função libertadora. E que essa função libertadora não consiste, em primeira linha, na transmissão de uma determinada filosofia, de uma determinada tradição e de alguns determinados conhecimentos filosóficos, mas, ao contrário, como também foi o caso de Sócrates, numa tarefa maiêutica e crítica ..., em certo sentido mais próximo da expressão grega original maieúomai (ajudar no parto, desatar). Trata-se, pois, de acompanhar filosoficamente o difícil momento histórico dos povos do Terceiro Mundo, situando-se parcialmente ao lado daqueles que tentam impedir que a morte triunfe e ao lado da nova vida que, apesar de todas as dificuldades, luta para nascer”.

Ellacuría compreende o propósito da filosofia em sua função libertadora, na busca do verdadeiro ser e sentido na realidade, promovendo a vida, a liberdade e a justiça libertadora com os pobres, com uma tarefa “desideologizadora” do real. Trata-se de buscar a verdade aprisionada pela injustiça (Rm 1, 18), desmascarando os ídolos da morte que negam a vida dos povos e dos pobres. Libertar-nos das idolatrias da riqueza-ser rico, do capital, poder e violência estrutural, de modo que as maiorias populares (empobrecidas) tenham ser, vida e vida em abundância (Jo 10, 10), frente ao nada, o não ser, que sofrem os povos crucificados.

A realidade estrutural com seu dinamismo, na sua unidade de natureza e história, de inter-relações dos seres humanos com o mundo, converte-se em práxis social e histórica. Empregando o método de “historicização” das chaves filosóficas, como é a justiça com os direitos humanos na opção pelos pobres, para que sejam verificadas na realidade histórica. Desta forma, é revelada a mentira ideológica que nega a vida e a libertação integral da humanidade.

Em oposição a esses falsos deuses da civilização do capital e da riqueza, para reverter a história e lançá-la em outra direção, Ellacuría apresenta a civilização do trabalho e a pobreza. Ou seja, a dignidade das pessoas trabalhadoras e a humanização do mundo social e histórico, com uma economia a serviço da vida e das necessidades dos povos, que nos liberta do lucro e do lucro-capital como motor da história. E isso na civilização da pobreza, com a solidariedade compartilhada como sentido da história no real, a partir desses “pobres de espírito”. A existência solidária de compartilhar a vida, os bens e a luta pela justiça com os pobres que nos liberta da escravidão do ter, possuir e do ídolo da riqueza-ser rico.

Como afirma Ellacuría, é “uma filosofia feita a partir dos pobres e oprimidos, a favor de sua libertação integral e de uma libertação universal que, em sua autonomia, pode se colocar no mesmo caminho do trabalho em favor do reino de Deus, conforme se prefigura no Jesus histórico”.

Para Ellacuría, a história tem sentido de “forma utópica e esperançosa: crer e ter ânimo para tentar com todos os pobres e oprimidos do mundo reverter a história, subvertê-la e lançá-la em outra direção”. A realidade histórica, em seu dinamismo estrutural, está aberta à transcendência e à esperança, ao Deus transcendente no real e histórico. O sentido de utopia profética e a esperança “nesse futuro sempre maior, para além do futuro histórico, onde se avista o Deus salvador, o Deus libertador” (Ellacuría).

Edição 152, Novembro 2019

Iñigo Domínguez

IGREJA LATINOAMERICANA: MIL DENÚNCIAS ROMPEM O SILÊNCIO SOBRE ABUSO DE MENORES

ONG apresenta primeiro relatório abrangente com casos reportados no México, Chile, Argentina e Colômbia. Dossiê diz que documento interno do Vaticano sobre violações no Brasil não foi investigado. A reportagem é de Iñigo Domínguez, publicada por El País /IHU

A Igreja Católica da América Latina já é a protagonista da “terceira onda” de casos de abusos de menores, depois da primeira que eclodiu em 2002 nos Estados Unidos e a que se seguiu na Europa e Oceania. Essa é a conclusão da Child Rights International Network (CRIN), ONG britânica que é referência na defesa dos direitos das crianças, em um relatório de 70 páginas que se tornou público nesta quarta-feira e está disponível em seu site.

É o primeiro estudo abrangente do fenômeno nos 18 países de língua espanhola do continente e também no Brasil, o país com o maior número de católicos no mundo. Trata-se de uma radiografia da situação em quantidade de casos, legislação e resposta das instituições. “O resultado mais óbvio é estabelecer a realidade da escassez de dados, criar um ponto de partida para que a Igreja e os Governos comecem a investigar. Ainda é um tabu, está havendo menos cobertura da mídia e falta um debate público sobre o assunto”, resume Víctor Sande-Aneiros, um dos pesquisadores.

Quatro países são a ponta de lança no rompimento do silêncio: México (pelo menos 550 denúncias), Chile (243), Argentina (129) e Colômbia (137). Entre os quatro, mais de mil queixas. No entanto, há outros em que o problema ainda não existe oficialmente, como Cuba, Equador, Honduras e o mais chamativo, o Brasil. Neste último país, porém, há uma referência que nunca foi aprofundada: como recorda o estudo, um relatório interno do Vaticano em 2005 estimou que um em cada dez padres brasileiros estava envolvido em casos de abuso, ou seja, 1.700 sacerdotes. O relatório explica que nesses países a mídia ainda não realizou uma investigação séria, o que costuma ser o primeiro passo para que os abusos venham à tona.

“A lição que aprendemos de países em todo o mundo é que um longo silêncio pode pressagiar os maiores escândalos de abuso. A onda de revelações na América Latina continua a crescer e espera-se que os grupos de sobreviventes em países como Argentina e Chile inspirem os de outros países da região a erguerem suas vozes”, assinala o estudo. A equatoriana Sara Oviedo, ex-vice-presidenta do Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas e relatora da Santa Sé em janeiro de 2014, afirma que este relatório "é um esforço significativo para os ativistas em toda a América Latina, por suas informações sistematizadas e recomendações que servem à estratégia que vem sendo promovida para garantir que a Igreja Católica entregue à Justiça os responsáveis por abusos sexuais".

Em 2014, a CRIN publicou outra investigação sobre abusos na Igreja em todo o mundo na qual já apontava que a América Latina era uma das principais regiões para as quais eram enviados os padres acusados de agressões na América do Norte e na Europa. "Além disso, o número de denúncias era muito baixo em comparação com o de outros países com populações católicas muito menores, por isso quisemos focar em uma região onde ainda não havia surgido uma onda de revelações", explica.

A primeira constatação é o secretismo e a falta de transparência que ainda imperam. A Argentina, onde surgiram as denúncias, em 2017, e o Chile, em 2018, são os países de referência. Além disso, ao lado do México, é o país onde as vítimas estão mais organizadas e ativas. Em alguns casos aderiram à rede Ending Clerical Abuse (ECA), a organização internacional de denúncia desses abusos. O Chile é o primeiro país da América Latina em que foi pedida uma comissão de investigação independente, seguindo o modelo da Austrália e da Irlanda.

Atualmente, na Argentina há dois padres sendo julgados, Nicola Corradi e Horacio Corbacho, acusados de abusar de quase trinta menores surdos no instituto Próvolo, de Mendoza. Este caso, um dos mais graves conhecidos até agora, aumentou a visibilidade do problema, mas não resultou em mudanças significativas na Igreja Católica, de acordo com a Rede de Sobreviventes de Abusos Eclesiásticos. "A Igreja aparenta preocupação com as vítimas e emitiu protocolos de ação e documentos, mas são medidas que correspondem ao único objetivo de continuar blindando a instituição", ressalta Carlos Lombardi, advogado da Rede, que tem 40 casos. De todo modo, como resultado de sentenças como a dos padres Justo José Ilarraz e Juan Escobar Gaviria, sentenciados a 25 anos de prisão em 2018, é cada vez maior o número de vítimas que se atrevem a falar e, em geral, levam menos tempo para denunciar, de acordo com Lombardi. Ele diz que “a Justiça está dando respostas”.

Em outros países, como México, Guatemala (12 padres acusados) e Uruguai (44 denúncias envolvendo 40 padres), foi a própria Igreja que forneceu dados, “mas oculta sistematicamente a identidade dos acusados e não encaminha os casos para as autoridades civis”, diz o relatório. Em resposta, juízes de alguns países, como o Chile, ordenaram ações policiais em escritórios eclesiásticos para acessar documentos que possam servir como provas em processos judiciais.

No México, a Igreja começou o ano com um abalo quando surgiu uma nova denúncia contra um legionário de Cristo acusado de abusar de pelo menos oito crianças. Isto forçou a instituição a adotar algumas medidas, como revelar que 157 padres foram suspensos nos últimos nove anos e 101 processados na Justiça eclesiástica. "A Igreja está muito interessada em cuidar de sua imagem. O Episcopado apresenta uma cifra, mas nada se sabe sobre eles, não são rastreáveis", diz o ex-padre Alberto Athié, referência na luta contra a pedofilia clerical em seu país.

Outro gesto foi criar uma comissão para investigar os abusos. No entanto, o grupo era composto de "membros incondicionais da Igreja", denuncia Athié. "Ainda há muito por fazer", diz ele, depois de reconhecer que a visibilidade do problema melhorou, mas é necessário "romper o pacto" da Igreja com as autoridades civis "que não querem prejudicar o equilíbrio entre os poderes". "Precisamos reconstituir a verdade histórica de cada um dos casos e levá-los à Justiça. Isso é algo incrivelmente difícil no México." O relatório da CRIN enfatiza que é necessário pôr em marcha órgãos de investigação independentes e enfatiza que na América Latina já houve experiências de entidades desse tipo, as comissões da verdade para investigar violações de direitos humanos durante períodos de ditadura.

Ainda há muito trabalho a ser feito. A ONG BishopAccountability.org explica no relatório que os fatores que levaram a uma disseminação significativa do escândalo em outras partes do mundo, como as denúncias em massa de vítimas, investigação pelo Ministério Público ou comissões governamentais, ainda não estão em curso na América Latina.

Na Colômbia, o jornalista Juan Pablo Barrientos, autor do recente livro Dejad que los niños vengan a mí (deixai vir a mim as criancinhas), garante que o número de casos de pedofilia neste país é maior que o das cifras oficiais. “O cardeal Rubén Salazar disse em 11 de março de 2019 que são mais de cem os casos de padres pedófilos e abusadores em todo o país. A Procuradoria Geral da República diz que só tem o registro de 57 denúncias, mas minha investigação, baseada em dezenas de denúncias às quais tive acesso e depois de entender a figura do Arquivo Secreto e a dinâmica do direito canônico, contradiz esses números”, escreve ele no livro, que tentaram censurar em várias cidades, como Medellín. O jornalista requereu por meio de ações legais o acesso ao Arquivo Secreto, onde as arquidioceses guardam documentos sobre os padres de sua jurisdição, mas lhe foi negado. A Igreja na Colômbia se ampara em dois artigos do Concordato assinados entre o país e a Santa Sé, que separam a legislação canônica da lei civil. No entanto, Barrientos enfatiza: "Estamos falando de crimes, não de pecados".

O relatório do CRIN enumera as principais táticas de encobrimento que a Igreja está usando: transferir o acusado, culpar as vítimas e suas famílias e pagamentos secretos por seu silêncio. Também recorre à manipulação psicológica, como no caso da arquidiocese de Cali, na Colômbia, em que uma psicóloga nomeada pela Igreja entrevistou as crianças e as ameaçou para que não prosseguissem com a denúncia, dizendo-lhes que era um ataque à Igreja, que elas iriam para o inferno, perderiam o juízo e acabariam na prisão. No Equador, uma psicóloga designada pela Arquidiocese de Cuenca exigiu que uma vítima de abuso pedisse perdão ao padre César Cordero, acusado de estuprá-la na infância.

Merecem menção à parte as tentativas de silenciar a imprensa, como a sofrida pelo livro de Barrientos na Colômbia. O dossiê menciona o caso do jornal paraguaio La Nación, que em 2016 começou a publicar uma série de reportagens sobre cinco padres católicos da Argentina transferidos para esse país. Mas a série foi interrompida depois de quatro dias. Mais tarde, veio à tona que o núncio do Vaticano no país, Eliseo Ariotti, havia pressionado os donos do jornal. Após essa revelação, o jornal retomou a publicação e ganhou um prêmio jornalístico de direitos humanos.

No Peru tiveram muita repercussão as ações do arcebispo de Piura e Tumbes, José Antonio Eguren Anselm, contra os jornalistas Pedro Salinas e Paola Ugaz. Em 2015, eles publicaram Mitad Monjes, Mitad Soldados, livro sobre abusos no Sodalício de Vida Cristã, uma organização católica. Em abril de 2019, o arcebispo retirou as queixas contra os dois jornalistas, mas Salinas já havia sido condenado e sentenciado a uma pena de prisão de um ano e uma multa considerável. Ugaz agora enfrenta outro julgamento, que a Associação Nacional de Jornalistas do Peru descreve como "assédio fiscal e judicial".

Quanto à resposta em nível legislativo, houve uma reação positiva com a revogação da prescrição do crime em seis países: Nicarágua, México, El Salvador, Equador, Peru e Chile. Apenas em alguns há a obrigatoriedade de denúncia e, no caso mais extremo, em Cuba, a regulamentação é mais restritiva: somente podem denunciar um delito sexual a vítima, seu cônjuge, pais, irmãos, representante legal ou pessoa que a tenha sob sua responsabilidade. O caso mais surpreendente é o da Venezuela e em alguns Estados do México, onde não é possível acusar uma pessoa de determinados crimes sexuais se ela se casar com a vítima.

América Latina vista por Enrique Dussel

OS GRUPOS EVANGÉLICOS SÃO A NOVA ARMA DOS EUA PARA OS GOLPES DE ESTADO

O filósofo e teólogo Enrique Dussel sustenta que os Estados Unidos propiciam uma “guerra santa” para derrubar governos na região. “Se exige que o homem deixe seus costumes ancestrais e se proponha a entrar na sociedade capitalista, consumista e burguesa”, refletiu. A reportagem é publicada por Resumen Latinoamericano. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

Não há ferramentas intelectuais suficientes para analisar a guerra santa que está utilizando os Estados Unidos para sustentar golpes de Estados em países da América Latina. Assim se pode resumir a tese de Enrique Dussel, acadêmico, filósofo, historiados e teólogo, ao analisar a derrubada de Evo Morales na Bolívia e o panorama político regional.

Entrevistado pela jornalista mexicana Carmen Aristegui e reproduzido pelo portal Explícito, Dussel recordou que “a Bolívia era o país mais pobres junto com o Haiti, e aumentou sua porcentagem de riqueza como nenhum outro. Ninguém podia esperar uma reação. Um primeiro problema é por que reage um setor de uma classe que estava na pobreza e graças aos governos progressistas ingressaram a uma classe média. Possuem outras aspirações que não são sair da pobreza. Há uma mudança na subjetividade. Se passa à subjetividade consumista que acredita que certos projetos de direita poderiam solucionar suas novas aspirações”.

Católicos vs. Evangélicos

O teólogo acrescenta que “aqueles que saíram da pobreza na Bolívia são sujeitos que no fundo aspiram a serem consumistas neoliberais. E aí entra um fator: em um golpe de Estado como o de Pinochet, os que dirigiram esse processo, e assim como os militares argentinos, diziam que tinham que afirmar uma civilização ocidental, cristã, católica e de direita contra o comunismo”.

“Um novo fenômeno são as igrejas evangélicas que estão apoiando o processo brasileiro e na Bolívia, com um homem desaforado como Luis Fernando Camacho, que diz algo essencial 'Vamos tirar a Pachamama dos lugares públicos e vamos impor a Bíblia”. Porém essa Bíblia não é a católica, é a dos grupos evangélicos. Toma a cultura popular dos povos originários como um horrível paganismo que o cristianismo deve substituir a rajatabla.

É uma Bíblia evangélica que vem das seitas norte-americanas que muda a subjetividade. Se propõe que o homem deixe seus costumes ancestrais, deixe as festas e se proponha a trabalhar para entrar na sociedade consumista, capitalista e burguesa” destacou Dussel.

Além disso, o racismo

Somado a esses fatores, destaca Dussel que “na Bolívia de um lado está a branquitude, o branco que despreza o indígena e as cholas, que o faz com a doutrina da OEA e de seu secretário-geral Luis Almagro. Isso dá um panorama da América Latina, que precisa ser abordado com muita seriedade”.

“As tradições aymaras, que vêm sendo influenciadas por cinco séculos de catolicismo, se enfrentam agora com os evangélicos. Será uma espécie de luta religiosa, porém que é essencialmente política. Isso explica outra coisa: a teologia da libertação, que é cristã, porém se apoia nos pobres contra os ricos. ‘Bem-aventurados os pobres, malditos os ricos’. Isso é o contrário nos grupos evangélicos. Eles propõem uma revisão histórica e teórica que a esquerda não está habituada, porque propôs o ateísmo como condição transformadora. Se deparava com o indígena, e como esse tinha toda sua condição religiosa, não sabia como trata-lo e o rechaçou. E agora precisa assumi-lo para enfrentar um evangelismo pró-Estados Unidos”.

Evangélicos e a OEA

Os evangélicos, aponta Dussel, “lhes dão um sentido: ‘deixe todos esses costumes nefastos, faça-se um homem austero, trabalhador, bem organizado e sairás da pobreza porque Deus vai te abençoar com uma riqueza aceitável’. A riqueza é considerada, como no antigo calvinismo, uma benção de Deus. A Pachamama é a origem da pobreza”.

“Essa Bíblia reinterpretada a partir de um homem moderno norte-americano é a origem da possibilidade de uma nova Bíblia, e isso é usado hoje pela OEA e a nova política norte-americana que está se retirando do Oriente Médio. Haviam se afastado da América Latina, porém como no Iraque e no Irã foram derrotados, voltam à América Latina e querem recuperá-la. Eram sutis nos métodos, porém voltamos aos golpes de Estado”, finalizou Dussel.

José Manuel Valiñas

O FUTURO DA ALIMENTAÇÃO

No dia 5 de agosto de 2013, membros dos meios de comunicação e críticos culinários se reuniram, em Londres, para experimentar um hambúrguer. Aquele pedaço de carne (que eles comiam diante das câmeras, sem pão e condimentos) não era como qualquer outro. Eram células de vaca cultivadas em laboratório. A reportagem é de José Manuel Valiñas, publicada por El Economista. A tradução é do Cepat /IHU

Uma das especialistas em gastronomia, Hanni Ruetzler, não conseguiu esconder um certo receio ao provar um pedaço. Outro, Josh Schonwald, disse: “Sinto falta da gordura, é muito magra. Mas, em geral, parece um hambúrguer comum”. Depois, acrescentou que a experiência era um tanto “antinatural”, mas o motivo era que, segundo ele, “fazia no mínimo 20 anos que não experimentava um hambúrguer sem ketchup ou pimenta”. O cérebro por trás da carne cultivada é de Mark Post, professor de fisiologia vascular da Universidade de Maastricht, que promete transformar radicalmente o mundo como o conhecemos...

De facto, uma das especialistas que experimentou, pela primeira vez, a carne cultivada (também chamada de carne celular), pareceu um pouco relutante no começo. É o chamado “efeito iaque”, ou seja, uma espécie de prurido ao comer carne fabricada em laboratório. Helen Breewood, que trabalha como pesquisadora com Post, resolveu a questão: “Muitas pessoas podem considerar, inicialmente, repulsiva a carne cultivada, mas se considerassem o que está presente na produção normal de carne em um rastro, acredito que também considerariam que isso é repulsivo”.

Aqui, não é preciso matar nenhum ser vivo. E as implicações são cativantes. Comecemos pelo sabor, que é o menos importante. A carne de laboratório adquirirá mais sabor, até que essa não seja uma objeção para ninguém. Será possível lhe acrescentar gordura, por exemplo, para que seja suculenta e mais saborosa, e isso apenas com uma biópsia indolor em um animal (uma amostra simples pode ser usada para “criar” 20.000 toneladas de carne), sem maior intervenção contra o seu direito de viver e não sofrer maus-tratos, que é a objeção de consciência de cada vez mais animalistas no mundo.

A organização People for the Ethical Treatment of Animals (Peta) declarou recentemente: “A carne cultivada em laboratório significará o fim de caminhões cheios de bois e frangos que são maltratadas, e dos matadouros e fazendas industriais. Reduzirá as emissões de carbono, conservará água e tornará mais seguro o fornecimento de alimentos”.

Por meio da edição genética e da incrível técnica CRISPR (que também promete eliminar doenças hereditárias no futuro), por exemplo, será possível acrescentar ômega 3 na carne cultivada, para que seja completamente saudável. Eventualmente, essa refeição será mais saborosa do que os atuais substitutos da carne e muito mais econômica.

E as surpresas continuam: a tecnologia chegará a tal nível de sofisticação que será possível saber quais nutrientes específicos cada indivíduo necessita, para que a comida seja projetada de maneira personalizada, e isso não será apenas para os ricos, ao contrário, esses avanços chegarão, idealmente, para todas as camadas da população.

“Acho que a maioria das pessoas não percebe que a atual produção de carne está no seu auge e não será suficiente para a demanda, nos próximos 40 anos, por isso, sem dúvida, devemos encontrar uma alternativa. E essa pode ser uma maneira ética e ecológica de produzir comida”, explicou Marc Post.

Por causa da produção de alimentos, são emitidas enormes quantidades de gases do efeito estufa, especialmente o metano. Além disso, a utilização de água e terras cultiváveis também é intensiva: 70% destas são dedicadas à alimentação dos animais que serão abatidos. “Literalmente, estamos comendo o planeta”, diz Lauri Reuter, um cientista finlandês que trabalha com os últimos avanços em tecnologia de alimentos em seu gélido país, onde consegue colher praticamente qualquer coisa, em qualquer época do ano”.

“Se não mudarmos nossos hábitos, enfrentaremos um futuro em que não haverá mais comida. Cruzamos muitas linhas: o ciclo do nitrogênio, a biodiversidade (estamos na sexta maior onda de extinção da história do planeta) e a mudança climática, e talvez não haja retorno”, enfatiza Reuter, um dos cérebros que participa, nesses dias, em Puerto Vallarta, da Singularity University Summit. “E tudo isso está diretamente relacionado à nossa produção de alimentos: os fertilizantes de nitrogênio, a utilização dos melhores solos para produzir nossa comida. Tudo isso está matando a vida”.

O alimento celular ajudará a regenerar a biodiversidade do planeta. As grandes extensões de monoculturas são o seu principal inimigo. Graças à técnica do cultivo celular, algumas espécies de amora que estavam em risco de extinção se regeneraram. E isso é apenas o começo.

Atualmente, Finlândia, Suécia, Holanda, Canadá e Emirados Árabes Unidos, países com climas extremos e onde não era possível plantar em determinadas épocas do ano, estão produzindo alimentos sem qualquer pegada de carbono. Há empresas que já estão comercializando carne feita inteiramente de células cultivadas, em níveis que, em breve, serão massivos.

Pat Brown fez o desafio do “hambúrguer impossível”, feito com carne vegana, mas que tem o sabor exatamente igual à carne normal (já é vendido em mais de 3.000 restaurantes). Chegaremos a um ponto em que não saberemos qual é qual. Um pedaço de trigo, de frango ou carne vermelha terá o mesmo sabor (se é isso o que você deseja), seja proveniente de células cultivadas, de verduras ou de origem animal.

As estufas de última geração usam LEDs e são alimentadas apenas por energia solar ou geotérmica. São dirigidas pela Inteligência Artificial que vai aprendendo para melhorar cada processo. Isso elimina completamente a variável de origem das colheitas. Fora do aeroporto de Dubai, já existem estufas verticais que produzem todos os vegetais que são servidos nos aviões. Antes, tinham que ser levados da Europa.

Os biorreatores, onde é possível cultivar a comida celular e que se alimentarão exclusivamente de energia solar, verão seus preços caírem a tal ponto que qualquer pessoa poderá ter um em casa. O ovo e a galinha logo poderão ser cultivados sem intervenção animal, o que, nas palavras de Reuter, “finalmente solucionará o dilema milenar de quem veio primeiro, o ovo ou a galinha”.

Mas, para além de parecer simpático, temos a possibilidade de superar a ameaça à sobrevivência da raça humana. “Tudo isso pode soar muito estranho, perigoso ou antiético, e entendo”, destaca Reuter. E convida a pensar na maioria das espécies que melhoramos geneticamente, ao longo dos séculos, como a cenoura, o arroz, o milho e o trigo. E leva sua análise ao extremo, explicando que, em última instância, as plantas e tudo o que existe são feitas de oxigênio, carbono, hidrogênio e nitrogênio, e que a partir desses elementos também é possível obter comida, alimentando micro-organismos com eles. Na Finlândia, já estão colhendo farinha de trigo literalmente “do ar”, com 50% a mais de proteína do que o normal, utilizando 10 vezes menos energia e 250 vezes menos água do que para produzir soja.

“Se podemos transferir a produção de alimentos para lugares menos férteis e dimensioná-la verticalmente, em vez de horizontalmente, poderemos viver em um mundo verde e alimentar 11 bilhões de pessoas a mais. Se desvincularmos a produção de alimentos do meio ambiente, na realidade, já não precisaremos realmente da Terra para isso”. Em outras palavras, poderemos deixá-la em paz para que continue reproduzindo sua pródiga e exuberante biodiversidade, que tanto ameaçamos com nossa passagem pelo planeta.

Aníbal Ignacio Faccendini

A EXOGENIA NEOLIBERAL

A exogenia como um processo de subjetivação em plena exterioridade constrói simpatia com as mercadorias ou objetos desejados e erradica em sua totalidade a empatia com as pessoas. Essa é a novidade da exogenia, que só existe subjetividade para as coisas e não para a humanidade”, escreve Aníbal Ignacio Faccendini, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, cientista social e professor da Universidade Nacional de Rosário, Argentina, em artigo publicado por Página/12. A tradução é do Cepat /IHU

O dilema histórico da humanidade foi e será como constrói sua subjetividade. Como constitui e se constitui para a realidade cotidiana e para a distante. O homem da antiguidade produzia sua subjetividade a partir do paganismo politeísta e na relação de domínio do amo e escravo. Na Idade Média, o subjetivo instituinte será o monoteísmo e a relação de domínio do senhor feudal com o servo da gleba.

É na Idade Média, a partir do monoteísmo, que se produz uma intensidade, distinta e centralizada por esse monoteísmo, que é o encantamento com o ambiente, entendido como natureza. É assim que neste período histórico as pessoas contemplavam a natureza, se surpreendendo e a reverenciando. Também os povos originários.

As pessoas, então, sentiam que faziam parte do ambiente em termos de integração, de cuidando com ele e não de conquista. Não acreditamos que esta etapa seja a panaceia, mas, sim, que era distinta e reverencial à Terra. O que positivamente nos demostra que nem sempre houve o antropocentrismo de conquista como produtor de subjetividades. Portanto, é possível e se deve gerar modelações de condutas humanas de integração e cuidado da Terra. Desde já, distinta e melhor que a outrora medieval, devendo prevalecer a justiça social e ambiental.

É com modernidade, avassaladora, veloz, racional, inundada de ganância e ambição extrema, que longe de toda emoção, mas substanciada na tensão do dominante contra a/o trabalhador(a), que se romperia o encantamento medieval com a natureza. O desencantamento prevaleceu e a conquista do planeta instigou. É a alienação em relação à Terra que permitiu a depredação, poluição e a deterioração da Casa Comum.

Essa alienação a respeito do ambiente do planeta, se acentuará com o capitalismo financeiro em grau de pleno divórcio. Diferente era, mesmo dentro da modernidade, a subjetividade constituinte das pessoas na economia mundial industrial com intervenção estatal e justiça social, no período de 1945 a 1976. Na Argentina, por exemplo, a participação dos trabalhadores na captação da riqueza nacional - nos anos 1954 e 1973 – será muito alta, o que marca a equidade social existente nessa época.

É com a financeirização de toda a vida pelo neoliberalismo, que começa no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, que ocorre a grande ruptura e nasce a exogenia: as empatias pessoais se reduzem muito e crescem em demasia as simpatias e desejos por coisas, pelas mercadorias e pela monetarização de tudo.

As pessoas na presente etapa instituem sua subjetividade, já plenamente a partir de fora, por meio, entre outros instrumentos, do excesso das redes informáticas, da invasão da mídia e o consumismo, sendo este último em excesso para os ricos e escasso para os pobres. Etapa que também gera indiferença com o coletivo e o social. Lida-se com demasiada superficialidade com as expectativas das maiorias da classe média em pertencer, chegar e alcançar a riqueza material.

A subjetividade do presente também se edifica vendo a outra e o outro como um meio instrumental a ser descartado em seu momento. As pessoas na atual época da financeirização da vida se conectam a partir de seu vazio, o vácuo exogenamente em disposição individualista, competitiva e narcisista. Próprio do sistema de financeirização de toda a vida, que aumenta o individualismo de forma cruel.

É o neoliberalismo que gera o fenômeno da exogenia. É um conceito que nos aponta que a constituição subjetiva das pessoas se realiza absolutamente de fora e a conexão com os outros é produzida em uma chave de concorrência e individualismo.

Sofremos a exogenia quando somos modelados pela pura exterioridade, quando somos totalmente falados e interpretados. Quando paramos de pensar em si e para si em comunidade. Assim como acontece no mercado. A violência do mercado invade todos as relações. A exogenia como um processo de subjetivação em plena exterioridade constrói simpatia com as mercadorias ou objetos desejados e erradica em sua totalidade a empatia com as pessoas. Essa é a novidade da exogenia, que só existe subjetividade para as coisas e não para a humanidade.

Há duas ideias que potencializam essa patologia social e que são levantadas pela sociologia: adiaforização e aporofobia. A primeira é a perda de todos os escrúpulos e decências mínimas. E a outra é o medo, desprezo e terror aos pobres. A saída é por dentro. Recuperar o pensar, que é mais do que raciocinar. A subjetivação deve ser metabolizada pelo nosso interior e nos vincular com o outro, com empatia e solidariedade sob os grandes eixos da justiça social e ambiental.

Francesco Sisci

A VITÓRIA DE PEQUIM EM HONG KONG E OS SEUS PROBLEMAS DE LONGO PRAZO

"Temos visto um ponto de inflexão nos protestos em Hong Kong, e aparentemente o governo tem ganhado vantagem, pois está prestes a transformar o movimento dos manifestantes em uma vitória publicitária enorme para Pequim". A afirmação é de Francesco Sisci, sinólogo italiano e professor da Universidade Renmin, em Pequim, na China, publicado por Settimana News. A tradução é de Isaque Gomes Correa /IHU.

Temos visto um ponto de inflexão nos protestos em Hong Kong, e aparentemente o governo tem ganhado vantagem, pois está prestes a transformar o movimento dos manifestantes em uma vitória publicitária enorme para Pequim.

Os protestos deste fim de semana atraíram mais de 200 mil pessoas, número muito abaixo dos dois milhões que se juntaram às primeiras marchas. A violência tem crescido. A polícia está começando a ficar mais hostil. Circulam acusações de torturas, e os manifestantes radicalizaram-se com os ataques às forças policiais e com a depredação de propriedades públicas.

Isso tudo tem afastado as pessoas mais ainda. No começo, a maioria dos habitantes de Hong Kong estavam firmes no apoio ao movimento e inclusive toleravam atos pontuais de violência, mas agora muitos estão menos animados, com medo de ser pegos entre a violência da polícia e a dos radicais.

O movimento parece sem rumo e não apenas porque não há uma coordenação. Até mesmo simpatizantes e apoiadores não conseguem traduzir uma mensagem política clara para as manifestações. Por que os protestos continuam? Qual o objetivo? Como atingi-lo concretamente?

Os protestos começaram contra um projeto de extradição proposto que permitiria que Pequim prendesse pessoas em Hong Kong e as levasse de volta para a China. Pequim buscou aprovar a proposta para impedir que o território (Hong Kong) se transformasse em um potencial trampolim para a revolução na China propriamente. O projeto foi suspenso e ontem (22 de outubro) foi derrubado – portanto, uma vitória para o movimento. Na sequência, o movimento deveria ter parado ou, no mínimo, pausado para se reagrupar e repensar. Ele não o fez, e talvez resida aí o problema.

Ele não parou talvez simplesmente porque o gênio da “fúria de Hong Kong na China e a maneira como ele tem administrado o território há décadas” estava fora da lâmpada e não queria voltar para dentro dela.

Um gênio da fúria fora da lâmpada; os magnatas e a democracia

Esta fúria está direcionada também aos magnatas locais que, por décadas, têm ficado do lado dos interesses públicos e privados de Pequim em vista de seus próprios lucros privados, ao mesmo tempo em que ignoram totalmente o bem-estar da cidade e seu povo. São grupos de interesses massivos, estreitamente interconectados com a estrutura velada e aberta de poder pequinês. É bastante difícil reformá-la sem também alterar profundamente a organização política e econômica da China. E mesmo se acontecesse, a mudança objetivamente levaria muito tempo, já que a estrutura tem trabalhado com imensas ramificações por uns 40 anos. Esses interesses sufocam qualquer mobilidade social para os jovens que permanecem no degrau mais baixo da escada social.

A outra questão é a democracia. Hong Kong é uma sociedade livre, mas sem democracia. Algo assim só funciona se tudo estiver basicamente bem, mas quando há problemas, se esta liberdade não for canalizada para os meios políticos que podem modelá-la de forma construtiva, então as coisas se perdem. É um problema estrutural: ou Hong Kong perde a sua liberdade e, portanto, o seu status de uma importante bolsa de valores – onde a liberdade é necessária para funcionar –, ou torna-se razoavelmente democrática. A China pode não querer perder a Bolsa de Valores de Hong Kong, que é uma importante válvula de segurança entre a economia fechada chinesa e a economia aberta global. Os manifestantes deveriam, pois, negociar visando uma estrutura democrática em Hong Kong que fosse aceitável tanto para Pequim como para o mundo exterior – caso contrário, o território perderia o seu status.

