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Edição 174, janeiro 2022

Laura Scofield

FACEBOOK PAPERS: FUNCIONÁRIOS ACUSAM ZUCKERBERG DE NEGLIGENCIAR NEGACIONISMO CLIMÁTICO

Em documentos vazados, denúncias vão de empecilhos à moderação de fake news sobre o aquecimento global na plataforma a anúncios de empresas que cometem crimes ambientais. A reportagem é de Laura Scofield, publicada por Agência Pública /IHU /JF

Pelo menos até abril de 2021, o Facebook não era capaz de moderar a desinformação sobre mudanças climáticas de forma satisfatória, apontam documentos vazados ao Congresso dos Estados Unidos em outubro de 2021 e acessados pela Agência Pública em parceria com o Núcleo Jornalismo. A necessidade de moderar publicações com mentiras sobre o aquecimento global já era apontada pelos funcionários da empresa desde 2019 em discussões internas.

Em setembro daquele ano, um funcionário levantou o debate em tom de puxão de orelha na plataforma de trabalho da rede: “Nós precisamos de mudanças drásticas. Nós precisamos fazer mais para demonstrar nosso comprometimento em ajudar o mundo a resolver esse problema”, escreveu. O nome dos funcionários foi omitido nos documentos por segurança. O post rendeu 96 reações, 36 comentários e 15 compartilhamentos entre os empregados da Big Tech.

A política ambiental do governo Bolsonaro também foi citada na discussão. “A Amazônia está severamente machucada e o Brasil está queimando”, continuou o autor, que considera o aquecimento global uma “ameaça direta à missão da empresa”. “Nossa missão no Facebook é construir comunidades. Hoje, no entanto, a taxa de aquecimento global e o colapso ecológico estão ameaçando comunidades em todo o mundo. Há mais refugiados do clima a cada ano, muitos dos quais nas áreas de crescimento do Facebook”.

Para o autor do post, o Facebook deveria, além de reduzir sua pegada de carbono, exercer um papel na “proteção dessas comunidades vulneráveis” por meio da “elevação de suas vozes”. “Um grande fator da crise climática é o racismo ambiental, que afeta indígenas e comunidades pobres desproporcionalmente compostas por pessoas não brancas”, argumentou. “Isso é tão importante quanto a diversidade! Não existe diversidade em um planeta morto”, concordou outro funcionário. Em 2020, reportagem da Pública mostrou o inédito protagonismo indígena na COP26, em Glasgow, na Escócia.

Em 2019, primeiro ano de governo do presidente Jair Bolsonaro, o Brasil identificou a maior extensão de desmatamento na Amazônia desde 2008: 10,9 mil km². O número seria ainda superado por outro recorde, em 2021, quando a floresta registrou incremento de aproximadamente 12 mil km² de destruição — dado omitido pelo governo durante a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre o Clima, COP26.

Funcionário ressaltou o impacto dos incêndios na Amazônia em comunidades indígenas e cobrou mudanças.

Essas informações fazem parte dos chamados Facebook Papers, documentos enviados à Comissão de Valores Mobiliários dos EUA e fornecidos ao Congresso de forma editada pela assessoria legal de Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook, em outubro de 2021. As versões editadas recebidas pelo Congresso dos EUA foram revisadas por um consórcio de veículos de notícias. O Núcleo Jornalismo teve acesso aos documentos e fez parceria com a Pública para compartilhar essas informações.

Na mesma publicação, outra pessoa da equipe do Facebook lembrou a “destruição em massa de florestas” para manter o mercado da carne. “A coisa mais importante que a gente [funcionários do Facebook] pode fazer é pressionar o Facebook a responder apropriadamente a essa crise. Mudar os hábitos de gasto de um consumidor rico no mundo desenvolvido causa muito menos impacto do que mudar as prioridades de uma empresa que vale US$ 500 bilhões”, completou um dos trabalhadores no mesmo post.

“Sempre fico surpreso com a pouca tração interna desse tópico e como talvez subestimamos a extensão em que nossa plataforma pode salvar o mundo”, avaliou outro funcionário. “Fiz uma pergunta [sobre o tema] para o Mark [Zuckerberg] no Q & A [perguntas e respostas], mas a resposta não foi além de “medidas internas”. Ainda temos que criar uma visão sobre a influência ambiental que poderíamos ter em nossa comunidade de 3 bilhões [de pessoas]”.

Em outubro daquele mesmo ano, mais um trabalhador voltou ao tema: “Estou escrevendo para descobrir se temos uma política relacionada ao negacionismo climático, em especial quanto ao envolvimento humano no aquecimento global. Isso é coberto por nosso esforço de combate à desinformação?”, perguntou em publicação vista por 545 pessoas. A resposta veio rápido: “Nós não removemos desinformação exceto em casos raros nos quais temos evidências fortes de que o conteúdo pode gerar iminentes danos offline sobre as pessoas. Entretanto, nós aplicamos diferentes tratamentos em conteúdo classificado como falso por checadores de fatos independentes, como ‘down-ranking’” — estratégia que diminui a entrega do conteúdo para o público. “Não temos uma política específica para o negacionismo climático”, acrescentou outro funcionário.

Além de não remover conteúdo falso, a rede fazia sugestões de preenchimento automático “enganosas”, de acordo com os documentos. Em agosto de 2019, um funcionário registrou que quem buscava por “climate change” (mudança climática) recebia como sugestões frases negacionistas como “climate change debunked” (mudança climática desmascarada) ou “climate change is a hoax” (a mudança climática é uma farsa). “Os algoritmos de sugestão de buscas parecem ser um alvo importante para pessoas que tentam manipular a opinião pública, então devemos ter proteções em vigor”, explicou, ressaltando que duas das três sugestões eram problemáticas.

Em retorno à reportagem, a Meta – em referência ao metaverso, nome que o Facebook adotou na semana em que os documentos vazados vieram a público – afirmou que “algumas interpretações estão incorretas e conferem intenções falsas à empresa”, sem especificar a que se referia. “A Meta tem o compromisso de colaborar para o enfrentamento da mudança climática e tem feito mudanças de produto para combater a desinformação climática, incluindo rótulos informativos a resultados de buscas e a posts no Facebook sobre mudança climática. Esses rótulos direcionam as pessoas para nossa Central de Informações sobre o Clima, que está disponível em português e possui recursos como informações oficiais das principais organizações de mudança climática do mundo e uma seção apresentando fatos que desmentem mitos climáticos comuns”.

Após o vazamento de documentos internos do Facebook, a ex-funcionária Frances Haugen afirmou em depoimento à comissão do Congresso dos Estados Unidos que a companhia “prefere o lucro”.

Plataforma “confiável”

Em setembro de 2020, a empresa tentou contornar as críticas ao lançar uma plataforma com informação confiável sobre o tema, o Climate Science Information Center (CSIC), em países do norte global, como Estados Unidos, Reino Unido, Inglaterra e França — o Brasil e outros países do sul, como México e África do Sul, foram adicionados à lista cinco meses depois. A intenção do projeto era “demonstrar o comprometimento do Facebook com a ciência climática e combater a desinformação na plataforma”, como registram os documentos.

A funcionalidade, que pode ser acessada ao digitar o termo “climate change” e variações na barra de busca da rede, oferece posts feitos por especialistas e dicas de como as pessoas podem reduzir o impacto das transformações ambientais. Além de reunir informação científica de qualidade, a iniciativa busca recolher doações para organizações não governamentais que atuem na temática.

Ao pesquisar pelo termo “mudança climática” na barra de busca do Facebook, a rede indica o CSIC como primeiro resultado.

Porém, “não tem como uma informação que é entregue diretamente no bolso da pessoa, como as fake news são, competir com uma informação que está escondida em uma funcionalidade que pouquíssimas pessoas conhecem e que é de difícil acesso”, avalia David Nemer, pesquisador e professor de estudos das mídias na Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos.

Sete meses após o anúncio do CSIC, discussões internas atestam que a iniciativa não resolveu o problema. Em 30 de abril de 2021, dois funcionários denunciaram a situação em um post de comemoração pela Semana da Terra, uma campanha da rede: “Que trabalho importante. 1% finalizado”, comentou o primeiro, ao que recebeu uma resposta: “Temos um pequeno grupo de pessoas tentando dimensionar o que os outros 99% parecem ser”. “Poderíamos dar um passo à frente e começar a classificar e remover desinformação sobre mudanças climáticas das nossas plataformas?”, questionou outro, respaldado por 17 curtidas.

“Com o Facebook Papers, ficou muito claro que as redes sociais capitalizam em cima de discurso odioso e comovente, porque é o que gera mais engajamento”, explica Nemer. “Essas redes sociais precisam disso para monetizar. É isso que gera engajamento, é isso que gera dados, e esses dados as plataformas levam para os anunciantes”.

O pesquisador diz que a desinformação sobre o clima tende a ser mais “elaborada” e engajar menos os usuários brasileiros do que outras temáticas, já que “requer um certo tipo de conhecimento”. Para tornar as publicações mais impactantes, exemplifica, os bolsonaristas as conectam a outros temas caros a eles, como o globalismo — o termo é utilizado pela extrema direita para se referir a um suposto plano de dominação das elites ao redor do mundo — e a liberdade individual. O resultado final, diz Nemer, é algo como “os globalistas querem dizer que você não pode usar mais gasolina”.

Para a ambientalista e diretora executiva do Instituto Clima e Sociedade (iCS), Ana Toni, Mark Zuckerberg está “sendo cúmplice dos negacionistas”. “Seus funcionários estão falando isso [a importância de frear a crise climática], a ciência está falando isso e os seus usuários estão falando isso. Então, se ele quer se deixar ser manipulado pelos negacionistas, e parece que é isso que ele quer, porque eles podem pagar, ele está no lado errado da história”.

Mesmo que ao menos até abril de 2021 o Facebook não estivesse sendo capaz de barrar a desinformação sobre as mudanças climáticas na plataforma, a rede propagandeava outros feitos: a rede é alimentada por energia renovável desde 2020 e estimou 2030 como prazo para zerar a pegada de carbono em toda a cadeia produtiva. Ana Toni reconhece que se trata de um avanço, mas ressalta que “as empresas têm que perceber que neutralizar o seu carbono, se você é uma empresa de influência, não te exime da sua influência; ao contrário, te traz ainda mais responsabilidade”.

“É como se [o ex-presidente dos EUA Donald] Trump neutralizasse [suas emissões] e plantasse um bando de árvores e continuasse agindo como ele age”, exemplifica. “Se [Jair] Bolsonaro agora resolver neutralizar a pegada de carbono dele, ele continua sendo um canal de influência muito danoso. Tem que deixar concreto dando esse tipo de exemplo. Se Bolsonaro plantar árvores, isso não vai o tornar mais verde se [ele] continuar falando o que ele fala”.


“A gente sabe quais são as soluções [para frear o aquecimento global] e tem grana. Não é um problema técnico, é um um problema político. E mais do que ser um problema político é um problema de mudança de hábitos na velocidade que a gente tem que mudar, que é muito, muito rápido.” A ambientalista defende que as mídias sociais podem ser atores importantes nesse processo de mudança. “Qual é o legado que o Facebook ou essas mídias querem deixar para a sociedade em combater mudanças do clima?”, questiona.

Os bastidores do grande anúncio

Na página de lançamento do CSIC, o Facebook escreve que “a mudança climática é uma crise que só poderemos enfrentar se todos trabalharmos juntos em escala global”. A plataforma afirmou também estar identificando conteúdos desinformativos sobre o tema com o auxílio de checadores de fatos para reduzir seu alcance. “Esperamos que esses esforços demonstrem que o Facebook está comprometido em fazer sua parte e ajudar a inspirar ações reais em nossa comunidade”.

Entretanto, os documentos demonstram que internamente a rede não confiava tanto assim em sua capacidade de barrar a desinformação. Por via das dúvidas, uma ação extra foi tomada para não desviar o foco do lançamento do programa ou colocar em dúvida a efetividade das ações anunciadas.

Às vésperas do lançamento, no dia 14, um funcionário percebeu que não recebia nenhum resultado ao pesquisar vídeos para os termos “climate change” e “climate” (clima) na barra de buscas do Facebook e do Facebook Watch — o último é uma plataforma exclusiva para vídeos da rede. Consultou os colegas sobre o motivo da mudança no grupo Video Search Feedback (Feedback de Busca por Vídeos).

“Os vídeos foram bloqueados na aba superior devido a preocupações do time de ‘Policy’ antes do lançamento do Climate Science Information Center”, respondeu um funcionário em comentário. Outro acrescentou que o pedido de bloqueio temporário dos termos na barra de pesquisa havia vindo diretamente do Policy, definido nos documentos como quem “ajuda os times de Integridade e Produtos a construir regras sobre o que podemos ou não fazer”, composto por responsáveis de assistência jurídica, relações públicas, relações com parceiros, marca e considerações estratégicas. Os “donos” do processo de decisão pediram que os funcionários “agissem rápido” no bloqueio dos termos. De acordo com o trabalhador que executou a ordem, a intenção seria restringir apenas os vídeos da barra de busca principal, e não os resultados do Watch, o que foi logo corrigido.

O receio da empresa nos dias anteriores ao grande anúncio pode ser explicado pelo medo de ser pega em contradição. Em janeiro de 2021, no grupo Watch Feedback, um funcionário afirmou: “Pesquisei ‘mudança climática’ no Watch, no portal e app do FB [Facebook] e encontrei alguns resultados proeminentes de informação enganosa aparente”. Ele conta que “o segundo vídeo nos resultados da busca era de desinformação sobre o clima do portal ‘Turning Point USA’, postado em 17 de janeiro e já com 6,6 milhões de visualizações”. De acordo com o funcionário, o portal já havia sido apontado por um checador de fatos como uma “fonte questionável”, mas permanecia com o “verificado” do Facebook.