Aparentemente, as lideranças dos protestos não vem falando sobre isso. Elas estão mais preocupadas com as acusações e contra-acusações de violência entre a polícia e os manifestantes. Talvez – quem sabe – estes sejam detalhes justos.

Sem uma análise política ampla por parte dos manifestantes, Pequim vem ganhando vantagem política. As manifestações em curto prazo e o emprego relativamente restrito da força pela polícia tem provado alguns pontos para o público chinês e para muitos observadores asiáticos, que tradicionalmente não são grandes fãs da “democracia ocidental”. Pequim pode argumentar que estes protestos não vão resultar em nada e que têm causado estragos e destruição da riqueza em troca de sonhos impossíveis de se realizar.

Esta linha de argumentação, que pode não encontrar muita tração no Ocidente, pode edificar um crescimento cada vez maior em Hong Kong, na China e na Ásia para a forma como Pequim tem lidado com a crise, e também para deslegitimar os protestos. Aí então, Xi Jinping, que achou um jeito de resolver o problema, poderá já ter alcançado uma enorme vitória.

Estas reflexões não descartam que as coisas tomam um caminho diferente no futuro. O movimento pode se tornar completamente violento, e Pequim poderia reprimi-lo com mais força, deixando Hong Kong em chamas. Mas, por enquanto, algo assim não acontece e, com razão, não é de interesse de ninguém, pelo menos nas próximas semanas e meses.

Os problemas de médio prazo de Hong Kong

Isso ainda brinda Pequim com o problema de abordar os complicados grupos de interesses em Hong Kong e canalizar a liberdade local para dentro de uma democracia política viável, que só pode ser ocidental, como o sistema econômico do resto do mundo. Depois da repressão de Tiananmen em 1989, Pequim apresentou uma solução política de longo prazo para os seus problemas. Os jovens que nada tinham e queriam participação política receberam a chance de fazer dinheiro por qualquer meio e ter liberdade social e sexual em troca de se manterem longe da política. Eis um novo pacto social e que funcionou; essas energias revolucionárias alimentaram o crescimento chinês por três décadas. O pacto de Tiananmen rompeu-se com a campanha anticorrupção que estipulou que “tornar-se rico por qualquer meio” não é mais sustentável. Pequim deveria, então, apresentar um novo pacto político para o crescimento da classe média que se sente desconfortável com o antigo modo de fazer negócios e com o novo que ainda precisa tomar forma. Mas a China é um grande mamífero, pode esperar alguns anos. Hong Kong é muito menor, a situação é mais explosiva e algo precisa ser feito em breve.

Qual é o novo pacto social para Hong Kong que Pequim está a apresentar? Como Hong Kong é uma ponte entre a China e a economia mundial, esse pacto deve ser um novo pacto político, a satisfazer a nova situação mundial (onde a guerra comercial americana é somente a ponta do iceberg de um descontentamento cada vez maior) e a nova situação na China (onde o pacto pós-Tiananmen foi rompido).

Estes são problemas para os próximos meses ainda.

No curto prazo, a vitória de Xi Jinping abre uma oportunidade política massiva para ele. Ela prova a viabilidade da “solução Qiao Shi” proposta pelo movimento de Tiananmen em 1989. O pai de Xi, Xi Zhongxun, supostamente esteve ao lado dessa solução. Se tal proposta tivesse sido seguida, a história dos últimos trinta anos poderia ter tomado um rumo diferente, o que pode ter grandes repercussões hoje. É este o contexto que o movimento de Hong Kong talvez não devia ignorar e que deveria ser capaz de contribuir neste nível. Em jogo está não só Hong Kong, mas o destino da China e do mundo.

Edição 151, Outubro 2019

Joseph Stiglitz

POR UM IMPOSTO GLOBAL SOBRE AS TRANSNACIONAIS

Nobel de Economia sustenta: tributo evitará que elas continuem ocultando lucros, por meio de operações fraudulentas nos paraísos fiscais. De quebra, reduzirá desigualdades e neutralizará discurso da direita sobre “globalismo”. "O mundo está enfrentando diversas crises, que incluem mudanças climáticas, desigualdade, desaceleração do crescimento e deterioração da infraestrutura. Nada disso pode ser resolvido sem governos que tenham bons recursos. Infelizmente, as propostas atuais para reformar a taxação mundial simplesmente não dão conta. As multinacionais devem ser obrigadas a fazer a sua parte", escreve Joseph Stiglitz, economista e prêmio Nobel da Economia, em artigo publicado por Outras Palavras. A tradução é de Simone Paz /IHU

A globalização ganhou má fama nos últimos anos, quase sempre pelas razões corretas. Contudo, alguns dos seus críticos – como Donald Trump – opõem-se pelos motivos errados. Evocam um cenário falso. Atribuem os problemas atuais dos norte-americanos ao fato de terem se perdido em maus negócios, induzidos por europeus, chineses e países em desenvolvimento. É uma acusação absurda: foram os EUA — ou melhor, as corporações estadunidenses — os primeiros a escrever as regras da globalização.

Isto posto, há um aspecto especialmente tóxico da globalização que ainda não ganhou a atenção que merece: evasão fiscal corporativa. As multinacionais podem facilmente mudar seus escritórios e fábricas para qualquer jurisdição que cobre impostos mais baixos. E, em alguns casos, elas nem precisam se mudar, porque podem simplesmente alterar a forma como “registram” sua receita nos documentos.

A rede Starbucks, por exemplo, pode continuar expandindo-se no Reino Unido, sem pagar quase nenhum imposto britânico, alegando que lá seus lucros são mínimos. Se isso fosse verdade, sua crescente expansão não faria nenhum sentido. Por que se multiplicar se não há lucros no horizonte? É óbvio que eles têm rendimentos, mas que estão sendo desviados, em forma de royalties, taxas de franquia e outros encargos, do Reino Unido para outras jurisdições, com taxas de imposto menores.

Este tipo de evasão fiscal tornou-se uma arte, na qual as empresas mais inteligentes, como a Apple, se destacam. Os custos são enormes. Segundo o Fundo Monetário Internacional, os governos perdem pelo menos US$ 500 bilhões por ano por causa das transferências de impostos das corporações. Gabriel Zucman, da Universidade da Califórnia, e seus colegas calculam que cerca de 40% dos lucros obtidos no exterior, por multinacionais norte-americanas, sejam transferidos para paraísos fiscais. No ano de 2018, 60 das 500 maiores companhias — incluindo a Amazon, a Netflix e a General Motors — não pagaram impostos nos EUA, apesar de terem lucros conjuntos (em nível mundial) de cerca de 80 bilhões de dólares. Essa tendência está causando um impacto devastador nas receitas fiscais nacionais e arruinando o sentido público de justiça.

Desde o final da crise financeira de 2008, quando muitos países viram-se em apuros financeiros, tem havido uma demanda crescente por repensar o regime global de tributação das multinacionais. Um grande esforço é o projeto de Erosão de Base e Mudança de Lucro (BEPS, no acrônimo em inglês), da OCDE, que já produziu benefícios significativos, restringindo algumas das práticas mais nocivas — como aquela em que subsidiárias emprestam dinheiro umas às outras. Mas, como mostram os dados, os esforços atuais ainda passam longe do que seria realmente adequado.

O maior problema é que o projeto BEPS oferece apenas pequenas correções, feito remendos, num status quo profundamente defeituoso e incorrigível. Sob o “sistema de preços de transferência”, que hoje prevalece, duas subsidiárias da mesma multinacional podem comercializar e trocar bens e serviços além das fronteiras e, depois, na hora de declarar suas receitas e lucros para fins fiscais, relacionar essas trocas com o “preço de mercado local”. O preço que eles pagam é o que eles alegam que seria se os bens e serviços estivessem sendo trocados em um mercado competitivo.

Evidentemente, este sistema nunca funcionou muito bem. Como avaliar um carro sem motor ou uma camisa sem botões? Não há preços de mercado, nem mercados competitivos, aos quais uma empresa possa se referir. E as questões ficam ainda mais problemáticas no setor de serviços, que não para de crescer: como avaliar um processo de produção separando-o dos serviços administrativos realizados nos escritórios da sede?

A destreza das multinacionais na hora de se beneficiarem do sistema de preços de transferência tem aumentado à medida em que o comércio no interior das empresas cresceu, em que o comércio de serviços (mais do que o de bens) se expandiu, na medida em que a propriedade intelectual cresceu em importância e à medida em que as empresas aprimoraram sua exploração do sistema. O resultado: uma transferência de lucros em larga escala, através das fronteiras, que leva a menores receitas tributárias.

É revelador que as empresas norte-americanas não possam usar os preços de transferência para deslocar lucros dentro dos EUA. Isso implicaria a precificação repetida de mercadorias à medida que atravessam e re-atravessam as fronteiras estaduais. Em vez disso, os lucros corporativos dos EUA são alocados para diferentes estados com base numa fórmula, de acordo com fatores como emprego, vendas e ativos em cada estado. E, como demonstra a Comissão Independente para a Reforma do Imposto Internacional sobre Empresas (da qual faço parte) em sua última declaração, essa abordagem é a única que pode funcionar, no plano mundial.

Por sua parte, a OCDE lançará em breve uma importante proposta que pode acabar movendo um pouco o atual quadro nessa direção. Mas, se as previsões estiverem corretas, isto ainda não será suficiente. Mesmo se adotada, a maior parte das receitas das corporações serão tratadas por meio do sistema de preços de transferência, com apenas um “resíduo” alocado em uma fórmula. A justificativa para essa divisão não é clara.

Além de tudo, os lucros corporativos declarados na maioria das jurisdições já incluem as deduções dos custos de capital e de juros. Estes são “resíduos” – lucros puros – que surgem das operações conjuntas das atividades globais de uma multinacional. Por exemplo, de acordo com a Lei de Cortes e Impostos dos EUA de 2017, o custo total de bens de capital é deduzível, junto com alguns dos juros. Isso permite que o lucro total declarado seja substancialmente menor do que o lucro econômico real.

Dado o tamanho do problema, fica evidente que precisamos de um imposto mínimo global para acabar com a corrida fiscal atual (que não beneficia ninguém, além das corporações). Não há comprovação no mundo de que uma tributação mais baixa leve a mais investimentos. É claro que, se um país reduz seu imposto em relação a outros, pode “roubar” algum investimento; mas essa abordagem de “empobrecer o vizinho” [“beggar-thy-neighbor”] não funciona globalmente [nota da tradução: políticas econômicas em que um país tenta remediar seus problemas econômicos por meios que tendem a piorar os problemas econômicos de outros países].

Uma alíquota mínima para este imposto global deveria ser fixada num percentual comparável com a do imposto corporativo efetivo médio, que é de cerca de 25%, atualmente. Caso contrário, as alíquotas globais de imposto sobre as empresas irão convergir para o mínimo, e o que pretendia ser uma reforma para aumentar a tributação sobre as multinacionais terá o efeito oposto.

O mundo está enfrentando diversas crises, que incluem mudanças climáticas, desigualdade, desaceleração do crescimento e deterioração da infraestrutura. Nada disso pode ser resolvido sem governos que tenham bons recursos. Infelizmente, as propostas atuais para reformar a taxação mundial simplesmente não dão conta. As multinacionais devem ser obrigadas a fazer a sua parte.

Nos 15 anos da morte do filósofo francês

JACQUES DERRIDA, O ÚLTIMO SUBVERSIVO

Há de ser fundamentalmente honesto para figurar entre os filósofos vivos mais importantes e escrever um último livro cujas primeiras páginas figuras a anedota de um psicanalista que confessa os limites de sua compreensão do mundo. Há que ser imensamente humano e comedido para escrever, em outro livro final, sou “um espectro inelutável que nunca aprendeu a viver”. Quando ambos piscares pertencem a um filósofo, então podemos antecipar que a experiência da leitura será uma revelação subversiva. Esse autor é Jacques Derrida (1930-2004), um dos filósofos franceses mais impactantes do século XX e XXI. O artigo é de Eduardo Febbro, publicado por Página/12. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

Sua obra não está em nada manchado de filosofia moral, de conselhos caseiros, compêndios políticos, doutrinas ideológicas, esquivas psicanalíticas ou divagações sem estrutura. Pelo contrário, Derrida pertence a essa geração de pensadores franceses que, junto a Michel Foucault, Roland Barthes, Emmanuel Levinas, Claude Lévi-Strauss ou Gilles Deleuze, irrompeu com ou uma originalidade e um poder de crítica radical a partir dos anos 1960.

Sua caneta (no sentido mais puro e primitivo do termo, o mais inspirado) é de uma beleza excitante. Os classificadores catalogaram entre as figuras centrais do pós-estruturalismo e a filosofia pós-moderna. No entanto, recorrer a ambos catálogos carece de interesse. Entre Derrida e o caixão onde se pôs meio uma obra totêmica, profusa e polifônica. Pudesse ser pinto, pianista ou fotógrafo. Foi tudo isso junto, no sentido de que um dos seus biógrafos, Benoît Peeters, o retrata como “o filósofo-artista”.

Sua esmagadora modéstia existencial inspira essa linhas, cujo propósito não consiste em um breve tratado de filosofia, em um árduo elogio acadêmico ou uma análise preconceituosa de sua obra. Se trata de devolver a descura de uma presença humana e a frondosa herança de uma obra que semeou um extenso campo de objeções a nosso instante contemporâneo antes mesmo de que esse se disparasse com a potência com que reina hoje. Prova disso, essa citação que parece escrita ontem: “As produções de massa que inundam a imprensa e a edição não formam os leitores, mas sim supõem de maneira fantasmagórica e primária a existência de um leitor já programado. De tal forma que estas produções terminam por formatar esse destinatário medíocre que postularam por adiantado”.

A nefasta empresa de colonização mental e cultural cabe nessas frases: a doença invasora de Game of Thrones, os Vingadores, a netflixdominação, o cinema contaminado pela pura sensibilidade norte-americana e todos os canais pelos quais o liberalismo penetra nas redes sociais bastam como prova de sua pertinência. Jacques Derrida foi o criptógrafo que desnudou o código mecânico de muitos sistemas e, ao mesmo tempo, um homem sem paz. Precisamente, na introdução de sua biografia Benoît Peeters anota que “escrever a vida de Jacques Derrida é contar a história de um judeu da Argélia, excluído da escola aos 12 anos (foi expulso pelas leis antissemitas decretadas na França durante a Segunda Guerra Mundial), que se converte no filósofo francês mais traduzido no mundo, é a história de um homem frágil e atormentado”.

A distância entre esse homem intimamente esmagado, sua obra límpida e seus compromissos lúcidos e firmes é considerável. Em ação, Derrida era um hipermoderno antes do tempo. Seus compromissos políticos incluíam oposição ao apartheid e a defesa de Nelson Mandela, apoio a imigrantes ilegais, casamento entre pessoas do mesmo sexo, contra a repressão dos regimes comunistas e contra tudo o que poderia manchar a igualdade ou a liberdade. Seu conceito mais controverso, "desconstrução", teve uma enorme influência muito, muito além da esfera filosófica. Foi e é um suporte teórico fundamental do feminismo, estudos sobre pós-colonialismo, crítica literária, direito e até arquitetura.

Hoje, o conceito de desconstrução pode parecer um ataque. Fora dos direitos extremos, ninguém está muito disposto a desconstruir nada, muito menos aceitar como as manipulações em massa funcionam (internet, redes sociais, tecno-consumo) e agir em conformidade (desconstruí-las). Jacques Derrida postulou-o com um estilo próprio, no qual ele sabia combinar filosofia e literatura de uma maneira misteriosa. Abordar os arcanos da desconstrução não requer um esforço matemático. Por isso, permitirei uma digressão popular (os acadêmicos serão escandalizados). Quando criança, Jacques Derrida queria ser um jogador de futebol profissional. O futebol é um jogo organizado por regras e por armadilhas. A desconstrução derridiana é equivalente a desconstruir as regras e as armadilhas e revelar que há algo não dito entre elas que faz parte da construção. Desconstruir não significa ser contra (futebol, filosofia, etc.) ou destruir, mas mostrar o que é implicitamente circulado e não percebido para, então, ver quais são as suposições e, consequentemente, expandir as perspectivas. Com esse método, Derrida "decompôs" as oposições binárias em vigor em toda a filosofia ocidental de Platão: fora/dentro, escrita/palavra, homem/animal, essência/aparência, etc. Derrida, ao questionar os textos dos filósofos, concentrou-se no que estava em branco, nas expressões sem importância, nos adjetivos ambíguos, no flutuante. O logocentrismo consagrado do Ocidente foi, portanto, reduzido ao nada, à medida que novos sentidos e significados renovados emergiram. Isso deu a Derrida uma avalanche de ataques. Em 1992, quando a Universidade de Cambridge decidiu conceder-lhe o título de doutor honoris causa, um movimento foi organizado contra ele. Seus detratores o acusavam de não ser filósofo, de falta de rigor, de não incorporar nenhuma tradição analítica válida.

Talvez essa incursão no que não consta na aparência, no que está nas margens, se deva em parte à sua própria vida. Derrida foi excluída desde a infância. Como judeu na França, imerso em colaboração com o invasor nazista. Como filósofo em um sistema oficial que o rejeitou (a Universidade de Sorbonne negou-lhe uma posição). Como militante a favor de causas que, nas décadas de 70, 80 e 90, eram minorias. Ele nunca cedeu. Como pensador político que não entrou na intimidação do comunismo ou do maoísmo, nem mais tarde quando, nos anos 80, o liberalismo iniciou seu processo monumental de recolonização planetária. Derrida era um homem livre, original, amplo e inimitável. É desnecessário perguntar-se sobre sua herança porque o contra-progressimo e a ideologia contra-cultural de massas arrasaram com tudo. Fica a aventura pessoal de lê-lo, do lado de fora, como se estivéssemos caminhando por um jardim ou por uma avenida limpa e pura, sem lojas e toda a infecção manipuladora que oprime o mundo contemporâneo. Leia modestamente, como uma maneira de desconstruir a mentira deste mundo e redescobrir todos os sentidos e lucidez que carregamos por dentro.

Escândalo financeiro no Vaticano:

ÓBOLO DE SÃO PEDRO, OS CONFRONTOS SECRETOS ENTRE DUAS PARTES

Mais que uma investigação - documentos em mãos - a história assume os contornos de uma caça às bruxas. Um confronto interno entre poderes e uma montanha de dinheiro no meio a ser administrada. O caos no Vaticano começou em 2 de julho com uma denúncia apresentada aos magistrados pelo diretor geral do IOR, Gian Franco Mammì. Antes de chegar a cumprir um ato formal tão grave Mammì tinha passado previamente pelo Papa Francisco - com quem ele tem um relacionamento antigo e muito próximo - para obter a aprovação e informar que a Secretaria de Estado havia lhe solicitado um financiamento. de 150 milhões de euros para saldar uma hipoteca onerosa em um imóvel de luxo em Londres, no cruzamento da Avenida Draycott com Ixworth Place. Mammì estava enfurecido. A reportagem é de Franca Giansoldati, publicada por Il Messaggero. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU.

A carta

No mês anterior, em 4 de junho, o Substituto da Secretaria de Estado, o venezuelano Pena Parra, havia enviado um funcionário (um dos cinco investigados) para entregar ao IOR uma carta com a solicitação de liberação, urgentemente, de 150 milhões de euros. Para "razões institucionais não especificadas", observam os magistrados. O pedido de financiamento foi para o exame - como é de praxe -, mas Mammì se opõe e não o concede. Não o considera “compatível com os fins estatutários específicos do instituto”.

Em tal ponto, a solicitação é bloqueada e, portanto, na semana seguinte, o monsenhor Pena Parra retorna ao ataque para solicitar uma resposta pedindo "uma antecipação da liquidez por razões institucionais da Santa Sé". Quais são essas razões? Pelos documentos dos magistrados é explicado que o dinheiro é necessário para pagar um empréstimo já contratado em outro banco que incide em um imóvel londrino de propriedade da Secretaria de Estado.

Elementos obscuros

Segundo os magistrados (e o IOR), é uma solicitação "que evidencia alguns elementos de opacidade, considerando que não especifica o beneficiário de tais somas". No entanto, na carta que Pena Parra envia ao IOR, relata a Mammì em detalhes que esse montante é necessário para o pagamento das hipotecas pendente no imóvel. Hipotecas contraídas por uma empresa de propriedade da Secretaria de Estado que, por sua vez, detém a propriedade de um ativo dado em garantia. Todas as transações em questão referem-se a um período de cerca de 12 meses.

Enquanto isso, o Escritório de Auditoria Geral – um departamento que tem a obrigação de auditar todas as realidades administrativas da cúria - começou a destrincar as operações em andamento. Assim, em 8 de agosto, enviou um documento aos magistrados do Vaticano para informar que a maioria das atividades financeiras da Secretaria de Estado resultam depositadas no Credit Suisse, nas filiais suíças e italianas, onde se concentra quase 80% da carteira gerenciada. Uma montanha de dinheiro. A verdadeira origem do confronto parece estar justamente nisso.

A arma de fumaça.

O facto é que o dinheiro da Secretaria de Estado não está depositado no IOR, mas em outra instituição de crédito. O Auditor Geral fala assim de conflitos de interesse, uma vez que trata das doações recebidas do Papa para as obras de caridade, para a manutenção da cúria, na prática o Óbolo de São Pedro. Os magistrados observam que se trata de valores vultuosos "aplicados em fundos que, por sua vez, investem em títulos dos quais o cliente não sabe os detalhes, bem como em fundos alocados em países offshore como Guernsey e Jersey, de alto risco especulativo e duvidosa ética”.

Contornos especulativos

A falta de controle direto do IOR sobre o dinheiro depositado no Credit Suisse, de acordo com o Auditor Geral, indicaria os contornos "claramente especulativas das operações, com o risco de expor todo o Estado a riscos patrimoniais e de reputação". Para resumir: o dinheiro investido em outro lugar "poderia ser usado para fins incompatíveis com aqueles que os geraram" e, como resultado, o Óbolo de São Pedro poderia ser posto em perigo, enquanto que, se fosse administrado pelo IOR, os riscos seriam anulados.

Os magistrados a partir de escutas telefônicas e investigações reconstroem a sequência das atividades financeiras da Secretaria de Estado e concluem que as "atividades de aquisição de imóveis para fins de investimento" são reservadas apenas à APSA, que a Secretaria de Estado não informou ao Conselho de Economia que o empréstimo solicitado não responde a finalidades religiosas, que existem transações financeiras pouco claras.

Abuso de autoridade

"Esses elementos permitem evidenciar como, na gestão, podem ser identificados os sinais de crime de abuso de autoridade" para os cinco funcionários da Secretaria de Estado que acabaram sob investigação e suspensos das funções de forma preventiva Agora, a autoridade judiciária terá que verificar se eles efetivamente administravam as operações de forma autônoma ou não. À espera do próximo episódio desse confronto sem iguais entre os poderes.

Sínodo Amazónia. Dois depoimentos

1 MAIS UMA VEZ AS MULHERES NÃO VOTAM

2 E VOCÊ, IRMÃ, O QUE TEM A DIZER?

Os depoimentos são publicados por L'Osservatore Romano – donne chiesa mondo - setembro 2019. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU Eis os depoimentos.

1 Paola Lazzarini

Sou uma mulher crente, cresci em uma família cristã e aprendi a amar o Senhor e sua Igreja. No meu caminho, sempre aceitei como dado de fato ter um confessor homem, ver as catequistas dependerem do pároco e também a mim - quando prestei este ou outros serviços eclesiais - aconteceu o mesmo.

Então nasceu minha filha e comecei a ver a realidade com olhos diferentes: a desvantagem socioeconômica das mulheres começou a se tornar intolerável para mim, mas o que me fez sofrer foi perceber o quanto fosse subordinada a condição das mulheres na Igreja, a minha comunidade

Então, me vi revendo minha história e repensando a quando eu tinha vinte anos e comecei a me fazer as primeiras perguntas sobre a vocação. Lembrei-me do sentimento de injustiça quando percebi que, para os sacerdotes que nos acompanhavam, a vocação de meus amigos homens tinha mais interesse, quase mais valor, do que a minha ou das minhas amigas.

Como mãe, perguntei-me: em que Igreja minha filha crescerá? Numa igreja em que toda autoridade é apenas masculina? Em que se conta que as mulheres são doces e acolhedoras e, ao contrário, os homens são racionais e capazes de liderança?

Comecei a conversar sobre isso com outras mulheres e percebi que era uma experiência comum; então fundei a associação 'Mulheres para a Igreja' que quer ajudar as mulheres a se tornarem agentes reconhecidas de mudança, em um sentido igualitário, na Igreja.

Agora, às vésperas do Sínodo sobre a Amazônia, que discutirá sobre aquelas terras, mas também sobre a Igreja universal, pergunto-me como justificar o facto de que, mais uma vez, a moção final não será votada pelas mulheres. Há um ano, por ocasião do Sínodo sobre os jovens, colaboramos para coletar quase dez mil assinaturas e pedir o direito de voto pelo menos para as superioras maiores presentes, mas sem sucesso. Desta vez vai mudar alguma coisa? Ter a possibilidade de expressar 1-2 votos numa assembleia de 300 pessoas é algo pequeno, mas seria pelo menos um sinal.

No blog “Il Regno” Piero Stefani escreveu: “Um drama da Igreja Católica atual é que o acto das mulheres de se emanciparem da diaconia para entrar na dimensão plena do discipulado é muitas vezes obrigado a assumir o aspecto da reivindicação”...

Para mim, que não gosto de reivindicação, mas desejo uma Igreja mais justa, é difícil entender o que fazer. Uma coisa, no entanto, eu entendi: sou filha, não escrava e, portanto, sou livre para falar, agir e, acima de tudo, esperar uma Igreja igualitária para minha filha e para todas as meninas, garotas, mulheres do mundo.

2 Zuzanna Flisowska, Gerente Geral de Voices of Faith

Mulheres corajosas e criativas que não têm medo de ir às margens para entender melhor o mundo em transformação, para levar o Evangelho às situações mais difíceis e às pessoas mais desesperadas. Mulheres consagradas. A Igreja está acostumada a enviá-las ao mundo para levar justiça. Mas será capaz de reconhecer seu potencial de trazer justiça dentro dela mesma?

Falaremos sobre isso no dia 3 de outubro na Biblioteca Vallicelliana, na reunião “E você irmã, o que tem a dizer?”, Promovido pela Voices of Faith, que há sete anos trabalha para uma Igreja que valoriza suas mulheres - inclusive como líderes, especialistas e teólogas. Dez oradoras de todo o mundo discutirão o papel das mulheres consagradas na formação da Igreja do amanhã.

Não é por acaso que o encontro ocorrerá pouco antes do Sínodo dos Bispos, que delineará o futuro da Igreja na Amazônia. Embora dedicados à situação específica da região, também teremos que nos perguntar sobre a própria organização desses processos de tomada de decisão e sobre o motivo pelo qual as irmãs não fazerem parte dele, apesar de estarem entre as pessoas mais envolvidas no quotidiano das comunidades cristãs.

O encontro será aberto pela famosa "Nun on the Bus", Simone Campbell, envolvida no debate sobre cuidados de saúde pública nos EUA, seguida de um diálogo entre Irene Gassmann, prioresa do mosteiro suíço de Fahr e o bispo Felix Gmür, presidente da Conferência Episcopal do mesmo país. Outras sete palestrantes falarão sobre sua experiência em contextos culturais específicos, formulando propostas para a Igreja universal (Anne B. Faye, Mary J. Mananzan, Doris Wagner, Chris Burke, Shalini Mulackal, Madeleine Fredell e Teresa Forcades). Também ouviremos uma gravação de Marinella Huapaya Venegas, leiga consagrada do Peru, que falará sobre a Igreja local, onde os leigos, por necessidade, são responsáveis pelas comunidades e pela liturgia. O evento terminará com a oração "Passo a passo", composta por mulheres de diferentes contextos eclesiásticos, sob a orientação da Prioresa Gassmann.

Outras beneditinas do mosteiro Fahr chegarão a Roma, especialmente para este encontro e para o coletiva de imprensa em 1º de outubro, às 17h, na Associação de Imprensa Estrangeira. No ano passado, antes do Sínodo sobre os jovens, elas participaram da campanha #votesforchatolicwomen e sua foto ficou famosa em todo o mundo. Em apenas alguns dias, o apelo para conceder o voto às religiosas presentes nos sínodos foi assinado por quase dez mil católicos.

A atividade dessas irmãs mostra que a discussão sobre igualdade na Igreja não é um capricho, nem deseja seguir modelos do "mundo", mas é o resultado de uma profunda experiência de oração e da contemplação da mensagem do Evangelho.

Edição 150, Setembro 2019

Jacques Távora Alfonsin

SE ENVENENAR A TERRA É ÓPTIMO NEGÓCIO, NÃO IMPORTA QUE ELA MORRA?

"São de tal poder os interesses em causa, que a febre do licenciamento rápido desses venenos acabou confirmando estudos sobre poluição e meio ambiente comprobatórios da força de dominação que o agronegócio exerce sobre o Estado e controla as informações relativas aos prejuízos que o uso dos venenos agrícolas e também da mineração causam à terra, aos alimentos que ela produz e, consequentemente, a todo o mundo que os consome", escreve Jacques Távora Alfonsin, procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul e membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos.

Desde janeiro de 2019 são frequentes e bem fundamentadas as denúncias contrárias ao número crescente de venenos agrícolas liberados para venda no Brasil. No site da RBA, edição de 17 deste setembro, circula a notícia de que mais 63 dessa espécie de tratamento da terra e do que ela produz, receberam licença para serem comercializados:

“Agora são 353 em menos de nove meses, os venenos autorizados desde o início do governo de Jair Bolsonaro (PSL). O país líder no consumo desses produtos vai se tornando também o paraíso para fabricantes, importadores e exportadores. {..} Há quatro princípios altamente tóxicos em 10 novas liberações, como o clorfenapir, banido no Reino Unido, e o Fipronil, que não foi aprovado nem nos Estados Unidos nem pelos britânicos".

Aos interesses econômicos das empresas transnacionais fabricantes desses venenos, somam-se os do agronegócio nativo, indicando de maneira clara que a velocidade atualmente imposta para as licenças não são nada inocentes. Contam com o apoio oficial para, danosas que sejam ao meio ambiente do país e do mundo todo, tenham oportunidade de se garantir como fato consumado, antes que alguma tragédia ou alguma reação de ordem legal, inclusive partindo do Ministério Público, diminua os lucros dos grandes negócios agora contando com a chamada “segurança jurídica”, sempre reclamada para “investimentos” (?) desse tipo.

São de tal poder os interesses em causa, que a febre do licenciamento rápido desses venenos acabou confirmando estudos sobre poluição e meio ambiente comprobatórios da força de dominação que o agronegócio exerce sobre o Estado e controla as informações relativas aos prejuízos que o uso dos venenos agrícolas e também da mineração causam à terra, aos alimentos que ela produz e, consequentemente, a todo o mundo que os consome.

Em sentido contrário à disseminada acusação que o agronegócio e as empresas mineradoras usam contra ambientalistas como advogados do alarmismo, a Comissão de Saúde e Meio ambiente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul publicou um Relatório Verde, no ano passado, sob o título de “Agricultura familiar, produção de alimentos saudáveis e preservação ambiental”, com uma coletânea de artigos organizada por Lino de David e outras/os, em vários se demonstrando as consequências desastrosas da utilização dos agrotóxicos sobre a terra, os riscos aí implicados, bem como de outros efeitos nocivos ao meio ambiente, que os projetos de mineração ali podem provocar.

O agrônomo Demilson Figueiró Fortes analisa o “soja: o grão que ameaça o pampa”, o “debate em torno dos eucaliptos e celulose”, o que tanto o soja como o eucalipto ainda poderão causar ao aquífero guarani; o projeto Retiro Mineração e as ameaças que ele provoca sobre a Lagoa do Peixe, situada entre a Lagoa dos Patos e o oceano Atlântico. Este projeto “afetará potencialmente comunidades de pescadores e agricultores”, além de toda “uma área de fundamental importância para conservação de aves migratórias”; o projeto de mineração Caçapava do Sul “que prevê a extração de metais pesados (cobre, chumbo e zinco), distante apenas 800 metros das margens do Rio Camaquã, na região das Guaritas, considerada uma das sete maravilhas do Rio Grande do Sul.”

É de se imaginar o que este agrônomo não diria sobre o Mina Guaíba - se o seu texto tivesse sido escrito neste ano de 2019 - objeto de forte questionamento por estar projetado praticamente a margem do rio Jacuí, em grande parte responsável pelo abastecimento de água da capital gaúcha.

Mesmo sob o forte impacto dessas iniciativas, quase em sua totalidade demonstrando quando não a cumplicidade, quase sempre a fragilidade do Poder Público em enfrenta-las, não faltam exemplos de tratamento condizente com um uso respeitoso da terra e do meio ambiente, atestando a possibilidade de bens desse valor não precisarem ser tão mal tratados para serem fonte de boa convivência humana, emprego e renda. Tudo sob um outro modelo de vida, trabalho e atividade produtiva.

Em posicionamento totalmente diferente daquele que inspira o açodamento atualmente presidindo o processo de licença para comercialização dos venenos agrícolas, Adalberto Floriano Greco Martins, doutor no programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRGS, escreve na mesma coletânea publicada pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, um artigo sobre “Produção ecológica de arroz dos assentamentos da região metropolitana de Porto Alegre: um caso de gestão participativa e geração de conhecimentos.”

Como se estivesse retratando a enorme distância que separa decisões administrativas e judiciais da realidade material dos conflitos gerados por disputa de terras, quando elas se limitam a examinar documentos e mapas, fazendo baixar suas ordens em leis que uniformizam situações completamente diferentes como se fossem iguais, Adalberto desvela o poder decisivo dos interesses que “territorializam” o espaço terra. Os últimos exercem o seu poder em “malha concreta” de solo, oposta “à malha abstrata, concebida e imposta pelo poder do Estado.” Mostra como o modelo capitalista diverge do modelo camponês, naquilo que mais interessa ser respeitado, ou seja, sob quais formas o uso desse espaço obedece a um programa, uma finalidade, pois é aí que ele pode ser julgado socialmente. Com base em Claude Raffestin, Adalberto lembra:

“Essencial compreender bem que o espaço é anterior ao território. O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um autor sintagmático (autor que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço concreto ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator territorializa o espaço {..} O território nessa perspectiva {..} revela relações marcadas pelo poder.” “O poder se manifesta por ocasião da relação. É um processo de troca ou de comunicação quando, na relação que se estabelece, os dois fazem face um ao outro ou se confrontam. As forças de que dispõem os dois parceiros (caso mais simples) criam um campo: o campo do poder.”

É claro que não se pode correr o risco da generalização, mas a distinção logo depois analisada por Adalberto Martins entre a territorialidade presidida pelo poder econômico capitalista e a protagonizada pelo camponês, dá a esse uma nítida superioridade no que respeita ao meio ambiente:

“Estas práticas sociais dos movimentos camponeses geram conhecimentos novos, com profundo conteúdo emancipatório, como visto nos processos de defesa das sementes crioulas e na contraposição às sementes geneticamente modificadas, bem como na produção de alimentos saudáveis, na campanha contra o uso dos agrotóxicos e na luta ela soberania alimentar.”

Em contraposição, e com base em Sergio Lessa, Adalberto identifica as formas capitalistas de exploração da terra. Nessas “as forças produtivas seguem se desenvolvendo como forças de dominação, forças destrutivas.” {...} “A ciência atual ganhou esta formatação das forças produtivas para o desenvolvimento do capital. Esta formatação era uma possibilidade e foi determinada pela forma social existente, não sendo obra da própria ciência. Ao ser formatado pelo capitalismo, o conhecimento foi exaurido do seu elemento emancipador. E sob esta relação social não se conseguiu imaginar outra forma de desenvolvimento e outra forma de ver a relação homem-natureza,”.

À “liberdade de iniciativa econômica”, então, ciosamente defendida pelo agronegócio interessado em licenciar ao máximo a comercialização de agrotóxicos para envenenar a terra, com poder de mata-la, se contrapõem organizações populares de libertação social desse aparente modelo único. Como “o caminho se faz ao caminhar”, o campesinato associado em cooperativas de produção, sediadas em assentamentos de reforma agrária, por exemplo, seguem provando existir alternativas de uso respeitoso da terra, do meio ambiente, sem necessidade de trata-la indefesa, como qualquer mercadoria. O empoderamento desse tipo de postura frente a um bem indispensável à vida de todo o ser humano, por isso, tem de ser assumido como missão da cada um, e isso pode ser feito a partir do boicote massivo à atual política pública de licenciamento indiscriminado da comercialização dos venenos agrícolas. A terra agradece.

Joseph Stiglitz e Ladislau Dowbor comentam

PODERIA O CAPITALISMO SER MENOS BRUTAL?

Em manifesto, 102 executivos-chefes de mega-corporações prometem refrear a própria voracidade e não pensar apenas nos lucros. Revisão dos dogmas neoliberais ou jogada de marketing? Joseph Stiglitz e Ladislau Dowbor comentam. "O mercado consegue fazer com que as empresas não enxerguem no longo prazo e não invistam suficientemente em seus trabalhadores e comunidades. Por isso, é um alívio que líderes corporativos, que supostamente deveriam ter uma visão profunda e interna do funcionamento da economia, finalmente tenham visto a luz e se atualizado com a economia moderna, mesmo tendo demorado mais de 40 anos para perceber isso", escreve Joseph Stiglitz, economista e prémio Nobel da Economia, em artigo publicado por Outras Palavras. A tradução é de Simone Paz /IHU.

Será exagerado dizer que o capitalismo está à procura de novos rumos? As grandes corporações atuam no espaço planetário, onde não há governo, regulação ou regras do jogo. As maiores simplesmente não pagam imposto, ou recolhem 0,05% dos lucros como a Apple. Os desastres ambientais e sociais estão se generalizando, mas para as corporações trata-se de “externalidades”. A desigualdade atinge níveis explosivos, mas os bancos vão bem. Em paraísos fiscais temos 200 vezes mais recursos financeiros do que o a Conferência Mundial sobre o Clima decidiu, e mal consegue, levantar. Fraudes em medicamentos, alimentos que generalizam a obesidade, inclusive infantil, trambiques em emissões de veículos, agrotóxicos e antibióticos nos alimentos — é um clima de vale-tudo.

A indignação está se generalizando, e 181 corporações (gigantes como Amazon, JPMorgan, Apple etc.) decidiram que o credo que valia desde os anos 1980, com Milton Friedman, de que as empresas devem pensar apenas nos lucros, não é suficiente. Os impactos ambientais e sociais que provocam fazem parte das suas responsabilidades. Após 40 anos de neoliberalismo irresponsável, há novos caminhos? É saudável recebermos a notícia com ceticismo, a cosmética corporativa tem longa tradição. Mas também é fato que pelo jeito as corporações estão sentindo o calor da irritação social. Stiglitz faz a proposta essencial: novas leis e regras devem ancorar essas boas intenções corporativas. (Ladislau Dowbor)

Nas últimas quatro décadas, a doutrina prevalecente nos EUA tem sido a de que as corporações devem potencializar os valores para seus accionistas — isto é, aumentar os lucros e os preços das ações — aqui e agora, não importa o que aconteça, sem se preocupar com as consequências para os trabalhadores, clientes, fornecedores e comunidades. Logo, a declaração que defende um capitalismo consciente e que foi assinada este mês por quase todos os membros da Business Roundtable causou um grande alvoroço. Afinal de contas, trata-se dos executivos-chefes das companhias mais poderosas dos EUA, dizendo aos norte americanos que o mundo dos negócios é muito mais do que apenas balanços patrimoniais. E isso é uma baita virada de jogo, não é mesmo Milton Friedman, o teórico do livre mercado e ganhador do Prémio Nobel de Economia, influenciou não somente espalhando a doutrina da supremacia dos acionistas, mas também garantindo que fosse inscrita na legislação estadunidense. Ele chegou a declarar “há somente uma responsabilidade social nos negócios: usar seus recursos e comprometê-los em atividades que aumentem seus lucros”.

A ironia está no fato de que logo após Friedman ter promovidos tais ideias, e mais ou menos na época em que elas se popularizavam e consagravam nas leis da administração corporativa — como se fossem baseadas em teorias económicas sólidas — Sandy Grossman e eu, num conjunto de artigos do final dos anos 1970, demonstramos como o capitalismo accionário não melhorava o bem-estar social.

Isto é obviamente verdadeiro quando há tantas “externalidades” relevantes, como a mudança climática, ou como quando as corporações contaminam o ar que respiramos e a água que bebemos. E isto é ainda mais verdadeiro quando nos empurram produtos prejudiciais à saúde, como bebidas açucaradas que colaboram com a obesidade infantil, ou analgésicos que desatam uma epidemia de vício em opioides, ou quando exploram os vulneráveis, como é o caso da Trump University e tantas outras instituições de ensino superior norte-americanas com fins lucrativos. E também é real quando lucram exercendo o poder de mercado, como tantos bancos e empresas de tecnologia fazem.

Mas é ainda mais verdadeiro de modo geral: o mercado consegue fazer com que as empresas não enxerguem no longo prazo e não invistam suficientemente em seus trabalhadores e comunidades. Por isso, é um alívio que líderes corporativos, que supostamente deveriam ter uma visão profunda e interna do funcionamento da economia, finalmente tenham visto a luz e se atualizado com a economia moderna, mesmo tendo demorado mais de 40 anos para perceber isso.

Mas será que esses líderes empresariais pregam essa mudança de verdade, ou seria somente uma declaração num gesto retórico, em face de uma reação popular contra o tão disseminado mau comportamento? Há razões para acreditar que eles estão sendo mais do que apenas um pouco dissimulados.

A principal responsabilidade das corporações é o pagamento de impostos, e entre os signatários da nova visão empresarial estão mega-evasores de impostos, incluindo a Apple, que, de acordo com suas contas, continua utilizando paraísos fiscais, como Jersey. Outros deles, apoiaram a nova política de impostos proposta em 2017 por Donald Trump. Ela reduz os impostos para corporações e bilionários, elevará os impostos para a maioria das famílias de classe média e fará com que milhares percam seus seguros de saúde — num país com o nível de desigualdade mais elevado, os piores resultados na área da saúde, e a menor expectativa de vida, entre os principais países economicamente desenvolvidos. E embora esses líderes de mercado defendam que o corte de impostos traz mais investimento e melhores salários, os trabalhadores acabam recebendo apenas uma ninharia. A maior parte do dinheiro acaba sendo utilizada para recomprar ações, o que serve para, basicamente, alinhar os bolsos dos investidores e dos executivos-chefes com esquemas de incentivo e valorização das ações.

Um senso de responsabilidade sincero e verdadeiro faria com que líderes de corporações aceitassem regulamentações mais fortes para proteger o meio ambiente e para melhorar a saúde e segurança de seus empregados. Algumas poucas companhias automobilísticas (Honda, Ford, BMW e Volkswagen) têm feito isso, defendendo regras mais firmes do que as impostas pelo governo Trump, já que o presidente atual trabalha no desmonte do legado ambiental construído por Barack Obama. Há inclusive executivos de empresas de bebidas não-alcóolicas que parecem estar envergonhados pela sua influência na obesidade infantil, a qual costuma levar à diabetes, pois eles sabem disso.

Porém, embora muitos executivos-chefes queiram fazer o correto (ou tenham familiares e amigos que se preocupam com essas questões), eles sabem que têm concorrentes que não. Deveria existir condições equitativas, que garantissem que empresas conscientes não se vissem prejudicadas por aquelas que não têm preocupação alguma. É por isso também que muitas corporações desejam e pedem normas contra as propinas, e querem regras que protejam o meio ambiente, além da segurança e saúde nos locais de trabalho.

Infelizmente, muitos dos grandes bancos cujo comportamento irresponsável provocou a crise financeira global de 2008 não estão nesse grupo. Mal havia secado a tinta da legislação da reforma financeira da Lei Dodd-Frank, em 2010 — a qual endureceria as normas, com o intuito de evitar a recorrência das crises — quando os bancos começaram a trabalhar para revogar algumas das medidas-chave. Entre eles, estava o JPMorgan Chase, cujo diretor é Jamie Dimon, presidente atual do Business Roundtable. Considerando as políticas norte americanas, tão pautadas pelo dinheiro, não surpreende o fato de que os bancos tenham esse êxito todo. Uma década após a crise, alguns bancos ainda lutam contra ações judiciais movidas por aqueles que foram prejudicados em vista de seu comportamento irresponsável e fraudulento. Eles esperam que seus grandes bolsos permitam-lhes permanecer na disputa mais do que quem os processa.

A nova postura dos directores mais poderosos dos EUA é, obviamente, bem vinda. Mas teremos que esperar para ver se se trata somente de mais um golpe publicitário, ou se eles realmente estão sendo verdadeiros. Enquanto isso, precisamos de uma reforma legislativa. O pensamento de Friedman não só deu aos executivos-chefes uma desculpa perfeita para fazerem tudo o que sempre quiseram, como também conduziu leis de governação corporativa que deram suporte e incorporaram o capitalismo accionário na estrutura legal dos EUA e na de tantos outros países. Isso precisa mudar, de modo que as corporações não só possam, como sejam obrigadas a considerar as consequências de seu comportamento sobre os demais colaboradores.

Tina Beattie

A TEORIA DE GÉNERO E A EDUCAÇÃO CATÓLICA

Se a hierarquia católica pudesse abrir mão do seu medo e resistência a qualquer sugestão de fluidez ou de diversidade de gênero, ela descobriria que a tradição católica é, em si mesma, fluida em relação aos gêneros”, escreve Tina Beattie, teóloga inglesa, especialista em questões de ética e de feminismo, professora de Estudos Católicos na Universidade de Roehampton, em Londres, em artigo publicado por Catholic Theological Ethics in the World Church. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU. Eis.

Os debates sobre gênero têm uma capacidade poderosa de dominar o discurso público, inflamar as paixões e provocar confrontos furiosos entre conservadores religiosos e ativistas de gênero de vários tipos.

Nessa atmosfera febril, muitos católicos podem receber orientações bem informadas do Vaticano sobre como engajar os jovens de modo significativo em um diálogo sobre a teoria de gênero. A Congregação para a Educação Católica publicou agora um documento que pretende oferecer isso. “Homem e mulher os criou: para uma via de diálogo sobre a questão do gender na educação” [disponível aqui, em português] define os termos para o diálogo sobre gênero e educação sexual com base em “três princípios orientadores” – “escutar, analisar e propor”.

Isso sugere que o documento poderia oferecer um engajamento informado e apaziguador com a compreensão científica e teórica atual em relação às questões de gênero, em estreito envolvimento com a literatura acadêmica relevante. Mas, antes mesmo que a palavra “diálogo” seja mencionada, ele já estabeleceu suas condições em termos inequívocos, deixando claro que o termo “gênero” pode ser usado legitimamente apenas para se referir a identidades e relações binárias heterossexuais. Em muito pouco tempo, encontramo-nos de volta na selva fechada do dogma cego e da rotulação preconceituosa que se tornaram características da abordagem do Vaticano ao que ele chama de “ideologia de gênero”.

Qualquer questionamento do “dimorfismo sexual” divinamente ordenado e biológica e psicologicamente encarnado é um sintoma de declínio cultural e resulta da adoção de uma “antropologia contrária à fé e à reta razão”. A teoria de gênero é o produto de uma mentalidade relativista que promove um processo de “desnaturalização”. Isso desestabiliza a família, anula a diferença sexual e torna o gênero uma questão de escolha pessoal dirigida pela vontade individual e não é informada por qualquer consideração pelas estruturas e valores da sociedade. A teoria de gênero promove uma “utopia do ‘neutro’”, e a ideia da neutralidade de gênero ou de um terceiro gênero é uma “construção fictícia”.

Citações e notas de rodapé referem-se apenas a outros documentos vaticanos e escritos papais. Em outras palavras, a insistência de que escutar é fundamental para o diálogo não é respeitada ou modelada de forma alguma na redação desse documento da Congregação para a Educação Católica. Tudo isso esvazia o seu reconhecimento declarado de um campo comum compartilhado com os teóricos de gênero, baseado na necessidade de promover uma melhor compreensão da diferença sexual e de evitar todas as formas de bullying e preconceito.

Estritamente falando, o documento é consultivo e não tem autoridade, e os responsáveis pela educação católica têm o direito de ignorá-lo. No entanto, há rumores de que a Congregação para a Doutrina da Fé também está planejando um documento sobre gênero, e, se isso for verdade, eu temo o que ele poderá conter. O texto da Congregação para a Educação Católica oferece ricas pepitas para os muitos críticos da Igreja na mídia secular. Teólogos como eu podem se consolar com a indicação do status sem autoridade do documento, mas isso, com razão, tem pouco valor quando buscamos engajamento público.

Mas o mais importante é a angústia que isso cria para os católicos LGBTQI que se esforçam para ser fiéis à Igreja e verdadeiros a si mesmos, ou para os pais que procuram oferecer apoio amoroso e afirmação aos filhos que lidam com questões de identidade e de gênero – filhos que têm um alto risco de suicídio e de problemas de saúde mental. Eu penso nos muitos cristãos que conheço que não se conformam com o “vaticanês” de documentos como esse, que estão oferecendo lares amorosos a seus filhos e que estão lutando como todo casal faz para construir relações sustentáveis, fiéis e amorosas em uma cultura de valores duramente individualistas e consumistas.

Essas pessoas estão frequentemente na linha de frente da resistência à cruel brutalidade dos nossos sistemas políticos e econômicos modernos, apoiando refugiados, trabalhando com os sem-teto, fazendo campanhas pela proteção ambiental. Eu conheço essas pessoas. São meus amigos e colegas, meus estudantes e vizinhos. Eles fazem parte da comunidade à qual eu e inúmeros outros católicos modernos pertencem, e pelos quais nos responsabilizamos quando nossas desinformadas lideranças da Igreja emitem documentos como esse.

Se a hierarquia católica pudesse abrir mão do seu medo e resistência a qualquer sugestão de fluidez ou de diversidade de gênero, ela descobriria que a tradição católica é, em si mesma, fluida em relação aos gêneros. A linguagem da teologia católica e particularmente dos textos devocionais e místicos se abre a um arranjo poético e prismático de relações de gênero, tecendo o humano e o divino em relações intensas de amor erótico, maternal e filial, e de amizade que evitam todos os binários sexuais. Eu uso a carta apostólica Mulieris dignitatem do Papa João Paulo II para ensinar teologia de gênero. Posso identificar pelo menos cinco gêneros diferentes nesse documento, com base em vários apelos à eclesiologia nupcial e à diferença sexual.

O Papa Francisco usou o termo “colonização ideológica” para condenar aquilo que ele vê como dominação cultural ocidental das sociedades mais pobres, particularmente através da promoção da teoria de gênero. No entanto, pode-se argumentar que a moderna família nuclear é, em si mesma, uma forma de colonização ideológica, exportada ao redor do mundo por potências europeias e missionários cristãos pelo menos ao longo dos últimos 500 anos. A família moderna pode ter feito mais do que qualquer outra instituição para cortar relações de parentesco estendidas e para contribuir com a fragmentação de comunidades interdependentes. Com suas demandas insaciáveis por estilos de vida cada vez melhores e oportunidades que alimentem o crescimento econômico, a família de classe média da modernidade tardia pertence a uma cultura do individualismo isolado com suas bases políticas neoliberais – uma ordem política e econômica que todos os papas recentes insistem que é antitética a uma compreensão católica da sociedade.

À medida que culturas e grupos diferentes reivindicam suas histórias a partir das metanarrativas dominantes do imperialismo ocidental, estamos descobrindo que o gênero nas sociedades tradicionais é um conceito mais diverso e fluido do que o racionalismo pós-iluminista foi capaz de acomodar. Isso é verdade tanto no catolicismo pré-moderno quanto em outras comunidades e culturas tradicionais.

Nada do que estou dizendo aqui nega a beleza da compreensão católica do casamento como um amor unitivo e às vezes procriativo que pode ser interpretado como uma analogia do amor entre Deus e a humanidade através da vida sacramental da Igreja. Eu também não estou dizendo que tudo o que emana da teoria de gênero é necessariamente útil ou saudável. Estou apenas salientando que há muito a se aprender em ambos os lados, se os teóricos de gênero e os teólogos católicos realmente estiverem dispostos a dialogar sobre possibilidades e limites, incluindo questões de finitude e vulnerabilidade, dignidade e relacionalidade.

Se o documento produzido pela Congregação para a Educação Católica é um reflexo preciso do nível de compreensão e engajamento que a hierarquia está disposta a trazer para a mesa de diálogo, então seria melhor para todos nós que eles simplesmente ficassem quietos, pois eles não a têm competência, o respeito e o conhecimento para contribuir significativamente com esse diálogo.

Edição 149, Junho 2019

O pároco que dorme no adro da igreja

'AGUARDO AQUI O NAVIO SEA WATCH COM MIGRANTES A BORDO PROIBIDO DE ATRACAR NA ITÁLIA'

Noites a céu aberto, no adro da paróquia de San Gerlando, já se passaram cinco: alguns colchões de borracha, algumas almofadas e cobertores térmicos para todos, aqueles que se tornaram o símbolo da primeira recepção para os migrantes. "Enquanto aquelas 42 pessoas estiverem obrigadas a dormir na ponte do Sea Watch, ficaremos aqui", diz Dom Carmelo, enquanto com um grupo de cidadãos do Fórum de Solidariedade Lampedusa, se prepara para passar mais uma noite nos degraus da igreja. A reportagem é de Alessandra Ziniti, publicada por La Repubblica. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Estão com ele os voluntários da Mediterranean Hope da Federação de Igrejas Evangélicas, mas também há pescadores, comerciantes, donas de casa, trabalhadores e pedreiros. E não há noite que alguns turistas não se juntem a eles. "Muitos apareceram, nos disseram que querem participar de uma iniciativa de civilidade e solidariedade", declara Dom Carmelo, que recebeu no dia anterior o apoio de Emma Bonino. "Todos nós deveríamos ir a Lampedusa para dormir com o pároco no adro da igreja, porque esta é uma vergonha para a Europa e para a Itália."

O domingo teve grande participação na paróquia. Houve a procissão de Corpus Christi com o pensamento sempre naquele navio, que já tantas vezes atracou em Lampedusa, e que há 12 dias zigzagueia na faixa das 15 milhas, fora das águas territoriais.

Dom Carmelo La Magra, 38 anos, três anos de pároco na ilha, faz questão de ressaltar que não se trata de uma manifestação de protesto, mas de solidariedade. Cujo eco chegou a bordo com um vídeo que filmou uma pequena multidão envolta em cobertores térmicos que levantava cartazes com as letras formando a frase: You are not alone.

“Para essas pessoas forçadas a suportar esse outro tormento, é importante saber que elas não estão sozinhas. Pediram isso para do convés do navio com uma faixa e nós estamos aqui", diz Dom Carmelo.

Na ilha que conferiu à Lega 45 por cento dos votos nas eleições europeias, Dom Carmelo lidera sua batalha com uma decisão cada vez maior. "Não devemos dar um peso especial ao voto das europeias, aqui a maioria dos cidadãos não foi votar porque se sente abandonada pelo Estado. Aquele Estado para o qual pedimos não só para abrir os portos, mas também os aeroportos, para colocar essas pessoas em condições de poder vir legalmente. Salvini continua a beijar o crucifixo, mas não respeita o Evangelho. Se realmente quiser lutar contra os traficantes e salvar vidas, que abra os aeroportos".

Ao lado de Dom Carmelo os jovens voluntários das Igrejas evangélicas. "Decidimos nos apresentar para dar voz àqueles que não podem falar no momento e fazemos isso na Praça da Igreja, que ao longo dos anos recebeu milhares de migrantes. Estamos aqui para defender seu direito de serem acolhidos", afirma Alberto Mallardo, da Mediterranean Hope.

Para Dom Carmelo e seus paroquianos, é a quinta noite ao ar livre, para a Sea Watch é a décima primeira. E para Carola Rackete, a comandante, são horas de tremenda tensão. Para desbloquear uma situação já bem próxima do limite do insustentável, poderia não ter outra saída senão declarar o estado de emergência a bordo e entrar primeiro nas águas italianas (um passo que também permitiria ao Ministério Público de Agrigento avaliar a situação) e depois no porto. Sabendo que, com o decreto de segurança em vigor, o confisco do navio e uma multa de até 50.000 euros seriam praticamente inevitáveis.

Até mesmo Matteo Salvini sabe perfeitamente que a permanência dos 42 migrantes a bordo do navio (entre eles, há também uma criança de 12 anos que viaja sozinha) não pode estender-se por muito mais tempo. Por esta razão, o Ministro do Interior, que não pretende permitir a entrada do navio mesmo em caso de redistribuição de migrantes em outros países) escreveu ao seu colega holandês convidando-o a tomar iniciativas urgentes: "Em caso de agravamento da situação a bordo, a responsabilidade é exclusivamente da Holanda e do comandante”.

Alex Mikulich

TRABALHAR PARA VIVER OU VIVER PARA TRABALHAR?

Depois de escrever esta coluna por oito anos, ela finalmente tem um nome: “Descolonizando a Fé e a Sociedade”. Descolonizando? O que isso significa? Não progredimos para além dos colonialismos do passado? Em suma, ainda não nos movemos para além dos modos coloniais de pensar e de ser. O comentário é de Alex Mikulich, eticista social católico, em artigo publicado por National Catholic Reporter. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

No artigo de hoje, eu levanto a questão: a maioria dos norte-americanos trabalha para viver ou vive para trabalhar? A questão expõe como o nosso sistema económico prioriza sistematicamente os lucros sobre as pessoas e transforma o trabalho humano em mercadoria. Como sociedade, tendemos a esconder esse modo colonial de fazer e de ser pelos mitos que contamos a nós mesmos sobre o “sonho americano”, o individualismo e o “self-made man” patriarcal.

Talvez tenhamos ido além das administrações governamentais formais baseadas na colonização de culturas e países inteiros. No entanto, o atual presidente [dos EUA] e muitos norte-americanos parecem grotescamente ignorantes em relação ao fato de que os EUA mantêm um relacionamento colonial com Porto Rico e com mais de 300 terras tribais indígenas americanas.

Baseando-se no ensino social católico e nas tradições místico-proféticas, meus artigos questionam incessantemente as premissas assumidas como evidentes da modernidade ocidental, incluindo os pressupostos da salvação secular, o chamado “sonho americano” e a ideia de que os EUA estão sempre progredindo rumo a ideais mais elevados de liberdade, igualdade e solidariedade.

Embora a história popular norte-americana sempre ressalte o progresso moderno, ela também tende a esconder o que o acadêmico Walter Mignolo chama de “The Darker Side of Western Modernity” [O lado mais sombrio da modernidade ocidental], as múltiplas formas pelas quais a globalização econômica foi construída sobre o genocídio dos povos originários, sobre terras roubadas, sobre a difamação de imigrantes recém-chegados e sobre a escravidão. Mignolo demonstra como os últimos 500 anos de modernidade e colonialidade dependem da dispensabilidade e descartabilidade humanas.

Considere-se a precária situação das pessoas que trabalham para viver na chamada “gig economy”. Eu recentemente me tornei motorista de uma dessas empresas de aplicativos de transporte para complementar a renda da minha família. Eu explico para as pessoas que me perguntam que, ao se dirigir para essas empresas, sequer se recebe um salário mínimo. As empresas de aplicativos de transporte, como a Uber e a Lyft, não compensam os motoristas pelos custos do combustível ou da manutenção do carro, muito menos fornecem algo próximo a um salário vivível.

Ao longo dessa experiência, eu cheguei a uma nova visão sobre o que o economista britânico Guy Standing chama de “The Precariat: The New Dangerous Class” [O precariado: a nova classe perigosa]. Standing explica que muitas pessoas estão agora trabalhando para viver em situações financeiras incessantemente incertas. Ele ilustra como o precariado consiste em pelo menos três grupos diferentes: pessoas que perderam seus empregos devido à desindustrialização, refugiados que estão fugindo de crises econômicas e climáticas, e elites bem-instruídas que foram reduzidas a várias formas de emprego temporário (incluindo trabalhadores graduandos e professores adjuntos).

O problema é que cada vez mais pessoas estão lutando para chegar ao fim do mês entre vários empregos temporários ou sem qualquer emprego. De fato, como motorista de empresas de aplicativos de transporte, eu percebo que muitas vezes estou transportando as pessoas entre o seu segundo e terceiro emprego. A vulnerabilidade econômica e a incerteza do precariado são exacerbadas pelo fato de que a rede de segurança social foi dilacerada nos últimos 40 anos.

Como relata a Vox, grupos como o Rideshare Drivers United de Los Angeles, o Boston Independent Drivers Guild e o Chicago Rideshare Advocates coordenaram greves contra a Uber e a Lyft em pelo menos uma dezena de cidades estadunidenses no último dia 8 de maio. O economista Lawrence Mishel constatou que os motoristas de empresas de aplicativo de transporte ganham menos de 12 dólares por hora; eu ganho tão pouco quanto três dólares por hora, mesmo durante as horas de pico (e mantenho a classificação mais alta dos passageiros). Para as pessoas que precisam dirigir em tempo integral para chegar ao fim do mês, trata-se de salários de pobreza.

Embora a Uber tenha pagado 45 milhões de dólares ao seu CEO [diretor-executivo] no ano passado, a Business Insider disse que ela pagou mais ainda ao seu COO [diretor de operações]. Enquanto isso, as empresas poupam dinheiro esquivando-se intencionalmente das leis trabalhistas dos EUA. Ao classificar os motoristas como contratados independentes em vez de empregados, as empresas não pagam certos impostos, benefícios, horas extras ou um salário mínimo para milhares de motoristas. De acordo com a lei dos EUA, os profissionais autônomos não desfrutam de direitos legais para formar sindicatos e negociar contratos supostamente estendidos a empregados de tempo integral. Digo supostamente, porque a sindicalização e a negociação coletiva estão se erodindo há décadas.

Como relata a Vox, a Uber admitiu esse ponto em um recente arquivamento junto à Securities Exchange Commission. Discutindo os “fatores de risco”, a Uber afirma que, se for exigido que ela classifique os motoristas como empregados, eles incorrerão em “despesas adicionais significativas” por meio das “leis salariais e de horas de trabalho (incluindo salário mínimo, horas extras e requerimentos de intervalos para as refeições e para o descanso), benefícios, contribuições previdenciárias, impostos e penalidades”.

Mesmo que as empresas de aplicativos de transporte e outras pagassem um salário mínimo de 15 dólares por hora, isso seria insuficiente para cobrir os custos básicos de vida em muitas cidades dos EUA. Um recente estudo da City Harvest constatou que duas em cada cinco residências da cidade de Nova York, mais de 2,5 milhões de pessoas, “não têm renda suficiente para cobrir apenas as necessidades”.

O mesmo estudo descobriu que, com base no salário mínimo de 13 dólares por hora em Nova York, uma “mãe solteira precisaria trabalhar 140 horas por semana, 3,5 empregos de tempo integral, para chegar ao fim do mês”. Um salário real para uma família deveria pagar 33 dólares por hora em cidades como Nova York.

A gig economy, explica o economista Mishel (veja o estudo citado acima), não é a economia do futuro. Eu espero que não. No entanto, em outros setores econômicos, quando uma empresa como o Walmart fatura 10 bilhões de dólares em um ano e paga salários de fome aos seus trabalhadores, os lucros dominam sobre as pessoas. Ou, quando as companhias de seguro ditam o nível e a extensão do atendimento aos pacientes para os profissionais de saúde, os lucros dominam sobre as pessoas.

Mesmo para as elites econômicas que podem estar prosperando com salários muito acima do salário mínimo, a concorrência obriga muitos a viajar e/ou a trabalhar longas horas que limitam severamente o tempo para cuidar das crianças e/ou dos idosos. O sistema exige que trabalhemos para viver em vez de viver de modo a sustentar a biodiversidade planetária e as relações comunitárias e mutuamente colaborativas.

Embora lamentemos com justiça o facto de o presidente Trump ter feito mais de 10.000 declarações falsas ou enganosas durante o seu mandato, incluindo a de que ele não cumpriu sua promessa de campanha de trazer de volta os empregos industriais, há uma profunda mentira que a nossa cultura e o nosso sistema econômico perpetuam: a de que a nossa economia serve às pessoas acima dos lucros.

Existem outras formas de viver. As cooperativas de trabalhadores e outras formas de vida comunitária provaram ser mais eficazes na criação e na manutenção de empregos sustentáveis e dignos, gerando riqueza e promovendo o desenvolvimento comunitário e econômico, do que as empresas focadas exclusivamente na maximização do lucro.

No entanto, como sociedade, parece que não temos a capacidade de imaginar outras maneiras de viver. Descolonizar a fé e a sociedade exige um questionamento incessante dos pressupostos assumidos como evidentes pelo sistema dominante. Enquanto não questionarmos os pressupostos fundamentais do sistema, o imperativo atual para o crescimento econômico infinito continuará ameaçando toda a vida do modo como a conhecemos.

Íntegra da Nota de Juízes pela Democracia EXONERAÇÃO DE MORO E ‘IMEDIATA SOLTURA DE LULA’

Em nota divulgada na noite de domingo, após a divulgação das reportagens do The Intercept sobre a colaboração possivelmente ilegal do ex-juiz Sérgio Moro com procuradores da Operação Lava Jato, a Associação Juízes para a Democracia (AJD) e a Associação Latinoamericana de Juízes do Trabalho (AJLT) defendem que o ex-presidente Lula deveria ser solto após as revelações feitas pelo site e Moro deve ser exonerado do cargo de Ministério da Justiça. A informação é publicada por Sul21 /IHU

“As denúncias trazidas a público na data de hoje confirmam isso, revelando uma relação promíscua e ilícita entre integrante do Ministério Público e do Poder Judiciário”, diz a nota, que, na sequência, diz que os processos da Operação Lava Jato deveriam ser anulados diante dos fatos. “É absolutamente imprescindível e urgente, portanto, para o restabelecimento da plena democracia e dos princípios constitucionais no Brasil, a declaração de inexistência de todos os processos que se desenvolveram em razão da Operação Lava-Jato, inclusive daqueles que determinaram as condenações e a prisão do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, por flagrante violação ao artigo 254, IV, Código de Processo Penal e à Constituição da República”.

Ao final, consideram que a soltura de Lula e demais envolvidos na Lava Jato como necessária para a retomada do “Estado Democrático de Direito”. “A be a ALJT, considerando que tais fatos não foram negados na nota expedida por Sérgio Moro, exigem a imediata soltura do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva e de todas as vítimas do processo ilícito relevado pelos diálogos que vieram a público na data de hoje, bem como a exoneração do Ministro Sérgio Moro e investigação dos integrantes do Ministério Público Federal referidos na aludida reportagem, atos essenciais para a retomada do Estado Democrático de Direito em nosso país, condição para a superação da crise político-institucional em curso e o retorno à normalidade democrática”, finaliza a nota. Ei-la na íntegra:

A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA – AJD e ASSOCIAÇÃO LATINOAMERICANA DE JUÍZES DO TRABALHO – ALJT, entidades cujas finalidades abrangem, com destaque, o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito, têm o compromisso de lutar, de forma intransigente, por uma democracia sólida e comprometida com a justiça, com a redução das desigualdades, com a dignidade da pessoa humana e com o fortalecimento da participação popular democrática e do bem estar da população, como exige a nossa Constituição, e por isso vêm a público manifestar-se diante das informações divulgadas pelo jornal The Intercept Brasil, na reportagem publicada na data de hoje, sobre comunicações realizadas entre o procurador federal Deltan Dallagnol e o atual Ministro da Justiça Sergio Moro.