“Conservadores são pró-ciência, enquanto esquerdistas são pró-pânico! A mudança climática é uma FARSA” é a legenda do vídeo, que continua no ar, no mesmo link apontado pelo funcionário nos documentos vazados. Na gravação, um jovem questiona um homem que defende que o aquecimento global é natural e não relacionado à ação humana — o que é mentira, de acordo com o sexto relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). O homem põe em dúvida a validade do relatório reconhecido em consenso pelos cientistas da área e afirma que o jovem está ignorando os “efeitos positivos da mudança climática”, como a suposta existência de mais terras agricultáveis. Os funcionários levantaram a possibilidade de se tratar de algum tipo de experimento interno, já que o vídeo estava marcado como possível desinformação, mas isso não foi confirmado nas conversas vazadas.

Na data de publicação desta reportagem, o vídeo tinha mais de 8,6 milhões de visualizações, 2 milhões a mais do que quando o funcionário fez seu post, além de 5,2 mil reações e 542 comentários.

A partir da denúncia do primeiro, outro funcionário repetiu a pesquisa no app e no portal e afirmou que recebeu resultados diferentes — os resultados de pesquisa variam de acordo com os usuários e seus históricos —, mas ambos “incluíam potencial desinformação”. De acordo com comentário de outro trabalhador, a moderação para o termo estava funcionando para algumas buscas, mas não para a pesquisa por vídeos.

Falta de transparência

Cinco dias depois do lançamento do CSIC, a rede foi apontada por remover a checagem de um texto de desinformação sobre o clima que havia viralizado no princípio de julho. A denúncia foi feita pelas newsletters Popular Information e Heated e repercutiu entre os funcionários do Facebook, que se irritaram com a atitude da empresa e discutiram entre si na plataforma de trabalho.

De acordo com a apuração dos jornalistas Judd Legum e Emily Atkin, um artigo publicado no início daquele mês no The Daily Wire havia sido checado por sete cientistas qualificados e classificado como “parcialmente falso”, o que fez a plataforma reduzir a distribuição da peça (que já havia sido compartilhada 65 mil vezes) e avisar os usuários de que se tratava de informação enganosa. Porém, a checagem foi retirada do texto depois que o congressista republicano Mike Johnson entrou em contato com o alto escalão de executivos da rede.

Aquela não era a primeira vez que uma checagem independente dos parceiros do Facebook sobre o tema havia sido excluída depois de reclamações. Situação semelhante havia acontecido em meados de 2019, quando a rede pressionou os checadores a remover o rótulo de falso de uma coluna do site Washington Examiner que afirmava que os “modelos climáticos” eram “falhos”.

“Isso é verdade?? Se sim, qual a explicação??”, perguntou um funcionário. “Que m**** é essa? A gente não está vendo em tempo real o impacto de deixar a desinformação sobre ciência destruir nosso país? Nossos sistemas de checagem de fatos não significam nada se eles podem ser anulados”, comentou outro.

“O Facebook e o Mark [Zuckerberg] não parecem compartilhar dessa preocupação [aquecimento global] e não estão interessados em ouvir o feedback dos empregados sobre as políticas ou o grupo de Policy”, desabafou um funcionário. Ele escreve que chamaram sua atenção por fazer uma crítica e afirma que o fundador da empresa “não acha que os empregos anteriores ou as crenças das pessoas possam interferir em sua capacidade de realizar seu trabalho”. “Para mim, tudo faz todo o sentido quando olho para o alinhamento político e os empregos anteriores de nossos formuladores de políticas. Tudo está funcionando como projetado.” De acordo com investigação de Legum de outubro de 2019, os republicanos de extrema direita têm grande influência nas decisões da empresa. “Todos no poder são republicanos”, afirmou um entrevistado ao repórter.

“Pessoalmente, eu gostaria de uma resposta acerca disso, e, como uma pessoa responsável pelas vendas e em contato direto com a Microsoft, eu estou recebendo perguntas dos meus clientes. O que aconteceu nesse caso particular e em outras reversões de checagens sobre o clima?”, perguntou um dos trabalhadores. “Qual o ponto de haver checadores de fatos independentes se nós [Facebook] podemos interferir?”.

“Os processos são tão bons quanto são transparentes e consistentes, ou deixam de ser regras e se transformam em decisões para cumprir certo propósito”, acrescentou outro funcionário.

Em justificativa, o time de Policy afirmou aos jornalistas ter tomado a atitude após “partes interessadas” terem classificado a checagem como “tendensiosa”. O texto foi escondido atrás do paywall e não corrigiu nenhuma informação, mas adicionou um link para a checagem ao final.

“É assustador que o time de comunicação do Facebook tenha afirmado que uma checagem de fatos foi ‘tendenciosa’. Como é possível que uma checagem de fatos seja tendenciosa? São os fatos! Eu quero ver isso respondido, tanto internamente quanto externamente, para que não sejamos vistos como simpáticos aos negacionistas do clima”, criticou um funcionário.

Na mesma discussão, os funcionários abordaram uma campanha lançada no dia 1º de julho pelo grupo Climate Power sobre a necessidade de o Facebook barrar o compartilhamento de informações danosas sobre o clima. O autor do post principal copiou parte da carta aberta lançada pela organização, assinada por 19 ativistas e endereçada ao conselho da empresa: “Mark Zuckerberg (fundador do Facebook) se recusa a reconhecer que ele deve obter os fatos corretos sobre o clima e se recusa a reconhecer que o negacionismo climático em sua plataforma é uma ameaça tão perigosa para as gerações futuras quanto qualquer outra”.

Facebook ignorou sugestões de funcionários

Os documentos vazados mostram que os funcionários levantaram ideias de ações a serem tomadas pela companhia em nível individual e empresarial. Entre elas está encorajar os anunciadores a serem eco-friendly por meio de recompensas; impulsionar companhias ecológicas no ranqueamento de anúncios; e impedir de anunciar ou reduzir o impulsionamento de empresas que “são ruins para o meio ambiente”, como as petrolíferas BP, Shell e BlackRock, citadas nominalmente por um funcionário no post de setembro de 2019.

Entretanto, até a publicação desta reportagem, empresas ligadas ao desmatamento ilegal e denunciadas por crimes ambientais variados continuam anunciando e gerando dinheiro para a empresa. Levantamento da Pública identificou que frigoríficos como Minerva, JBS e Marfrig, ligados ao desmatamento da Amazônia brasileira de acordo com apuração da Repórter Brasil, anunciam no Facebook. A Minerva impulsionou três anúncios em 2022, um deles sobre iniciativas de sustentabilidade tomadas pela empresa. Já a Seara, marca de carne do grupo JBS, lançou 83 anúncios sobre seus produtos entre 1º e 10 de janeiro deste ano; a Marfrig publicou neste ano quatro anúncios sobre vagas de emprego.

A Shell, uma das citadas pelo funcionário do Facebook e condenada por vazamentos em oleodutos na Nigéria, também anuncia na plataforma de Zuckerberg, tanto no Brasil quanto em países como Egito e Cingapura. Na primeira quinzena de 2022, a empresa impulsionou 47 anúncios para o público brasileiro. A petrolífera começou a utilizar os serviços do Facebook para se fazer conhecida em 4 de agosto de 2020; de lá para cá, gastou R$ 8.471 em anúncios identificados pela rede como de temas sociais, eleições ou política — única categoria para a qual o Facebook publica o valor investido.

A ExxonMobil, que pleiteia explorar petróleo em local de risco para a foz do rio São Francisco, como revelou apuração da Pública com o Info SãoFrancisco, também utiliza os serviços do Facebook para contar ao público que “está contribuindo para as soluções climáticas”, como descrito em anúncio que veiculou em dezembro. Ela foi citada diretamente por um dos funcionários em comentário de abril de 2021: “A Exxon e outras empresas pagam por anúncios em nossa plataforma e fazem lobby para distrair os cidadãos e governos da necessidade de reduzir rapidamente o uso de combustíveis fósseis”. “Como podemos combater a indústria do petróleo?”, questionou o trabalhador.

Para o pesquisador David Nemer, o Facebook banir esse tipo de anúncio, que não necessariamente representa compromisso com a causa, representaria “um avanço”. “Hoje em dia, aqui nos Estados Unidos a gente vê muita propaganda dessas empresas querendo passar a ideia de que estão engajadas no combate da mudança climática, que estão se preparando para energias renováveis. Só que até que ponto, isso é verdade a gente não sabe.” Porém, ele explica que a estratégia não pode ser aplicada de forma isolada: “Não adianta banir anúncio quando dentro da plataforma eles não fazem nada para conter esse tipo de desinformação”.

“A partir de 2015 [quando foi assinado o Acordo de Paris] qualquer empresa minimamente séria está tentando se afastar de grandes poluidores”, avalia a ambientalista Ana Toni. “Qual foi o esforço que o Facebook fez para se afastar dessas empresas?”.

Com serviços gratuitos ao usuário, redes sociais como o Facebook e o Instagram, parte da empresa Meta, têm a maior parte de seu lucro arrecadado por meio de anúncios pagos e segmentados na plataforma. No terceiro trimestre de 2021, a companhia registrou lucro de mais de US$ 9 bilhões, o equivalente a R$ 50,4 bilhões na cotação da época.

“Para conter fake news vai ter que conter a renda, e eles não estão dispostos a isso”, avalia Nemer. “As redes colocam o lucro acima de promover um ambiente saudável”.

O documentário que distorce o clima e enriquece o Facebook

Em junho de 2021, a produtora conservadora Brasil Paralelo lançou o filme Cortina de fumaça, que nega o desmatamento e distorce a temática indígena, como mostrou reportagem da Pública na época. A despeito dos recordes de devastação registrados durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), o documentário, que conta com participação de membros do alto escalão do governo, afirma que há “muito alarde” sobre queimadas e desmatamento na floresta amazônica. Os entrevistados argumentam que um sobrevoo na região demonstra que ela é uma “floresta preservada” e que a defesa do meio ambiente busca frear o desenvolvimento agrícola do Brasil.

A produtora é conhecida por seu alto investimento em publicidade no Facebook. Entre 4 de agosto de 2020 e 10 de janeiro deste ano, pagou às redes mais de R$ 5 milhões em troca de anúncios de temas sociais, eleições ou política. Entre 4 e 10 de janeiro de 2022, gastou mais de R$ 54 mil para divulgar suas produções.

Para divulgar o filme que distorce a discussão sobre as mudanças climáticas, a produtora investiu mais de R$ 100 mil em 440 anúncios tendo homens como o público-alvo. Em um dos textos para publicidade, veiculado na segunda semana de julho, critica a ativista Greta Thumberg, que descreve como “dona de um discurso mais agressivo, ela é muitas vezes apontada por uma fala vazia, sem soluções práticas para as questões ambientais do planeta”. De acordo com a propaganda, o filme mostra “o que há por trás de pessoas e instituições que dizem proteger o meio ambiente”. O anúncio custou de R$ 1 mil a R$ 1.500 e gerou de 90 mil a 100 mil interações, de acordo com dados da biblioteca de anúncios do Facebook.

Paolo Benanti

NÃO OLHE PARA CIMA”: A BANALIDADE DO MAL

No filme “Não olhe para cima”, a indiferença dos indivíduos e das instituições diante de uma catástrofe iminente é o que se provou fatal. A banalidade do mal é o que leva, entre um plano que poderia salvar a todos e um plano que poderia enriquecer alguns poucos, mas certamente menos seguro do que o primeiro, a escolher a segunda opção. A opinião é de Paolo Benanti, teólogo e frei franciscano da Terceira Ordem Regular, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e académico da Pontifícia Academia para a Vida. O artigo foi publicado em seu blog pessoal. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Seguem aqui algumas reflexões sobre “Não olhe para cima”, um filme que parece ser o mais divertido de 2021 e também o mais deprimente: em duas horas de risadas, ele convence você de que o mundo está prestes a acabar (parafraseando Mick LaSalle, do jornal San Francisco Chronicle).

Essa estranha combinação torna a obra de Adam McKay, diretor e roteirista, uma experiência única no seu gênero, que está gerando discussão particularmente, mas que, na minha opinião, oferece alguns traços interessantes e dignos de alguma reflexão. Tento listar alguns temas por pontos, correndo o risco de dar alguns spoilers: estejam avisados.

Que tipo de filme é?

O filme, no qual encontramos uma série de celebridades como Leonardo DiCaprio, Jennifer Lawrence, Jonah Hill, mas também Mark Rylance, Ron Perlman, Timothée Chalamet, Ariana Grande, Scott Mescudi (também conhecido como Kid Cudi), Himesh Patel, Melanie Lynskey, Michael Chiklis e Tomer Sisley, custou 75 milhões de dólares e conta a história de um grande cometa que poderia atingir a Terra e aniquilar a humanidade.