As denúncias contidas em tal reportagem revelam que quando ainda exercia função de Juiz na operação Lava-Jato, o atual Ministro Sérgio Moro aconselhou, ordenou, e, em determinados momentos, agiu como órgão acusador e investigador, num verdadeiro processo inquisitorial. A notícia revela seletividade, discriminação e violações de direitos humanos e princípios constitucionais, algo que já vem sendo insistentemente denunciado por nossas entidades.

No curso dos processos que culminaram com a prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, a fixação da elástica competência do órgão jurisdicional que concentrou os julgamentos relativos à operação Lava Jato, ao arrepio das normas processuais aplicáveis e do devido processo legal; o abandono do elementar princípio da congruência entre denúncia criminal e sentença e a não demonstração com prova robusta de todos os elementos constitutivos do tipo penal invocado na imputação, como no caso do ato de ofício para a caracterização de corrupção passiva, além de critérios ad hoc, exóticos e inéditos de dosimetria da pena definida, já indicavam a possibilidade, a probabilidade e a razoabilidade da percepção da prática de lawfare.

As denúncias trazidas a público na data de hoje confirmam isso, revelando uma relação promíscua e ilícita entre integrante do Ministério Público e do Poder Judiciário.

Não há falar em Democracia, sem um Poder Judiciário independente, imparcial e comprometido com o império dos direitos humanos e das garantias constitucionais, sobretudo o devido processo legal e a presunção de inocência, para a realização de julgamentos justos, para quem quer que seja, sem qualquer discriminação ou preconceito, sem privilégios ditados por códigos ocultos e sem a influência de ideologias políticas ou preferências e crenças pessoais.

É absolutamente imprescindível e urgente, portanto, para o restabelecimento da plena democracia e dos princípios constitucionais no Brasil, a declaração de inexistência de todos os processos que se desenvolveram em razão da Operação Lava-Jato, inclusive daqueles que determinaram as condenações e a prisão do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, por flagrante violação ao artigo 254, IV, Código de Processo Penal e à Constituição da República.

A AJD e a ALJT, considerando que tais fatos não foram negados na nota expedida por Sérgio Moro, exigem a imediata soltura do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva e de todas as vítimas do processo ilícito relevado pelos diálogos que vieram a público na data de hoje, bem como a exoneração do Ministro Sérgio Moro e investigação dos integrantes do Ministério Público Federal referidos na aludida reportagem, atos essenciais para a retomada do Estado Democrático de Direito em nosso país, condição para a superação da crise político-institucional em curso e o retorno à normalidade democrática.

Brasil, 09 de junho de 2019.

Jean-Claude Guillebaud

A ECONOMIA TORNOU-SE UMA RELIGIÃO

Não é difícil identificar a conotação sacrificial que está por trás das palavras que moemos de manhã à noite. A palavra ‘dívida’, por exemplo, sugere uma ideia de culpa e até de pecado”, escreve Jean-Claude Guillebaud, jornalista, escritor e ensaísta francês, em artigo publicado por La Vie, 27-05-2019. A tradução é de André Langer. “Esta retórica é ainda mais claramente religiosa quando examinamos as promessas do discurso dominante. Penso no famoso ‘crescimento’, que sabemos que não voltará tão cedo, mas cuja vinda nós anunciamos, dia após dia, como São Paulo evocava a parusia”, acrescenta. Em nossa sociedade, assim, a “economia tende a tornar-se uma religião”, uma “religião profana”

O debate para as eleições europeias irá provar mais uma vez a importância da economia. Esta última tende a tornar-se uma religião. Na nossa França laica e republicana, nem sempre percebemos isso, mas deixamos que essas religiões, ditas de substituição, proliferem. Essas que Raymond Aron chamou de “religiões profanas”. Ele designou assim as ideologias, mas também – por extensão – a economia. Ora, nos últimos anos, a economia tornou-se religião profana. Ela não inspira apenas inquietações, mas a linguagem que usamos para falar sobre isso e falar sobre o “social” é agora uma língua morta, ou quase morta. Esta linguagem está impregnada de uma religiosidade arcaica e admoestativa, que me surpreende que não seja mais criticada. É um clericalismo em pele de coelho.

Não é difícil identificar a conotação sacrificial que está por trás das palavras que moemos de manhã à noite. A palavra “dívida”, por exemplo, sugere uma ideia de culpa e até de pecado. Diante de uma dívida, suspeita-se da existência de um fracasso, de um egoísmo, de uma prodigalidade culpada. Repetir a um povo que ele está há muito tempo em dívida é dizer que é gravemente culpado e convidá-lo a fazer penitência.

Tudo se passa hoje, como se cada um dos 66,99 milhões de franceses (em 1º de janeiro de 2019) fosse culpado de uma falta, a qual é convidado a quitar o mais rápido possível. O peso desta dívida, diz-se, corre o risco de “recair sobre nós e nossos filhos”, como está escrito no Evangelho de Mateus (27, 25), e como repetem semanalmente ou quase muitos dos meus colegas. Este pecado, em suma, é “original”. Aqui estamos nós!

Quando se repete aos povos – como o faz muitas vezes Emmanuel Macron – que eles devem suportar resignadamente a perda de seus serviços públicos, fala-se com eles como quando Satanás se dirigiu a Jó. Se Deus intervém in fine para salvá-lo, é porque Jó, mesmo miserável e coberto de chagas, renunciou a se queixar, ou seja, ao “populismo”. Gostaria de acrescentar que este longo sofrimento social imposto aos cidadãos é semelhante às “macerações” penitentes recomendadas no século XVI pela espiritualidade de Inácio de Loyola.

Esta retórica é ainda mais claramente religiosa quando examinamos as promessas do discurso dominante. Penso no famoso “crescimento”, que sabemos que não voltará tão cedo, mas cuja vinda nós anunciamos, dia após dia, como São Paulo evocava a parusia (a segunda vinda de Cristo), uma parusia tão próxima que ele escreveu na Epístola aos Coríntios: “O tempo se faz curto”.

Como observava certa vez meu colega Bernard Maris, assassinado pelos jihadistas com a equipe do Charlie Hebdo, a ideia (crédula) de um crescimento infinito não está longe do sonho da imortalidade, ou seja, da vida eterna. Nós trabalhamos teimosamente para realizar este dogma, até mesmo destruindo o que resta do planeta. Vou acrescentar uma última observação sobre o tempo do discurso político dominante. Repetitivo e incansável, ele corresponde à definição do verbo salmodiar: “recitar ou cantar de maneira ritualística e monótona salmos ou orações”. É assim que os homens vivem?

Sucena Shkrada Resk /IHU

ASSUSTADOR É NÃO OUVIR MAIS OS ZUMBIDOS DAS ABELHAS

"A combinação de pesticidas, mudança no uso do solo e monocultura extensiva são as principais ameaças na atualidade à manutenção das cerca de 30 mil espécies de abelhas polinizadoras no planeta. Mais um dado a ser gravado: 75% dos cultivos para nossa alimentação dependem delas, de acordo com a FAO, braço para alimentação e agricultura da ONU. Não podemos esquecer que esse agente fundamental de serviços ecossistémicos também produz o mel e é inspiração até para a arquitetura, por sua habilidade na construção das colmeias", escreve Sucena Shkrada Resk, jornalista, especialista lato sensu em Meio Ambiente e Sociedade e em Política Internacional, pela FESPSP, e autora do Blog 'Cidadãos do Mundo'

Ouvir os zumbidos das abelhas para muitos pode ser algo assustador, mas ao contrário do que você possa pensar, mais assustador é justamente não ouvir esses zumbidos. A resposta é simples: esses agentes da natureza responsáveis pela maior parte da polinização no planeta estão sendo literalmente exterminados. Por consequência, foi colocada em risco a conservação da biodiversidade e da nossa segurança alimentar. Este é o presente para o futuro que queremos? Vale a pena a reflexão, não é?

Segundo alerta global feito pela Organização das Nações Unidas (ONU), a combinação de pesticidas, mudança no uso do solo e monocultura extensiva são as principais ameaças na atualidade à manutenção das cerca de 30 mil espécies de abelhas polinizadoras no planeta. Mais um dado a ser gravado: 75% dos cultivos para nossa alimentação dependem delas, de acordo com a FAO, braço para alimentação e agricultura da ONU. Não podemos esquecer que esse agente fundamental de serviços ecossistêmicos também produz o mel e é inspiração até para a arquitetura, por sua habilidade na construção das colmeias. Essas informações foram suficientes para te deixar sensibilizado? Se não foram, vamos lá!

Exemplos sucessivos têm sido noticiados, há anos, no Brasil e em diversos países do mundo, como EUA e na União Europeia. Entre os mais recentes por aqui está uma série de casos que foram apurados pela Agência Pública e pela Repórter Brasil. De dezembro do ano passado a fevereiro de 2019, foi registrada a morte massiva de mais de 500 milhões de abelhas, sendo 400 milhões só no Rio Grande do Sul e as demais nos estados do Mato Grosso do Sul, de Santa Catarina e de São Paulo.

As fontes primárias sobre estas ocorrências são diversas: associações de apicultores, pesquisadores em universidades e secretarias de agricultura, entre outras. E os casos não param por aí. Também há registros históricos no Ceará, no Distrito Federal, em Goiás, em Mato Grosso, em Minas Gerais, no Paraná e no Rio de Janeiro. E olhe, que aqui no Brasil, temos a predominância somente de seis espécies nativas.

Responsabilidades compartilhadas

Apesar de pequenos avanços isolados por iniciativa da gestão pública no país, por meio de legislações, a pulverização aérea ainda é o principal meio que acelera este extermínio. Por isso, além de ações, como do estado do Ceará e do Ministério Público em todo país, o ideal seria que a maior parte dos gestores públicos e legisladores tomassem as iniciativas da proibição, por meio da conscientização, consulta e pesquisa a relatos vivenciais e técnicos.

Pesquisas científicas esclarecem que entre os componentes de pesticidas e fungicidas, o mais mortal para as abelhas no mundo, têm sido o neonicotinoide, derivado da nicotina (já proibido pela União Europeia, em maio de 2018) e há sinalização para o comprometimento provocado pelo Fipronil, também proibido na Europa.

Este colapso acontece ao mesmo tempo em que o Brasil amplia a liberação de agrotóxicos. A autorização é pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em consonância com o Ministério da Agricultura e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama). Só neste ano, 169 até a terceira semana de maio. No ano passado, o total em 12 meses foi de 450.

Estudos de caso

O vídeo-reportagem “Medo da Primavera – uma hecatombe em andamento”, que trata do caso no município de Mata, no Rio Grande do Sul, tem quase vinte minutos, e é uma amostra que contém relatos que nos fazem compreender um pouco sobre a dinâmica do que está ocorrendo. Uma frase de um personagem ecoa – “A abelha sumindo...nós somos os próximos”. No último dia 22 de maio, movimentos e associações, além de pesquisadores e cientistas do estado entraram com uma representação, no Ministério Público Federal (MPF), pedindo a proibição do uso de agrotóxico relacionado à mortalidade em massa das abelhas nesse município.

Além dos agrotóxicos, as mudanças climáticas também estão pressionando a existência das abelhas. Pesquisa feita por cientistas da Universidade Estadual da Flórida e colaboradores, publicada na Ecology Letters, em 2017, constata que a alteração do clima afeta a disponibilidade de flores e alimentos para as próprias abelhas. Foram estudadas espécies locais. O grupo também reforçou o comprometimento provocado pelos neonicotinoides. Outro estudo recente é da Northwestern University e do Chicago Botanic Garden. Houve a simulação de um clima mais quente, no qual 35% das abelhas morreram no primeiro ano e 70%, no segundo ano. No Brasil, a Associação Brasileira de Estudos das Abelhas é mais uma fonte interessante para consulta sobre o tema.

Liberações de agrotóxicos

Existe mais um lado da análise, com relação à saúde humana, que é tão importante quanto ao tocante às abelhas. De acordo com o Relatório Nacional de Vigilância em Saúde de Populações Expostas a Agrotóxicos 2018, do Ministério da Saúde, a maior incidência de notificação de intoxicações por agrotóxicos no Brasil foi registrada em 2014, no Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan): 6,26 casos para cada 100 mil habitantes. Entre 2007 e 2015, foram notificados (oficialmente) 84.206 casos. Imagine quantos também estão subnotificados.

Copo meio cheio

Ao mesmo tempo que há este alerta, bons exemplos também existem no planeta, que servem de inspiração para reverter este colapso da relação humana com o meio ambiente. Uma delas tem a participação direta da própria sociedade e vem da Grã-Bretanha. O Conselho Municipal de Brent, em Londres, decidiu plantar 11 km de flores silvestres em espaços verdes para atrair as abelhas. Que tal seria seguir esses passos por aqui?

Edição 148, Maio 2019

Julia Kristeva

OS ESTRANGEIROS, A GLOBALIZAÇÃO E OS NACIONALISMOS CONTEMPORÂNEOS

“Estigmatizando com pleno direito as tendências nacionalistas, certas ideologias progressistas subestimaram, senão até negaram, o sentido fundador e o valor de consolidação da identidade nacional.” O jornal L’Osservatore Romano publicou um excerto de um artigo de autoria da filósofa, linguista e psicanalista búlgaro-francesa Julia Kristeva, publicado na última edição da revista Vita e Pensiero. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Todos nós constatamos isto. O estrangeiro obceca a globalização: Itália, Hungria, Venezuela... Não tem nada a ver com um fantasma, como foi o caso do espectro do comunismo que obcecava a Santa Aliança Europeia (de acordo com o “Manifesto do Partido Comunista”) mais de um século e meio atrás.

A insustentável presença dos estrangeiros é bem mais disruptiva e real, dentro e fora das nossas fronteiras, mesmo que ela esteja fortemente sobrecarregada de fantasmas imaginários. Quando elevam os olhos dos seus selfies hiperconectados, os “tuiteiros” nativos despertam como estrangeiros no seu próprio país. Alguns, aterrorizados pela onda migratória, a “grande substituição”; outros, surpresos por se encontrarem eles mesmos como estrangeiros, como temporários autoempresários da uberização transfronteiriça; desempregados ou agricultores em territórios desertificados; crianças que não tomam café da manhã antes da escola, e outras “diversidades” que podem ser encontradas entre aqueles que são deixados para trás pelo “sistema”.

Fora da rede, os “curtidores” e os “seguidores” perdem a ilusão virtual de “viver juntos”, não acreditam mais nisso, são estrangeiros à procura de um país que não existe. A hiperconexão beira a desorientação; a pós-verdade e as fake news provocam e exacerbam o sentimento – o ressentimento – de estranheza [estraneità].

Em 1988, há mais de 30 anos, eu escrevi “Stranieri a noi stessi” [Estrangeiros para nós mesmos], que foi tomado como um livro. Era um grito. E eu gostaria hoje de ouvir algumas ênfases, na convicção de que as nossas reflexões só poderão encontrar o seu sentido sob a condição de que permaneçamos à escuta dessa condição humana que põe em discussão o Estado-nação e custa a acreditar até mesmo na razão política:

“Estrangeiro: raiva estrangulada no fundo da garganta, anjo negro que perturba a transparência, traço opaco, insondável. Figura do ódio e do outro, o estrangeiro não é nem a vítima romântica da nossa preguiça familiar, nem o intruso responsável por todos os males da cidade. Nem a revelação esperada, nem o adversário imediato a ser eliminado para pacificar o grupo. Estranhamente, o estrangeiro nos habita: é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína o nosso lar, o tempo em que se aprofundam o entendimento e a simpatia. Reconhecendo-o em nós, poupamo-nos de detestá-lo nele. Sintoma que torna justamente o ‘nós’ problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência da minha diferença e termina quando todos nos reconhecemos estrangeiros, rebeldes aos vínculos e às comunidades. O ‘estrangeiro’, que era o ‘inimigo’ nas sociedades primitivas, pode desaparecer nas sociedades modernas?”

Essa estranheza essencial, que as diversas variantes da sedentarização – alternando “enraizamentos” e exílios – tinham cicatrizado mais ou menos, é brutalmente despertada de novo pela globalização nas mãos do virtual. O Estado-nação ainda é o recipiente ideal dessa nova humanidade à qual aspira um “país que não existe”? A minha resposta é “sim”; a nação é um antidepressivo, sob a condição de que se conecte – mas a que preço? – aos conjuntos superiores, regionais e culturais (a Europa, por exemplo). Um antidepressivo que não pode mais abrir mão do “gênero humano”. Mas que deve, por isso, retomar, interrogar e refundar não apenas as culturas nacionais, mas também a memória das religiões constituídas, que afirmam possuir um “vínculo unificador”, um vínculo que transcende as comunidades étnicas e políticas historicamente constituídas. E refundar o próprio humanismo universal, que se separou delas, que as interroga questiona e que se interroga.

Por que o não pertencimento ao grupo (família, clã, tribo, nação, “sistema”) que distingue o estrangeiro dentro e fora compromete a minha identidade e até me ameaça com um colapso identitário? Como a identidade é um componente incerto, com uma solidez relativa e frágil, ela é tranquilizada pelo pertencimento a um grupo, ou talvez seja este, no fim das contas, que a constitui inteiramente. Recordemos a observação de Marcel Proust: na França, a máxima de Hamlet, “ser ou não ser”, tornou-se “ser ou não ser eles” – célebre fórmula retomada por Hannah Arendt e que responde ao sarcasmo de Voltaire: “Tornamo-nos devotos por medo de não ser nada”...

Para nós, seres falantes, o grupo (família ou nação) não garante unicamente uma continuidade biológica (natural) e econômica (que consiste em se beneficiar dos bens essenciais): o grupo constrói e conserva o sentido, dimensão constitutiva do ser humano. Da minha linguagem, dos meus valores, da minha cultura histórica, o grupo é o habitat (a palavra grega ethos significa inicialmente “habitat”). O grupo desobriga à ética! O ser falante que eu sou, habita os seus progenitores, a sua tradição e a sua linguagem, que são o meu ethos, a minha ética.

Portanto, entende-se que ser eles (pertencer a um grupo, a uma família, a uma nação) pode servir de antidepressivo. O que tem efeitos colaterais tóxicos. A família e a nação que são os meus antidepressivos degeneram bem rápido – infelizmente! – em paixão maníaca de perseguição, passiva e ativa, e autodestrutiva. Mas (na etapa atual da existência do Homo sapiens) a minha identidade estruturalmente precisa disso; ora, a estranheza, os estrangeiros, põem em risco essa identidade e correm o risco de destruí-la.

Estigmatizando com pleno direito as tendências nacionalistas, certas ideologias progressistas subestimaram, senão até negaram, o sentido fundador e o valor de consolidação da identidade nacional.

Naturalmente, a globalização desenfreada deve ser regulada e otimizada. Esses processos estão em andamento, mas ela impõe e imporá modificações aceleradas das identidades nacionais. Mas, quando, com pleno direito, nos voltarmos contra o populismo, não nos esqueçamos das ênfases populistas dos fundadores da própria nação republicana, em seus primórdios.

Sieyès: “O povo sempre prostrado”. Robespierre: “Os infelizes me aplaudem”. Ai, porém, da negação que maltrata esse antidepressivo que é a nação e da qual Giraudoux dizia: “As nações, assim como os homens, morrem de descortesias imperceptíveis”. As nossas negações frequentemente são muito mais que simples descortesias.

Nós somos chamados, em virtude da economia, da mídia, da história, a coabitar com e entre estrangeiros em um país, a França, por sua vez em curso de integração a uma Europa ameaçada pela desintegração. Encaminhamo-nos rumo a nação-quebra-cabeças feita de diversas particularidades, em que o dominante demográfico é, por enquanto, francês – mas até quando?

Pela primeira vez na história, somos levados a viver com “diversidades”, tendo que apostar prioritariamente, senão unicamente, em códigos morais pessoais, sem que haja um conjunto que, abraçando as nossas particularidades, possa contê-los, orientá-los, transcendê-los.

Eu não sou otimista, vocês devem ter entendido, mas, como pessimista enérgica, descubro com os meus analistas que só a análise dos fracassos nos permitirá ancorar o vínculo unificador à estranheza e à necessidade de crer, imanente em cada um de nós. Para ajudar a dar vida a essa atualidade prática da nação que é a coesão republicana.

Emilce Cuda

O FUTURO DIGNO DOS TRABALHADORES, PARA A TRANSIÇÃO ECOLÓGICA

O trabalho é um direito, não apenas um meio económico de subsistência. É também, e principalmente, o modo pelo qual o ser humano pode se manifestar como tal, expressar sua capacidade e criatividade, e constituir sua identidade em relação aos outros, à natureza e ao seu criador”, escreve Emilce Cuda, doutora em teologia moral social pela Pontifícia Universidade Católica Argentina, em artigo publicado por Religión Digital. A tradução é do Cepat /IHU

O que acaba é o emprego assalariado. O trabalho remunerado irá substituí-lo. Isso requer uma mudança de percepção sobre a riqueza. A ideia de que o trabalho só pode ser concebido como emprego assalariado em condições de exploração foi naturalizada em função de uma acumulação obscena da renda.

Em fins do séc. XX, a Organização Internacional do Trabalho estabeleceu como meta de luta o "trabalho decente". No entanto, a situação atual, de acordo com os dados da própria OIT, é de 190 milhões de desempregados, 2 bilhões de trabalhadores na economia informal, 300 milhões de pessoas na pobreza e 3 milhões de mortes por doenças relacionadas ao trabalho. Além disso, até 2030 devem ser criados 344 milhões de trabalho sustentáveis. A encíclica social Laudato Si’ denuncia a crise ecológica e levanta a aposta. Agora, o objetivo urgente é "trabalho digno".

Lutar pelo trabalho decente fazia sentido em um contexto de pleno emprego. Hoje, a questão do trabalho não é apenas a indecência das condições de trabalho - como denunciava a Rerum Novarum, em fins do séc. XIX -, mas também a impossibilidade de uma vida humana digna. Os trabalhadores explorados do passado, hoje são trabalhadores descartados, mas continuam sendo trabalhadores. Quem não vive da renda é um trabalhador, empregado ou desempregado, segundo a Teologia do Povo hoje representada pelo Papa Francisco.

Se a condição de trabalhador é retirada dos seres humanos, isso impede a dignidade. O trabalho é um direito, não apenas um meio econômico de subsistência. É também, e principalmente, o modo pelo qual o ser humano pode se manifestar como tal, expressar sua capacidade e criatividade, e constituir sua identidade em relação aos outros, à natureza e ao seu criador.

Acredita-se que a causa do desemprego estrutural seja o avanço tecnológico que substitui o trabalhador pela máquina. Isso também foi uma crença dos trabalhadores no início da Revolução Industrial, que saíram para quebrar os teares, como descrito por E.P. Thompson. Não é certo. Que a máquina substitua o trabalho humano em condições de exploração, isso é bom. O trabalhador poderá finalmente - como ressalta o livro do Gênesis - começar a trabalhar de maneira digna, cuidando da criação, multiplicando os bens que o criador colocou a seu serviço.

Fará isso com o suor de seu rosto, mas de forma criativa e humanizadora. A tecnologia pode ser uma ferramenta libertadora para o corpo e o tempo dos trabalhadores – não é o caso da tecnocracia. Tudo depende de uma mudança cultural onde os processos implantados, ao longo do tempo, sejam superiores aos espaços conquistados na luta política pela conquista do poder.

A causa do fim do trabalho não é a tecnologia, mas, sim, a acumulação obscena. Segundo Thomas Piketty, em poucas décadas, 10% da humanidade concentrará 90% da renda mundial. Adam Smith mostrou que o tempo livre de uns é o trabalho de outros, no entanto, no século XXI, graças ao avanço da tecnologia, todos podem ter tempo livre para trabalhar de forma remunerada naquilo que gostam.

O problema não é a pobreza, porque a renda cresce exponencialmente. O problema é a percepção da riqueza. Enquanto a riqueza concentrada for percebida como uma bênção - como prega a teologia da prosperidade -, a transição ecológica não será possível. Da mesma forma, o problema não é o desemprego, mas a percepção do trabalho como mercadoria. É por isso que a Laudato Si’ coloca o acento na pessoa do trabalhador, antes que no trabalho.

O que aconteceria se "emprego assalariado em condições de exploração para poucos" fosse substituído por "trabalho remunerado em condições criativas para todos"?

O futuro é esperançoso. O relatório da Comissão Mundial da OIT para o futuro do trabalho, publicado em 22 de janeiro de 2019, afirma que com a transformação tecnológica, se perderão tantos postos de trabalhos quanto os criados. O plano consiste em investir em treinamento e formação, organizações como sindicatos e movimentos sociais, e trabalho sustentável como uma economia verde e de cuidado. Para a Comissão Mundial da OIT, isso requer: 1) a criação de um "ecossistema eficaz de aprendizagem permanente", tanto formal como informal; 2) estabelecer uma remuneração como "garantia básica universal".

O processo está em andamento. A seis meses da publicação do relatório - e no marco das celebrações dos 100 anos da OIT -, de 19 a 22 de maio, haverá uma conferência na sede da UNESCO, em Paris. A equipe internacional de pesquisadores que faz parte do programa OIT-VATICANO, chamado O futuro do trabalho. O trabalho depois de Laudato Si’, liderado pelo jesuíta Pierre Martinot-Lagarde, abre o debate público para iniciar a transição ecológica em torno de uma outra maneira de trabalho sustentável e digno.

O Instituto Jesuíta CERAS da França é quem chama e coordena, no entanto, os expositores provêm de todo o mundo. Um dos programas alternativos que serão apresentados é argentino, e sua exposição estará sob a responsabilidade de outro jesuíta, dom Lugones, presidente da pastoral social argentina.

Este último é também um sinal de que o centro está se movendo para a periferia. No entanto, não se trata, como se pensava nos anos 1970 e 1980, a partir da Teologia Latino-americana da Libertação, de uma mudança imediata de estruturas. Trata-se de iniciar um processo cultural que permita perceber o trabalho remunerado em atividades criativas de cuidado como algo bom para todos e para o planeta, segundo os 17 pontos da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Marcos Sassatelli

ESPÍRITO PATRIÓTICO OU ESPÍRITO DIABÓLICO?

"Bolsonaro e sua equipe de pessoas, na maioria desequilibradas e ditatoriais - afirmam que a propriedade particular é um direito “sagrado” (verdadeira blasfémia!); que os Movimentos de Trabalhadores e Trabalhadoras - que lutam pelo direito à terra (um direito de todos e não só de alguns) e que organizam ocupações de latifúndios improdutivos - são movimentos de criminosos; e que os “proprietários” podem defender suas terras com armas de fogo, matando - se necessário - os ocupantes. Em caso de morte, os “proprietários” poderão ser chamados a depor em juízo, mas - garante o presidente - por serem “pessoas de bem”, não serão condenados. Que loucura! Que barbárie!", escreve Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP) e professor aposentado de Filosofia da UFG. Eis.

Depois da aprovação do projeto da “Reforma” da Previdência na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o presidente Bolsonaro agradeceu o empenho do presidente da Câmara Rodrigo Maia e dos demais parlamentares e afirmou: o governo continua a contar com o espírito patriótico dos deputados. Que hipocrisia! Que desfaçatez!

Cortar - com frieza e crueldade - os poucos diretos que os trabalhadores e trabalhadoras pobres conquistaram com muita luta e a duras penas, é espírito diabólico e não espírito patriótico.

Disse ainda o presidente que se nada for feito, o País não terá recursos para garantir uma aposentadoria para todos os brasileiros. Mentira! Enganação do povo! Bolsonaro sabe disso e, mesmo assim, trata os trabalhadores e as trabalhadoras como se fossem idiotas!

Por que o governo desvia dinheiro da Previdência para pagar juros aos banqueiros? Por que não cobra as estrondosas dívidas para com a Previdência das empresas? Por que não taxa as grandes fortunas?

Os governantes e parlamentares que apoiam essa “Reforma” (ou melhor, Antirreforma) perversa e iníqua, são os demônios de hoje. Para obter vantagens pessoais, eles aderem a uma prática política covardemente submissa aos interesses dos poderosos, que se enriquecem sempre mais com a exploração dos pobres. Os ricos e seus asseclas, terão de prestar conta a Deus. Aguardem!

“Agora, vocês, ricos, chorem e gritem por causa das desgraças que cairão sobre vocês. Suas riquezas estão podres e suas roupas foram roídas pelas traças. O ouro e a prata de vocês estão enferrujados e a ferrugem deles será testemunha contra vocês” (Tg 5,1-3).

Outro absurdo de Bolsonaro e seu governo é o menosprezo pela sociologia e filosofia nas escolas e nas universidades, que - infelizmente - faz parte da lógica de um governo ditatorial, disfarçado de democrático. Esse governo quer que os trabalhadores e as trabalhadoras sejam meras máquinas de produção para enriquecer os detentores do poder econômico. Se forem pessoas conscientes que pensam e exigem seus direitos atrapalham os objetivos do governo.

A filosofia - além de ser parte integrante da formação do ser humano enquanto ser racional - é também uma dimensão de profundidade de todas as ciências: exatas, biológicas e humanas (aliás, do ponto de vista do sujeito do conhecimento, todas as ciências são humanas). Por exemplo, um verdadeiro físico é também filósofo da física; um verdadeiro matemático é também filósofo da matemática; um verdadeiro biólogo é também filósofo da vida; um verdadeiro educador é também filósofo da educação; um verdadeiro historiador é também filósofo da história; um verdadeiro jurista é também filósofo do direito. E assim por diante.

Enfim, entre os muitos que ainda poderiam ser lembrados, cito mais um absurdo desse governo, que representa um inimaginável atraso cultural e ético. Bolsonaro e sua equipe de pessoas, na maioria desequilibradas e ditatoriais - afirmam que a propriedade particular é um direito “sagrado” (verdadeira blasfêmia!); que os Movimentos de Trabalhadores e Trabalhadoras - que lutam pelo direito à terra (um direito de todos e não só de alguns) e que organizam ocupações de latifúndios improdutivos - são movimentos de criminosos; e que os “proprietários” podem defender suas terras com armas de fogo, matando - se necessário - os ocupantes. Em caso de morte, os “proprietários” poderão ser chamados a depor em juízo, mas - garante o presidente - por serem “pessoas de bem”, não serão condenados. Que loucura! Que barbárie!

Bolsonaro e sua equipe esquecem - ou fingem de esquecer - que toda propriedade particular, para ser legítima, deve ter uma função social; que (como diz São Tomás de Aquino, cujo pensamento foi assumido pelo Ensino Social da Igreja) a destinação dos bens para o uso de todos os seres humanos é um direito primário e a propriedade particular, um direito secundário (que nunca pode prejudicar o primário).

Ah, se os governantes e políticos - que, com tanta facilidade, usam o nome de Deus em vão - refletissem sobre o projeto de vida, radicalmente revolucionário, de Jesus de Nazaré! Ele é também - ao menos como ideal a ser perseguido - o projeto de seus seguidores e seguidoras. “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém considerava propriedade particular as coisas que possuía, mas tudo era posto em comum. (...) Entre eles ninguém passava necessidade. (...) O dinheiro era distribuído a cada um conforme sua necessidade” (At 4,32-35).

Dia do Trabalhador e Trabalhadora! 1º de Maio Unificado, rumo à Greve Geral (14 de junho)! A luta dos Trabalhadores e Trabalhadoras é justa e Deus está do seu lado!

Danielle Allen, professora de Harvard

'CIÊNCIAS HUMANAS SÃO IMPORTANTES, QUANDO EXATAS E BIOLÓGICAS'

Sem os conhecimentos das ciências humanas "não é possível entender a sociedade", diz a cientista política Danielle Allen, professora da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. À BBC Brasil, Allen disse ver como "um erro" o plano do governo brasileiro de reduzir investimentos em faculdades de ciências humanas - como filosofia e ciências sociais - e se concentrar, segundo um tuíte do presidente, Jair Bolsonaro, em "áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como veterinária, engenharia e medicina". A reportagem é de Rafael Barifouse, publicada por BBC News Brasil

O presidente escreveu que "a função do governo é respeitar o dinheiro do contribuinte, ensinando para os jovens a leitura, escrita e a fazer conta e depois um ofício que gere renda para a pessoa e bem-estar para a família, que melhore a sociedade em sua volta".

Para Allen, que dirige o Centro de Ética Edmond J. Safra de Harvard, a capacidade de uma sociedade de alcançar uma boa governança depende de ciências humanas como ciência social e filosofia, "porque são estas disciplinas que fazem esse tipo de trabalho".

"Você não cria leis para ter uma boa governança com os conhecimentos de Engenharia e de Física. Sem os conhecimentos das ciências humanas não é possível entender a sociedade."

"O trabalho do economista Herbert Simon, ganhador do prémio Nobel, mostrou que os países mais ricos do mundo têm esta riqueza em grande parte por causa de uma boa governança. Em outras palavras, você não pode separar a qualidade da economia da qualidade da governança institucional", diz Allen.

Governança é um termo usado para descrever como o processo de tomada de decisão e a forma como medidas são implementadas por instituições públicas para conduzir questões de interesse social e administrar recursos públicos.

Allen se dedica a estudar os conhecimentos e as habilidades necessários na condução de regimes democráticos. Autora de diversos livros sobre o tema, ela avalia que redução de investimentos em ciências humanas e sociais e o maior foco na educação de ciências exatas e biológicas geram uma menor participação dos cidadãos.

Ela argumenta que as "democracias de massa" em que vivemos hoje são produtos de dois tipos de conhecimento. "Com certeza, o tamanho de nossas populações, nossas capacidades tecnológicas e nosso potencial de saúde aumentaram drasticamente por causa das ciências biológicas e da engenharia, mas a razão pela qual temos instituições democráticas é por causa de disciplinas como filosofia, sociologia, direito, história, entre outras", afirma Allen.

"São estas áreas de conhecimento que inventaram a democracia e permitiram não só criá-la, mas administrá-la. Nós nos esqueceremos de como administrar uma democracia se não investirmos nestas áreas de conhecimento."

'Boas leis, instituições e governança aumentam a riqueza da sociedade'

Allen reconhece que, em diferentes países do mundo, medidas semelhantes têm sido tomadas para incentivar o estudo de ciências exatas e biológicas. A cientista afirma que isso se deve à visão - que ganhou força nas últimas décadas - de que o desenvolvimento económico e a distribuição igualitária dos ganhos de produtividade na sociedade são resultado da disseminação de conhecimentos em tecnologia.

"Governos estão tão focados nesta questão da combinação de crescimento e a distribuição equitativa de ganhos de produtividade que passaram a adotar essa posição de que precisam fomentar as habilidades em ciências exatas e biológicas. Isso é verdade, mas não podemos fazer isso com um custo de erodir nossa capacidade de ter uma boa governança."

Ela argumenta ainda que é possível medir e analisar o retorno dos investimentos em ciências humanas tanto quanto com os resultados gerados por outras áreas de conhecimento, como mostrou o economista Herbert Simon.

"Boas leis, instituições estáveis e estruturas de governança produtivas aumentam a riqueza de uma sociedade. Todos estes de conhecimentos têm resultados mensuráveis, nós apenas nos esquecemos de medi-los."

'Ciências sociais ajudam a traçar os objetivos da humanidade'. A cientista destaca ainda que grandes nomes da modernidade que são referência de criatividade nos dias de hoje tiveram uma educação superior baseada em ciências humanas, como, por exemplo, Steve Jobs, fundador da Apple.

"Disciplinas como filosofia, história e literatura nos levam a questionar o que devemos fazer, quais são os propósitos da humanidade, quais devem ser nossos objetivos", diz Allen.

Ao mesmo tempo, diz ela, ciências biológicas e exatas normalmente nos levam a questionar como podemos atingir os objetivos traçados. "Você precisa questionar tanto o que devemos fazer quanto como devemos fazer. Você não pode abandonar as disciplinas que ajudam as pessoas a pensar sobre quais são os propósitos humanos."

Por isso, ela defende que "ciências humanas são tão importantes quanto as ciências exatas e biológicas": "Não é uma questão de priorizar uma área sobre a outra, você precisa de ambas. São dois campos poderosos e complementares para o bem da humanidade".

Em uma transmissão ao vivo pelo Facebook, o ministro da Educação, o economista Abraham Weintraub, defendeu que o governo não está impedindo o estudo de ciências humanas. "Pode estudar filosofia? Pode, com dinheiro próprio", afirmou.

Allen diz ver como "lamentável" que o acesso a esse tipo de conhecimento possa passar a ser "privilégio de ricos". "Deveria haver oportunidades iguais de acesso a este tipo de conhecimento, tão ligados a profundos impactos sociais."

'Ensino de ciências humanas deve começar na escola'

Na posse de Weintraub, Bolsonaro disse querer "uma garotada que comece a não se interessar por política, como é atualmente dentro das escolas, mas comece a aprender coisas que possam levá-las ao espaço no futuro".

Isso gerou diversas críticas, especialmente nas redes sociais, de que o governo desestimula a formação de pessoas capazes de pensar criticamente.

Allen diz que, embora não possa comentar sobre as intenções do governo brasileiro sem ter acesso a informações que a permitam fazer algum julgamento, a redução do investimento em ciências humanas mina a capacidade de alguém participar da sociedade enquanto cidadão.

"O pensamento crítico e a capacidade de pensar sobre quais devem ser nossos objetivos enquanto sociedade é algo que precisa ser construído. É preciso ter prática nisso para se ter capacidade de participar efetivamente de uma democracia."

Por este motivo, ela defende que o ensino de ciências humanas, como sociologia e filosofia, devem fazer parte do currículo escolar desde os primeiros anos, assim como com as ciências biológicas e exatas.

"É com o tempo que você constrói habilidades nas áreas de conhecimento. Quanto antes começar o ensino de ciências humanas, melhor. Se for só na universidade, você já começa atrasado."

Edição 147, Abril 2019

Juan Arias /El Pais /IHU

ARMARAM UMA EMBOSCADA PARA O PAPA FRANCISCO?

O documento de Bento XVI sobre a pedofilia na Igreja, não é apenas uma zombaria para as vítimas, é também uma grosseria com a qual ele tenta redimir a instituição de seus pecados, escreve Juan Arias, jornalista, em artigo publicado por El País /IHU

O documento que leva a assinatura do papa demissionário Bento XVI, o alemão ultraconservador Joseph Ratzinger, no qual se culpa a revolução progressista dos jovens franceses de Maio de 68 pelos escândalos de pedofilia perpetrados pela Igreja não é apenas uma zombaria às vítimas. É também uma grosseria anti-histórica com a qual tenta redimir a instituição de seus pecados.

O documento de Ratzinger é grave por várias razões que vão além do seu caráter eclesiástico e obriga a recordar sua biografia e seu itinerário doutrinário. Ainda me lembro dele como um jovem e brilhante teólogo do Episcopado progressista alemão durante os anos do revolucionário Concílio Vaticano II, que foi considerado como a primavera da renovação da Igreja e sobre o qual me coube informar para o diário Pueblo, de Madri, durante a ditadura franquista.

Ratzinger, juntamente com outro jovem teólogo alemão, Hans Kung, foram dois pilares da parte mais aberta do concílio. Terminando este, Kung continuou fiel à abertura da Igreja em seus livros e conferências. Ratzinger, pelo contrário, acabou negando o Concílio. Considerou-o um “erro” da Igreja. Acabou sendo premiado. Fizeram-no bispo e depois cardeal. E já em Roma, foi Prefeito da Congregação da Fé, o antigo tribunal da Santa Inquisição. E foi ali que condenou ao silêncio os teólogos da libertação, como o brasileiro Leonardo Boff. Era ao seu dicastério que chegavam de várias partes do mundo as denúncias sobre os escândalos de pedofilia na Igreja, que ele, sistematicamente, deixava morrer no esquecimento.

Já papa, foi um dos sucessores de Pedro mais conservadores do século. Aposentado, por vontade própria, do papado, permaneceu estes anos, já muito doente, em silêncio, deixando o comando para o moderno Francisco, que em vez de usar sapatos Prada vermelhos como ele, continuou usando os velhos sapatos de camponês com os quais chegou ao Conclave do qual saiu como seu sucessor.

O documento do papa emérito, sobre o qual não há certeza de quem pode tê-lo redigido, dadas as suas condições de saúde, é grave por vários motivos. Não só porque nele se tenta culpar o Maio de 68 francês pelos pecados de pedofilia da Igreja, mas porque também quis que se soubesse que escreveu o documento “de acordo com o papa Francisco”, colocando-o assim em uma encruzilhada. Francisco destacará um documento que ofende as vítimas de pedofilia perpetradas por sacerdotes e bispos? Depois de suas inúmeras manifestações contra esse pecado da Igreja e depois de ter lhes pedido perdão em nome da Igreja, Francisco preferirá agora o silêncio para não se confrontar com Bento XIV? Não hesitaria em dizer que Francisco se encontra no meio de uma emboscada das quais já é mestra a história de tramas e máfias da Cúria, da qual não lhe será fácil sair.

O documento também é anti-histórico e pueril ao culpar o 68 francês pelo dilatar da pedofilia na Igreja, como se os abusos em matéria de sexo, e até as piores aberrações cometidas na Igreja, não tivessem existido até então. Como escreveu com humor um leitor, somente se se tratar de 68 antes de Cristo. Será que ninguém se lembra dos escândalos sexuais dos conventos masculinos e femininos da Idade Média? Será que antes de 68 padres, bispos e até papas eram santos e inocentes? Trata-se da eterna hipocrisia da hierarquia eclesiástica.

O texto papal não só encerra essa análise absurda do progressismo de 68 que teria pervertido até os religiosos arrastando-os a seus excessos sexuais e quase a justificá-los. Chega, além disso, em um momento em que crescem no mundo os movimentos ultradireitistas, com nostalgias de nazismos e fascismos. Não há melhor presente do que esse documento do papa intelectual para as tentativas de demonizar hoje os movimentos libertários em busca de novas formas de viver a sexualidade em paz e liberdade. Não há melhor presente para tentar deter a resistência contra os novos autoritarismos do que denunciar que foi um movimento revolucionário juvenil de esquerda, como o Maio francês, o que chegou a prostituir a própria Igreja Católica. Algo que deveria, de acordo com o papa, ser visto pelos jovens cristãos de hoje como demoníaco, pois foram capazes de se deixar subjugar, em matéria de sexo, por aqueles que proclamavam o inocente “faça amor, não faça guerra”.

Difícil entender que o papa Francisco possa cair nessa dupla armadilha que lhe preparou seu antecessor, Ratzinger, que conseguiu que a Igreja lave as mãos, como Pilatos, de seus escândalos e crimes contra crianças e jovens inocentes que eram deixados sob sua tutela, atribuindo a culpa ao clima de libertinagem sexual que teria criado o Maio de 68. Ao mesmo tempo condena esse movimento libertário e juvenil de esquerda como culpado por ter denegrido os costumes cristãos e até por ter contaminado (pobrezinha!) a própria Igreja de Deus.

Não há melhor presente do que esse documento sibilino do papa neste momento de retorno aos rigores conservadores dos costumes, com nostalgias de teocracias e bebedeiras ideológicas totalitárias que pareciam ter sido derrotadas. Até a Igreja do libertário profeta da Galileia parece querer se juntar a essa dança macabra dos tempos inquisitoriais? Tudo menos reconhecer suas culpas e pedir perdão ao mundo. E tudo menos dar passagem, dentro da Igreja, a uma democracia em que haja espaço para que os cristãos possam respirar sem que ninguém sufoque seus justos desejos de liberdade.

E sem esses tabus de celibatos obrigatórios e obsoletas virgindades. E sem esses machismos impermeáveis para dar passagem às mulheres para que participem da hierarquia. Todo o resto é hipocrisia.

Cid Benjamin

SOU UM OTÁRIO ASSUMIDO

Minha ótica passou a ser a da solidariedade, não a da condenação da pequena trapaça. Quem aplica o golpe é gente que busca alguma forma de sobreviver, escreve Cid Benjamin, jornalista e escritor, em texto publicado por Fórum / IHU

Moro num bairro de classe média do Rio de Janeiro. Como há muitos anos decidi não ter mais carro, além de usar regularmente ônibus e metro, ando bastante a pé. Isso dá outra perspectiva da cidade. Ao caminhar, a pessoa vê um mundo diferente daquele que vislumbra ao volante de um carro, protegido por vidros escuros.

Dito isto, afirmo sem medo de errar: é visível a multiplicação da quantidade de gente morando nas ruas. E quando falo em multiplicação, não exagero. É a mais pura verdade. Não foi um aumento qualquer.

Como consequência das injustiças sociais que vêm de séculos e de um fim da escravidão que abandonou suas vítimas à própria sorte, o Brasil sempre teve pobres e mendigos. Gente pedindo esmola nas ruas e crianças perambulando por elas, eventualmente cometendo pequenos delitos, não são novidades.

No caso do Rio, consolidou-se um contingente de trabalhadores que, desempregados, passam a semana nas ruas do Centro ou de bairros da Zona Sul recolhendo latas vazias de cerveja para vender e revirando latas de lixo de restaurantes, buscando restos de comida. Nas sextas-feiras à noite vão para casa, em bairros distantes da Zona Oeste ou da Baixada Fluminense, para estarem de volta na segunda-feira seguinte. O transporte é caro e não há dinheiro para as passagens todo dia.

Aumentou, também, o número de pessoas largadas nas calçadas, meio dormindo, meio acordadas, alheias ao que acontece ao redor. De tão derrotadas, já nem pedem esmola ou cometem pequenos roubos. Derrotadas pela fome – e, muitas, pelo crack – simplesmente vegetam. Quase não são percebidas por quem passa.

Na música “Construção”, de Chico Buarque, há menção a um trabalhador da construção civil que despenca de um prédio e cai na contramão “atrapalhando o trânsito”. Mal é notado pelos que estão envoltos pelas coisas do dia a dia, salvo pelas consequências que sua queda traz: o engarrafamento, que, este sim, é percebido pelos motoristas e os aborrece. Os mortos-vivos nas calçadas também são invisíveis à maioria. Só são vistos quando atrapalham o vaivém das pessoas. A maioria delas, diga-se, já brutalizada e alheia ao drama humano que se apresenta aos seus olhos. Um drama quase invisível para quem passa.

Há também moradores de rua vivendo em grupo. É gente que mora nas calçadas, mas em situação próxima à de acampamentos. São, às vezes, mais de 15 ou 20 pessoas. Instalam-se embaixo de viadutos com colchões velhos e móveis danificados que recolhem em algum lugar. Dormem durante parte do dia. Sempre acompanhadas por alguns cachorros, que servem de companhia aos mais solitários e de guardiões dos parcos bens de seus donos ou da pequena comunidade.

De certa forma, essa gente está menos largada do que os que vegetam sós nas calçadas. Tem, ao menos, a solidariedade dos que estão a seu lado. Mas está só um pequeno degrau acima dos que vegetam sozinhos. Um degrau quase imperceptível e que, amanhã, pode desaparecer. A fronteira entre eles é tênue, muito tênue.

Cresceu muito, também, o número dos que buscam outras formas de sobrevivência. Quaisquer que sejam. Estes tampouco têm emprego, mas são de uma camada social superior àqueles. Na orla, tocam e cantam em busca de uma gorjeta dos que comem e bebem nos bares. Quase sempre conseguem levantar alguma coisa.

Adoro música e em toda a vida ouvi samba e choro. Nas rodas, sempre canto e chego a empunhar um violão, quando os verdadeiros músicos são amigos e tolerantes com os amadores. Mas o que se ouve na orla está longe do que se poderia chamar de música de boa qualidade. Um pandeiro espancado pelo “percussionista”, um tamborim mal tocado (afinal, todo mundo acha que sabe tocar tamborim…), um tantam primário e, quase sempre, um insuportável cavaquinho (às vezes substituído por um banjo estridente, o que é ainda pior). Não bastasse isso, os “músicos” cantam mal e alto.

Pois bem, toda semana tomo uma cerveja na orla com um grupo de amigos, acompanhando um querido companheiro com quem militei na clandestinidade nos anos de chumbo e que teve um AVC. Ele está em cadeira de rodas e não fala, mas acompanha as conversas. Esse programa, aos sábados, lhe faz muito bem. E para nós, seus amigos, também é muito agradável. Os tais grupos musicais quase sempre aparecem. Quando chegam, ninguém mais conversa em paz, pois, esmerando-se em agradar a “plateia”, os “músicos” cantam a todo volume, achando que assim farão jus aos trocados. Não fosse uma indelicadeza que não merecem, seria o caso de dar-lhes logo a gorjeta com a condição de que fossem baixar em outra freguesia. Mas é gente que está tratando de sobreviver.

Estávamos comentando isso recentemente no grupo a que me referi quando Sérgio Henrique, conhecido por Tchecha – o principal organizador da rede de solidariedade ao nosso amigo doente, e o mais velho da mesa quando não está presente Milton Temer – nos trouxe à razão: “Vamos ter paciência com esses caras. Não tem emprego pra ninguém. Eles estão correndo atrás…”

A partir daí, passei a ver com mais condescendência não só esses “músicos”, como também outro tipo de gente que batalha nas ruas. Por exemplo, os que aplicam um conhecido golpe. Abordam os passantes com uma história que, com poucas variações, é a seguinte: “Moro em tal lugar (uma cidade do interior) e vim ao Rio ver uma oferta de emprego (mostra um endereço). Deu tudo errado e não tenho como voltar pra casa. Tenho isso aqui (mostra algumas notas) e me falta tanto (mostra um papel com as contas) para comprar a passagem”.

Já caí nesse golpe algumas vezes. Em outras, escolado, me recusei a dar o dinheiro. Mas, passei a ver coisas assim com outros olhos. Passei a levar em conta de que essas pessoas prefeririam ter um emprego, em vez de andar por aí tentando passar a perna nos demais. Passei a dar o dinheiro, mesmo sabendo que a história era conversa fiada. Afinal, é coisa pequena o que pedem, em torno de R$ 10 ou R$ 15.

Minha ótica passou a ser a da solidariedade, não a da condenação da pequena trapaça. Quem aplica o golpe é gente que busca alguma forma de sobreviver.

Enquanto esse quadro de terrível desigualdade social se agrava, o presidente da República esbraveja contra o IBGE e a pesquisa que mostra 13 milhões de brasileiros desempregados. Ao reclamar do resultado da pesquisa, Bolsonaro faz mais ou menos como faziam os déspotas antigamente, mandando matar os portadores das más notícias.

Ele e sua turminha braba governam para os ricos. Arrocham cada vez mais os pobres. Agora, querem praticamente acabar com a Previdência pública. Até que a resistência popular vire esse jogo (e para isso não se pode esperar longos quatro anos!!!!), vão aumentar a prostituição infantil, juvenil e adulta, o desamparo à velhice, o abandono de crianças pobres e o número de pessoas nas ruas.

Algumas dessas últimas, prostradas, como mortos-vivos. Outras, maltratando sambas que muitas vezes até são bons. E há, também, as que aplicam pequenos golpes para comer e chegar ao dia de amanhã.

A quem tem consciência do drama que vivemos, resta cerrar fileiras e resistir aos sucessivos ataques aos direitos dos trabalhadores. De minha parte, admito, enquanto faço isso, não deixo mais de dar uns trocados para o cara que vem me contar que precisa voltar para sua cidade natal e reencontrar a família, depois de frustrada a busca de um emprego no Rio.

Não importa que não seja verdade. Por uma questão de humanidade, finjo que me deixo enganar e que caio no golpe. Dou o dinheiro solicitado. Conscientemente.

Daniel Bogner

ESSA IGREJA MATA

Mesmo que seja doloroso, deve-se dizer com clareza e decisão que há algo como um coração obscuro da Igreja, um hábito organizacional, uma densa rede de atitudes e práticas consolidadas. Essa mistura de prática e teoria tem efeitos maléficos que envenenam, em alguns casos se mostram mortais. O que alimenta o núcleo obscuro da Igreja são diferentes elementos e fatores que interagem entre si de maneira regular e sistémica. O texto é de Daniel Bogner, professor de teologia moral e ética na Universidade de Friburgo, na Suíça, publicado simultaneamente em alemão na revista online Feinschwarz e em italiano por SettimanaNews. A tradução da versão italiana é de Luísa Rabolini /IHU

Quão obscuro é o lugar onde os abusos levaram a Igreja? Revelações, confissões e reportagens sobre fatos indizíveis se sucedem ininterruptamente. Até mesmo os bispos falam agora dos "fundamentos sistêmicos" dos abusos. Uma reportagem da rede de televisão Arte (“Religiose abusate: l’altro scandalo della Chiesa”, Abuso de religiosas: o outro escândalo da Igreja, em tradução livre) mostrou como é fácil para os sacerdotes a passagem da função de guia espiritual para o abuso sexual.

Estruturas do mal

É evidente que na Igreja e graças à Igreja existem estruturas do mal. Vamos tomar como exemplo os irmãos Marie-Dominique e Thomas Philippe do norte da França. Eles vêm de uma sólida e clássica família católica. E, no entanto, o que apenas ontem poderia ser considerado um modelo de família cristã (de onze filhos, sete escolheram o ministério sacerdotal), revela-se hoje como um sistema que leva a uma sobre-identificação religiosa.

Os dois irmãos fizeram seus votos na ordem dominicana e fazem carreira na Igreja. Um se torna professor de teologia em Friburgo, na Suíça, bem como espiritus rector da Comunidade de São João, fundada por alguns de seus alunos. O outro é o guia espiritual da comunidade internacional de L'Arca, fundada por Jean Vanier, na qual pessoas com deficiência e pessoais sem deficiência vivem lado a lado.

Mais tarde, ambos os irmãos são acusados de abuso. Quando uma das mulheres abusadas tem um colapso enquanto está com um dos irmãos, ele (Marie-Dominique) a leva para a comunidade da Arca do outro irmão (Thomas), que a abusa novamente. São eventos que deixam sem palavras, precisamente porque não acontecem à margem da Igreja, mas justamente no centro de um catolicismo europeu que se pensava estar vigilante no plano espiritual e sensível no plano social.

O fracasso moral acontece acidentalmente, en passant

De forma similar às contribuições e posições tomadas por Doris Wagner, a documentação apresentada pelo canal televisivo Arte realiza um trabalho indispensável de esclarecimento, que leva ao cerne do problema. Aos nossos olhos, revela-se uma vida eclesial em que não há "linha de demarcação", na qual as práticas ruinosas do ponto de vista moral são realizadas com absoluta impunidade e com tamanha insensibilidade a ponto de torná-las quase banais – quando, aliás, não recebem até mesmo um fundamento teológico-espiritual. Marie-Dominique Philippe, da Comunidade de São João, chegou a elaborar o conceito espiritual do "amour d'amitié" (amor de amizade), no qual a prática do abuso físico-erótico se torna parte integrante da catequese e do acompanhamento espiritual.

E mais ainda: as madres superiores fornecem aos padres as jovens coirmãs, cujas famílias são financeiramente sustentadas como contrapartida para os serviços sexuais de suas filhas (um importante fator de subsistência em muitos países africanos, que torna um membro da família facilmente sacrificável à vida religiosa).

Uma exploração da prostituição exercida a nível institucional, na qual não faltava nem mesmo a obrigação a abortar. Tudo isso no coração da Igreja católica. Praticado, tolerado, permitido e silenciado pelos mais fiéis dos seus sacerdotes e pelos mais eficientes entre os que tinham responsabilidade de liderança. Ficamos sem palavras.

Ninguém é um estranho

Onde esse complexo de eventos nos leva? Podemos medir com precisão sua dimensão? Podemos fazer isso, nós que de alguma forma somos todos parte envolvida de um sistema eclesial que permite tais coisas?

Naturalmente, os primeiros a serem questionados são os vértices da Igreja. São eles que carregam a responsabilidade oficial e institucional. Eles são os primeiros que devem "fazer um movimento".

No entanto, em todo sistema social - e isso também se aplica à Igreja - o estilo do gerenciamento e a legitimidade da liderança também dependem do comportamento da base social, nesse caso, do povo da Igreja. Este último tem sido por demasiado tempo o "fiel rebanho", um corpo social silencioso que se limitou a receber e elaborar as diretrizes espirituais do clero.

É também por essa razão que tudo ficou imóvel por tanto tempo: os impacientes saíram já há bastante tempo, para colocar sua coragem e energia a serviço de outros pagos, enquanto aqueles que permaneceram não quiseram criar problemas – ficaram os perseverantes, os fiéis de bom coração, permanecem aquele que continuavam no caminho sustentados por uma centelha de esperança. Mas, como está claro agora, esse estado de coisas também mudou.

E finalmente, a teologia. Ela também se tornou cúmplice, na medida em que - por razões compreensíveis - preferiu responder a todos os convites possíveis ao diálogo intelectual honesto, em vez de se dedicar à limpeza dos estábulos de Aúgias presentes no terreno que pisava.

Mas quem continua a dizer “ah, a Igreja! Eu não quero saber mais: há coisas muito mais interessantes”, se torna cúmplice da situação atual. A Igreja precisa da teologia, hoje mais do que nunca. Todos nós somos corresponsáveis pela condição atual e pelo que está por vir.

"Aqui você pode fazer!": A Igreja como um espaço de oportunidade

A legitimação dos abusos parece ser uma constelação de relações e fatores internos. Por exemplo, na Igreja é deixado aberto uma espécie de espaço de oportunidade de abuso. Aos indivíduos potencialmente correspondentes ao perfil de abusador é sussurrado um convite velado: "aqui você pode fazer!"

Até recentemente, esperou-se em vão uma reação duradoura e decisiva das organizações eclesiais. Quase sempre aqueles que esperavam indignação e firme vontade de restaurar a orientação moral correta por meio de protestos decididos ficaram desapontados.

Que contradição inaudita: a Igreja, cuja missão é anunciar a mensagem da vida, tornou-se para muitos um lugar onde se vivencia a morte, na qual se experimenta a destruição da integridade pessoal, é lesada a própria dignidade de ser humano, se testemunha à morte da própria alma.

A Igreja poderá recuperar a sua credibilidade e, com ela, o único recurso com o qual pode cumprir sua vocação de existência missionária? Primeiro, deverá ser sincera consigo mesma e coerente na análise.

O núcleo tóxico da Igreja

Mesmo que seja doloroso, deve-se dizer com clareza e decisão que há algo como um coração obscuro da Igreja, um hábito organizacional, uma densa rede de atitudes e práticas consolidadas. Essa mistura de prática e teoria tem efeitos maléficos que envenenam, em alguns casos se mostram mortais. O que alimenta o núcleo obscuro da Igreja são diferentes elementos e fatores que interagem entre si de maneira regular e sistêmica.

A sacralização do invólucro. Sobre os papéis ministeriais e sobre as estruturas em que tais papéis estão inseridos, acumulou-se uma pátina no curso da história da Igreja, uma pátina que faz com que o recipiente, o invólucro, seja agora considerado sacrossanto, venerável em si mesmo. Hoje, o que representa a Palavra divina no tempo e na história é mais o invólucro da Igreja do que sua ação concreta, a prática possibilitada por suas estruturas externas. Os rituais litúrgicos comumente adotados contribuem significativamente para o fenômeno: de fato, do ponto de vista simbólico, eles reforçam a sacralização da exterioridade.

Uma atitude reverencial

Formas e estruturas sacralizadas exigem respeito. Reforçam o temor reverencial que muitos crentes sentem diante dos papéis ministeriais e daqueles que os desempenham. A consciência de que entre os "dois corpos do rei" (Ernst Kantorowicz) existem diferenças reais torna-se cada vez mais apagada, substituída por uma mentalidade de subserviência diante do poder ministerial que, além disso, age "in repraesentatione Christi" e se vale de sua originária "sacra potestas”. Quem poderia objetar? Quem poderia solicitar instâncias de controle ou até de participação? E, por outro lado, consideramos aqueles que desempenham funções ministeriais: alguns deles acostumam-se de bom grado e bem rapidamente a usufruir desse "vento em popa" da sacralidade, dessa espécie de benefício ligado à consagração. É algo a que sabem que podem sempre recorrer quando os meios disponíveis ao humano parecem não bastar.

Uma concepção perigosa de poder

As dinâmicas da sacralização moldaram uma instituição que não só está bem blindada contra as críticas, mas também está praticamente isenta de qualquer controle vinculante que tenha alguma eficácia. Criticar uma instituição e corrigir as suas ações, uma instituição resplandecente de sacralidade: que paradoxo! E, inversamente, por que motivo dividir a potestas de uma instituição cujo poder é ainda "prestado", é um poder do qual se dispõe apenas de forma fiduciária e que nasce de uma única fonte (a chamada "potestade ministerial de Cristo", tantas vezes chamada em causa)?

O conceito neoplatônico de unidade e o cerimonial da corte da antiguidade tardia fizeram o resto, combinando seus efeitos em tornar impossível uma autêntica separação dos poderes – da qual porém hoje falam até mesmo os bispos orientados para reformas. Se quiser levar a sério a inversão de rumo que afirma desejar, a Igreja terá de ir à escola não só dos pensadores e pensadoras da liberdade (de consciência), mas também, e com igual decisão, daqueles e daquelas da liberdade política (em primeiro lugar, Montesquieu, o filósofo da separação dos poderes).

A lealdade no tecido social clerical

Um poder indiviso, reforçado por uma aura de sacralidade e tolerado por um povo da Igreja excluído de qualquer forma de participação efetiva - o quadro delineado até agora é apenas um lado da moeda. O outro lado é composto pelas pessoas e associações que encarnam concretamente esse sistema, no qual devem "acreditar". Como critério de seleção dominante, a tradição da Igreja impôs a esse tecido social clerical um filtro baseado essencialmente no gênero.

Foi assim possível estabelecer um clero homogêneo em relação ao gênero, uma classe que era ao mesmo tempo, e muitas vezes de forma indistinguível, também um sistema religioso de afiliação masculina, com seus próprios rituais de reconhecimento e identificação e fortes mecanismos de fechamento para o exterior.

Por esse enraizamento em tal solidariedade como afiliados (uma solidariedade em que a aura sacral também confere uma extrema eficácia), o status sacerdotal está apto a evocar promessas de legitimação e de satisfação por desejos e ações deficitários do ponto de vista psicossexual. Esse status também veicula - explícita ou implicitamente - uma desvalorização constitutiva do outro sexo, que se condensa de muitas maneiras na prática e na doutrina da Igreja.

Uma espiral de legitimação de longa duração

A esses fatores acrescenta-se uma dinâmica que, embora não concernente apenas à Igreja, assume nela um peso muito especial: onde quer que uma instituição tenha a possibilidade de crescer e se consolidar, nela se desenvolve uma estratégia de autolegitimação baseada em uma "tradição" e na longa duração. Na Igreja, as modalidades comportamentais, as práticas usuais de divisão de papéis, as soluções organizacionais rangem, em alguns casos, sob o peso de muitos séculos. O peso do tempo parece literalmente exalar uma aparente atmosfera de legitimação.

Nessa atmosfera, um diálogo aberto sobre o acesso ao ministério da ordem, sobre o atavismo das estruturas eclesiais ou, ainda, sobre a pluralidade das identidades sexuais, pareceu por muito tempo como uma infração de um tabu - como a ruptura de um acordo tácito sobre o fato de que, afinal, está tudo bem assim como está. Por essa razão, a primeira natureza da Igreja não consiste tanto em uma curiosidade comprometida e responsável, nem na busca de novos caminhos a serem percorridos, mas no esforço contínuo para silenciar os impulsos de renovação e remover conhecimentos antropológicos e psicológicos que, a essa altura, nem são mais nem mesmo novos.

Uma lógica que continua a produzir vítimas

Os elementos descritos até agora, ainda que de maneira provisória, não deixam de interagir entre si, combinando-se de novas maneiras e produzindo efeitos que vão muito além do que foi possível mencionar aqui. Eles constituem o núcleo perigoso da crise da Igreja. Para muitas pessoas, essa Igreja parece estar envenenada. E a sua crise se manifesta em numerosos âmbitos: se começamos a discutir a reforma da Igreja, qualquer tema - as relações entre os gêneros sexuais, a participação dos leigos, as fusões entre paróquias, o burnout dos padres, e assim por diante – isso leva, mais cedo ou mais tarde, a um ou a mais de um desses fatores de crise. Os abusos são o âmbito em que as vítimas são mais visíveis e, claro, as feridas são mais profundas. Enquanto a reação em cadeia desencadeada por esse núcleo incandescente não for interrompida, a Igreja continuará a fazer vítimas em vários setores.

Um excesso de sacralidade

Nenhum dos fatores que mencionamos é capaz, por si só, de produzir diretamente os comportamentos de abuso. Sua interação, no entanto, permite o florescimento de uma subcultura eclesial que só pode ser definida como suporte estrutural dos abusos: um espaço de ação sobrecarregado de "sacralidade", que solicita de maneira excessiva sujeitos que, por causa de sua escolha de vida, são chamados a estreitar relações de reciprocidade.

O fracasso desses sujeitos não é nem previsto nem admissível em nível sistêmico; o fracasso, portanto, deve ser encoberto. Particularmente sensíveis às promessas veladas de "oportunidades" de abuso são pessoas com determinadas disposições básicas: não apenas pessoas com tendências pedófilas mais ou menos manifestas, mas também pessoas que, por natureza, acham difícil manter a devida distância dos outros e tendem a superar os limites com excessiva facilidade.

Ao mesmo tempo, eles também são vítimas desse núcleo tóxico da Igreja. Claro, se for aplicado a eles o termo "vítima", isso pode irritar. Mas quer expressar o fato de que a Igreja oferece uma cultura que favorece a implementação de abusos e não sabe como traçar limites que possam impedir que determinadas predisposições sejam traduzidas em realidade.

Isso, no entanto - dada a natureza excessiva das tendências que habitam em cada um de nós - realmente diz respeito a todos nós; afinal de contas, todos nós nos apoiamos naqueles mecanismos de controle oficial e controle social informal que estão em vigor no estado e na sociedade e que nos ajudam a não nos tornarmos perpetradores ou perpetradoras de abusos.

É precisamente aqui que a Igreja fracassa, uma organização que tem uma relação confusa com a comunicação transparente, a crítica democrática, a diversidade de gênero e o dever de responder publicamente pelas próprias ações.

Com isso não se pretende justificar de forma alguma as ações daqueles que cometeram abusos; o que acaba de ser ressaltado evidencia, sob outra perspectiva, como é problemático o efeito dos "fatores sistêmicos" da Igreja, em qualquer direção.

Os próximos passos

Neste momento, em muitos lugares do mundo, a Igreja volta seu olhar para a realidade dos abusos que descobriu dentro de si mesma. Os bispos alemães reagem inaugurando um "percurso sinodal" que será credível na medida em que conseguirá ser vinculante. Na diocese de Lyon debate-se intensamente sobre a maneira mais honesta de recomeçar ex novo e se talvez não seria oportuno que o bispo, condenado, entregue sua demissão como um sinal de responsabilidade.

Nos Estados Unidos, a Conferência Episcopal está em conflito com o Papa sobre o pacote de medidas contra os abusos sexuais que apresentou. Por seu lado, os bispos africanos, para quem a gestão e elaboração da questão dos escândalos dos abusos vai além de sua força, pedem ajuda das Igrejas europeias. E a lista poderia continuar. Ela nos apresenta uma Igreja que está inquieta e desprovida uma nova orientação comum. Uma orientação que não encontrará se não se inclinar para olhar para o obscuro núcleo tóxico que se esconde em seu próprio interior.