Com essas premissas, poderíamos pensar que se trata de um disaster movie, que, como diz o “Lessico del XXI Secolo”, da Treccani: “é uma tipologia da obra cinematográfica atribuível ao gênero dramático e aventureiro que tem como núcleo narrativo fundamental a aproximação de um evento catastrófico, natural ou induzido, que consequentemente ativa uma série de dinâmicas destinadas a contrariar a ocorrência do inevitável. Tal evento catastrófico pode ser, por exemplo, a chegada de um asteroide à Terra, uma possível desastre aéreo, uma fatalidade marítima ou a difusão de um vírus letal. Filmes pertencentes a esse gênero são ‘Airport’ (1970), cujo grande sucesso abriu caminho para outras obras como ‘O destino de Poseidon’ (1972), ‘Terremoto’ e ‘Inferno na torre’, ambos de 1974. Normalmente interpretados nos papéis principais por estrelas de Hollywood (de Paul Newman e Steve McQueen a Bruce Willis e George Clooney), esses filmes sempre recorreram a características de notável bravura. Além disso, o aparato espetacular sempre foi assegurado pelo recurso a técnicas de computação gráfica constantemente vanguardistas e por efeitos especiais surpreendentes”.

Ouvindo os nomes do elenco, seria possível esperar uma trama que, graças à bravura dos atores, aos efeitos especiais impressionantes e à narrativa convincente, tira o fôlego do espectador.

Na realidade, não há nada de tudo isso em “Não olhe para cima”. Diante do anúncio do desastre iminente descoberto por dois cientistas de uma universidade secundária – isso, no modelo cultural estadunidense, é muito significativo – constata-se um desinteresse geral por parte de quem deveria tentar prevenir o desastre.

O filme parece pertencer mais à sátira do que a outros gêneros. Talvez precisamente essa pré-compreensão do gênero seja o motivo de reações tão discordantes entre a crítica e o público.

O filme foi indicado a quatro Globos de Ouro e, nos seus três primeiros dias na Netflix, acumulou um total de mais de 111 milhões de horas de visualização. De acordo com sites como IMDb e Rotten Tomatoes, que agregam dezenas de críticas profissionais e votos de simples apaixonados, a nota média dado pelos espectadores que avaliaram o filme é de cerca de sete, enquanto a da crítica gira em torno de cinco.

No jornal La Repubblica, em um artigo intitulado “Obra-prima ou pastiche, o importante é falar de ‘Não olhe para cima’”, Antonio Dipollina resumiu as opiniões conflitantes: “O filme (definido também como ‘obra-prima’ ou ‘descrição perfeita do nosso tempo’) agrada e, ao mesmo tempo, é detestado devido a um didatismo verdadeiramente irritante, tem em seu interior cerca de 20 temas possíveis para dividir aquele mundo que discute tudo o que passa pela sua frente, tem um elenco excepcional e bastante correto (DiCaprio é um ativista total em questões ambientais), sacode as pessoas de algumas gerações atrás e perturba, pela agitação das outras, as de algumas outras gerações”.

Sátira de quê?

A sátira é um gênero da literatura, das artes e, mais em geral, da comunicação muito antigo. O próprio nome deriva do latim: “satura lanx” era o nome da bandeja vazia cheia de primícias oferecidas aos deuses. Os elementos da sátira são a atenção crítica aos vários aspectos da sociedade. Quem satiriza quer mostrar as contradições da vida social e, ao mesmo tempo, quer promover uma mudança.

O estilo da sátira compartilha com o estilo cômico a vontade de fazer rir, mas une uma crítica mirando nos personagens e zombando deles sobre temas políticos, sociais e morais. De fato, a comicidade geralmente não tem como seu objeto fatos relevantes da vida pública e não propõe um ponto de vista específico, mas quer apenas entreter fazendo rir.

Desde a sua utilização na Grécia Antiga, a sátira teve uma marca política: tratava dos eventos de extrema atualidade da polis e tinha uma notável influência na opinião pública ateniense, logo antes das eleições.

Portanto, se olharmos para o filme a partir dessa perspectiva, podemos ver uma perspectiva satírica em vários níveis. Em um nível muito fundamental, o ataque satírico atinge uma sociedade de “pessoas de bem” e das aparências, que mostra em todas as ocasiões a sua superficialidade e uma vida dupla. Além disso, Adam McKay usa a metáfora do cometa e do seu efeito catastrófico para mostrar como diferentes grupos de pessoas reagem a essa notícia:

- os cientistas: a comunidade científica representada no filme de Michael Mann, esses sacerdotes de um saber feito de rigor e certezas, quando inserida no circuito midiático, parecem se corromper. A fama transforma o rigor da ciência em uma espécie de respeitabilidade midiática que visa a parecer sexy e mainstream, deixando em cada um a questão sobre onde termina a ciência e começa o narcisismo (como não pensar nas entrevistas com virologistas, médicos e cientistas em tempos de pandemia?). A ciência é pura pesquisa e verdades demonstráveis ou é um grupo de cientistas que, quando podem obter vantagens pessoais com ela, de fato se aproveitam disso?

- os políticos: a presidente Janie Orlean é politicamente indefinível, parece-se com uma Donald Trump mulher, vinda do mundo dos negócios e do entretenimento, usando um boné parecido com o do ex-presidente. Ela nunca parece competente nos temas abordados, mas sempre intui o que as pessoas querem ouvir. Parece uma silhueta republicana, mas, na mesa do Salão Oval, ela tem uma foto que a retrata abraçada em Clinton: a sátira é sobre toda a classe política de Washington, que parece mais preocupada em desempenhar um papel do que em buscar o bem do país, como que questionando também os democratas. Entre o seu braço direito, que é o filho que parece ser uma cópia ainda mais desajeitada de Ivanka, e o escândalo sexual por ter enviado fotos íntimas ao seu parceiro, que se candidatou para a Suprema Corte, ela também parece mais interessada em si mesma do que no papel que desempenha.

- os membros do aparato governamental: fiéis servidores do Estado usque ad sanguinem ou aproveitadores que revendem os lanches gratuitos da Casa Branca para obter pequenas vantagens pessoais?

- os gurus da técnica: portadores de um novo saber e bem-estar, um novo renascimento, ou pessoas que desempenham, também elas, um papel feito de bondade hipócrita e interesse pelo bem dos consumidores, mas que, na realidade, estão interessados apenas nos seus interesses? Como observa Cazzullo no jornal Corriere della Sera, “o verdadeiro vilão do filme é Peter Isherwell, o terceiro homem mais rico do mundo, rei dos celulares Bash, encerrado em uma frase maravilhosa: ‘Ele é aquele que comprou a Bíblia de Gutenberg e depois a perdeu’. Em suma, Isherwell é um Steve Jobs redivivo, com um toque de Bill Gates (as Bíblias de Gutenberg, na realidade, são dezenas, enquanto o Códice Leicester de Leonardo é um só, e é dele) e de Elon Musk: não por acaso, Isherwell tem a nave espacial já pronta para fugir da catástrofe, em busca de um planeta para transplantar a vida humana, começando obviamente pela sua. Assim como os verdadeiros donos da rede, Isherwell sabe tudo sobre nós, inclusive o modo como iremos morrer. Ele sabe até que quem se acha idealista, na realidade, não faz nada mais do que fugir da dor e buscar o prazer. E é o único que entende imediatamente que o perigo é realmente grave, mas não a ponto de desistir de tirar vantagem dele. Até porque a presidente é cera nas suas mãos de financiador e manipulador”. A sua figura, que põe em crise o saber da ciência em nome de uma técnica que parece oferecer resultados prodigiosos, como se fosse uma nova versão da magia, é uma sátira de todo aquele mundo que promete criar produtos para o bem de todos, mas que, até agora, realizou o bem de pouquíssimos às custas dos consumidores. Como não reler aquilo que as grandes plataformas e os gigantes da tecnologia da informação fizeram à economia estadunidense: Bezos com a Amazon para os pequenos varejistas e o Uber para os taxistas, reduzindo o salário médio de um motorista para baixo da linha da pobreza em nome de serem empreendedores de si mesmos.

- os media: um reino da superficialidade e das aparências, onde tudo se torna vazio e soft. Não se pode ser radical nem extremo, mesmo que o que se diga seja extremo por si só, como o fim da humanidade. Além disso, eles são escravos das métricas digitais e dos fatores de impacto. Não importa mais a qualidade da notícia, mas sim o quanto ela “se move” em termos de reações da esfera digital: o “curtir” vence sobre tudo. A rede pega a notícia e a transforma em um jogo sem fim entre lados opostos cheios de ódio e de leões de teclado. Em seguida, partem os complôs e as teorias da conspiração, aos quais a pandemia infelizmente nos acostumou. Uma pergunta permanece para o espectador: qual é o papel e a função da mídia em uma sociedade hiperconectada? Também aqui se trata de figuras que desempenham um papel na busca de vantagens pessoais.

- os grupos contraculturais e a classe média: silenciosa e no pano de fundo, a sociedade de massa estadunidense parece ser não mais aquele grupo de “pessoas de bem”, os caubóis louros e fortes, mas uma barriga mole que perdeu todo o impulso propulsor. Martin Luther King já havia dito: “Eu não tenho medo das palavras dos violentos, mas do silêncio dos honestos”. Mas agora só resta o silêncio. Os grupos contraculturais, artífices das denúncias dos abusos do governo nos anos estrondosos da contestação, ou capazes de dar vida à revolução digital nas garagens dos subúrbios estadunidenses também parecem extintos, e o que resta é apenas uma pequena e sinistra tentativa de lucrar por conta própria com pequenos crimes, como roubar bebidas alcoólicas em um supermercado.

A absoluta banalidade do mal

O que, na minha opinião, produz um mal-estar generalizado no espectador e que leva alguns a interromperem a assistência antes do fim do filme, porém, é a manifestação daquilo que Hanna Arendt definiu como a absoluta banalidade do mal.

Antropólogos como Joseph Campbell, cujos trabalhos estão por trás de sagas que fascinaram bilhões de espectadores como “Guerra nas Estrelas”, nos ensinam que precisamos de heróis e de anti-heróis para fazer reviver nas nossas narrativas algo de profundo que habita em cada um de nós.

Campbell observa que há na literatura uma estrutura narrativa muito difundida: a jornada do herói ou monomito. Campbell a descreve no seu livro “O herói de mil faces”. A obra, publicada pela primeira vez em 1949, examina muitos arquétipos e traços comuns nas histórias e nas mitologias de todo o mundo e, desde a sua publicação, tem servido de inspiração para diversos autores e diretores. Entre eles, está precisamente George Lucas, que sempre declarou explicitamente que se inspirou nas teorias de Campbell.

Lucas conheceu Campbell pessoalmente em 1984, quando a trilogia original de “Star Wars” já estava concluída. Um amigo em comum fez as apresentações; depois de um pouco de frieza inicial por parte de Campbell, os dois se tornaram bons amigos. Campbell não tinha visto nenhum dos filmes “Star Wars”, mas remediou e gostou. Os dois ficaram amigos até a morte de Campbell em 1987.

Além desse detalhe, o que importa é que, em “Não olhe para cima”, não existe um estilo narrativo à la Campbell: faltam tanto os heróis – todos eles são demolidos pela sátira – quanto os anti-heróis. Isso nos incomoda. Não é a trama lenta ou a narrativa banal que produz uma espécie de insuportabilidade do filme em alguns, mas sim a ausência não só dos heróis, mas pelo menos também de um vilão a ser combatido.

Podemos entender que não há um herói, mas o teórico da conspiração que habita em cada um de nós não suporta que não haja um mal grande e bem identificável sobre o qual possamos jogar o nosso mal-estar. Isso também é tirado de nós. Como é possível que as coisas sejam assim, então?

Precisamos voltar a ler Hanna Arendt. Há 50 anos, no dia 11 de abril de 1961, teve início em Tel Aviv o processo contra Adolf Eichmann, o “caixeiro viajante” do Holocausto. Exatamente um ano antes, na Argentina, os serviços secretos israelenses haviam sequestrado o autoproclamado Arturo Klement, nascido no Tirol do Sul – assim estava escrito no passaporte de Eichmann – para transportá-lo clandestinamente para Israel.

O processo durou quase um ano e se concluiu com a condenação à pena de morte e o enforcamento do coronel das SS, encarnação – para Hannah Arendt, presente nas 120 audiências do julgamento, posteriormente transcritas e comentadas em um volume que já se tornou um clássico – de uma desconcertante “banalidade do mal”. O “caso Eichmann” tornou-se imediatamente uma espécie de certificação histórica da existência e da força, também comunicativa, do Estado de Israel, determinado a não delegar a mais ninguém não apenas a sua própria defesa, mas também a expiação retrospectiva dos abusos antissemitas.

Mas, ao lado desse significado, que de fato é celebrado constantemente pelo Estado judeu, havia um previsível psicodrama coletivo, originado da confissão, pela primeira vez pública, das perseguições sofridas pelos sobreviventes. Esse psicodrama espetacular, acompanhado pela imprensa internacional, também se tornou o ponto de partida para uma progressiva fabulação do Holocausto, até então inexistente. E, precisamente antes de Arendt cunhar a sua famosa definição, juízes, magistrados e sobretudo jornalistas se admiraram com o baixo perfil do acusado, certamente não construído artificialmente, já que Eichmann não renegaria nada.

Giorgio Bocca, por exemplo, enviado do jornal Il Giorno, escreveria um artigo – com um título significativo (“Ei-lo! Parece um encarregado um pouco tímido”) – sobre esse extraordinário contraste entre a lista dos crimes hediondos lida pelo promotor público e a pacata e serena compostura daquele que, durante cinco anos, havia abastecido os campos de extermínio de grande parte da Europa com “morituros”.

“Não olhe para cima” fala de catástrofes que não são fruto de uma mente superior e má, mas da indiferença de muitos ou, melhor, do pequeno e egoísta privilégio de si que cada um de nós coloca nas suas escolhas diante da vida pública. O que incomoda nesse filme é a denúncia satírica e precisa do fato de que a culpa dessa decadência também é minha e de cada um de nós.