Muitas das ideias que conseguimos abordar aqui apenas brevemente precisam ser profundadas com extrema urgência. Antes de tudo: o que "separação de poderes" pode significar no contexto de uma fé que parte da convicção de poder representar a potestade divina anunciada em Cristo e a eficácia salvífica da fé através de um modelo sacramental dos papéis eclesiais (o ministério da ordem)? E, na mesma linha, não poderia ser talvez oportuno dar à fundamental distância entre os representantes (os escritórios, as práticas e as estruturas da Igreja) e o representado (Deus) uma expressão mais visível e sensível - e isso não apenas na espiritualidade e na linguagem religiosa, mas também na forma organizacional da Igreja, que é visível para todos?

Como poderia tal despotenciação ontológica do ministério sacerdotal e da estrutura da Igreja encontrar aplicação no plano social sem, ao mesmo tempo, causar a perda da nuance peculiar do significado do catolicismo?

"A fé cristã não desaparecerá. Esta igreja, talvez sim"

Estou convencido: a fé cristã não desaparecerá do nosso mundo. Sua mensagem é tão forte e tão carregada de valor que continuará a mover os homens mesmo que, por outro lado, a Igreja ofereça condições tão contraditórias e desfavoráveis a isso.

Além disso, o fato que o encontro entre a palavra de Deus e os homens ocorra cada vez menos através dessa Igreja e, cada vez mais, fora de seus claustros, também pode ser positivo. Há tempo surgiram, e continuarão a surgir, lugares alternativos nos quais os homens podem vivenciar a força libertadora da mensagem divina.

Para os líderes da Igreja a questão é posta nestes termos: pode a Igreja, mantendo sua conformação histórica, permanecer também como um lugar de encontro com Deus (e talvez, até mesmo um lugar privilegiado para tal encontro) - ou voltar a ser tal, assumindo as exigências de renovação que os abusos colocaram diante dos olhos de todos?

No meio, não de cima. A falsa autopercepção da Igreja

O discurso do papa no final do encontro em Roma das conferências episcopais de todo o mundo contra os abusos foi fortemente criticado. Nem todos, no entanto, convergem na adesão às críticas: o papa teria se limitado a especificar o modo em que deve ser considerado o contexto em que se colocam os eventos que interessam a Igreja. Isso está certo, mas as críticas continuam válidas.

O que estava errado, de fato, não foi o conteúdo de seu discurso, mas sua modalidade. Também nesse caso, como sempre, a Igreja falou de uma perspectiva externa a lugares sociais específicos e concretos. Continua a presumir que pode julgar a realidade social com critérios objetivos e com um "olhar de cima". A Igreja Católica considera-se universal e não percebe até que ponto, em vez disso, ela foi apenas um ator específico entre os demais.

Não abre mão de suas pretensões de superioridade moral, enquanto a Igreja fere inacreditavelmente os seus valores, enquanto podem ser identificadas as causas sistêmicas de sua crise e surgem lícitas dúvidas sobre o fato dela realmente querer elaborar essas causas de forma sustentável.

Nesta situação, seria muito mais honesto falar em primeiro lugar, não dos outros, mas de si mesmo. O trabalho que nos espera já é bastante grande. Se será ou não bem-sucedido, não é do conhecimento de ninguém. "Essa economia mata" - foi assim que o papa formulou sua crítica à globalização. Essa Igreja também mata, devemos acrescentar hoje.

Editorial do jornal Le Monde

CATÓLICOS DA FRANÇA: DO ESTUPOR À RAIVA

Depois de uma série de escândalos relacionados com a sexualidade, os fiéis da Igreja desconfiam de uma hierarquia que consideram cada vez mais distante da realidade. Publicamos aqui o editorial do jornal Le Monde, 26-03-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

O que é demais é demais. Os católicos da França não ocupam as sacristias das suas igrejas, mas a raiva ferve nas comunidades. Um acúmulo de escândalos ligados à sexualidade fez com que o copo transbordasse.

Os escândalos de pedofilia provocaram uma explosão em toda a Igreja, com a expulsão de um ex-cardeal estadunidense e a condenação a seis anos de prisão do número 3 australiano do Vaticano, ambos acusados de agressão sexual de menores.

A decisão do Papa Francisco, no dia 19 de março, de rejeitar a renúncia do cardeal Barbarin, condenado no dia 7 de março a seis meses de prisão sob liberdade condicional por não ter denunciado os atos pedófilos cometidos por um padre da sua diocese, lançou a imagem calamitosa de uma instituição que busca, acima de tudo, se proteger, longe da “tolerância zero” manifestada.

São todos fatos ocorridos no momento em que o núncio apostólico na França – o representante do papa – era acusado de assédio sexual e, algo ainda mais grave, no momento em que um documentário transmitido pelo canal Arte revelava a extensão das violações contra religiosas por parte de padres, em que algumas freiras, depois, haviam sido forçadas a abortar.

Nem debate, nem diálogo

Da prostração à repugnância, passando pela vergonha, a humilhação, o estupor, os católicos franceses já não se encontram mais na sua Igreja e desconfiam de uma hierarquia que eles consideram cada vez mais autista.

Entre os testemunhos de católicos praticantes que o Le Monde coletou, que expressam a tristeza, a revolta ou o sentimento de terem sido traídos, um fiel que participou da “Manif pour tous” contra o casamento homossexual não consegue entender como um padre que havia sido o seu acompanhador espiritual foi preso por assédio sexual: “Os bispos estão perdidos, os padres estão perdidos, os leigos estão perdidos, e não nos encontramos”.

Esses males afetam uma Igreja da França já muito doente. Se 53% dos franceses se declaram católicos, segundo as estatísticas mais recentes, a prática religiosa está em constante declínio, com apenas 4,5% dos fiéis que vão à missa pelo menos uma vez por mês, e apenas 1, 8% dos fiéis que vão todos os domingos.

O número de padres católicos, segundo dados oficiais, passou de 28.694 em 1995 para 21.187 em 2005. A maioria desses padres tem mais de 65 anos. As ordenações estão em queda livre: oficiosamente, foram contabilizadas 114 em 2018, contra 133 em 2017. Mas chegavam a 300 por ano nos anos 1970.

Um em cada cinco dos novos padres proviria de uma comunidade tradicionalista.

Com a crise atual, pode-se temer que os católicos mais progressistas, próximos do Concílio Vaticano II, serão os primeiros a se afastar da Igreja.

Para muitos católicos, é todo o sistema eclesial que precisa mudar a fim de criar uma cultura do debate e dar mais espaço aos leigos, e especialmente às mulheres, de modo que se engajem mais, em todos os níveis onde as decisões são tomadas.

A crise também fez ressurgir a questão do celibato dos padres. Foi no século XI que a reforma do Papa Gregório VII decidiu que a Igreja não ordenaria mais homens casados. O arcebispo de Poitiers, Dom Pascal Wintzer, expressou-se recentemente a favor de reavaliar essa regra. O debate não poderá ser eternamente evitado.

Edição 146, Março 2019

Francesco Sisci

CHINA-ÁFRICA: RETRATOS DE UMA LONGA HISTÓRIA

O problema da fraqueza cultural e social, antes ainda que institucional, da África continua sendo o maior fardo. Mas a criação de uma nova competição positiva, e não marcada pela violência do passado colonial, está ajudando a criar um novo bem-estar.” A opinião é do sinólogo italiano Francesco Sisci, professor da Universidade Renmin, em Pequim, na China. O artigo foi publicado em Settimana News. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

A história das relações entre a China e a África é antiga e tortuosa. Tudo começou no século XV, com as viagens para o Ocidente do célebre almirante muçulmano Zheng He. Ele certamente chegou à costa oriental da África, naquela que hoje está entre a Tanzânia e Moçambique. Porém, as viagens foram interrompidas poucas décadas antes da circunavegação da África por parte dos portugueses no fim do mesmo século. Portanto, as grandes expedições dos chineses foram substituídas pelas pequenas missões comerciais dos ocidentais.

A África para além de Moscovo

Durante séculos, as relações se interromperam e só foram retomadas, essencialmente, com as novas ambições geopolíticas de Mao Zedong. Durante a Guerra Fria, depois de 1960, quando amadureceu a divisão entre Pequim e Moscovo, Mao tentou desenvolver relações independentes com alguns países africanos.

Primeiro, estava a Tanzânia, depois que Gana, liderada por Nkrumah, tivera uma explosão de entusiasmo pró-chinês. Além da Tanzânia, a China começou a estabelecer relações com o Egito. Depois, após a retirada de Portugal das suas colônias no início dos anos 1970, Moscou começou a construir relações também com Moçambique.

No entanto, tais relações eram essencialmente políticas. A China fornecia ajudas técnicas a juros baixos, e a economia chinesa certamente não tinha as dimensões na força para estabelecer uma nova relação estruturalmente diferente com a África.

A mudança de ritmo e de qualidade da relação entre a China e a África começou na segunda metade dos anos 1990, quando o crescimento industrial chinês começava a ter um impacto significativo, com o consequente aumento da necessidade de matérias-primas para alimentar a explosão do crescimento urbano no país.

Reforma empresarial na China

Ao mesmo tempo, a reforma das empresas estatais chinesas havia começado. Elas haviam sido transformadas de instrumentos para substancialmente gerir a paz social – isto é, para gerar postos de trabalho – em instrumentos empresariais muito autônomos que funcionavam para gerar lucro para si mesmas e para o Estado.

Esses dois motores – a busca de lucros das empresas estatais e a necessidade de matérias-primas para a industrialização e a urbanização – colocaram a China em movimento na direção do mundo inteiro – e particularmente da África, rica em matérias-primas necessárias para o país e também em oportunidades de crescimento para as empresas estatais.

Mas a China não tinha recursos financeiros capazes de pagar as contas africanas em breve. Tampouco tinha a força política e militar para impor à África um novo período colonial ou neocolonial, como fizeram os países ocidentais naquele continente até o dia anterior.

Penetração chinesa no continente africano

A China, então, construiu um plano de penetração e de cooperação com a África baseado em três pontos fortes. A primeira coisa que ela fez foi oferecer à África a possibilidade de construir ferrovias, uma infraestrutura a custos muito competitivos comparados aos exigidos pelos países ocidentais.

Além disso, ao contrário dos países ocidentais, a China não insistia em normas de transparência e anticorrupção. Pelo contrário, as empresas chinesas que operavam na África ganhavam os contratos de infraestruturas dando dinheiro à direita e à esquerda para políticos corruptos.

O terceiro elemento, que se fortaleceu no início do século, foi a transferência para a África de velhas instalações industriais chinesas que haviam sido substituídas por novas estruturas de produção. Ou seja, assim como os países ocidentais haviam transferido para a China instalações de produção obsoletas nos anos 1980 e 1990, assim também os chineses transferiam as suas instalações obsoletas para a África.

Uma relação de escambo

No entanto, enquanto a China, poder político grande e ao mesmo tempo forte, tinha uma capacidade de negociação com os países ocidentais, os Estados africanos, muito menores e mais divididos, tinham pouca capacidade de barganha com a China. A sede de matérias-primas africanas por parte da China, nesse sentido, criava uma espécie de escambo entre a China e a África: os africanos davam matérias-primas, a China dava infraestruturas e instalações industriais lubrificadas por generosos subornos.

A estrutura de troca foi extremamente eficiente e, de fato, levou a crescimentos muito importantes em muitos países africanos nos últimos 20 anos. Os pontos de fraqueza desse sistema são conhecidos: difundiram mais corrupção; não levaram benefícios para toda a população africana, até porque, muitas vezes, os chineses levaram para a África seus próprios operários, não confiando nos trabalhadores africanos.

As empresas africanas não obtiveram todas as vantagens possíveis com uma plena cooperação com os chineses, mas, mesmo assim, permaneceram benefícios generalizados. Nos últimos 20 anos, nasceu uma pequena classe média africana.

Recaídas: migração e competição

O fluxo de imigração dos últimos tempos da África para a Europa também decorre disso. Mudar-se do próprio país para atravessar o deserto do Saara para pagar as contas, a água, o transporte tornou-se possível, porque as famílias se comprometem com recursos que geralmente são fruto da melhoria de vida nas últimas duas décadas.

Outro efeito importante da chegada da China à África foi a criação de uma competição e de uma concorrência entre vários países para a entrada nos Estados individuais do continente. Isto é, antes da chegada dos chineses, os países ocidentais dividiram o continente em zonas de influência e criaram verdadeiros monopólios. Por isso, eram impostos aos locais as condições mais convenientes de acordo com Paris ou Londres.

A chegada dos chineses naturalmente mudou a equação das relações. Os países ocidentais podiam ter suas ofertas de cooperação rejeitadas, porque os chineses ofereciam melhores condições. Além disso, na última década, a chegada da China criou uma nova corrida para a África.

De maneira e medida diferentes, muitos países com uma presença antes insignificante no continente estão entrando com mais força. A Rússia aumentou a sua cooperação, graças a uma rede de transportes estabelecidos durante a Guerra Fria.

A Turquia também fez o mesmo, desta vez aproveitando a herança da Irmandade Muçulmana ainda ligada aos tempos do império e do califado. Graças à grande comunidade transferida para a África nos tempos da colonização do continente, algo favorecido pela Inglaterra, ela está buscando novos caminhos de penetração.

O Japão também multiplicou os esforços para entrar em contato mais próximo com o continente africano. Nessa competição, portanto, os países africanos teoricamente podem obter de cada país melhores condições de investimento e de comércio.

O que vem pela frente na África?

Naturalmente, a maior atenção em relação à África, o aumento da concorrência, o início de um verdadeiro processo de industrialização do continente não são a panaceia para todos os males. Em vez disso, podem se tornar até um acelerador das profundas distorções dos vários países africanos.

Como será distribuído o benefício desses recém-chegados, dessa nova atenção? Ficará concentrado apenas na cúpula das velhas lideranças corruptas do continente ou chegará a mudar o tecido social dos vários países?

As respostas para essas perguntas não podem vir de fora. A imposição de modelos institucionais ocidentais não resolve automaticamente os milhares problemas de corrupção profunda. Nem no passado a aplicação de sistemas mais autoritários, como os propostos pela antiga União Soviética, surtiu efeitos melhores.

O problema da fraqueza cultural e social, antes ainda que institucional, da África continua sendo o maior fardo. Mas a criação dessa nova competição positiva, e não marcada pela violência do passado colonial, está ajudando a criar um novo bem-estar.

Sergio Ramírez

ERNESTO CARDENAL E SUA VOZ PROFÉTICA

Velho revolucionário, poeta místico e padre popular, Ernesto Cardenal acaba de ser reabilitado pelo Papa em suas funções clericais, que haviam sido retiradas por João Paulo II devido a sua adesão à Teologia da Libertação. Hoje, o poeta nicaraguense que foi ministro da Cultura da Revolução Sandinista, é um dos mais convictos críticos ao governo de Daniel Ortega. Esta é a história de Ernesto Cardenal contada por seu amigo e companheiro de lutas, o escritor Sergio Ramírez, ex-vice-presidente da Nicarágua, em artigo publicado por Nueva Sociedad e reproduzido por CPAL Social. A tradução é do Cepat /IHU

Ernesto Cardenal foi meu vizinho de rua mais ou menos quarenta anos em Manágua. Nós nos encontrávamos na hora do café da manhã para me deixar o que havia escrito, talvez naquela manhã, e quando eu terminava um romance, também deixava com ele, assim que saía da impressora. Foi um dos meus professores de prosa, porque em sua poesia eu aprendi muita arte narrativa e a cadência das palavras.

Eu o conheci em 1960, quando recém-regressava de Medellín, onde se tornou presbítero, e acabava de presidir sua primeira missa em Manágua, embora desde de antes sua poesia havia marcado não apenas o meu rumo literário, mas a de toda a minha geração. Mestre, meu companheiro de lutas na Nicarágua sempre convulsiva, um irmão mais velho que eu sempre tive ao meu lado.

Sua marca é muito profunda e visível na grande poesia latino-americana. Essa natureza narrativa de sua poesia, que me marcou e me seduziu desde a adolescência, é o que foi batizado de exteriorismo, termo que pode levar a confusões pois parece negar sua dimensão íntima.

Ernesto aprendeu a prosa transposta para a poesia com Whitman e Sandburg, que lhe ensinaram uma letra mundana e quotidiana, e a minha geração ele também descobriu a T.S. Elliot e Ezra Pound, a quem traduziu. Assim, ele fez a poesia nicaraguense seguir sendo moderna, como começou a ser desde Rubén Darío.

Narrativa é a poesia da Hora 0 de 1957, um relato das ditaduras tropicais da América Central e as intervenções militares, que longe de ter algo panfletário, funciona como uma dolorosa evocação. E a partir desse registro, passará para Gethsemani Ky, de 1960, onde coloca em contraponto seus turbulentos anos de juventude em Manágua com sua vida de noviço trapista em Kentucky, onde se encontrou com Thomas Merton, seu mestre de noviços.

Em seguida, virão seus Epigramas, de 1961. Entre eles, figuram alguns de seus poemas mais populares, os de tema de amor, de engenhosa precisão, alimentados por suas leituras académicas de Catulo e Marcial, enquanto estudava humanidades na Universidade Autónoma do México.

A morte de Marilyn Monroe, em 1962, inspirou sua elegia à garota que, como toda funcionária de loja, sonhava em ser uma estrela de cinema, uma profunda reflexão sobre a fabricação dos ídolos do espetáculo à custa dos próprios seres humanos elevados aos altares do espetáculo da fama. É um dos seus poemas mais difundidos e célebres.

Em 1966, viria El estrecho dudoso. Apegando-se à letra das crónicas das Índias, que revive episódios da conquista em torno da obsessão pelo Estreito Duvidoso, a passagem para o mar do Sul buscado tão ansiosamente desde então, e que teve tanto a ver até hoje com a ambição pelo canal interoceânico, o último desses episódios protagonizado pelo aventureiro Wang Ying, que, apesar do engano, um canal que nunca será construído, segue sendo dono de uma concessão que lhe entrega por cem anos a soberania do país.

Ordenado padre em 1965, Ernesto fundou no mesmo ano a comunidade de Solentiname, no Grande Lago da Nicarágua. Uma comunidade que primeiro seria contemplativa, idealizada com Merton, onde supôs vir morar ao lado de seu discípulo. A morte o impediu e a comunidade se tornou camponesa. Lá floresceu uma escola de pintores e escultores primitivos que chegaram a adquirir fama internacional. Em Solentiname, seria visitado por Julio Cortázar, em 1976, que foi lembrado em seu conto Apocalipse de Solentiname.

Nesse mesmo ano, são os Salmos, decorrentes de sua leitura do Antigo Testamento, mas trazidos para a vida moderna: opressão, sistemas totalitários, genocídio, campos de concentração, ameaças de cataclismo nuclear, sociedade de consumo descontrolada. Foi um livro de influência transcendental para jovens alemães e outros países europeus.

Após o triunfo da revolução sandinista, em 1979, foi nomeado ministro da Cultura, um cargo que aceitou apesar de sua relutância frente à burocracia. Realizou um processo transformador cercado por jovens cineastas, escritores, artistas plásticos, cantores e compositores. Ao mesmo tempo, seu irmão Fernando, um sacerdote jesuíta, assumiu o comando da Cruzada Nacional de Alfabetização.

Viveu circunstâncias amargas naqueles anos, quando foi forçado a renunciar a seu cargo por causa das intrigas da primeira-dama Rosario Murillo, que queria para ela todas as atribuições culturais, sem perceber que atropelava uma das principais figuras literárias fundamentais da língua. Em seu livro de memórias La revolución perdida, publicado em 2004, é possível ler sua avaliação implacável sobre aqueles que se apropriaram indevidamente da revolução, na qual se comprometeu profundamente com sua fé cristã.

O Vaticano o suspendeu 'a divinis', por sua adesão à Teologia da Libertação e por se recusar a renunciar a seu cargo de ministro, e quando João Paulo II visitou a Nicarágua, em 1983, tornou-se famoso pela fotografia do momento em que, com o dedo levantado repreende a Ernesto, que está ajoelhado com a boina basca na mão.

Em fevereiro deste ano, o Papa Francisco lhe enviou uma carta na qual anulava essas sanções e restabelecia sua condição presbiteral. Em seu leito de hospital, em Manágua, o Núncio Apostólico lhe colocou a estola e ambos concelebraram uma missa de louvor.

Sua escrita deu um giro transcendental com o Cântico Cósmico, de 1989. Sua comunicação mística com a divindade se converte uma relação de erotismo pleno, a alma que é acoplada ao seu criador na mais exaltada das alegrias, como na poesia de São João da Cruz e Santa Teresa.

A exploração dos céus nesse livro é também a das memórias de seu passado, da antiga Granada de sua infância, das garotas que amou na adolescência, de sua juventude de cantinas, festas banais e bordéis, como se ele virasse o telescópio para dentro de si mesmo.

Um grande final de festa de sua obra e vida onde se fundem os mistérios da criação e da existência, dos buracos negros à célula, das galáxias perdidas aos prótons, e onde o seu olhar místico busca no Criador a explicação do todo, amor, morte, poder, loucura, passado e futuro, formas da eternidade.

Fora do hospital, onde foi várias vezes nos últimos meses, retomou a escrita, algo que se tornou consubstancial à sua vida. Seu ofício para sempre.

Ignacio Muro

O FEMINISMO E OS CUIDADOS OXIGENAM A ECONOMIA

A economia dos cuidados abre todas as portas que a ortodoxia econômica gostaria de manter fechadas: desde ‘o que é produzir riqueza’ até que sentido tem ‘a gestão do tempo’ ao longo da vida. Colocar no centro esses debates é a maior contribuição que o feminismo está trazendo à economia, escreve o economista Ignacio Muro, especialista em modelos produtivos e em transições digitais, em artigo publicado por Economistas Frente a la Crisis. A tradução é do Cepat /IHU

Voltar a falar da vida que queremos, da sociedade que queremos, é falar do tempo humano como referência básica da vida e base de um novo Contrato Social.

O momento atual reivindica uma profunda reordenação das hierarquias entre os espaços que identificamos com a produção de bens e serviços – a única reconhecida pela economia – e a reprodução social, ou seja, as atividades conectadas à sustentabilidade e reprodução da sociedade: ter e criar filhos, formar os jovens, cuidar dos avós, atender os doentes e manter a organização de lares e comunidades.

Essa visão nos obriga a dar conta de uma bateria de soluções à denominada “crise dos cuidados”: um conjunto muito diverso de conflitos e demandas que vão desde a divisão das tarefas do lar à licença-paternidade, da diminuição da diferença salarial às rendas básicas, dos despejos à segurança alimentar...

Todas elas questões situadas nos espaços da reprodução social, tão centrais para a atual conjuntura, como as lutas de classes no âmbito da produção no capitalismo tradicional.

Esta situação tem suas raízes na dinâmica estrutural do capitalismo financeiro, que obtém sua rentabilidade de qualquer espaço. Não só extraindo mais-valia das classes populares tradicionais (do velho proletariado, do autônomo, das classes médias profissionais, das pequenas e médias empresas nacionais), como também de qualquer empresa, administração ou família endividada, de qualquer recurso público estatal, regional ou local (aposentadorias, desemprego, dependência) e de qualquer estrutura social fragilizada.

A reordenação do tempo humano como referência vital

A economia dos cuidados abre todas as portas que a ortodoxia econômica gostaria de manter fechadas: desde “o que é produzir riqueza” até que sentido tem “a gestão do tempo” ao longo da vida. Colocar no centro esses debates é a maior contribuição que o feminismo está trazendo à economia.

Obriga a recuperar o foco sobre a diminuição, racionalização e flexibilização dos tempos produtivos (redução da jornada de trabalho, trabalhos de tempo parcial voluntário e jornadas flexíveis, licença-paternidade e bolsas de conciliação familiar, reordenação horária, teletrabalho e direito à desconexão). Não é concebível que as potencialidades de produtividade trazidas pelas mudanças tecnológicas não redundem, como sempre ocorreu na história, em uma diminuição e racionalização do tempo de trabalho.

Obriga a reconsiderar e a tornar tangível o valor dos tempos considerados “não produtivos”: os dedicados a atender necessidades familiares básicas (infância e velhice, doença, incapacidade) e as outras atividades domésticas de apoio (higiene, limpeza, ordem, companhia). Implica denunciar a máxima expressão da contradição entre valor e preço: as coisas mais importantes são ignoradas e invisibilizadas porque acontecem “no lar” e não tem repercussões mercantis; e o que tem preço, ainda que seja ilegal e oculto como a prostituição ou o tráfico de drogas, atividades que foram incluídas de repente no PIB em 2010, é reconhecido como valor.

Obriga a colocar o foco em como reconstruir o espaço vital coletivo, seja urbano ou rural, que diminua os tempos mortos (deslocamentos, abastecimentos, manutenção, limpeza) e maximize os tempos vivos compartilhados (formação, família, descanso, ócio). De forma muito especial, confronta-nos com o custo crescente da moradia símbolo da contradição geográfica fundamental que provoca a centralização do capital imobiliário no coração das grandes cidades e os maiores deslocamentos diários dos trabalhadores, com custos crescentes – em tempo e dinheiro –, para lugares marginais ou periféricos.

Sobre o mercado e os recursos públicos

O último capitalismo tende a exprimir, cada vez mais, um conjunto de capacidades sociais chaves para a vida. E faz isso de duas maneiras: como norma, socializando o encargo e transferindo às mulheres das famílias um esforço excessivo crescente e invisível. Mas também quando dessas atividades sociais surgem perspectivas de lucro, privatizando sua gestão, externalizando serviços e contratando filiais de grandes corporações.

Sirva como paradigma a CLECE, uma empresa multisserviços, filial do Grupo ACS, que administra a Residência da Fundação Rainha Sofia Alzheimer, de titularidade pública, um lugar denunciado porque faltam fraldas ou lençóis para trocar os anciãos, fazendo-lhes passar dias sobre sua própria urina, com cuidadoras cobrando 600 euros ao mês, enquanto declara milhões em lucros.

Há espaços em que a lógica do mercado deveria ser vetada. Faz sentido melhorar a oferta de serviços de abastecimento, manutenção e limpeza do lar, local onde a economia digital está se destacando por suas maiores vantagens. Contudo, nunca no que se refere aos elementos centrais da convivência, como são os cuidados.

Quando o Estado se inibe, a mulher sofre

Uma passagem pelos dados comparados de diferentes países confirma que as carências e desequilíbrios dos serviços públicos desembocam em desequilíbrios de gênero.

As horas diárias que as famílias dedicam às tarefas do lar, aquelas que não são cobertas por serviços profissionais remunerados, são menores e mais divididas nos países nórdicos europeus, com bons serviços públicos (Suécia, Noruega) e maiores e mais feminizadas nos países mais dependentes do mercado (Itália) ou com culturas mais patriarcais (Japão, México, Turquia, Índia).

Obviamente, as medidas não refletem as diferenças de classe dentro de um mesmo Estado. Em camadas profissionais médias, a diminuição do tempo ocupado pelas mulheres em tarefas do lar, nem sempre significa que os homens façam mais, mas, ao contrário, que terceirizam as tarefas domésticas, contratando outras mulheres normalmente migrantes.

É nesse ambiente que a noção de “feminismo liberal” ganha sentido, pois significa substituir a desigualdade de gênero entre homens e mulheres por uma desigualdade de classe. O que é criar riqueza? O PIB não se limita a quantificar a produção registrada pelo mercado. A contabilidade nacional também inclui no PIB os bens e serviços de não-mercado, que são aqueles que, como a saúde ou os cuidados, são proporcionados aos lares individuais, de forma gratuita pelo Estado ou a preços economicamente não significativos, por instituições sem fins lucrativos.

Quando esses bens são sustentados pelas famílias, são invisíveis e não reconhecidos. Só quando as lutas sociais obrigam a assumi-los como novos bens públicos, aflora de repente essa riqueza oculta, expressão do conceito de valor social que a sociedade exige em cada momento.

Sigamos por isso.

Alberto Fernández Liria

É NECESSÁRIA UMA PSIQUIATRIA CRÍTICA QUE CONTRIBUA PARA UM PROCESSO DE LIBERTAÇÃO”

A psiquiatria crítica se opõe ao modelo biomédico vigente, em cujo eixo se situa o diagnóstico e os tratamentos para o que se considera doenças mentais por alterações bioquímicas. Alberto Fernández Liria contrapõe a esta ideia as palavras de Harry Stack Sullivan, em 1953: “Dizia que um psiquiatra é um especialista em relações pessoais””, escreve o jornalista Enric Llopis, em artigo publicado por Rebelión. A tradução é do Cepat /IHU

Na Argentina, 15% da população entre 12 e 65 anos – cerca de três milhões de pessoas – consumiram tranquilizantes ou ansiolíticos alguma vez na vida, com ou sem receita médica, segundo o estudo sobre o consumo de psicofármacos, publicado em 2017 pela Secretaria de Políticas Integrais sobre Drogas da Nação Argentina (SEDRONAR). A maioria destes tranquilizantes se inscrevem no grupo das benzodiazepinas. A pesquisa aponta que 1,3% da população (mais de 24.000 pessoas) consumiu estimulantes ou antidepressivos, principalmente do grupo dos Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRS). Nos Estados Unidos, 12,7% da população maior de 12 anos, em maior porcentagem mulheres, tomaram medicação antidepressiva entre 2011 e 2014 no último mês, informou o Centro Nacional de Estatísticas da Saúde (2017).

A depressão afeta mais de 300 milhões de pessoas no planeta, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). O organismo das Nações Unidas ressalta que no período 1990-2013 as pessoas com depressão ou ansiedade aumentaram em 50%, de 416 milhões para 615 milhões. Em março de 2016, a OMS informou sobre um estudo dirigido pela organização, no qual também se media o impacto econômico e sobre a produtividade trabalhista: “Cada dólar investido na ampliação do tratamento da depressão e a ansiedade rende quatro dólares em melhora na saúde e capacidade de trabalho”.

O psiquiatra e ex-presidente da Associação Espanhola de Neuropsiquiatria, Alberto Fernández Liria, é uma das vozes críticas ao modelo imperante de Psiquiatria e “saúde mental”. Em seu blog, detalha que participa desde os anos 1980 nos movimentos de transformação da assistência psiquiátrica. Atualmente, faz parte da direção da Área de Gestão Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Príncipe de Asturias, em Alcalá de Henares. É coautor, entre outros livros, de Intervención en crisis (2002), Violencia y salud mental (2009) e Terapia narrativa basada en atención plena para la depresión (2012), os dois últimos junto com Beatriz Rodríguez Vega. Suas reflexões podem ser lidas na Revista da Associação Espanhola de Neuropsiquiatria (AEN) e em Átopos (Saúde Mental, Comunidade e Cultura), entre outras publicações.

Há alternativa?, questiona-se Fernández Liria no artigo intitulado La enfermedad mental como respuesta psíquica al fallo social (Átopos, n. 4). Uma das possibilidades, aponta, é “devolver à vida íntima e ao mundo das relações interpessoais boa parte do terreno conquistado nas últimas décadas pela “doença”. Como exemplo das formulações críticas, menciona no texto ao psiquiatra estadunidense Allen Frances, apesar de em seu momento ter participado da construção do Manual Diagnóstico e Estatístico dos transtornos mentais (DSM, na sigla inglesa) da Associação Americana de Psiquiatria, best seller da ideologia oficial (“A Espanha tem um grande problema, quase todo mundo toma algum comprimido”, afirmou Frances em uma entrevista a Jot Down).

O texto da Átopos destaca o interesse que as teorias da “indicação de não-tratamento” – com contribuições como a do psiquiatra Alberto Ortiz Lobo - ganham, e também da Divisão de Psicologia Clínica da Associação Britânica de Psicologia, que questiona as classificações do DSM. A psiquiatria crítica se opõe ao modelo biomédico vigente, em cujo eixo se situa o diagnóstico e os tratamentos para o que se considera doenças mentais por alterações bioquímicas. Alberto Fernández Liria contrapõe a esta ideia as palavras de Harry Stack Sullivan, em 1953: “Dizia que um psiquiatra é um especialista em relações pessoais”.

Fernández Liria apresentou no Centre La Nau, da Universidade de Valência, seu último ensaio: Loucura de la Psiquiatría. Apuntes para una crítica de la Psiquiatría e la ‘salud mental (Declée, 2018), em um ato organizado pela Escola Europeia de Pensamento Lluis Vives. O ponto de partida está em que a Psiquiatria não é uma ciência – sim, a Biologia ou as Matemáticas são –, mas, ao contrário, uma tecnologia – como a arquitetura ou a medicina -, que tem como finalidade a produção de um bem social. Uma das teses centrais do livro é que as sociedades definem, em cada período histórico, o objetivo da Psiquiatria. Assim, “o conceito de doença mental adquire sua importância a partir do momento em que os médicos são chamados a se tornar responsáveis pelos hospitais psiquiátricos – herdados do Antigo Regime –, em fins do século XVIII e inícios do XIX”, explica o autor.

Atualmente, em um contexto de crise e ofensiva neoliberal contra a saúde pública, a Psiquiatria enfrenta questões centrais como a autonomia. Por um lado, este princípio foi reivindicado frente ao “encarniçamento terapêutico”, o paternalismo na atenção médica e o poder dos especialistas, que podem tomar decisões a partir de critérios arcanos – inclusive logaritmos – que ultrapassam o controle do paciente. No entanto, pondera Fernández Liria, “a defesa da autonomia foi utilizada pelos partidários do neoliberalismo”. Um exemplo é a Lei 6/2009 de Liberdade de Escolha na Saúde da Comunidade de Madri, aprovada durante o mandato de Esperanza Aguirre (PP) e que – afirma no preâmbulo – “fortalece a capacidade dos cidadãos em participar realmente na tomada de decisões relacionadas a sua saúde”.

Algumas aplicações durante os últimos anos caminharam pelo cálculo de custos e benefícios. Assim, o Governo da Grã-Bretanha impulsionou, em 2008, a iniciativa Melhorando o Acesso aos Tratamentos Psicológicos (IAPT, na sigla inglesa), com a finalidade de ampliar a terapia em atenção primária. Sobre a intenção deste programa, Alberto Fernández Liria destaca que, em 2006, a London School of Economics havia advertido sobre o custo econômico que as baixas trabalhistas por depressão e ansiedade estavam causando à seguridade social.