A consumação da sociedade e das instituições parte das minhas pequenas escolhas egoístas que fortalecem e dão poder a um critério geral e generalizado em que as coisas que valem a pena serem feitas são apenas aquelas que trazem uma vantagem pessoal. Adoecemos de um egoísmo hipócrita, um egoísmo que poderíamos definir como prudente no sentido de que não se manifesta de forma grosseira e ignorante: faço o que eu quero e pronto.

O egoísmo que alimenta a absoluta banalidade do mal, até à catástrofe planetária, é feito de um “isso me convém”. Eu observo as regras e os costumes se isso me convém, mas não acredito em nada, só escolho o que me traz uma vantagem. Vemos apenas o nosso interesse, e isso torna o bem comum invisível e insustentável.

O que animou uma época de grande empenho coletivo, os anos 1960 e 1970, não foi apenas cancelado pelo hedonismo dos anos 1980, mas também ridicularizado pelo bem-estar a todo o custo destes “furiosos anos 2020”, como Alec Ross os chamaria, que, precisamente nas reflexões do autor, corroem todas as formas de contrato social.

“Não olhe para cima” responde de uma forma genial e inesperada ao conspiracionismo: simplesmente mostra que não existe um mal grande e secreto que move o mundo, com todo o respeito ao QAnon, mas simplesmente uma série de pequenos e mesquinhos interesses pessoais. Gotas de egoísmo que formam oceanos de destruição em nível planetário.

Um jogo de palavras

Não podemos deixar de notar um trocadilho no título do filme. “Look up”, no original, significa olhar, mas também buscar: na minha opinião, alude-se também ao complexo fenômeno da infodemia, a segunda “epidemia” causada pela Covid-19. Em tempos insuspeitos, David J. Rothkopf, jornalista do Washington Post, havia lançado esse neologismo destinado a se tornar muito atual nos dias de hoje.

Em um artigo de comentário sobre a SARS, escrito em 2003 e intitulado “When the Buzz Bites Back”, Rothkopf cunhou a palavra “infodemic” para descrever a patologia que aflige as pessoas que são inundadas por uma quantidade elevada demais de informações a ponto de ir ao encontro de uma verdadeira indigestão midiática. A multidão de notícias nas quais se encontram misturadas a boa informação e as fake news leva à desinformação. Nada mais atual, se pensarmos na dificuldade encontrada nos últimos dois anos de pandemia em desvendar as informações relativas à Covid-19.

Nesse caldeirão, porém, é preciso esclarecer que a desinformação é um conceito complexo que engloba várias nuances. Na verdade, há a desinformação propriamente dita, entendida como uma intenção consciente de jogar fumaça nos olhos, dando notícias falsas com o objetivo de corroborar as próprias teses, mas existem também a “malinformação” e “misinformação”.

No primeiro caso, notícias verdadeiras que deveriam ficar na esfera privada são difundidas para prejudicar alguém. Por outro lado, a misinformação ocorre quando se difundem informações falsas sem a real intenção de desinformar, mas apenas porque se acredita que se está de posse da verdade certificada. Este último caso, sem dúvida, é o que uma boa comunicação político-institucional, coordenada por comunicadores especializados e não improvisados, pode prevenir a fim de oferecer aos seus cidadãos as informações corretas sobre temas ligados à saúde e não só.

Se a malinformação certamente é a principal fonte de desinformação, as mídias sociais são o seu meio principal. De acordo com uma pesquisa por amostragem do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo, as mídias sociais, de fato, são a fonte de 88% da misinformação em circulação.

Enquanto está emergindo cada vez mais o grande papel de responsabilidade de empresas como Facebook ou Twitter, e em geral das outras plataformas sociais, em veicularem e darem espaço a mensagens potencialmente perigosas por serem falsas ou ideológicas, os sistemas de mensagens individuais, como o WhatsApp ou o Facebook Messenger, muitas vezes também são veículos de conteúdos que escapam ao controle indireto de terceiros ou da opinião pública em geral e, portanto, se prestam muito bem a difundir notícias não verificadas em benefício desta ou daquela tese.

Algoritmos projetados para recomendar informações e produtos alinhados com as supostas preferências individuais podem criar feedbacks não controlados, no qual as preferências sobre as informações do usuário e a subsequente exposição aos conteúdos se tornam mais extremas ao longo do tempo (as chamadas bolhas). Tais dependências do percurso podem ter efeitos transformadores, modificando as preferências e os valores dos próprios usuários e levando à radicalização.

Mas o problema é mais geral. Em suma, estamos baixando os nossos processos evolutivos de busca de informações em algoritmos. Mas esses algoritmos geralmente são projetados para maximizar a rentabilidade, com incentivos muitas vezes insuficientes para promover uma sociedade informada, justa, saudável e sustentável.

O avanço do vírus caminhou de mãos dadas com um tsunami de desinformação que ainda hoje, entre antivacinas, negacionistas e ferozes opositores das medidas de precaução necessárias para evitar o aumento dos contágios, contribui para criar desconfiança e preocupação entre os cidadãos.

“Não olhe para cima” é uma sátira feroz ao que a verdade faz hoje: o sujeito que busca e encontra coisas em que gosta de acreditar é o árbitro último de uma verdade que se tornou mera emoção capaz de me convencer.

Qual é a mensagem desse filme?

O fim do filme talvez represente a chave de leitura da obra e a perspectiva do autor, que faz dessa película (termo obsoleto no mundo digital, mas ainda cheio de fascínio) uma verdadeira sátira. A indiferença dos indivíduos e das instituições diante de uma catástrofe iminente é o que se provou fatal. A banalidade do mal é o que leva, entre um plano que poderia salvar a todos e um plano que poderia enriquecer alguns poucos, mas certamente menos seguro do que o primeiro, a escolher a segunda opção.

Os protagonistas, depois de atravessarem a tempestade de fake news, ignorância, alinhamentos e desinteresse por parte da política, entenderam que tudo estava acabado. Avistado o cometa, todos se reúnem para uma última e grande “ceia de família”, na qual decidem desligar a TV e simplesmente passar um tempo juntos. Tudo isso enquanto a operação montada pelos ricos e pelos políticos para salvar a Terra e para ganhar dinheiro vai indo aos pedaços, e, aos poucos, estes vão deixando a base para se refugiarem em uma astronave e assumirem seus lugares em uma série de cápsulas criogênicas que os levarão (com vida) para um planeta habitável, quando isso for novamente possível: cerca de 22.740 anos depois.

A colisão ocorre, e a Terra vê seu fim. No entanto, pouco antes, enquanto os protagonistas continuam conversando como se nada estivesse acontecendo, quando o impacto já é iminente, o personagem de DiCaprio diz uma simples frase, mas que nos faz compreender muito: “O fato é que nós realmente tínhamos tudo, não é mesmo?”.

Segundo Jennifer Lawrence, esse momento é um “tapa na cara” do espectador e, definitivamente, o coloca diante da realidade crua. Trata-se certamente de um discurso muito próximo de DiCaprio, muito interessado nas temáticas ambientais. Segundo ele, a partir de um ponto de vista metafórico, o filme fala precisamente disto: da falta de intervenção das instituições diante das mudanças climáticas, algo que está ocorrendo e que podemos ver com os nossos olhos, mas em relação à qual não podemos muita coisa como cidadãos individuais, se não houver um compromisso em nível nacional e mundial. Portanto, o que está no centro é precisamente essa sensação de impotência.

Entretanto, também parece haver alguma referência à pandemia em curso, com todas as teorias, os alinhamentos, a ignorância galopante, aquelas pessoas que optam por acreditar e aquelas que optam por não acreditar, as fake news e assim por diante.

Em suma, um verdadeiro resumo do nosso hoje.

Andrea Riccardi

CRIANÇAS SEM CIDADANIA TORNAM-SE ESCRAVAS DO TERCEIRO MILÊNIO

A globalização acentua o desenraizamento e cria desenraizados diante dos amplos horizontes que se abrem. A reação é se fechar, mas, para viver uma abertura global, é preciso uma comunidade de pertença, uma pátria. A opinião é do historiador italiano Andrea Riccardi, fundador da Comunidade de Santo Egídio e ex-ministro italiano, em artigo publicado em Domani. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

“Nascere non basta. Bambini invisibili, tratta dei minori e stato civile in Africa” [Nascer não basta. Crianças invisíveis, tráfico de menores e estado civil na África], o livro das edições San Paolo, organizado por Adriana Gulotta, conta a história de muitos meninos e meninas, mas também de jovens e adultos, que, diante da vida, se encontram sem nome nem cidadania.

Ele se centra em particular na África, mostrando que, com um trabalho paciente, com as mãos nuas, não é impossível contrariar um destino de anonimato desde o nascimento, do qual não é fácil se resgatar.

Dos 125 milhões de crianças que nascem todos os anos no mundo, um terço não é registrado civilmente: uma faixa da população que, anualmente, vê um destino de exclusão se perpetuar.

Essa é a história das crianças “invisíveis”, que se tornam menores vendidos, pequenos escravos bons para todos os ofícios, até mesmo os mais arriscados, inclusive o do sexo, mas também crianças-soldado, mão de obra barata e fácil de manejar (melhor do que os adultos), fornecedores de órgãos para os transplantes (e, portanto, condenados à morte), trabalhadores domésticos sem direitos e muitas vezes sem retribuição... Pessoas destinadas a serem exploradas de todos os modos.

Geralmente, nos concentramos nos casos individuais, nos grupos de explorados, mas aqui chegamos ao cerne daquele que é o mecanismo de exclusão: a falta de uma identidade legalmente reconhecida pelo Estado, razão pela – como se lê no livro – “a pessoa não faz parte da população da própria nação, não pode se matricular na escola, nem usufruir dos serviços de saúde, fica mais vulnerável à exploração e aos abusos”.

Uma nova escravidão

As consequências sobre a vida das pessoas, primeiro das crianças e depois dos adultos, são muitas, mas uma única exclusão está na base de tudo. O livro representa dramaticamente a carência fundamental de muitos pequenos diante do próprio futuro: eles existem, mas não são reconhecidos; eles vivem, mas são invisíveis; seu nome não tem relevo legal e significado para a sociedade e as suas instituições. Um povo de invisíveis vive no mundo.

Adriana Gulotta, organizadora da obra, nos lembra desde a introdução que não se trata apenas de uma história africana, mas de muitos países do mundo: desde os Rohinghya, “o povo nunca registrado da Ásia”, às crianças sem documentos na fronteira com os Estados Unidos, primeiras vítimas daquele êxodo do desespero e da esperança de milhares de centro-americanos que sobem do Sul para os Estados Unidos, e de muitos outros.

Em nível internacional, também já sabemos que o tráfico de menores é uma nova escravidão: um povo de 10 milhões de crianças e adolescentes no mundo. Se perderem a memória de quem ainda são ou não a amadureceram, acabarão perdidas no caos do mundo. Sem documentos, são apátridas.

O registo civil é tudo menos uma banalidade ou um rito óbvio. É a memória objetiva e jurídica de uma pessoa existente em uma comunidade nacional, para além da consciência do sujeito ou dos seus familiares. Para quem vive nos países europeus, o registro civil parece uma normalidade, quase uma obviedade, embora – nos casos em que não ocorre – sejam constatadas as consequências realmente negativas que daí decorrem.

Em vez disso, ele representa não só o fundamento subjetivo da própria existência jurídica e social, dos direitos e dos deveres, mas é também um elemento decisivo para que um aglomerado se torne, de fato, uma sociedade civil, com uma base jurídica e com a presença de instituições democráticas. O voto, por exemplo, está estreitamente ligado à cidadania.

A revolta

O livro mostra, por meio de muitas histórias dolorosas, as consequências da ausência do registoo civil. Pode-se dizer: a pessoa nasce, mas vive pela metade. Os testemunhos sobre a realidade provêm de atores do território ligados ao compromisso da Comunidade de Santo Egídio e do programa Bravo! (Birth Registration or All Versus Oblivion!).

Ele não conta simplesmente os casos limítrofes, as histórias dolorosas, um costume que é difícil de mudar, instituições que não funcionam... Já valeria a pena. É também a história de uma “revolta” contra a realidade das crianças invisíveis que as comunidades de Santo Egídio encontram cotidianamente na África e em outros países do mundo.

Essa revolta não é apenas uma denúncia, mas também um estudo laborioso e apaixonado para ajudar as instituições civis a assumirem essa demanda de vida. A revolta tem sido paciente, feita de competências adquiridas e de capacidade de colaboração e de serviço às instituições. Porque são necessárias instituições que funcionem in loco para ter acesso à comunidade civil com a própria identidade legalmente reconhecida, sancionando a saída da faixa dos discriminados de fato, sujeitos do acaso e da vontade alheia, não cidadãos livres de um Estado que reconhece a igualdade dos direitos.

Uma condenação para a sociedade

O não registro civil produz não só um mundo de invisíveis, mas também de súditos, desprovidos direitos, impossibilitados de barganhar, sujeitos a toda violência, acima de tudo a da economia. Penaliza particularmente as meninas e as mulheres, cujo futuro não é pensado como sujeitos de uma sociedade civil e de uma economia em crescimento.

Quanto mais os invisíveis se tornam atores, quanto mais as mulheres se tornam protagonistas, mais se desenvolve a economia de um país. Sabemos bem disso. O atraso de faixas inteiras da população está ligado justamente a esse “anonimato”, que as destina a não terem acesso a nenhuma oportunidade, mas a se limitarem a sobreviver.

Por isso, inicialmente, falava-se da ausência de registro civil como de uma condenação para os indivíduos, mas também o é para grande parte da população e, na verdade, para uma sociedade cada vez mais caracterizada pela desigualdade. Mas essa desigualdade cobra um preço. Porque, no mundo global, os jovens não se resignam ao anonimato, mas procuram formas, até mesmo violentas e opositivas, para se afirmarem.

Contra a exclusão

É uma reflexão que devemos fazer com mais atenção. Nas páginas desse livro, lê-se a dinâmica de um trabalho que merece atenção também nos seus detalhes. A reconstrução detalhada explica de fato como a história de uma “revolta” contra uma grande injustiça passa por meio de um compromisso construtivo e competente, assim como pela revitalização das estruturas e instituições do Estado, as quais haviam sofrido com as crises econômicas e os cortes orçamentários.

Um Estado com instituições que funcionam é uma grande conquista, especialmente para as camadas menos protegidas. O programa Bravo! mostra como paixão e competência caminham de mãos dadas. Uma não se esgota no crescimento da outra. A competência não desgasta a paixão, mas indica que a “revolta” contra a desigualdade é possível e pode dar frutos concretos cotidianamente.

O Bravo! nasce dessa revolta contra a exclusão e oferece, por meio do registro civil, à menina ou ao menino, mas também ao adulto, as possibilidades de readquirirem plenamente a própria cidadania, de serem livres. Não é a conquista de uma condição de opulência ou de sucesso, mas a libertação de uma escravidão que se torna um fato cultural e também uma festa em comunidades marginais e periféricas.

Desenraizados

Tzvetan Todorov falou do homem contemporâneo como de um “homem desenraizado”. Desenraizado significa sem país: nunca o teve, perdeu-o, é estranho a ele ou assim se sente. A globalização acentua o desenraizamento e cria desenraizados diante dos amplos horizontes que se abrem. A reação é se fechar, mas, para viver uma abertura global, é preciso uma comunidade de pertença, uma pátria.

Ao ler esse livro, fiquei impressionado não apenas com as histórias de dor, mas também com o que pode ser feito para apagá-la e abrir oportunidades para o futuro. Repensei a palavra “pátria”, que muitas vezes limitamos à retórica nacionalista. Pátria, do latim pater, pai, mas também de patrius, é a terra dos pais. O estado civil é a memória do pertencimento a uma pátria.

O trabalho do Bravo! é encontrar um nome e uma pátria, uma obra de grande humanismo. O sentido de pessoa, de uma menina ou de um menino, está escrito em um nome e em um sobrenome, em generalidades que devem ser registadas e confiadas, no registo civil, à memória das instituições. Depois, haverá a história de uma vida que se desenvolve, cresce, morre. Mas que deixará um rastro sobre a terra.

Edição 173, dezembro 2021

Francisco e a renúncia do arcebispo francês

NÃO FOI O SEU MELHOR MOMENTO

Um anúncio inoportuno e uma explicação desconcertante: foi assim que o papa abordou o motivo pelo qual decidiu remover o líder de uma das dioceses mais importantes da Igreja Católica. O comentário é de Robert Mickens, publicado por La Croix International. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Tudo o que o papa precisava fazer era esperar cinco dias. E então, após retornar daquela que acabou sendo uma visita extremamente importante ao Chipre e à Grécia, de 2 a 6 de dezembro, ele poderia facilmente ter feito o anúncio oficial. Ao invés disso, o Papa Francisco chocou quase todos, quando decidiu dispensar Michel Aupetit de seus deveres como arcebispo de Paris no mesmo dia em que a viagem papal começou. Isso caiu como uma bomba.

E, pelo facto de ter dominado as manchetes em toda a Europa e no mundo, isso quase implodiu um dos principais objetivos do papa ao fazer a viagem aos dois países mediterrâneos – incitar os líderes do Velho Continente a finalmente abordarem a sua deplorável recusa (ou incapacidade) de forjar uma política de imigração coerente e compassiva.

Mas pior do que tropeçar na sua própria mensagem antes mesmo de descer do avião na capital cipriota, Nicósia, o papa garantiu que teria de explicar publicamente – durante a costumeira coletiva de imprensa no fim da viagem – as suas razões para aceitar a renúncia do arcebispo cinco anos antes da idade normal de aposentadoria.

Aupetit havia entregue seu “cargo” nas mãos do papa apenas 10 dias antes, depois que a revista francesa Le Point noticiou que ele teve um relacionamento consensual com uma mulher adulta em 2012, um ano antes de ser nomeado bispo auxiliar de Paris.

Surpreso e despreparado

Aupetit, um ex-médico ordenado aos 44 anos de idade, admitiu que o caso foi inapropriado. Mas negou que fosse sexual. No entanto, a revista também disse que ele afastou pessoas durante seu tempo como arcebispo devido ao seu estilo autocrático de governo.

Francisco, que nomeou Aupetit para Paris em 2018, sabia que os jornalistas iriam questioná-lo sobre a sua repentina decisão de liberar o arcebispo de suas funções durante a coletiva de imprensa a bordo do avião em seu retorno a Roma no dia 6 de dezembro.

Mas, quando a questão veio à tona, o papa pareceu irritado por alguém realmente ter ousado fazer a pergunta. E, pior, pareceu não ter certeza de como responder. O que se seguiu foi uma das explicações mais bizarras e problemáticas que este papa ofereceu para qualquer coisa em seus quase nove anos de mandato.

“Sobre o caso Aupetit, eu me pergunto: o que ele fez de tão grave a ponto de ter que renunciar? O que ele fez? Alguém me responda”, disse Francisco, colocando seu microfone diante do rosto de Cecile Chambraude, do jornal francês Le Monde.

A repórter pareceu surpresa por ele devolver a pergunta para ela. Afinal, não foi ela quem decidiu destituir o arcebispo de suas funções, mas sim o papa! E o resto da sua resposta se tornou ainda mais... estranha.

A resposta do papa

“Antes de responder, eu diria: investiguem. Porque existe o perigo de dizer: ‘Foi condenado’. Mas quem o condenou? ‘A opinião pública, a fofoca...’ Mas o que ele fez? ‘Não sabemos. Alguma coisa...’ Se vocês sabem o porquê, digam. Caso contrário, eu não posso responder. E vocês não saberão o porquê, porque foi uma falta dele, uma falta contra o sexto mandamento, mas não total, mas de pequenas carícias e massagens que ele fazia: essa é a acusação. Isso é pecado, mas não é dos pecados mais graves, porque os pecados da carne não são os mais graves. Os mais graves são aqueles que têm mais ‘angelicalidade’: a soberba, o ódio... Esses são mais graves. Assim, Aupetit é pecador, assim como eu. Não sei se você se sente [pecadora], mas talvez... Assim como foi Pedro, o bispo sobre o qual Jesus Cristo fundou a Igreja. Por que é que a comunidade daquele tempo havia aceitado um bispo pecador? E era pecador com pecados com muita ‘angelicalidade’, como renegar Cristo, não? Mas era uma Igreja normal, acostumada a se sentir pecadora sempre, todos: era uma Igreja humilde. Vê-se que a nossa Igreja não está acostumada a ter um bispo pecador, fingimos que dizemos: ‘O meu bispo é um santo’. Não, essa é a Chapeuzinho Vermelho. Todos somos pecadores. Mas quando a fofoca cresce, cresce, cresce e tira a boa fama de uma pessoa, esse homem não poderá governar, porque perdeu a fama não pelo seu pecado – que é pecado, assim como o de Pedro, como o meu, como o teu: é pecado! –, mas pela fofoca das pessoas responsáveis de contar as coisas. Um homem do qual tiraram a fama assim, publicamente, não pode governar. E isso é uma injustiça. Por isso eu aceitei a renúncia de Aupetit, não sobre o altar da verdade, mas sobre o altar da hipocrisia.”

Transferindo a culpa?

Sejamos muito claros: o Papa Francisco não apenas permitiu que Michel Aupetit renunciasse, mas ativamente o removeu do seu cargo de arcebispo de Paris. E há uma razão para ele fazer isso, mesmo que não a tenha admitido publicamente.

Várias fontes da Igreja me disseram que, não muito depois de o papa nomear Aupetit como chefe dessa diocese historicamente importante no dia 7 de dezembro de 2018, ele percebeu que podia ter cometido um erro.

Poucos meses – senão semanas – após a nomeação, Francisco disse ter expressado pesar privadamente pela sua escolha, especialmente pelo modo inflexível de Aupetit lidar publicamente com questões morais e bioéticas polêmicas atualmente em debate na França secular.

Depois, vieram as reclamações sobre o estilo gerencial de cima para baixo do arcebispo e do seu afastamento de padres e de outros funcionários da Igreja.

Ficou cada vez mais claro que Aupetit nunca ganharia um barrete vermelho, pelo menos não durante este pontificado, então se tornou uma questão de tirá-lo de Paris. Ao devolver seu cargo ao papa, por assim dizer, o arcebispo forneceu ao papa a solução.

Francisco poderia ter dito simplesmente aos jornalistas no avião que ele e Aupetit chegaram à conclusão de que Paris não era uma boa opção para o ex-médico.

Não é apenas a reputação do arcebispo que está em jogo

É claro, pode haver outras razões pelas quais o papa decidiu que Aupetit não poderia mais ficar no cargo. E, por discrição ou por um desejo de não constranger o arcebispo, ele decidiu não dizer isso publicamente.

Em vez disso, ele disse que o arcebispo não poderia mais governar porque a fofoca – e não algum pecado (ou erro) seu – arruinou a sua reputação. Portanto, diante daquela fofoca – naquele “altar da hipocrisia”, como o papa o chamou –, Francisco aceitou a renúncia.

Há um problema com essa explicação. Se esse é agora o padrão para dispensar os bispos de seus deveres, poderíamos ver dezenas de dioceses perderem repentinamente seus líderes episcopais.

Bastaria uma campanha organizada, com a ajuda da mídia e de membros do clero, para espalhar acusações (fofocas) para desacreditar o bispo local. Queremos mesmo seguir esse caminho?

A reputação do arcebispo Aupetit não é a única a ser questionada. O papa disse – ao que parece, erroneamente – que Aupetit estava fazendo carícias e massagens na sua secretária.

Embora o Vaticano silenciosamente tenha removido a palavra “secretária” da sua transcrição oficial das palavras do papa no avião, ele não declarou se recebeu ou não informações sobre o fato de o arcebispo estar envolvido com uma secretária.

Se não estiver, ele deve um pedido de desculpas a todas as secretárias que podem ter trabalhado com Aupetit.

Mas, se assim for, o Vaticano – e não os jornalistas – precisa abrir uma investigação sobre as supostas ações, que podem ter sido não solicitadas e predatórias.

Algo para a Igreja francesa

O papa também foi questionado sobre o relatório devastador publicado há dois meses pela Comissão Independente sobre Abuso Sexual na Igreja (CIASE) da França, que examinou a situação dos crimes de pedofilia nos últimos 70 anos.

Francisco disse que não leu o relatório nem conversou com os bispos franceses sobre ele, o que parece estranho, já que ele se reuniu com os bispos durante as visitas “ad limina” que ocorreram após a sua publicação.

Mesmo assim, o papa advertiu sobre aceitar com demasiada facilidade as conclusões do relatório, embora a Conferência dos Bispos da França e a Conferência dos Religiosos e Religiosas da França (Corref) tenham feito isso.

Os comentários podem não ser vistos como especialmente úteis para a moral dos católicos franceses, sejam eles bispos, padres, religiosos ou leigos.

Aqueles que se dedicam e estão ativamente engajados na Igreja trabalharam arduamente para enfrentar a realidade do passado e do presente e para caminhar com coragem rumo ao futuro. Eles poderiam se beneficiar muito com um endosso mais sincero do papa.

Francisco não pode desfazer o dano provocado pelo seu anúncio inoportuno sobre a “renúncia” de Aupetit ao desviar a atenção da sua viagem ao Chipre e à Grécia, mas ele ainda tem tempo para ajudar a aumentar a credibilidade e a moral dos católicos na França.

Boaventura de Sousa Santos

A CISMOGÉNESE E A SENSATEZ POLÍTICA

"Por que razão se perdeu agora a sensatez política que nos acompanhou nas primeiras fases da pandemia?", questiona Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, ex-diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Carta Maior /IHU

Uma correspondente perguntava-me recentemente se eu, enquanto sociólogo, tinha uma explicação para a insensatez dos políticos. A pergunta intrigou-me, uma vez que nada distingue os políticos que os faça, em princípio, mais ou menos sensatos que os cidadãos comuns. Aliás, é hoje reconhecido internacionalmente que a nossa classe política foi bastante sensata durante a pandemia, inspirando os portugueses a um modelo de comportamento que é considerado exemplar e com o SNS a responder às exigências mais eficazmente que muitos países mais ricos que Portugal. A pergunta referia-se, obviamente, à crise política desencadeada pela reprovação do orçamento. As razões que os políticos envolvidos invocaram para a justificar não convenceram a esmagadora maioria dos cidadãos e o seu comportamento pareceu insensato.

É que a cidadania estava sobretudo preocupada com as incertezas que a pandemia tinha inscrito nas suas vidas. Sendo elas de sobra, era insensato adicionar outras e, para mais, de maneira que parecia artificial. Os cidadãos e as cidadãs tinham a sensação de estar a entrar num longo período de pandemia intermitente com alternância entre momentos de crise aguda e de ameaça crónica. Desde então, as condições da pandemia vieram dar mais razões a esse sentimento. É de prever que será esse sentimento que comandará o seu comportamento nas próximas eleições. Com exceção de franjas extremistas, os portugueses quererão garantir a estabilidade política porque já lhes basta a instabilidade pessoal, interpessoal e social que temem vir a caracterizar a sua vida nos próximos tempos.