Nos anos 1950, aparecem os psicofármacos. Em meados dos anos 1980, a multinacional estadunidense Lilly começa a comercializar a fluoxetina com a marca “Prozac”. O que aconteceu com estes antidepressivos do grupo ISRS? “Impulsionados por uma campanha de marketing sem precedentes, para a qual contribuíram Lilly, GSK, Pfizer, Lundbeck e outras grandes companhias, o uso dos ISRS se estendeu por todo o mundo”, afirma o autor de Locura de la Psiquiatría (uma demonstração do poder atual da indústria farmacêutica e a saúde é que, durante 2018, fechou compras em um valor aproximado de meio bilhão de dólares, 31% a mais que no ano anterior, segundo dados da plataforma Dealogic, citados pelo jornal Expansión).

O comércio dos fármacos contra a depressão foi se ampliando, com o suporte de ensaios clínicos em ocasiões duvidosas. Há pouco tempo, acrescenta o psiquiatra, o tratamento com os ISRS se estendeu para os transtornos de ansiedade, obsessivo-compulsivo e do comportamento alimentar; também à fobia social, o tabaquismo, a insônia, o estresse pós-traumático e a dor crônica. Mas, se dá a circunstância de que nem os antidepressivos ISRS, nem os tranquilizantes benzodianos são inócuos. Alguns discursos da OMS contribuíram para alimentar a maquinaria farmacológica, por exemplo, a previsão – reiterada em múltiplas ocasiões – de que a depressão seria, em 2030, a principal causa de morbidade no planeta; em 2011, o organismo da ONU atribuía aos transtornos mentais não tratados 13% da “carga de morbidade mundial”.

Enquanto isso, a preponderância dos especialistas e o reducionismo biomédico “se desfez do empecilho das escolas que se baseavam na exploração de significados pessoais ou no contexto, como a Psicanálise, a Fenomenologia ou a Psicologia Comunitária”, explica o coautor de La práctica de la psicoterapia: la construción de narrativas terapéuticas (2001).

Em que medida o diagnóstico de transtornos por déficit de atenção e hiperatividade, ou por ansiedade e depressão, não fazem a não ser rotular como disfunções as reações automáticas de adaptação ao meio? São realmente desequilíbrios neuroquímicos e não respostas selecionadas por milênios de evolução? A que responde a expansão – até o grau de epidemia – dos chamados transtornos mentais comuns? Alberto Fernández Liria aponta uma possível explicação para além da clínica e os comprimidos: “Certamente, estamos diante de exigências para as quais nossos organismos estão pouco preparados, além da ausência dos mecanismos de apoio mútuo com os quais a espécie humana enfrentou a adversidade”. Neste ponto irrompe a política.

Edição 145, Fevereiro 2019

Robert Shine (da Holanda)

MINISTROS DA PASTORAL GAY PUBLICAM CARTA ABERTA AO PAPA

Ministros da pastoral gay da Holanda publicaram uma carta aberta ao Papa Francisco, protestando contra o banimento de padres homossexuais pelo Vaticano, e alegando que a credibilidade do Evangelho está em perigo pela atitude da Igreja sobre a homossexualidade. O artigo é de Robert Shine, publicado por New Ways Ministry. A tradução é de Natália Froner dos Santos /IHU

O Grupo de Trabalho dos Pastores Gays Católicos (WKHP), que representa mais de 40 padres homossexuais, diáconos e ministros leigos da Holanda, escreveu a carta, datada de 9 de outubro de 2018, e assinada pelo presidente Frans Bossink, publicada em seu sítio esta semana. Este comunicado chega à frente da cúpula do Vaticano sobre abusos sexuais do clero, que começa na próxima semana.

Em questão na carta, está a atual proibição do Vaticano de aceitar homens gays no sacerdócio, que o Papa Francisco reafirmou em 2016, uma política sobre a qual os membros do grupo de trabalho estão "profundamente infelizes".

O grupo listou seis objeções à proibição de padres homossexuais.

Primeiro, a proibição do Vaticano “ignora completamente” a realidade de que já há inúmeros padres gays no ministério, o que “sempre foi o caso”.

A carta continua: “Neste documento padres homossexuais recebem, implicitamente, a mensagem de que (a) eles não servem para esse trabalho por conta de sua orientação sexual, e (b) eles nem deveriam ter se tornado padres. Essa mensagem pode ser entendida facilmente por eles como uma desqualificação, portanto, pode ser onerosa e desmotivadora em relação ao seu ofício como sacerdotes. Certamente, é como nós mesmos sentimos o documento.”

A real questão, de acordo com o grupo, não é a orientação sexual, e sim sobre como sacerdotes e homens em formação lidam com sua sexualidade: "Seminaristas e sacerdotes heterossexuais e homossexuais que estão cientes da natureza de sua sexualidade, que a aceitam como dada por Deus, que não se envergonham, que podem (aprender a) falar sobre isso de maneira apropriada e significativa, e que podem (aprender a) lidar com isso adequadamente em seu papel como sacerdote (ou seminarista), não são o problema em nossa opinião. Pelo contrário, eles podem e funcionam bem, e têm um papel valioso a desempenhar dentro de nossa Fé e Igreja.

“Seminaristas e padres que negam ou reprimem sua sexualidade para si e para os outros, têm mais chances de manifestar-se como sendo eles o problema, no contexto de nossa Fé e Igreja. Uma séria de desequilíbrios, abusos e condutas inapropriadas para com os outros e consigo mesmos pode ser o resultado.”

A carta do grupo pastoral responsabilizou o Vaticano, e potencialmente o próprio Papa, de acreditar que padres abertamente homossexuais são os responsáveis por abusos sexuais do clero. A carta desafia esse mito: “Nós acreditamos que a atual crise a respeito do contexto [da homossexualidade] é principalmente o resultado de desaprovação, repressão, negação e a fraca integração da sexualidade, e especialmente da homossexualidade, por parte de muitos padres individuais e dentro de nossa Igreja como um todo. Uma pessoa é simplesmente incapaz ou não está disposta a discutir, ou é proibida de mencionar, exceto dentro do sacramento da confissão. Em nossa opinião, isso é prejudicial para a Igreja como um todo e para os próprios sacerdotes (gays) em particular".

Os membros do grupo ampliaram seu escopo ao sugerir que a abordagem da Igreja em relação à homossexualidade indica problemas mais amplos: “Nossa avaliação é que a maneira pela qual nossa Igreja Católica Romana lidou com pessoas homossexuais, falou e escreveu sobre isso até os dias de hoje, não é algo que tenha sido recebido positivamente na Holanda. Isto é igualmente verdade para não-católicos, tanto quanto para os católicos. A pregação do evangelho e sua credibilidade é e continuará sendo afetada negativamente com essa atitude em relação à homossexualidade”.

A carta termina com um apelo ao Papa Francisco para intervir e derrubar a proibição do Vaticano sobre o sacerdócio de homossexuais, juntamente com membros expressando sua vontade de encontrar-se com o Papa ou seus representantes para continuar a discussão.

A questão dos sacerdotes gays talvez seja levantada durante a cúpula de fevereiro, já que o debate da homossexualidade está relacionado com a pauta dos abusos sexuais. A própria liderança de Francisco tem sido sombria. Em 2013, ao ser perguntado sobre o assunto, ele deu sua famosa declaração “Quem sou eu para julgar?”. Em maio de 2018, foi relatado que o Papa disse a bispos italianos para “manter seus olhos abertos” sobre estes candidatos e “quando houverem dúvidas, melhor não deixá-los entrar”. Então, em dezembro, em uma entrevista, o Papa falou que a existência de padres gays é “algo que me preocupa”. Os holandeses estão certos em pedir que Francisco seja mais claro sobre o que ele pensa sobre a questão dos padres gays.

Enquanto isso, as opiniões dos bispos sobre homossexualidade e o clero são mistas. A situação da Alemanha exemplifica essa divisão: algumas autoridades disseram que aceitarão gays no seminário, enquanto bispos do alto escalão promovem discursos homofóbicos. Muitos católicos rejeitam as teorias que ligam sacerdotes homossexuais aos abusos, mas, como Jamie Manson, do National Catholic Reporter, apontou recentemente, o Vaticano ainda confia na ciência do lixo desmistificada em suas políticas.

O diretor executivo do New Ways Ministry, Francis DeBernardo, sugeriu ao Metro Weekly que parte dos ataques negativos contra padres gays pode estar ligada a ataques de direita contra o papa: “Existem defensores anti-gays na Igreja que têm, há muito tempo, acreditado no mito de que se você é gay, é também sexualmente ativo, o que é uma definição totalmente ignorante e irresponsável. Aqueles que pedem o bode expiatório de padres gays são os mesmos que querem derrubar o papado do Papa Francisco, porque o veem como muito liberal. Fazer a acusação de que ele está protegendo padres gays é uma maneira de enfraquecer sua autoridade. E isso funciona, pois, como provar que não existem padres gays? É como o bicho papão no armário. Se você mencioná-lo, está assumindo que ele é real”.

Como esses debates vão se desenrolar na próxima semana, de facto, se eles serão levantados, não está claro. Francis DeBernardo, da Bondings 2.0, estará fazendo reportagens de Roma com qualquer evolução. Mas por enquanto, é um sinal de esperança e bem-vindo à Igreja que esses ministros holandeses se manifestem publicamente em defesa dos padres gays que oferecem tanto ao povo de Deus.

O New Ways Ministry relançou nossa campanha “O Dom das Vocações dos Sacerdotes Gay” para mostrar nosso apoio aos homossexuais e religiosos que fielmente, respeitosamente e eficazmente serviram ao Povo de Deus, e para pedir aos líderes da igreja que acabem com as falsidades e acabem com a proibição de padres gays.

Donatella Di Cesare

EM LOUVOR DA DESOBEDIÊNCIA

Os novos desobedientes são perigosos fora-da-lei, que deveriam ser condenados criminalmente, ou são cidadãos exemplares a cuja audácia se deve à vitalidade da democracia? Ameaçam a ordem pública ou permitem refrear o ódio pelo outro, o racismo, as discriminações, em nome de uma sociedade aberta? Assim pode ser sintetizado o dilema sobre o qual se concentrou, nos últimos anos, o debate filosófico, jurídico e político sobre o grande tema da desobediência civil”. O texto é de Donatella Di Cesare, filósofa italiana, publicado por Corriere della Sera. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Não se dobrar às imposições da lei que se considera injusta é um ato de responsabilidade para com a própria consciência. Os exemplos de Antígona e Sócrates, a lição instrutiva do caso de Eichmann. Os novos desobedientes são perigosos fora-da-lei, que deveriam ser condenados criminalmente, ou são cidadãos exemplares a cuja audácia se deve à vitalidade da democracia? Ameaçam a ordem pública ou permitem refrear o ódio pelo outro, o racismo, as discriminações, em nome de uma sociedade aberta? Assim pode ser sintetizado o dilema sobre o qual se concentrou, nos últimos anos, o debate filosófico, jurídico e político sobre o grande tema da desobediência civil.

Um debate que passou gradualmente à ordem do dia também por causa de novas formas assumidas pela contestação social. Como em muitos outros casos, o ponto de virada foi determinado pela experiência totalitarista do século XX, quando a obediência zelosa do executor implacável apareceu em toda a sua monstruosidade. Sobretudo porque a razão, à qual se obedecia, não era mais aquela dos direitos universais, mas a fria e anônima racionalidade do cálculo impessoal. Diante dos inéditos "monstros da obediência", como os chama Frédéric Gros no livro que agora chega às bancas Disobbedire (Desobedecer - em tradução livre -, da Einaudi), diante de Adolf Eichmann, o planejador logístico da Solução Final, que em 1961 proclamava no tribunal que ele tinha simplesmente seguido ordens, a questão se mostrava sob uma luz completamente diferente. Obedecer significa, no final das contas, não ter que prestar contas de nada a ninguém, nada pelo que responder. Resumindo: a responsabilidade aparecia em uma relação muito diferente com a obediência. Aquele que se submetia passivamente parecia totalmente desresponsabilizado. A "estupidez" de Eichmann, para citar Hannah Arendt, estava justamente na ausência de juízo, na repetição de clichês, no automatismo da palavra. Aqui está sua culpa efetiva: ter preferido não saber, não ver, não pensar. Se o que tinha acontecido pudesse repetir-se, quantos filhos de Eichmann teriam colocado em risco inclusive as democracias? A organização técnico-burocrática de vida, que segmentava a responsabilidade, tornando indiferentes e anestesiando, teria facilitado o trabalho de futuros cinzentos executores sem alma e sem piedade.

Aliás, já algumas décadas antes, em plena ditadura, a questão era mais a de obedecer. Assim escrevia Simone Weil: "A submissão dos muitos aos poucos, este dado fundamental em quase todas as organizações sociais, nunca deixou de espantar todos aqueles que refletem um pouco a seu respeito." E, falando da Alemanha de Adolf Hitler, ela acrescentava: "Quando impera a morte, o milagre da obediência salta aos olhos. Que muitos se submetam a um só por medo de serem mortos já é estarrecedor; mas que eles se mostrem tão submissos, a ponto de morrer por sua ordem, como justificá-lo?"

Sob esse enfoque a desobediência revelava-se a escolha inalienável de liberdade que humaniza. Deve ser dito que já Kant, no banco dos réus pela rígida formalidade da sua ética, apesar de ter defendido firmemente o valor da obediência, sem a qual não existiria a comunidade, não havia deixado de solicitar a vigilância. A coragem do juízo crítico, até a dissidência civil, percorre e agita toda a tradição ocidental. A partir da figura emblemática de Antígona que, conscientemente, viola o decreto de Creonte, um édito miserável de politiqueiro oportunista, desprovido de qualquer legitimidade, que além disso choca-se contra as leis superiores, não escritas, como aquela sobre o enterro dos mortos. A comunidade contra o Estado, os direitos humanos contra os cínicos jogos de poder. E, portanto, desobediência. O grito do desafio: "Nasci para amar, não para odiar". Um irmão é um irmão. A humanidade é uma imensa família. Antígona se recusa a operar divisões, discriminar aquele que lhe é mostrado como "inimigo".

Mas é a filosofia que mantém alta a atenção sobre a desobediência. Como esquecer Sócrates? Acusado e condenado injustamente, ele renuncia a fugir, elogiando as leis da cidade; se tivesse fugido de Atenas, poderia ter sido acusado de traição. Mais ainda: teria feito o papel de um criminoso qualquer. Aceitar a sanção não significa, no entanto, legitimá-la. Sócrates permanece em seu lugar para apontar o dedo contra aqueles que o acusam, para que estoure o escândalo. Sua obediência singular é uma forma de resistência que inaugura toda dissidência que virá. Nele ganha voz o "não" da desobediência que é um "sim" à própria consciência.

Contudo, não se deve confundir a objeção de consciência com a desobediência civil. O gesto de Henry Thoreau, o anarquista que se orienta para a vida selvagem, contestando a civilização da qual se recusa a participar, por exemplo, pagando os impostos, é o gesto do objetor. A desobediência civil, mesmo que praticado por um indivíduo, é ao contrário uma contestação comum que coloca em dúvida as instituições, questiona as leis, em nome de uma democracia renovada e de um projeto futuro. Disso decorre a dimensão pública da desobediência. Denuncia-se a iniquidade de um decreto sob os olhos de todos, ostentando, aliás, que a desobediência que - de Gandhi a Martin Luther King – é direcionada não só e nem tanto às autoridades, quanto à consciência dos outros e ao sentido de justiça alheio.

Claro, o irresponsável não obedece, por incapacidade ou por negligência. Por outro lado, o desobediente assume o risco de sua própria ação, reivindica algo a mais de responsabilidade; recusa-se a continuar dizendo "sim" diante do intolerável. A desobediência custa, requer esforço, não só porque contesta as hierarquias do poder, mas também porque interrompe a monotonia do hábito. Além de destacar o dissídio entre direito e justiça, lança luz, assim, sobre uma submissão que, dada muito rapidamente como descontada, poderia, com o tempo, revelar-se um perigo. Por que o submisso obedece?

Essa é a questão levantada por Etienne de La Boétie em seu esplêndido panfleto sobre a servidão voluntária. A resposta está na cadeia de cumplicidade: a pessoa aceita ser tiranizada para poder tiranizar, de ser escravizada para escravizar. Assim, o obediente se vinga ao se contentar com uma pequena parte daquele dispositivo de poder que também mina a democracia.

A desobediência civil legítima, difícil e arriscada é uma obrigação ética e um desafio político. Requer coragem. Acima de tudo, a coragem de não trair a si mesmo, e a justiça em que se acredita, para curvar-se ao comando alheio. Isso significa que, na des-obediência, ainda permanece um obedecer - à própria consciência. E é por isso que o gesto de quem diz "não" não pode ser interpretado como um ato irresponsável de delinquência. Desobedecer é um ato responsável.

Esta é a lição que vem de Eichmann. Se eu não posso ser considerado responsável porque me limitei a obedecer, então quando eu obedeço cegamente, seguindo a lei, eu me subtraio à responsabilidade. Em um mundo onde as ações são segmentadas, e a monstruosidade do todo corre o risco de não ser vista, onde a indiferença exonera de reagir, onde a impotência política é confundida com neutralidade soberana, a desobediência civil é uma obrigação democrática.

José I. González Faus

"A ESQUERDA SÓ PODERÁ SER AUTÊNTICA, CASO SE NUTRA DE UMA ESPIRITUALIDADE MUITO SÉRIA E PROFUNDA”

A esquerda só poderá ser autêntica caso se nutra de uma espiritualidade muito séria e profunda. Às direitas já basta sua manipulação da religião em proveito próprio (como acusou Marx, mostrou depois com textos o cardeal De Lubac, e hoje colocou em prática Bolsonaro). Mas, a esquerda precisa de mais”, escreve José I. González Faus, jesuíta, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital. Tradução do Cepat /IHU. Eis o texto.

“Aprenda flores de mim, o que vai de ontem a hoje”, poetizava dom Luis de Góngora. E hoje podemos parodiá-lo, Aprenda políticos, que já vemos o que vai do 15M ao Podemos.

Fui daqueles que, nos dias do 15M, caminhavam na praça de Catalunha e em outras ruas barcelonesas, buscando ver, escutar, farejar, conversar... Daquela mistura de decepção, ilusão, fartura, responsabilidade, juventude, ingenuidade e indignação, você saía com a pergunta esperançosa sobre se algo novo poderia estar sendo gestado. Mas, recordava-me de uma Carta aos cristãos pelo socialismo, escrita 40 anos antes, que citava São Paulo: “realize sua libertação com temor e tremor”.

Mais tarde, em junho de 2016, escrevi uma carta a Pablo Iglesias com tons de advertência (que não sei se está posta em algum blog). Hoje, estou entre aqueles que se perguntam como é possível que aquela massa compacta, tão segura de “poder”, tenha se tornado, tão cedo, uma areia de impotências. Como aquela aspiração que floresceu com 200.000 militantes e cinco milhões de votos, em uns dois anos, seja vista novamente ferida.

Os factos e os dias foram mostrando que isso da “casta”, por mais verdade que fosse e por mais bem que soasse, não era em razão da má “pasta” dos políticos existentes até o momento. Ao contrário, é uma tentação inerente a nossa pasta humana e à própria atividade pública (política ou eclesiástica), que eles não perceberam até acabar caindo de cara nela e perder novidade.

Não quero emitir juízos críticos pessoais, nem inflamar feridas. Posso reconhecer que minha sensibilidade sempre esteve mais próxima a Errejón que a Pablo Iglesias. Mas, sei que aqui podem me faltar dados para um julgamento definitivo. O que, sim, é necessário pedir hoje é que não se expliquem as crises jogando a culpa apenas nos outros, e que se dê início a essa autocrítica tão indispensável em qualquer atividade humana.

Mas, mesmo sem destacar ninguém, temo que o vedetismo e certa vaidade messiânica sejam os que dissolveram aquela promessa primeira. Em vez de vaidade messiânica poderia ter falado de “tejerismo”: a mentalidade de “isto ajusto eu”. Tejero com golpe de pistola. Outros com golpe de televisão. Algo ganhamos, sem dúvida. Mas, insuficiente.

Que contraste entre essa mentalidade messiânica (ou “tejera”) e o discurso de Tierno Galván em nossas primeiras eleições: “o PSP (a formação de Tierno) não pode prometer nada porque as coisas estão muito difíceis, mas se compromete a lutar em tudo o que for possível para ajustar algo” (cito de memória). Que bonito comprovar que aquele que não se atrevia a prometer nada, foi um dos melhores prefeitos de nossa democracia!

Enfim, desejo com toda a alma que esse aborto do 15M encontre alguma incubadora que lhe salve a vida. Desejo isso mais pelos jovens do que por mim. Por isso, permito-me advertir que a esquerda só poderá ser autêntica caso se nutra de uma espiritualidade muito séria e profunda. Às direitas já basta sua manipulação da religião em proveito próprio (como acusou Marx, mostrou depois com textos o cardeal De Lubac, e hoje colocou em prática Bolsonaro). Mas, a esquerda precisa de mais.

Não quero dizer com isto que a esquerda tenha que ser cristã: não estou querendo fazer apologética. Falo apenas de espiritualidade séria. Porque temas como a igualdade, a fraternidade, a acolhida, o respeito... são espirituais (e muito odiados) demais para acreditarmos que poderemos conquistá-los melhorando o PIB. Pois, este sistema iníquo só sabe fazer crescer o PIB, fazendo com que cresça também o PID (Percentagem Interior de Desigualdade).

Enfim, tomara que desta decepção de hoje brote uma lição aprendida para o amanhã, e não um novo desengano histórico. Que assim seja.

José María Castillo

A POLÍTICA E A RELIGIÃO TÊM MUITO PODER, MAS NÃO AUTORIDADE

A pura verdade é que a experiência está nos ensinando que se os políticos (e governantes em geral) não são pessoas honestas, que exercem a autoridade com plena transparência, a corrupção de uns e de outros lhes oferece meios, possibilidades e instrumentos para tomar as mais repugnantes e perversas decisões, que acabam beneficiando os de cima e destroçando, cada vez mais e mais, os mais desprotegidos”, escreve José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital. A tradução é do Cepat /IHU

Uma das coisas mais corruptas e escandalosas que estamos vivendo e suportando é o notável predomínio que se nota naqueles que mandam (ou desejam mandar), no agitado e convulsionado mundo da política.

E digo que estamos suportando fatos e situações corruptas e escandalosas porque somos muitos os cidadãos que estamos cansados de aguentar políticos e governantes dos quais se nota abundantemente que aquilo que buscam e querem (a todo custo) não é resolver os problemas das pessoas, mas, ao contrário, alcançar o poder para impor suas ideias, interesses e aspirações à população indefesa.

A situação é tão deplorável que a qualquer pessoa medianamente culta ocorre suspeitar que uma importante maioria dos aspirantes a governar nem pensou em toda a sua vida que, no exercício do governo (de um país, de um povo, de uma instituição...), “poder” não é o mesmo que “autoridade”. Um governante pode ter um poder absoluto, que é o que os ditadores possuem.

Contudo, um ditador, justamente porque é totalitário no exercício de seu poder absoluto, por isso mesmo, carece da autoridade que precisa para que os cidadãos vejam nele o governante que tem as qualidades (a credibilidade, a honradez, a sinceridade, a honestidade) que são indispensáveis para que o cidadão veja, nas decisões do governante, as convicções e projetos que buscam o bem da população.

No exercício de qualquer forma de governança, sempre fundamental para que as coisas caminhem bem, é inteiramente necessário que a população veja em seus governantes não apenas o “poder” que as leis estabelecem, mas, além disso, a “autoridade” que se baseia na qualidade moral e a autenticidade fundada no direito. Poder e autoridade que geram o sentimento de “segurança” nos cidadãos. A base do bem-estar de um povo, de um país, da sociedade em geral.

O professor Ennio Cortese, em seu magistral estudo sobre Le Grandi Linee della Storia Giuridica Medievale, analisa a famosa carta que, no ano 494, o Papa Gelásio enviou ao imperador Anastácio, na qual dizia: “existem duas instâncias para reger o mundo: a autoridade sagrada dos pontífices e a potestade real” (“auctoritas pontificum et regalis potestas”). A “autoridade” é a superioridade moral; a “potestade” é o poder público de execução.

Não é possível estudar aqui a enorme documentação histórica que existe sobre este texto. Nem vamos cair na ingenuidade de apresentar todos os papas como modelos de “superioridade moral”. O que importa não é a veracidade histórica, mas, sim, o ensinamento ético.

É evidente que, deste ponto de vista, a exemplaridade moral do governante está no exercício de seu cargo, quando só pensa e atua buscando o maior bem daqueles que mais necessitam dele. Aí está o ponto capital que justifica as decisões de governo e a execução de tais decisões.

Infelizmente, a ausência do necessário equilíbrio da “autoridade” e o “poder”, no governo dos povos e nas instituições, é o que desarticulou a segurança dos cidadãos e o bem-estar na sociedade. A brutal desarticulação que estamos suportando, no devido exercício da política, é o que gerou o contaminado e fétido clima de convivência em que vivemos.

É verdade que, desde o s. XVIII, Montesquieu estabeleceu os primeiros fundamentos da separação de poderes, no exercício do Direito e da gestão política. Pensou-se que tal separação devolveria a transparência e a equidade no âmbito da mais estrita justiça, no exercício da autoridade e do poder.

Mas, a pura verdade é que a experiência está nos ensinando que se os políticos (e governantes em geral) não são pessoas honestas, que exercem a autoridade com plena transparência, a corrupção de uns e de outros lhes oferece meios, possibilidades e instrumentos para tomar as mais repugnantes e perversas decisões, que acabam beneficiando os de cima e destroçando, cada vez mais e mais, os mais desprotegidos.

Para expor algum exemplo, para encerrar, como se explica que nos grupos políticos mais religiosos é onde a corrupção se tornou mais desenfreada? Que religião é essa? E, sobretudo, como se explica tanto descaramento e tanta hipocrisia?

Estamos falando de uma política e de uma religiosidade que possuem, sem dúvida, muito “poder”, mas que carecem por completo de “autoridade” e “credibilidade”. Com gente assim, para onde vamos?

Edição 144, Janeiro 2019

Reportagem de James Gallagher

A DIETA QUE PROMETE SALVAR VIDAS

Cientistas desenvolveram uma dieta que promete salvar vidas, alimentar 10 bilhões de habitantes e não causar danos catastróficos ao planeta. Os pesquisadores estavam tentando descobrir como alimentar bilhões de pessoas a mais nas próximas décadas. Reportagem publicada por BBC News e reproduzida por IHU.

A resposta para o desafio consta no relatório elaborado por uma comissão de 37 especialistas de diversas áreas, publicado na revista científica The Lancet. Trata-se da "dieta para saúde planetária" - que não elimina completamente a carne e os laticínios. Mas requer uma enorme mudança em relação ao que colocamos em nossos pratos.

Quais são as mudanças?

Se você come carne todos os dias, então esta é a primeira questão. No caso da carne vermelha, significa um hambúrguer por semana ou um bife grande por mês - esta é sua cota. Em paralelo, você pode comer algumas porções de peixe e frango por semana. Mas as verduras e legumes serão a fonte do restante de proteína que seu corpo precisa.

Os pesquisadores recomendam consumir nozes e uma boa porção de leguminosas (como feijões, grão de bico e lentilhas) todos os dias. Há também um grande incentivo em relação a todas as frutas, verduras e legumes, que devem representar metade de cada refeição. Embora haja restrições para "legumes ricos em amido", como batata e aipim.

Como é a dieta?

Veja abaixo o que a dieta permite comer por dia:

1. Nozes - 50g por dia

2. Feijão, grão de bico, lentilhas e outras leguminosas - 75g por dia

3. Peixe - 28g por dia

4. Ovos - 13g por dia (pouco mais de um por semana)

5. Carne - 14g de carne vermelha por dia e 29g de frango por dia

6. Carboidratos - 232g por dia de grãos integrais, como pão e arroz, e 50g por dia de legumes e verduras ricos em amido

7. Laticínios - 250g, o equivalente a um copo de leite

8. Legumes (300g) e frutas (200g)

A dieta permite consumir 31g de açúcar e cerca de 50g de óleos, como azeite.

O gosto vai ser horrível?

O professor Walter Willet, um dos pesquisadores da Universidade de Harvard, nos EUA, diz que não e que, depois de passar a infância na fazenda, comendo três porções de carne vermelha por dia, agora está mais que pronto para a dieta da saúde planetária.

"Tem uma variedade enorme."

"Você pode pegar esses alimentos e combiná-los de milhares de maneiras diferentes. Não estamos falando de uma dieta de privação aqui, é uma alimentação saudável que é flexível e agradável", acrescenta.

Uma ilusão?

Este plano requer mudanças de hábitos alimentares em praticamente todos os cantos do mundo. A Europa e a América do Norte precisarão reduzir consideravelmente o consumo de carne vermelha, enquanto a Ásia Oriental terá que diminuir o consumo de peixe, e a África será obrigada a cortar legumes ricos em amido.

"A humanidade nunca tentou mudar o sistema alimentar nesta escala e nesta velocidade", diz Line Gordon, professora assistente do Centro de Resiliência de Estocolmo, na Suécia.

"Se é ilusão ou não, uma fantasia não precisa ser algo ruim... é hora de sonhar com um mundo bom", diz ela.

Segundo os pesquisadores, o imposto sobre a carne vermelha é uma das muitas medidas que podem ser necessárias para nos convencer a mudar a dieta.

Por que precisamos de uma dieta para 10 bilhões de pessoas?

A população mundial chegou a 7 bilhões em 2011 e agora está em torno de 7,7 bilhões.

Espera-se que esse número chegue a 10 bilhões por volta de 2050 e continue subindo.

A dieta vai salvar vidas?

Os pesquisadores dizem que a dieta vai evitar que cerca de 11 milhões de pessoas morram a cada ano. Este número se deve em grande parte a doenças relacionadas a dietas pouco saudáveis, como ataques cardíacos, derrames e alguns tipos de câncer. Estes são atualmente os maiores assassinos em países desenvolvidos.

Qual o impacto da agropecuária?

De acordo com Matt McGrath, correspondente de Meio Ambiente da BBC, o uso da terra para o cultivo de alimentos e silvicultura corresponde a cerca de um quarto das emissões globais de gases de efeito estufa, quase o mesmo que a eletricidade e o aquecimento, e substancialmente mais do que de todos os trens, aviões e automóveis do planeta.

"Quando você olha mais de perto o impacto ambiental do setor de alimentos, você pode ver que a carne e os laticínios são fatores primordiais - em todo o mundo, a pecuária é responsável por entre 14,5% e 18% das emissões de gases de efeito estufa provocadas por atividades humanas", acrescenta.

Segundo ele, a agricultura é um dos principais culpados pelas emissões de metano e óxido nitroso, que também colaboram para o aquecimento global.

"A agricultura também é uma fonte significativa de poluição do ar gerada pela amônia nas fazendas, uma das principais causas das partículas finas, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) diz ser uma ameaça à saúde em todo o mundo."

"Da mesma forma, quando se trata da água, a agricultura e a produção de alimentos são uma grande ameaça, consumindo 70% das fontes globais de água doce para irrigação", completa McGrath.

A dieta planetária vai salvar o planeta?

O objetivo dos pesquisadores é alimentar mais pessoas, ao mesmo tempo em que:

- Minimizam as emissões de gases de efeito estufa que causam as mudanças climáticas.

- Impedem a extinção de espécies.

- Não ampliam as terras agrícolas.

- Preservam a água.

No entanto, a mudança na dieta está longe de ser suficiente.

Para fechar essa equação, também será preciso reduzir à metade o desperdício de comida e aumentar a quantidade de alimentos produzidos nas terras para cultivo existentes.

Por que a carne não está sendo banida?

"Se estivéssemos apenas minimizando os gases do efeito estufa, diríamos para todo mundo ser vegano", diz Willet.

Ele argumenta, no entanto, que não está claro se uma dieta vegana é a opção mais saudável.

Qual o próximo passo?

A comissão de especialistas vai apresentar as descobertas a governos de países do mundo todo, assim como a organizações globais como a OMS, para ver se podem começar a desenvolver iniciativas capazes de mudar nossos hábitos alimentares.

Jean-Marie Tillard

SOMOS OS ÚLTIMOS CRISTÃOS?

"A fé cristã não pode ser reduzida a um modo para alguém 'se tornar pessoalmente melhor', mas deve permanecer como uma comunicação de vida, uma graça que justifica a existência de cada um e a torna alegre. A alegria do Evangelho é alegria de fé!". O comentário é de Enzo Bianchi, monge italiano e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado por Jesus, Janeiro-2019. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Jean-Marie Tillard, grande teólogo de sopro ecumênico e, para mim, mestre e amigo, nos últimos anos de vida, muitas vezes perguntava: "Será que somos os últimos cristãos?". Ele era um discípulo de Jesus, não tomado pelo pessimismo ou pela amargura, mas essa pergunta surgia nele espontaneamente; e era levado a apresentá-la aos outro e a si mesmo não pelas estatísticas que revelavam a diminuição do número de cristãos no nosso ocidente, mas constatando a falta da paixão, da convicção por parte de muitos batizados que, mesmo assim, continuavam a declarar-se cristãos e até mesmo confessavam pertencer à igreja.

Agora idoso, eu também sou tentado a me fazer essa pergunta, e pela evidência das mesmas razões. Raramente, de fato, encontro cristãos que nutrem uma paixão por Jesus Cristo, pelo Evangelho, e estão realmente convencidos não só de que Jesus pode ser uma resposta às suas perguntas sobre o sentido da vida, mas que seja a sua vida, o seu futuro. É verdade, hoje podemos ver entre os cristãos uma busca pela vida espiritual ou interior muito intensa, talvez mais intensa do que no passado. Mas muitas vezes trata-se de uma espiritualidade que se alimenta de uma crença específica em Deus, de uma busca de bem-estar interior, e espera não o Reino que há de vir, nem Jesus Cristo, mas um ensinamento ético para viver melhor, uma legenda antropológica que permita encontrar paz, harmonia em si e com os outros.