Por que razão se perdeu agora a sensatez política que nos acompanhou nas primeiras fases da pandemia? Em 1935, o antropólogo Gregory Bateson cunhou o termo cismogénese para designar um padrão de comportamento que consiste na tendência para indivíduos ou grupos se definirem por contraposição em relação a outros e para aumentarem as suas diferenças em resultado do diálogo, da interação e da confrontação. Diferenças que, antes da interação, pareceriam menores ou atenuáveis, tornam-se maiores e mais intransigentes à medida que decorre a interação. A investigação fora realizada na Papua-Nova Guiné. Tem isso algo a ver conosco? As discussões sobre o orçamento fizeram-me recordar Bateson.

Quando as conversações entre o PS, o BE e o PCP se iniciaram havia a sensação generalizada de que as diferenças entre os dois lados (centro-esquerda e esquerda) eram transponíveis. No entanto, à medida que o diálogo avançou as diferenças foram-se polarizando, a tal ponto que se tornaram inconciliáveis. Deu mesmo a sensação de que o que era conciliável orçamentalmente não o era politicamente. Por exemplo, à medida que o diálogo/confrontação avançou, foi-se tornando claro que as diferenças que antes pareciam ser contradições no interior das mesmas classes ou estratos sociais (intraclassistas) foram-se metamorfoseando em contradições entre classes ou estratos sociais opostos com interesses potencialmente inconciliáveis (interclassistas).

O discurso contemporizador e ameno das diferenças intraclassistas foi dando lugar ao discurso polarizador e cáustico das diferenças interclassistas. O desencanto da cidadania afeta a esta “família”(?) política e a consequente sensação de insensatez decorreu de uma fatal descoincidência entre partidos e eleitores. Enquanto os partidos revelavam contradições interclassistas, os cidadãos e as cidadãs apenas viam contradições intraclassistas. Enquanto os políticos viam as contradições a partir das suas ideologias e cálculos políticos, os cidadãos e as cidadãs viam-nas a partir da pandemia e das incertezas abissais que ela lhes causava. A insensatez e a descoincidência assumiram particular intensidade naqueles sectores que temiam que as eleições antecipadas pudessem vir a fortalecer a extrema-direita; se isso viesse a ocorrer, o discurso (e as ações) do ódio aumentariam e os seus alvos privilegiados seriam as bandeiras e os políticos de esquerda no seu conjunto.

Mas a insensatez não foi um monopólio das forças de esquerda. As forças de direita não ficaram atrás. Num momento em que era já previsível a reprovação do orçamento e que as esquerdas lhes davam a oportunidade para se fortalecerem nas próximas eleições, envolveram-se em desgastantes disputas internas que só podem ter efeitos contraproducentes. Também aqui se verificou a cismogénese entre candidatos à liderança: diferenças de personalidade e “entre amigos” transformaram-se gradualmente em diferenças políticas do tipo entre água e azeite. E também ocorreu a descoincidência entre as lideranças políticas e os seus eleitores. Enquanto aquelas faziam cálculos políticos (alguns bem medíocres), estes, tal como os eleitores de esquerda, temiam sobretudo as incertezas da pandemia e a instabilidade política que as poderia agravar. E se as recentes eleições diretas no PSD revelam algo importante é precisamente o desejo de estabilidade dos seus militantes de base, um desejo não partilhado por muitos dos seus dirigentes. E se houvesse diretas no PS, no BE ou no PCP?

A cismogénese não é uma fatalidade, nem o que é válido para os rapazes e raparigas da Papua-Nova Guiné é necessariamente válido para os políticos portugueses. Mas é como se fosse, pelo menos na opinião dos comentadores políticos. É quase unânime a ideia de que a geringonça acabou, dadas as posições inconciliáveis. Entre os comentadores não parece existir a cismogénese. Pelo contrário, se alguma dinâmica existe entre eles, seria adequado designá-la por conformogénese: por mais que divirjam, as suas opiniões acabam sempre por concluir o mesmo. Mas, pelo contrário, parece igualmente existir a descoincidência, neste caso, entre as suas elucubrações e os que as lêem ou ouvem. Se em tempos de pandemia os cidadãos estão sobretudo angustiados com as incertezas do futuro próximo, e se todos aspiram a alguma estabilidade, pelo menos até que haja condições para tolerar ou mesmo celebrar instabilidades menos existenciais, está longe da verdade que todos pensem que algo como a geringonça não é possível ou desejável. As recentes sondagens mostram, aliás, o contrário. Os obstáculos são bem menores do que se imagina. Basta comparar com a situação no país vizinho onde a solução política em vigor (o acordo entre o PSOE e Unidas-Podemos) foi inspirada na gerigonça portuguesa.

Trata-se, no caso espanhol, de duas formações políticas com identidades mais polarizadas do que as que dividem as forças políticas correspondentes em Portugal. Basta recordar que o PSOE defende a monarquia, enquanto o UP é republicano. Mas porque a questão do regime não faz parte do acordo limitado em que acordaram, a coligação perdura e acaba de conseguir o que em Portugal até agora não foi conseguido: o acordo para anular as leis laborais que foram impostas pela troika. Será porque a Espanha é a quarta economia da UE e a dívida externa, apesar de grande, é menor que a portuguesa? Será porque em Espanha os dois partidos partilham a governação e não apenas as decisões parlamentares? Será porque na Espanha o PSOE aprendeu de vez que articulações com a direita podem ser mais fáceis do que com a esquerda, mas dão sempre mau resultado? Isto tudo leva a crer que não há obstáculos intransponíveis se a insensatez for superável.

Se houver um compromisso escrito pré-eleitoral entre forças políticas afins e com peso eleitoral significativo, os cidadãos saberão que, votando numa delas, estará garantida a estabilidade política, se o conjunto tiver a maioria dos votos. Poderão assim votar com tranquilidade segundo as suas convicções políticas. Não havendo tal acordo, é previsível que a preocupação com a estabilidade política incentive o voto útil que favorece sempre os partidos maiores. Só assim não sucederá se os diferentes partidos envolvidos derem provas convincentes e assumirem compromissos reveladores de que o entendimento pós-eleitoral prevalecerá.

George Monbiot

O COLAPSO DA COP26 E AS NOVAS LUTAS POSSÍVEIS

"Mas vamos supor por um momento que possamos deixar o peso morto dessas indústrias de lado e mandar os combustíveis fósseis para a história. Isso realmente resolverá nossa crise existencial?", questiona George Monbiot, jornalista, escritor, acadêmico e ambientalista britânico, em artigo publicado por The Guardian, traduzida e publicada em português por Outras Palavras /IHU.

Agora é luta direta pela sobrevivência. O Acordo pelo Clima de Glasgow, com toda a sua linguagem contida e diplomática, parece um pacto suicida. Depois de tantos anos desperdiçados de negação, diversionismo e demora, é tarde demais para mudanças graduais. Para termos uma boa chance de evitar um aquecimento superior a 1,5°C, será preciso cortar as emissões de gases de efeito estufa em cerca de 7% a cada ano: mais rápido do que caíram em 2020, no auge da pandemia.

O que precisávamos na conferência climática COP26 era de uma decisão de não queimar mais fósseis depois de 2030. Em vez disso, governos poderosos buscaram um compromisso entre nossas perspectivas de sobrevivência e os interesses da indústria de combustíveis. Mas não havia espaço para concessões. Sem mudanças amplas e imediatas, enfrentamos a possibilidade de um colapso ambiental em cascata, à medida que os sistemas terrestres ultrapassem os limites críticos e se transformem em condições novas e hostis.

Isso significa que devemos desistir? Claro que não. Pois assim como os complexos sistemas naturais, dos quais nossas vidas dependem, podem transitar repentinamente de um estado para outro, o mesmo pode acontecer com os sistemas que os humanos criaram. Nossas estruturas sociais e econômicas compartilham características com os sistemas terrestres dos quais dependemos. Eles têm propriedades de autorreforço – que os estabilizam dentro de uma faixa específica de estresse, mas os desestabilizam quando a pressão externa se torna muito grande. Como os sistemas naturais, se forem impulsionadas além de seus pontos de inflexão, estas estruturas sociais e econômicas podem mudar com velocidade surpreendente. Nossa última e melhor esperança é usar essa dinâmica a nosso favor, desencadeando o que os cientistas chamam de “mudanças de condição em cascata”.

Um artigo fascinante publicado em janeiro na revista Climate Policy mostrou como poderíamos aproveitar o poder da “dinâmica do dominó”: mudança não linear, avançando de uma parte do sistema para outra. O texto aponta que “causa e efeito não precisam ser proporcionais”. Uma pequena perturbação, no lugar certo, pode desencadear uma resposta maciça de um sistema e colocá-lo em um novo estado. Foi o que aconteceu durante a crise financeira global de 2008-09: um choque relativamente pequeno (inadimplência das hipotecas nos EUA) foi transmitido e amplificado por todo o sistema, quase derrubando-o. Poderíamos usar essa propriedade para detonar mudanças positivas.

Mudanças repentinas nos sistemas de energia já aconteceram antes. O artigo aponta que a transição nos Estados Unidos, de carruagens puxadas por cavalos para carros movidos a combustíveis fósseis, levou pouco mais de uma década. A difusão de novas tecnologias tende a se autoacelerar, à medida que maiores eficiências, economias de escala e sinergias industriais se reforçam. A esperança dos autores é que, quando a penetração de máquinas limpas se aproximar de um limite crítico e a infraestrutura necessária para implantá-las tornar-se dominante, feedbacks positivos levarão rapidamente os combustíveis fósseis à extinção.

Por exemplo, à medida que o desempenho das baterias, componentes de energia e pontos de carregamento de carros elétricos melhoram – e seus custos caem –, o próprio preço destes automóveis se reduz e sua atratividade aumenta. Neste ponto, pequenas intervenções do Estado podem desencadear mudanças em cascata. Isso já aconteceu na Noruega, onde uma mudança nos impostos tornou os veículos elétricos mais baratos que os movidos a combustíveis fósseis. A repercussão veio quase da noite para o dia: agora, mais de 50% das vendas de carros novos no país são elétricos e os modelos a gasolina estão em vias de extinção.

À medida que os carros elétricos tornam-se mais populares e os veículos mais poluentes são vistos como socialmente inaceitáveis, torna-se menos arriscado para os governos impor as políticas que irão completar a transição. Isso, então, ajuda a dimensionar as novas tecnologias, fazendo com que seus preços caiam ainda mais, até que superem os carros a gasolina sem a necessidade de impostos ou subsídios, fechando a transição. Impulsionada por essa nova realidade econômica, a mudança ocorre em cascata, de um país para outro.

As tecnologias de baterias pioneiras no setor de transporte também podem se espalhar para outros sistemas de energia, ajudando a catalisar mudanças, por exemplo, na rede elétrica. A queda dos preços da eletricidade solar e da energia eólica gerada nos oceanos – já mais barata do que os derivados de petróleo, em muitos países – está fazendo com que as usinas de combustível fóssil pareçam uma extravagância suja. Isso reduz os custos políticos de acelerar seu fechamento por meio de impostos ou outras medidas. Depois que as plantas são demolidas, a transição é concluída.

É claro que nunca devemos subestimar o poder estabelecido e os esforços de lobby que uma indústria antiquada usará para se manter nos negócios. A infraestrutura global de extração, processamento e vendas de combustível fóssil vale algo entre US$ 25 trilhões e US$ 0, dependendo da direção que sopra o vento político. As empresas de combustíveis fósseis farão tudo ao seu alcance para preservar seus investimentos. Eles tentam sabotar os planos climáticos do presidente Joe Biden. Não seria nenhuma surpresa se estivessem dialogando com a equipe de Donald Trump, sobre como ajudá-lo a voltar ao cargo. E se puderem impedir a ação por tempo suficiente, a eventual vitória das tecnologias de baixo carbono dificilmente será relevante, já que os sistemas da Terra já poderão ter sido pressionados além de seus limites críticos, o que tornaria grande parte do planeta inabitável.

Mas vamos supor por um momento que possamos deixar o peso morto dessas indústrias de lado e mandar os combustíveis fósseis para a história. Isso realmente resolverá nossa crise existencial? Em parte, talvez. Ainda assim, estou consternado com a redução do foco ao carbono, no acordo de Glasgow e em outros momentos, quando foram desconsiderados nossos outros ataques ao mundo vivo.

Os carros elétricos são um exemplo clássico do problema. É verdade que dentro de alguns anos, como argumentam os defensores, toda a infraestrutura malcheirosa de gasolina e diesel pode ser destruída. Mas o que é localmente limpo é globalmente imundo. A mineração dos materiais necessários para esta implantação em massa de baterias e eletrônicos já está destruindo comunidades, devastando florestas, poluindo rios, destruindo desertos frágeis e, em alguns casos, forçando as pessoas à quase escravidão. Nossa revolução de transporte “limpa e verde” está sendo construída com a ajuda de cobalto sanguíneo, lítio sanguíneo e cobre sanguíneo. Embora as emissões de dióxido de carbono e poluentes locais certamente diminuam, ainda nos resta um sistema de transporte estúpido e disfuncional, que obstrui as ruas com caixas de metal de uma tonelada nas quais pessoas viajam sozinhas. Novas estradas ainda irão destruir florestas tropicais e outros lugares ameaçados, catalisando novas ondas de destruição.

Um sistema de transporte genuinamente verde envolveria mudança para um tipo de sistema diferente. Começaria reduzindo a necessidade de viagens – como a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, está fazendo com sua política municipal de 15 minutos, que visa garantir que as necessidades das pessoas possam ser atendidas a menos de 15 minutos a pé de suas casas.

Isso encorajaria a caminhada e a bicicleta por todos que podem fazer isso, ajudando a enfrentar nossa crise de saúde, bem como nossa crise ambiental. Para viagens mais longas, priorizaria o transporte público. Os veículos elétricos particulares seriam usados para resolver apenas o resíduo do problema: fornecer transporte para aqueles que não pudessem viajar por outros meios. Mas mudar apenas os carros fósseis para elétricos preserva tudo o que há de errado com a maneira como viajamos agora, exceto a fonte de energia.

Além disso, há a questão de para onde vai o dinheiro. Os frutos da nova economia “limpa” ficarão, como antes, concentrados nas mãos de poucos: aqueles que controlam a produção de carros e a infraestrutura de recarga; e as empreiteiras que constroem a enorme rede de rodovias necessária para acomodá-los. Os beneficiários vão querer gastar esse dinheiro, como fazem hoje, em jatos particulares, iates, casas extras e outras extravagâncias destruidoras do planeta.

Não é difícil imaginar uma economia de baixo carbono em que tudo o mais se desintegre. O fim dos combustíveis fósseis não impedirá, por si só, a crise da extinção de espécies, a crise do desmatamento, a crise dos solos, a crise da água doce, a crise do consumo, a crise do lixo; a crise de acumular e descartar que irá destruir nossas perspectivas e muito do que resta da vida na Terra. Portanto, também precisamos usar as propriedades de sistemas complexos para desencadear outra mudança: a mudança política.

Há um aspecto da natureza humana que é ao mesmo tempo terrível e esperançoso: a maioria das pessoas está do lado do status quo, seja ele qual for. Um limite crítico é alcançado quando uma certa proporção da população muda de opinião. Outras pessoas percebem que o vento mudou e se voltam para aproveitá-lo. Há muitos pontos de inflexão na história recente: a redução notavelmente rápida do tabagismo; a rápida rejeição da homofobia, em nações como o Reino Unido e a Irlanda; o movimento #MeToo, que, em questão de semanas, reduziu muito a tolerância social ao abuso sexual e ao sexismo cotidiano.

Mas onde está o ponto de inflexão? Pesquisadores cujo trabalho foi publicado na Science, em 2018, descobriram que um limite crítico é ultrapassado quando uma minoria comprometida cresce a ponto de representar mais de 25% da população. Nesse ponto, as convenções sociais mudam repentinamente. Entre 72% e 100% das pessoas, nos experimentos, passaram a romper antigas normas sociais, aparentemente estáveis. Como a revista observa, um grande corpo de trabalho sugere que “o poder de pequenos grupos não vem de sua autoridade ou riqueza, mas de seu compromisso com a causa”.

Outro artigo explorou a possibilidade de que os protestos climáticos dos Fridays for Futures [Sextas-feiras para o Futuro, iniciadas por Greta Thunberg] possam desencadear esse tipo de dinâmica de dominó. Ele mostrou como, em 2019, a greve escolar de Greta transformou-se em uma bola de neve, num movimento que levou a resultados eleitorais sem precedentes para os partidos verdes em vários países europeus. Os dados da pesquisa revelaram uma mudança brusca de atitudes, à medida que as pessoas começaram a priorizar a crise ambiental.

As sextas-feiras para o futuro chegaram perto, sugerem os pesquisadores, de colocar o sistema político europeu em um “estado crítico”. O processo foi interrompido pela pandemia, e não se completou. Mas ao observar o poder, a organização e a raiva dos movimentos reunidos em Glasgow, suspeito que o ímpeto está crescendo novamente.

As convenções sociais, que por tanto tempo trabalharam contra nós, podem se revertidas se tornarem nossa maior fonte de poder, normalizando o que agora parece radical e estranho. Se pudermos desencadear simultaneamente uma mudança em cascata, tanto na tecnologia quanto na política, teremos uma chance. Parece uma esperança selvagem. Mas não temos escolha. Nossa sobrevivência depende de aumentar a escala da desobediência civil até que construamos o maior movimento de massa da história, mobilizando os 25% que podem virar o sistema. Não podemos consentir com a destruição da vida na Terra.

Edição 172, novembro 2021

Eliseu Wisniewsk /IHU

SUICÍDIO: COMO ENTENDER E LIDAR COM ESSA TRÁGICA REALIDADE

"Nossa responsabilidade ético-teológica é cuidar da vida com competência, humanidade, auxílio da tecnologia e muito amor", escreve Eliseu Wisniewski, presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul e mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), ao comentar o livro Suicídio: como entender e lidar com essa trágica realidade (Vozes, 2021, 112 p.), de autoria de Evaldo A. D´Assumpção.

Uma sombra que desafia a todos nós. O suicídio é uma das perdas mais dolorosas, porque além da perda propriamente dita, muitas emoções e até preconceitos serão envolvidos, podendo até destruir parte de suas vidas. O número de suicídios, no mundo inteiro, cresce a cada dia. Nesse tempo de enfrentamento da pandemia, houve um aumento de 32%, numa ocorrência que no mundo atingia uma pessoa a cada 40 segundos. Muitos não gostam sequer de falar sobre isso. Todavia, o conhecimento de suas causas e dos sinais que o antecedem são fundamentais para preveni-lo. Esse é o propósito do livro: Suicídio: como entender e lidar com essa trágica realidade (Vozes, 2021, 112 p.), de autoria de Evaldo A. D´Assumpção, médico, biotanatólogo e bioeticista.

As reflexões iniciais (p. 9-28) trazem esclarecimentos sobre a etimologia da palavra suicídio (p. 9-10). Significa “matar a si próprio”. Foi usada pela primeira vez, em 1737 pelo francês Desfontaines. Entretanto, a expressão “suicidar-se”, que baseado na etimologia, é uma redundância, portanto uma forma errada de se expressar, tornou-se de uso tão comum, desde o século XIX, que foi assimilada e o seu uso está oficialmente consagrado no idioma português, tornando-se correta. Pode se grafar “se suicidou” tanto como “suicidou-se”.

Em seguida (p. 10-23), o autor faz notar que o suicídio pode ser classificado, do ponto de vista histórico e motivacional, nos seguintes tipos, com suas características específicas: a) punitivo (p. 10-11); b) eugênico (p. 11); c) preventivo (p. 11); d) solidário (p. 12); e) romântico (p. 12); f) heroico (p. 12-13); g) políticos (p. 13); h) altruísta (p. 13); i) ético (p. 13-14); j) religiosos (p. 14-15); k) resolutivo ou atômico (p. 15-23). As reflexões finais deste capítulo (p. 23-28), trazem dados estatísticos acerca do suicídio: números de suicídios em nível mundial e nacional, meios de suicídio (enforcamento, envenenamento, arma de fogo, objetos perfurocortantes), profissões nas quais se constatam maiores números de suicídios (médicos, policiais e jornalistas).

Na segunda reflexão (p. 29-40), olha-se especificamente para os tipos de suicídio. O autor destaca que “apesar de considerarmos o suicídio como procedimento único, existem diversas situações que sugerem diferentes tipos de suicídio” (p. 29). São elas: a) micro-suicídio: o autolesionamento realizado por algumas pessoas, talvez porque lhes falte coragem ou decisão de se matar (p. 29); b) equivalentes suicidas: a pessoa não deseja se suicidar, contudo, assume atitudes ou formas de vida que lhes proporcionam situações bem próximas de um autoextermínio (p. 29-31); c) real: é o suicídio propriamente dito (p. 31), e pode ser direto: é aquele no qual a pessoa toma uma atitude pessoal e direta contra si mesma (p. 32-34); indireto: uma variante da eutanásia/suicídio assistido (p. 34-36), endógeno: pela resistência a qualquer tipo de tratamento para uma doença (p. 36-39); induzido: através de técnicas de lavagem cerebral ou procedimentos que possam quebrar a vontade de uma pessoa (p. 39-40).

A terceira reflexão ocupa-se com a prevenção do suicídio (p. 41-46). A prevenção do suicídio é possível, pois estudos demonstram que cerca de 83% dos suicidas que fizeram contato com um médico de assistência primária, dentro do ano prévio à sua morte, e 66 % até um mês antes. As intervenções para a prevenção podem ser assim elencadas: a) educação e programas de prevenção (p. 41-42); b) pesquisas de indivíduos considerados de alto risco (p. 42); c) farmacoterapia (p. 42-43); d) psicoterapia (p. 43); e) seguimento psicológico de pessoas que tentaram suicídio (p. 43); f) restrição ao acesso de aras letais (p. 43); g) orientação para a mídia (p. 43); h) a depressão e outras condições psíquicas: esquizofrenia, alcoolismo, dependência de drogas (p. 43-46).

A quarta reflexão traz algumas considerações importantes para um melhor conhecimento do suicídio (p. 47-54). Isso porque o suicídio é um ato carregado de preconceitos, dores, sentimentos ambíguos por parte dos que ficam. Sobre este ato que sociólogos, psicólogos, médicos e religiosos se debruçam por toda uma vida buscando entender, sem lográ-lo inteiramente, o autor, traz algumas observações: a) o suicídio é um assunto proibido (p. 48); b) desperta sentimentos de culpa (p. 48-49); c) as tentativas de suicídio são pedidos de socorro (p. 49-50); d) a atenção para a fora de lidar com as frustrações (p. 50-51); e) estados depressivos como a depressão, alcoolismo e drogas, quando não tratados corretamente, são causas frequentes de suicídio (p. 51-53); f) atenção para as causas genéticas para o suicídio (p. 53-54).

Na quinta reflexão são apresentados os sinais de alerta e conceitos equivocados do suicídio (p. 55-58). É importante observar os seguintes sinais: sucessivas falas sobre uma possível vontade de se matar; problemas constantes na escola, com grupo de amigos, ou mesmo com a polícia; afastamento dos amigos e ou da família; mudanças súbitas de personalidade e ou de comportamento; começar a se desfazer de coisas que possui, e das quais demonstra gostar; súbita perda de interesse para com atividades sociais; surgimento de atitudes agressivas, que não costumava tomar; gravidez indesejada; uso abusivo de bebidas alcoólicas e ou de drogas; falta de adaptação ao término de relacionamento amoroso; obsessão por músicas, filmes ou literatura que abordem suicídio; autoextermínio recente de uma pessoa próxima; tentativas anteriores de suicídio (p. 55-56).

Quanto às ideias equivocadas sobre o suicídio: pessoas que falam que vão suicidar, nunca fazem; o suicídio ocorre sem aviso prévio; o suicida sempre quer morrer; quem tentou se matar uma vez, o fará sempre; melhora no tratamento antidepressivo de um provável suicida significa que o perigo já passou; o suicídio é mais frequente em determinada classe socioeconômica; suicídio é problema de família; suicídio é coisa de doente mental (p. 56-58).

Pessoas que ameaçam ou tentaram suicídio, tanto seus familiares, necessitam de cuidados especiais. Assim, os capítulos sexto e sétimos trazem sugestões de procedimentos para com o potencial suicida e seus familiares (p. 59-71), e, condutas sugeridas para familiares e amigos de quem se suicidou (p. 72-78). Quanto às condutas sugeridas para com o potencial suicida e seus familiares: a) a necessidade de escutar, assimilando cada palavra, cada pensamento, cada sentimento que o outro estiver expressando, empaticamente, ao invés de piedade ou simpatia pelo outro; b) conversar, pessoal e tranquilamente sobre seu desejo de interromper sua própria vida; c) colocar-se genuinamente disponível para escutar, atento às perguntas que podem abrir novas portas / ajudar na conversa; d) alguns temas podem ser trabalhados nessa conversa, dependendo da sensibilidade de quem atende e da percepção acurada do momento; e) conversar sobre o sentido do sofrimento na vida de todas as pessoas; f) trabalhar o perdão atendo-se pedagogicamente para suas características.

Quanto às condutas sugeridas para familiares e amigos de quem se suicidou as condutas sugeridas são semelhantes aos procedimentos indicados para os que tentam suicidar-se. Também os sobreviventes necessitam: ser escutados; expressar as emoções em qualquer situação de perda; o perdão. Bem conscientes dessa realidade, com certeza os sobreviventes não terão os sentimentos de culpa.

D'Assumpção salienta que por vezes algumas religiões, que deveria servir de consolo nessas circunstâncias, criam fantasias aterrorizantes, especialmente para o suicida, deixando os familiares em intenso sofrimento pelos horrores que aquela pessoa poderá estar passando. Tudo fruto de fundamentalismos rígidos, leituras pouco refletidas de textos sagrados, educação arcaica e desconhecimento do verdadeiro sentido da espiritualidade e da religiosidade, que devem ser sempre libertadores e nunca fontes de mais dor ou sofrimento (p. 77).

A este respeito o Apêndice (p. 79 -105), traz uma abordagem sobre: a) a capacidade de conviver com perdas e ganhos (p. 79-85); b) as razões do sofrimento (p. 85-93); c) as realidades que nos aguardam depois da morte (p. 93-105). Frente a isso ressalta que “a misericórdia de Deus, que nunca castiga seus filhos, pois sua pedagogia é muito superior à nossa, juízes implicáveis que somos” (p. 77).

O suicídio é um verdadeiro “holocausto silencioso”, na expressão usada pelo Dr. Leocir Pessini ao tratar desta problemática. Num de seus escritos dizia que estamos diante de um grito marcado por um profundo sofrimento que clama por compreensão, cuidado e ajuda solidária, seja qual for o motivo que o tenha provocado. Nossa responsabilidade ético-teológica é cuidar da vida com competência, humanidade, auxílio da tecnologia e muito amor. Procurar compreender e, solidariamente, se comprometer com que sofre é o caminho a seguir.