Assim, a mensagem de Jesus é esvaziada e reduzida a uma espiritualidade refinada, mas sem a graça, a um caminho de auto salvação. Quem cita ainda a palavra de Jesus: "Quem quiser salvar a sua vida, a perderá; mas quem perderá a sua vida por minha causa e pelo Evangelho, a salvará" (Mc 8,35)? Precisamente por isso, há falta de paixão, que é uma experiência mais que um sentimento, uma experiência capaz de despertar a vida em nossas vidas. Se houver essa paixão, haverá também a alegria de ser cristãos, de poder viver junto com Jesus Cristo, de poder sentirmo-nos irmãos e irmãs na comunidade dos discípulos do Senhor.

A experiência cristã é muito mais do que viver uma espiritualidade que, como vida interior, todos os seres humanos podem fazer. Hoje são muitos aqueles que parecem ofuscados pela atenção de muitos batizados à "espiritualidade"; mas quando se investiga mais a fundo, verifica-se que eles não estão engajados em uma "vida espiritual", isto é, animada pelo Espírito Santo, portanto vida em Cristo, mas sim em caminhos de interioridade originados pelas diferentes sabedorias humanas. Infelizmente, até mesmo muitos autores, verdadeiras estrelas da espiritualidade que se dizem católicos, na verdade ensinam apenas uma ética terapêutica. A fé cristã não pode ser reduzida a um modo para alguém "se tornar pessoalmente melhor", mas deve permanecer como uma comunicação de vida, uma graça que justifica a existência de cada um e a torna alegre. A alegria do Evangelho é alegria de fé!

Bento XVI recordou, enfaticamente, que "no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas um acontecimento, o encontro com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e um rumo definitivo” (Encíclica Deus caritas est, no. 1, 25 de dezembro de 2005).

No encontro com Jesus Cristo somos gerados como amantes, como pessoas cuja paixão é realmente amar mais ele do que o pai, a mãe e até mesmo a própria vida (cf. Lc 14:26; Mt 10:37), é realmente conhecer a profundidade e amplitude do amor. E preste atenção: não me refiro a um amor místico, simplesmente de desejo, mas ao amor que conhece a gratuidade do amor de Deus, sempre oferecido e nunca a ser merecido.

Então orar é uma festa, celebrar a liturgia é uma festa, ler as escrituras ouvindo a palavra é uma festa, uma bênção. Somos, portanto, os últimos cristãos? Devemos nos resignar a viver em uma comunidade onde falta fogo, aquele fogo que Jesus queria trazer para a terra e desejava tanto ver arder (cf. Lc 12, 49)? Não fomos capazes de transmitir a paixão que torna a fé contagiante? Às vezes eu digo a mim mesmo que a dureza de coração é melhor do que a apatia ... Em qualquer caso, acredito que essas perguntas e, principalmente, essa busca intensa por uma paixão por Cristo, não possam ser evitadas ou omitidas com presunção.

Massimo Cacciari

"SALVEMOS A DEMOCRACIA ANTES QUE SE TORNE APENAS UMA CONVERSA NA REDE"

"O esvaziamento do Parlamento dos seus poderes é o culminar de uma crise devastadora que afeta todo o Ocidente. É um fenômeno que vai muito além de Salvini ou Di Maio e começou há 30 anos". O comentário é de Massimo Cacciari, filósofo italiano e ex-prefeito de Veneza, em artigo publicado por L'Espresso. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU.

O que terão pensado os adolescentes e os jovens assistindo ao espetáculo do Parlamento envolvido com a lei financeira? Serão eles capazes de distinguir entre protestos e suas causas, entre responsabilidade da maioria e oposição? E admitindo que eles tivessem suficiente memória histórica, poderiam realmente fazer isso? Ou não estamos no último acto de um longo, em alguns aspectos dramático e em outros vergonhoso, episódio?

É claro que podemos dizer que nunca atingimos tal nível de mediocridade, nunca tão claramente ridicularizaram as funções das assembleias que ainda ousam se chamar de legislativas. Mas há quantos anos estão sendo desmontadas? Seria apropriado dizer "bem cavado, velha toupeira!". Há quantos anos quase todas as leis de alguma importância são aprovadas por votos de confiança? O processo sub-reptício de esvaziar o parlamento em favor do executivo também está em ação desde antes da Tangentopoli (caso de propinas em troca de favores na administração pública e ambiente políticos, NDT).

A queda da primeira República - "substituída" apenas pela crise da mesma, à qual nenhuma reforma das instituições italianas se seguiu - tornou o processo simplesmente impossível de ser detido. Poderia ter se respondido à catástrofe de acordo com diferentes perspectivas: com um redesenho completo da estrutura do Estado, redistribuindo poderes e funções entre centro, regiões e autoridades locais; com um reforço das assembleias legislativas, reduzindo drasticamente o número dos representantes, eliminando o Senado, reavaliando os regulamentos, de modo a tornar os procedimentos ainda mais rápido, mas ao mesmo tempo limitando radicalmente a possibilidade de recorrer ao voto de confiança; ou ainda em um sentido decididamente e coerentemente presidencialista.

Poderia haver propostas sérias tanto "da direita" como "da esquerda". Mas, de facto, nada aconteceu. Tentativas penosas, atarantadas e amadoras, desprovidas de qualquer sistematização. E hoje aqui está o resultado: um governo mantido por forças políticas que ignoram a profundidade da crise que investe a democracia representativa, ou fazem do seu fim, concretamente, o seu objetivo.

Aqui está o ponto de viragem: da crise da democracia a que assistíamos, talvez ignorando as causas e nada fazendo para sair dela, no entanto depreciando-a, até a ação, consciente ou não, pouco importa, para destruí-la definitivamente. Para essas pessoas, a democracia deve se tornar a universal conversa na rede, organizada, direta e decisiva em seus resultados por parte dos donos da mesma, sem partidos, sem organismos intermédios, sem sindicatos que atrapalhem a linha direta, em tempo real e interativa, conforme preconizado pelo seu verbo, entre o Povo e o Chefe, expressão da vontade geral.

Quem dera fosse apenas Salvini e Di Maio e suas complacentes folhas de figueira! É um colapso que ameaça, em diferentes formas, todas as democracias ocidentais. Temo que tenhamos chegado a uma encruzilhada; ou de parte das culturas liberais populares, social-democráticas que fizeram do bem-estar e da Europa do pós-guerra terá que ocorrer um contragolpe à culpada inércia com que durante pelo menos três décadas "acompanharam" os sintomas cada vez mais óbvios desse colapso, ou ele se tornará imparável. Ou seja, para todos aqueles que nasceram depois da queda do Muro se tornará senso comum a inutilidade das instituições representativas, cada forma de representação será a priori considerada como "casta", cada minuto gasto discutindo fora dos media sociais, será considerado perdido.

Voltar ao antigo é tanto utópico quanto reacionário; pode-se responder à situação apenas mostrando que é possível dar início a reformas de sistema, das instituições centrais até as periféricas, da administração do Estado em todos os seus aspectos até as políticas de bem-estar, só organizando sujeitos concretos que tenham um interesse e que lutem por essas reformas. A "viragem", pois é justamente tal, que o governo italiano representa (e que pode realmente significar uma experiência europeia), caso contrário será lembrada como a primeira explícita declaração de falência da temporada democrática conhecida pelos países europeus após a Segunda Guerra Mundial.

A REVOLUÇÃO CUBANA COMPLETA 60 ANOS

1º de janeiro de 2019, 60 anos da Revolução Cubana. Quem diria? Para a soberba dos serviços de inteligência dos EUA a ousadia dos barbudos de Sierra Maestra, ao livrar Cuba da esfera de domínio de Tio Sam, era um “mau exemplo” a ser o quanto antes apagado das páginas da história. A CIA mobilizou e treinou milhares de mercenários e Kennedy mandou-os invadir Cuba (1961). Foram vergonhosamente derrotados por um povo em armas. E, de quebra, a hostilidade da Casa Branca levou Cuba a se alinhar à União Soviética. O tiro saiu pela culatra. Mexer com Cuba passou a significar aquecer a Guerra Fria, como o demonstrou a crise dos mísseis (1962).

Tio Sam não botou as barbas de molho. Transformou cubanos exilados em Miami em terroristas que derrubaram aviões, explodiram bombas, promoveram sabotagens. E investiu uma fortuna para alcançar o mais espetacular objetivo terrorista: eliminar Fidel. Foram mais de 600 atentados. Todos fracassados. Fidel faleceu na cama, cercado pela família, em 25 de novembro de 2016, pouco antes de a Revolução completar 58 anos. Havia sobrevivido a 10 ocupantes da Casa Branca que autorizaram operações terroristas contra Cuba: Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Ford, Carter, Reagan, Bush pai, Clinton e Bush filho.

Fracassada a invasão da Baía dos Porcos, impôs-se o bloqueio a Cuba (1961). Medida criticada por três papas em visita a Havana: João Paulo II (1998), Bento XVI (2012) e Francisco (2015). Porém, a Casa Branca não escuta vozes sensatas. Prefere se isolar, ao lado de Israel, a cada ano em que a Assembleia da ONU vota o tema do bloqueio. Pela 27ª vez, em 2018, 189 países se manifestaram contra o bloqueio a Cuba.

Com a queda do Muro de Berlim e o desaparecimento da União Soviética (1989), os profetas da desgraça prenunciaram o fim do socialismo cubano. Não falharia a teoria do dominó... Equivocaram-se. Cuba resistiu, suportou o Período Especial (1990-1995) e se adaptou aos novos tempos de globalização.

Muitos se perguntam: por que os EUA não invadiram Cuba com tropas convencionais (já que os mercenários foram derrotados), como fez na Somália (1993), Granada (1983), Afeganistão (2001) e Iraque (2003), Líbia (2011), Síria (2017), Níger (2017), e Iêmen (2018)? A resposta é simples: uma potência bélica é capaz de ocupar um país e derrubar-lhe o governo. Mas não derrotar um povo. Esta lição os estadunidenses aprenderam amargamente no Vietnam, onde foram escorraçados por um povo camponês (1955-1975). Atacar Cuba significaria enfrentar uma guerra popular. Após a humilhação sofrida no Sudeste Asiático, a Casa Branca prefere não correr o risco.

Por que Cuba incomoda a tantos que associam, indevidamente, capitalismo e democracia? Porque Cuba convence as pessoas intelectualmente honestas, que não se deixam levar pela propaganda anticomunista fundada em preconceitos, e não em fatos, que, apesar de toda a campanha mundial contra a Revolução, na ilha ninguém morre de fome, anda descalço, é analfabeto com mais de 6 anos de idade, precisa ter dinheiro para ingressar na escola ou cuidar da saúde, seja uma gripe ou uma complexa cirurgia do coração ou do cérebro. No IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da ONU, que abrange 189 países, Cuba ocupa melhor lugar (68º) que a maioria dos países da América Latina, incluído o Brasil (79º lugar).

Enquanto o capitalismo enfatiza, como valor, a competitividade, a Revolução incute no povo cubano a solidariedade. Graças a isso Cuba despachou tropas, nas décadas de 1960 e 1970, para ajudar nações africanas a se libertarem do colonialismo europeu e conquistarem sua independência. Raúl Castro foi o único chefe de Estado estrangeiro a ter direito a discursar nos funerais de Mandela, porque o governo da África do Sul reconheceu a importância da solidariedade cubana para o fim do apartheid.

Graças à solidariedade, professores e médicos cubanos se espalham por mais de 100 países, trabalhando nas áreas mais pobres e remotas. E graças aos princípios éticos da Revolução, em Cuba não se vê famílias debaixo de pontes, crianças de rua, mendigos estirados pelas calçadas, cracolândia, máfias de drogas. Os delatores da Odebrecht denunciaram todos os agentes públicos corrompidos nos países da América Latina nos quais a empresa atuou. Menos Cuba, onde ela construiu o porto de Mariel. Algum delator quis defender Cuba? Óbvio que não. Apenas nenhum cubano se deixou corromper.

O povo cubano chegou ao paraíso? Longe disso. Cuba é uma nação pobre, porém decente. Apesar do bloqueio e de todos os problemas que ele acarreta, seu povo é feliz. Por que então muitos saem de Cuba? Ora, muitos saem de qualquer país que enfrenta dificuldades. Saem da Espanha, da Grécia, da Turquia, do Brasil, da Venezuela e da Argentina. Mas quem sai? De Cuba, aqueles que, contaminados pela propaganda do consumismo capitalista, acreditam que o Eldorado fica acima do Rio Grande. Os mesmos que se regozijam com a emigração de uns poucos cubanos jamais se indagam por que nunca houve em Cuba uma manifestação popular contrária ao governo, como acaba de ocorrer na França (jalecos amarelos) e também recentemente na Tunísia (2011), Egito (2011), Turquia (2016), e anteriormente nos EUA (Seattle, 1999).

Haveria um Cuba soldados ou guardas em cada esquina? João Paulo II declarou que lhe chamou a atenção não ver veículos militares nas ruas ao visitar Havana, como observou em tantos outros países. A maior arma da resistência cubana é a consciência da população.

A Revolução Cubana comemora 60 anos! É muito pouco para um país triplamente ilhado: pela geografia, pelo bloqueio e por ser o único da história do Ocidente a adotar o socialismo. E quando os cubanos comemoram, não olham apenas para o passado de tantas gloriosas conquistas entre muitos desafios e dificuldades. Inspirados por Martí, Che, Fidel e Raúl, os cubanos sabem que a Revolução ainda é um projeto de futuro. Não só para a Cuba, mas para toda a humanidade, até que as diferenças (idioma, cultura, sexo, religião, cor da pele etc.) não sejam mais motivo de divergências, e a desigualdade social figure nos arquivos de pesquisas apenas como uma abominável referência histórica, como é hoje a escravatura.

Longa vida à Revolução Cubana!

Edição 143, Dezembro 2018

La Croix International

O QUE ESTÁ ACONTECER NO VATICANO

O Papa está prestes a tomar novas medidas sobre um movimento leigo controverso? Qual será o futuro do cardeal Pell? A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International. A tradução é de Victor D. Thiesen /IHU.

Nem tudo é sempre como aparenta ser no misterioso mundo do Vaticano. Na semana passada, o Papa Francisco comemorou 49 anos como presbítero ordenado. Enquanto muitos padres fazem do seu aniversário de ordenação um dia de grande celebração, o seu aniversário, que aconteceu no dia 13 de dezembro, passou praticamente despercebido, sem muitas comemorações. Francisco começou o dia em uma oração particular antes de celebrar a missa matinal. Tomou seu café da manhã na sala de jantar de sua residência, na Santa Marta, se preparando para uma série de reuniões privadas e audiências em grupo, incluindo com dez novos embaixadores para a Santa Sé.

Antes do almoço, Francisco também havia conversado com três bispos de língua espanhola numa importante reunião. Uma sessão para indicar que o Vaticano está prestes a entrar em ação contra o Sodalitium Christianae Vitae, um movimento leigo de homens e mulheres conservadores e cultuados, fundado nos anos 70 no Peru. Como observado aqui há algumas semanas, o fundador da Sodalitium, Luis Figari, junto à vários outros líderes masculinos foram acusados ​​de manipular psicologicamente e abusar sexualmente de várias mulheres no movimento. A ex-chefe da filial feminina, Rocio Figueroa, recentemente reafirmou as alegações de que as autoridades do Vaticano demoraram a agir quando ela denunciou os abusos, enquanto trabalhava como funcionária do então Pontifício Conselho para os Leigos.

O Papa não ficou indiferente. No dia 13 de dezembro, se reuniu com os dois homens que ele havia indicado no mês de janeiro para assumir o Sodalitium como comissários papais - o bispo Noel Antonio Londoño Buitrago, redentorista que dirige a diocese de Jericó, na Colômbia, e o padre franciscano Guillermo Rodríguez. Também participaram da reunião o funcionário número 2 da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Sociedades de Vida Apostólica, Dom José Rodríguez Carballo, ex-superior geral da Ordem dos Frades Menores. Nada foi divulgado sobre tais conversas. Mas é interessante notar que, na mesma manhã, Francisco também teve um encontro particular com o cardeal Luis Ladaria, SJ, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. No dia seguinte, teve um cara a cara com o cardeal Stanislaw Rylko, ex-presidente do antigo Conselho Pontifício para os Leigos. Neste ponto, você provavelmente está começando a conectar os fatos. O escritório do cardeal Ladaria lida com penalidades canônicas para o abuso sexual de padres. Enquanto o fundador suspenso de Sodalitium, Luis Figari, não é um padre, ele atua como um ex-oficial ou líder.

Quanto ao cardeal Rylko, Rocio Figueroa declarou publicamente que ele - seu ex-chefe -, se recusou a apoiá-la quando ela emitiu suas denúncias sem resposta para outros escritórios do Vaticano. Provavelmente descobriremos em breve a natureza plena desses vários encontros que o Papa teve na semana passada e o que eles significam para o futuro do Sodalitium Christianae Vitae, sua liderança e seus membros. A maior notícia sobre a agenda do Papa Francisco na semana passada, é claro, foi a mais recente reunião do Conselho de Cardeais (C9), seleto grupo de conselheiros seniores que ele criou em 2013, apenas um mês após sua eleição para a cátedra de Pedro.

Esse foi o 27º encontro do gabinete do Papa, que tem a tarefa específica de ajudar o bispo de Roma em seu papel de governança universal da Igreja. Mais precisamente, ajudar nos negócios imediatos de reformar a Cúria Romana.

O grupo tem sido chamado de C9, já que é formado por nove cardeais de várias partes do mundo e do Vaticano. Como Nicolas Senèze relatou esta semana, Francisco liberou três dos cardeais de seu mandato no conselho. Dois deles estão ligados à escândalos de abuso sexual. O cardeal Francisco Errazuriz, de 85 anos, foi acusado de encobrir abusos no Chile, enquanto o cardeal George Pell, de 77 anos, está na Austrália há mais de um ano para enfrentar acusações de "ofensas históricas de agressão sexual", lutando por sua inocência.

O terceiro cardeal é Laurent Monsengwo, de 79 anos, que recentemente se aposentou como arcebispo de Kinshasa na República Democrática do Congo. Todos os três estão além da idade da aposentadoria e já completaram o mandato inicial de cinco anos no Conselho dos Cardeais. Francisco, que faz 82 anos na semana que vem, informou a eles no mês de outubro que seus termos não serão renovados. Os termos dos seis membros originais restantes do C9 foram estendidos, pelo menos por enquanto, embora nenhum substituto foi nomeado para os outros três cardeais.

Esse conselho privado foi formado por representantes de diferentes áreas continentais. Tudo indica que, na hora certa, o Papa possa escolher novos membros da Oceania (para substituir Pell), América do Sul (para substituir Errazuriz) e África (para substituir Monsengwo). Tenha em mente que este é um Conselho de Cardeais, então - a menos que o Papa esteja prestes a surpreender a Igreja com planos de colocar mulheres na faculdade de elite - você pode esquecer a ideia dele nomear conselheiras como membros de pleno direito no C9. Dos três membros que saíram, apenas um ainda não está aposentado, que é o cardeal George Pell. Ele está tecnicamente em uma licença de seu trabalho no Vaticano para que possa enfrentar acusações de abuso na Austrália, incluindo um segundo julgamento em março. Por enquanto, ele continua a ser o prefeito da Secretaria da Economia. Esse prazo termina em 24 de fevereiro, o último dia da cúpula de três dias do Papa Francisco com os chefes das conferências episcopais do mundo a respeito de abuso de menores.

Seja qual for o resultado das batalhas do tribunal de Cardeal Pell, é provavelmente seguro dizer que seus esforços para vencer os problemas financeiros que o Vaticano enfrenta acabaram. Ele não vai voltar.

José Eustáquio Diniz Alves

AS EMISSÕES GLOBAIS DE COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS BATEM RECORDE EM 2018

O facto é que as emissões só cairão consistentemente com uma mudança completa no modelo de produção e consumo e o decrescimento demoeconômico”, escreve José Eustáquio Diniz Alves, doutor em demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE, em artigo publicado por EcoDebate. Eis o texto.

O Acordo de Paris, assinado em 2015, em seu ponto principal, trata do esforço para reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE). Entre 2014 e 2016 as emissões mundiais ficaram estagnadas e parecia que tinham alcançado um pico para, em seguida, começar um processo de redução. Mas as emissões voltaram a subir em 2017 e 2018, acendendo um sinal vermelho quanto a impossibilidade de manter o aquecimento global abaixo de 1,5º Celsius.

Estudo, divulgado pelo Global Carbon Project (05/12/2018), durante a 24ª Conferência das Partes da Convenção do Clima das Nações Unidas (COP-24), realizada na Polônia, indica que as emissões de dióxido de carbono deverão alcançar níveis recordes em 2018. As emissões globais de combustíveis fósseis deverão alcançar 37,1 bilhões de toneladas de CO2 na atmosfera em 2018, o que representa um aumento de 2,7% em relação a 2017, sendo que o aumento havia sido de 1,6%, entre 2016 e 2017 (os dados definitivos serão divulgados ano que vem).

Um gráfico mostra que as emissões resultantes da queima de combustíveis fósseis passou de 9,28 bilhões de toneladas de CO2 em 1959 para 37,1 bilhões de toneladas de CO2 em 2018 (um crescimento de 4 vezes em cerca de 60 anos).

No mesmo período, a população mundial passou de cerca de 3 bilhões para 7,6 bilhões de habitantes – um aumento de 2,53 vezes – enquanto a economia global cresceu 8,8 vezes. Desta forma, a quadruplicação das emissões, entre 1959 e 2018, foi maior do que o crescimento demográfico, mas foi menor do que o crescimento econômico. Assim, houve aumento per capita das emissões e redução da intensidade das emissões por unidade de produto.

Em 1959, as emissões dos EUA foram de 2,82 bilhões de toneladas de CO2 e da União Europeia de 2,65 bilhões de toneladas de CO2. Ou seja, o mundo desenvolvido ocidental emitia 5,47 bilhões de toneladas de CO2, representando 59% das emissões globais em 1959. A China e a Índia emitiam, respectivamente, 0,72 e 0,11 bilhões de toneladas de CO2. O resto do mundo emitia 2,98 bilhões de toneladas de CO2.

Seis décadas depois, as emissões dos EUA, em 2018, foram de 5,4 bilhões de toneladas de CO2 (crescimento de 1,9 vezes) e da União Europeia de 3,52 bilhões de toneladas (crescimento de 1,3 vezes). A soma das emissões dos países ricos ocidentais, em 2018, foi de 8,92 bilhões de toneladas de CO2, representando apenas 24% das emissões globais, bem abaixo da proporção de 59% de 1959.

Mas o maior destaque do aumento da poluição global veio da China que passou a ser o país com os maiores níveis de emissão, atingindo 10,3 bilhões de toneladas de CO2 em 2018 (crescimento de 14,3 vezes em 60 anos), superando a soma dos EUA e da União Europeia. A Índia também se tornou uma grande emissora, com 2,63 bilhões de toneladas de CO2 em 2018 (crescimento de 24 vezes em 60 anos). Portanto, os dois países mais populosos do mundo, atualmente, superam o conjunto dos países ricos nas emissões de CO2. O resto do mundo passou de 2,98 para 15,3 bilhões de toneladas de CO2 em 2018 (crescimento de 5,1 vezes e acima da média mundial).

Nos anos 2000, os EUA e a União Europeia (os maiores poluidores do passado) diminuíram o volume das emissões, enquanto os países em desenvolvimento aumentaram. Talvez a China esteja próxima de atingir um pico das emissões. Mas a Índia e o resto do mundo tendem a manter emissões crescentes por conta da necessidade de reduzir a pobreza e atender uma população prevista para continuar crescendo até 2100. O gráfico abaixo mostra que o grande aumento das emissões ocorreu na Ásia, mas os demais continentes (Oceania, África, América do Sul e Oriente Médio) também apresentam aumento das emissões, enquanto a Europa e a América do Norte apresentam diminuição nos anos 2000.

O facto é que as emissões só cairão consistentemente com uma mudança completa no modelo de produção e consumo e o decrescimento demoeconômico. Mas fazer a transição de um modelo insustentável para um modelo sustentável não é fácil como mostra as manifestações dos “coletes amarelos” (gillets jaunes) da França. Evidentemente, este movimento extrapola a questão ambiental, mas o presidente Emmanuel Macron buscou taxar os combustíveis fósseis presumivelmente para possibilitar o abandono da produção e o consumo de energias poluidoras, que emitem muito CO2, até 2050. O plano incluía o fechamento das centrais de carvão até 2022, além de triplicar a produção de energia eólica terrestre e quintuplicar a fotovoltaica. Mas o descontentamento popular colocou em xeque as políticas do Palácio Eliseu e mostrou que existe muita dificuldade em resolver simultaneamente os problemas econômicos, sociais e ambientais, especialmente diante das altas taxações e da perda de poder de compra da população. Também a greve dos caminhoneiros no Brasil em maio de 2018 foi na contramão do ambientalismo ao reivindicar subsídio para o diesel e para os combustíveis fósseis.

Mas a ameaça mais séria vem de uma aliança de países na COP24 que questionam as conclusões do recente relatório divulgado pelo IPCC, que considera que os esforços para limitar o aumento médio da temperatura global a 1,5º Celsius exigirá “mudanças sem precedentes” em nível global e que o mundo tem apenas 12 anos para evitar um colapso ecológico. Segundo o Observatório do Clima:

“A Arábia Saudita, maior produtor mundial de petróleo, os EUA, a Rússia e o Kuwait vetaram a menção no livro de regras ao relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) que trata do aquecimento global de 1,5º C. O documento havia sido encomendado pela própria Convenção do Clima em 2015, para avaliar se e como seria viável manter o limite de 1,5º C ao aquecimento da Terra. Sua principal mensagem, apresentada à COP24 pelo painel na última terça-feira, é de que o mundo tem apenas 12 anos para reduzir emissões em 45% se quiser ter alguma chance de ficar nesse limite. Como as decisões na ONU se tomam por consenso, basta um país dizer não para alguma coisa não sair” (10/12/2018).

Desta forma, o grande problema é que o tempo é escasso para reverter os efeitos dramáticos do aquecimento global. Outros autores dizem que o tempo para evitar uma catástrofe climática é ainda mais curto do que indica o IPCC e que a tendência de aumento das emissões de CO2 precisa ser revertida, no máximo, em três anos. A situação é desesperadora. Contudo, cresce a oposição dos céticos das mudanças climáticas que buscam sabotar as metas do Acordo de Paris. No Brasil, o ruralista Ricardo Salles, indicado por Jair Bolsonaro para chefiar o Ministério do Meio Ambiente a partir de 2019, diz que pretende “tirar o Estado do cangote de quem produz” e que a “discussão sobre aquecimento global é secundária”

Todavia, negar a realidade é o mesmo que caminhar com os olhos vendados para o abismo. Como afirmou o importante naturalista David Attenborough, durante a abertura da COP-24, a possibilidade de um colapso ambiental está cada vez mais próxima: “Neste momento estamos enfrentando um desastre de escala global, a nossa maior ameaça em milhares de anos é a mudança climática”. Attenborough completou: “Se não tomarmos medidas, o colapso de nossa civilização e a extinção de grande parte do mundo natural está no horizonte”.

Massimo Faggioli

PORQUE OS OPONENTES DO PAPA NOS EUA ESTÃO A MUDAR A SUA NARRATIVA

Há uma mudança profunda na maneira com que os católicos norte-americanos se opõem ao Papa Francisco. Hoje eles afirmam que "o papado de Francisco é uma continuação de João Paulo II, compartilhando um consenso de que a Igreja deve se proteger contra a dependência muito grande da autoridade, até mesmo da autoridade da Igreja e da família". O que torna esta interpretação mais do que surpreendente é que durante décadas, neoconservadores, incluindo Richard John Neuhaus, fundador da revista First Things, dominaram a direita católica e enalteceram João Paulo II como o Papa que finalmente recuperou o controle de uma Igreja sequelada por teólogos liberais. Agora a narrativa histórica parece ter mudado à luz do pontificado de Francisco. Essa é uma inversão impressionante", afirma Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos Estados Unidos, em artigo publicado por Foreign Affairs. A tradução é de Victor Thiesen

Ao diagnosticar a recente divisão dentro da Igreja Católica, R. R. Reno ("The Populist Wave Hits the Catholic Church" [A Onda Populista atinge a Igreja Católica, em tradução livre] publicado em 13 de novembro, pode ser lido em inglês aqui) revela uma profunda mudança na forma como a minoria dos católicos norte-americanos que se opõem ao Papa Francisco o retratam como também os seus antecessores.

Respondendo ao meu recente artigo publicado por Foreign Affairs ("A maior crise da Igreja Católica desde a Reforma", publicado em 11 de outubro), Reno descreve o pontificado de Francisco como “desregulatório”, e em consonância com “um establishment secular governante". Ao mesmo tempo, oferece uma reavaliação um pouco cética do Papa João Paulo II, que foi até recentemente considerado como um herói entre os católicos conservadores, especialmente nos Estados Unidos. Reno não faz distinções conceituais importantes, e faz acusações injustas ao Papa Francisco e seus aliados. No entanto, seu argumento fornece um exemplo valioso de como o movimento conservador tradicionalista dentro do catolicismo dos Estados Unidos se radicalizou.

Reno escreve que a crise atual na Igreja decorre do "abandono" do Papa Francisco ao "antimodernismo" católico. No entanto, ao explicar seu argumento, Reno não distingue claramente entre o modernismo teológico e o catolicismo moderno. O primeiro foi um movimento da última década do século XIX e da primeira década do século XX que procurou reinterpretar o ensino católico tradicional usando o método histórico-crítico, o que levou a conclusões fora da tradição católica e posições que negavam o sobrenatural e sua presença na história. O modernismo foi condenado pelo Papa Pio X em 1907, e o que se seguiu foi uma das mais severas purgas contra teólogos em toda a história da Igreja. Durante décadas, as acusações de "modernismo teológico" estavam entre as mais perigosas que poderiam ser atribuídas contra um padre ou teólogo católico.

"Catolicismo moderno" é algo diferente. Refere-se à percepção da Igreja de que era necessário se engajar com o mundo moderno à luz das mudanças na ciência e na cultura no século XX. O início desta relação trouxe um fim à ficção de que um “retorno” à idade média era possível, muito menos desejável. Após a Segunda Guerra Mundial, o Concílio Vaticano II sinalizou a inevitabilidade do diálogo, e não a rendição, com a modernidade por parte de uma Igreja que quer ser um sinal e instrumento da presença de Deus no mundo. Reno alega que o Concílio, convocado pelo Papa João XXIII em 1959, e que transcorreu entre 1962 e 1965, "sugeriu uma abertura ao mundo moderno", e que essa abordagem "se tornou política dominante" nos anos que seguiram. No entanto, ele não menciona que os teólogos do Vaticano II definiram um limite entre as reformas do Concílio e o modernismo teológico. Yves Congar, o teólogo mais importante do Concílio, escreveu que "o modernismo, ao romper com o quadro do catolicismo, deixou claro o perigo de qualquer reflexão sobre a vida que não se baseia em uma teologia preexistente e bem estabelecida tratando a estrutura da Igreja".

Reno passa a acusar Francisco de abrir mão do projeto antimodernista através de um "afrouxamento geral das normas mais antigas sobre sexo, procriação e família". No entanto, Francisco não faz tal coisa. Sob comando deste Papa, não houve nenhuma mudança substancial em nenhuma destas normas, somente uma ênfase mais forte na maneira que devem ser interpretadas em alguns casos particulares. O adultério continua sendo adultério, e a Igreja Católica ainda não reconhece o divórcio e o segundo casamento. Algo mudou, não na lei da Igreja ou na doutrina, mas na teologia moral e na aplicação pastoral da disciplina sacramental. A mudança é que a Igreja não exclui necessariamente a admissão de casais em segunda união aos sacramentos após um período de discernimento. O foco excessivo de Reno no legalismo nunca esteve alinhado com a tradição católica. As leis sozinhas não unificam a Igreja, somente junto a costumes e práticas cujo propósito é promover o bem-estar espiritual das almas.

Reno também argumenta que Francisco agiu de forma "confusa" quando mudou o Catecismo da Igreja Católica para declarar a pena de morte "inadmissível." Na verdade, a mudança de Francisco era algo bem menos confuso: alinhou finalmente o texto do Catecismo, que dizia anteriormente que a pena de morte era aceitável em circunstâncias "muito raras, se não praticamente inexistente", com várias declarações que os papas João Paulo II e Bento XVI emitiram sobre a pena de morte nas últimas duas décadas.

Mais interessante, no entanto, é a afirmação de Reno de que o papado de Francisco é uma continuação de João Paulo II, compartilhando um consenso de que a Igreja deve se proteger contra a dependência muito grande da autoridade, até mesmo a autoridade da Igreja e da família". O que torna esta interpretação mais do que surpreendente é que durante décadas, neoconservadores, incluindo Richard John Neuhaus, fundador da revista First Things (que Reno edita atualmente), dominaram a direita católica e enalteceram João Paulo II como o Papa que finalmente recuperou o controle de uma Igreja sequelada por teólogos liberais. Agora a narrativa histórica parece ter mudado à luz do pontificado Francisco. Essa é uma inversão impressionante.

Igualmente deslumbrante tem sido como este grupo de católicos mudou sua visão do papel do Papa Francisco na atual crise da globalização. No primeiro ano do pontificado de Francisco, o próprio Reno elogiou o Papa Francisco por seus instintos populistas, escrevendo que ele "intui em grande parte as maneiras pelas quais a globalização está dissolvendo velhas certezas, velhas formas sociais, velhas formas de se