Estamos de acordo com Júnia Drumond, psicóloga com aprimoramento em Luto e Tanatologia, quando diz que: “de maneira clara e objetiva, Dr. Evaldo aborda assuntos complexos e propõe importantes discussões sobre o suicídio. Com isso muitos estigmas que giram em torno do suicídio podem ser descontruídos e, assim, abrir espaço para uma comunicação de qualidade entre profissionais e quaisquer interessados no tema” (p. 7-8).

As informações contidas /oferecidas nesta obra ajudaram a ação pastoral e evangelizadora da Igreja a caminhar numa perspectiva preventiva frente a uma realidade da qual ninguém está isento. É, pois, fundamental conhecer as características de um potencial suicida, para tentar demovê-lo do seu propósito. Mas, também, para ajudar aos seus familiares no difícil processo de luto, quando ele é consumado.

Giuseppe Savagnone

SINAIS DE MUDANÇA DO MUNDO DO TRABALHO

"Apesar do seu carácter problemático e provisório [do Covid], os dados que recolhemos e reportamos falam de um choque que as nossas sociedades 'evoluídas' há muito tempo não conheciam e que volta a questioná-las sob um perfil de importância decisiva como é aquele do sentido atribuído no trabalho. Ninguém pode garantir que essa mudança terá um resultado final positivo. Mas algo está se movendo, não apenas nos números, mas nas consciências e na cultura. O suficiente para abrir uma brecha de esperança em um futuro diferente daquele a que, na época do persistente domínio da lógica do mero lucro, nos havíamos resignado", escreve Giuseppe Savagnone, professor de doutrina social da Igreja no departamento de jurisprudência da LUMSA (Libera Università degli Studi Maria SS Assunta de Roma), em artigo publicado por Pastoral da Cultura da Arquidiocese de Palermo (www.tuttavia.eu). A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Enquanto ainda estamos lutando com a quarta onda da pandemia, as notícias vindas do mundo do trabalho, nas últimas semanas, confirmam que em todo caso não ficará apenas um parêntese doloroso a ser esquecido, deixando-o para trás para voltar à vida de antes e de sempre, mas constituirá uma fratura radical, que já está marcando profundamente os estilos de vida das sociedades ocidentais, incluindo aquela italiana.

Abandono do trabalho

Falava-se sobre o problema do trabalho. Muito se tem falado sobre isso em relação à Covid, mas sobretudo para sinalizar o aumento do desemprego ou os problemas relacionados com a obrigatoriedade do passaporte verde. E os protestos, as manifestações e os confrontos de rua também foram nessa direção. Na realidade, porém, os efeitos mais profundos da pandemia são aqueles que estão se verificando não tanto em situações externas, mas dentro da cabeça das pessoas.

Aqueles do primeiro nível, de fato, poderão ser facilmente anulados por uma mudança na tendência econômica e sanitária, enquanto o mesmo será mais difícil acontecer para aqueles que envolvem a maneira de ver a si mesmo e a própria vida. Agora, parece que exatamente aqui algumas novidades singulares estão ocorrendo.

Vou mencionar alguns dados dos jornais. A partir dos Estados Unidos, onde, com a amenização da emergência sanitária, registra-se um aumento do número de demissões do trabalho: “Em agosto 4 milhões de estadunidenses pediram demissão” (C. Benna, “’Eu me demito e mudo de vida’. Os 40.000 em fuga das empresas", no Corriere Torino, 1º de novembro de 2021). Inclusive, "um relatório recente da Microsoft afirma que 40% das pessoas estão pensando em se demitir de seu emprego atual até o final do ano" (R. Zezza, "Fuga do trabalho: porque a pandemia está provocando as Grandes Demissões", Il Sole24ore, 1º de outubro 2021).

Algo semelhante também está acontecendo na Itália, onde “a taxa de demissões mais que dobrou em dois anos: de 1,1% do total de empregado para 2,3% hoje”. O fenômeno tem dimensões impressionantes: “'Eu me demito. E eu mudo minha vida'. Pensaram, falaram e fizeram isso 480.000 italianos, um quarto do total de rescisões das relações de trabalho de abril a junho, dos quais cerca de 30-40.000 no Piemonte, 85% a mais que no ano passado (...). Com a liberação das demissões, muitos previam o apocalipse do trabalho. Aconteceu o contrário. Há mais trabalhadores permanentes que deixam a empresa do que empresas que os despedem” (C. Benna, art. cit.).

As motivações

As motivações são muitas. Pelas considerações dos analistas, eles parecem não apenas diversas, mas em alguns aspectos contraditórios. Alguns observadores identificam um fator importante no estresse causado pelo smart working, que anulou a distância física e temporal entre as esferas profissional e privada, ampliando a jornada de trabalho e invadindo a vida pessoal e familiar dos trabalhadores. A enxurrada de mensagens e tarefas que os assediaram através dos celulares, tablets e computadores não permitiu mais o afastamento, que antes era fisiológico, entre os locais e as horas de trabalho e os dedicados ao descanso.

Por outro lado, no entanto, existe uma dificuldade para o trabalhador retornar, agora que a diminuição dos contágios o permite, ao antigo ambiente de trabalho “presencial”. Um ambiente muitas vezes marcado por uma frieza desumana, a respeito da qual o smart working, mesmo com seu caráter invasivo, tinha eventualmente constituído a oportunidade de passar os dias de maneira mais autêntica, em contato com a vida "real".

O artigo do Il Sole24ore mostra um simpático vídeo belga em que é retratado um pai voltando ao escritório, segurado pela mão por sua filha que o conforta com as palavras clássicas com as quais os pais costumam encorajar seus filhos a voltar à escola: "Você vai rever seus amigos, você vai ficar bem, não chore" (R. Zezza, art. cit).

Em outros casos, trata-se simplesmente da aspiração por encontrar um emprego melhor, talvez há muito esperado, mas que agora, com o trauma causado pelo Coronavírus, finalmente encontra uma concretização. Sentimo-nos mais livres, tornamo-nos mais ousados.

A mudança é possível

Na base de todas essas motivações, no entanto, provavelmente está o fato de que "uma grande parte da força de trabalho reagiu à transição pandêmica questionando-se sobre o sentido da sua vida - como as crises levam a fazer - e querendo recuperar o controle" (ibid). A autora do artigo comenta: “Estamos longe de uma visão de ‘recursos’ humanos, entendidos como bens que podem ser adquiridos e mantidos para que não se deteriorem e garantam produtividade” (ibid).

O Covid obrigou todos nós a parar, de certa forma, e refletir. Claro, também teve aqueles que se recusaram a fazê-lo e usaram suas energias para imaginar conspirações destinadas a estabelecer uma ditadura mundial, servindo aos interesses de Bill Gates e das empresas farmacêuticas, ou simplesmente amaldiçoando o governo pelas restrições impostas às suas sagradas liberdades; mas muitos outros encontraram no lockdown, mesmo contra vontade, uma ocasião insólita de se encontrarem sozinhos consigo mesmos e de pensar. E descobriram que não queriam continuar vivendo como vinham fazendo até então, antes da pandemia.

O reflexo disso é a acentuação de uma tendência que já se manifesta há muito tempo nas sociedades pós-industriais: “Hoje o emprego para toda a vida não existe mais: as pessoas deixaram de desejá-lo porque estão percebendo que a mudança é possível, mesmo depois de tantos anos" (C. Benna, art. cit.). Mas, acima de tudo, a Covid destacou a relatividade de certas escolhas materiais - aquela do trabalho era tradicionalmente considerada a base de um "arranjo" humano definitivo – em relação ao grande problema da felicidade pessoal. Não é possível absolutizar um trabalho. Aliás, talvez nem mesmo o trabalho. Primeiro vem o viver, depois o trabalhar.

O contra-êxodo

Outro efeito da pandemia, no que diz respeito à Itália, vai nesse sentido: o surgimento de um contra-êxodo. Segundo uma pesquisa realizada pelo Centro Studi PWC, “a epidemia de Covid induz uma parte consistente dos jovens que emigraram para o exterior por motivos de estudo e trabalho a considerar o regresso para ‘casa’ (…). 1 talento em 5 pensa em retornar à Itália, 1 em 4,3 está prestes a retornar às regiões do sul" (V. Viola, "Cérebros em fuga, contra-êxodo impulsionado pelo Covid e benefícios fiscais", Il Sole24ore, 18 de setembro de 2020).

Um motivo importante é certamente a crise econômica que, após a Covid, atingiu países onde a emigração tinha levado muitos jovens italianos em busca de oportunidades que não encontravam na Itália. Mas, mesmo neste caso, estamos diante de uma mudança que não se deve apenas a razões puramente materiais, mas implica na transformação da maneira de ver as situações pelas pessoas: “Antes da primavera de 2020 - afirma o estudo da PWC – se pensava em voltar às cidades de origem apenas tendo a certeza de poder melhorar remuneração e nível de carreira; hoje esses objetivos de vida estão perdendo atratividade (...). A escala de valores dos nossos jovens mudou" e “o Covid teve um impacto profundo"(ibid).

Recupera-se o valor das relações humanas, principalmente aquelas familiares. Não é por acaso que o contra-êxodo se anuncia maciço principalmente para as regiões meridionais.

Naturalmente, é a partir deles que principalmente aconteceu a migração para o exterior de jovens em busca de trabalho nos últimos anos. Mas as entrevistas também falam do desejo de resgatar relações mais ricas e intensas, como são aquelas habituais no Sul. Não basta ganhar bem, se você estiver sozinho e viver mal.

Efeitos positivos

Não há dúvida de que a Covid foi e continua sendo uma séria ameaça para todos nós. No entanto, pelo que foi dito, emerge que os efeitos que está produzindo não são apenas negativos. Apesar do seu carácter problemático e provisório, os dados que recolhemos e reportamos falam de um choque que as nossas sociedades "evoluídas" há muito tempo não conheciam e que volta a questioná-las sob um perfil de importância decisiva como é aquele do sentido atribuído no trabalho.

Ninguém pode garantir que essa mudança terá um resultado final positivo. Mas algo está se movendo, não apenas nos números, mas nas consciências e na cultura. O suficiente para abrir uma brecha de esperança em um futuro diferente daquele a que, na época do persistente domínio da lógica do mero lucro, nos havíamos resignado.

Editor Jorge Castelo Branco sobre o m/ Livro 52

INTERROGUE-SE, PERTURBE-SE, INQUIETE-SE!

Por diversas ocasiões referimo-nos a alguém dizendo que dispensa apresentações. Este até poderia ser o caso, pois tenho a certeza que todos vós conhecem muito bem a vida, o pensamento e a obra do Padre Mário de Oliveira. Acresce que alguém que cumpriu os 84 anos no passado mês de março, que já publicou 52 livros, e cuja vida dava para fazer uma longa metragem maior do que “Cinematón” do Courant, torna desaconselhável tal tarefa, até porque sabemos que o Rui Vaz Pinto tem de fechar às 10h.

Todavia não me lembro de ninguém cuja sua vida esteja intrinsecamente ligada com a sua obra, e cuja obra esteja, por sua vez, tão intrinsecamente ligada com o seu pensamento. Pouca foi a ficção que o Padre Mário produziu. Tudo está experiencial e humanamente conexo. Portanto, a vida, a obra e o pensamento são, no Padre Mário, uma parte só, una e indivisível. Acresce dizer, coerentemente, e corajosamente una e indivisível.

Costumo dizer que há uma imortalidade conferida a um autor; costumo até, por vezes, não conceber a ausência física de um autor com quem dialogo num livro que escreveu, digamos há 150 anos. No caso do Padre Mário terão de me permitir uma redundância: imortalidade perpétua!, mas a questão que se coloca, legítima é: até que ponto as suas obras terão um impacto que transcende a própria obra, a capacidade de mudar o mundo. Não o sei, mas sei, contudo, que este livro, mais do que todos os outros 51, poderá ter esse desiderato.

Circunstâncias várias colocam-me aqui hoje perante vós para vos apresentar este livro, o 52º do Pe. Mário de Oliveira. Não é a primeira vez que isso acontece e como ainda não fui vaiado nem o Padre Mário, como os sabemos frontal e sem papas na língua, nunca se opôs, eis-me aqui. Claro que devo admitir a V/benevolente cortesia ou o forte vínculo de cumplicidade entre mim e o Padre Mário que há anos nos une, fortificado pela cumplicidade de 18 edições em conjunto, esta é a 19ª. Sempre defendi que um editor não será a melhor pessoa para apresentar um livro de sua edição. Por muito que tentemos evitar, soamos sempre como uma mãe a falar do filho: por grande avantesma que seja é o mais bonito do mundo! De toda a forma estou bem à vontade: quero que saibam que não concordo com tudo o que o Padre Mário diz, pensa e escreve. Aliás, andamos ultimamente um pouco de candeias às avessas mas, em boa verdade, a culpa deve ser minha. Desde que me mudei para Viseu empederni-me num perfeito Beirão, teimoso como as pedras, e colidimos frequentemente, como dois titãs: eu por defeito, o padre Mário por feitio.

Todavia, a minha presença aqui justificar-se-ia quanto mais não fosse por uma justificação editorial que se impõe face ao que porventura terão estranhado, o facto de o penúltimo livro o 50º ter sido anunciado nos mesmos moldes em que o de hoje se anuncia, partilhando até parte do título, revelando o seu ineditismo e discorrendo sobre o mesmo princípio orientador: a defesa sustentada da não existência dos 4 Evangelhos canónicos e o Livro Actos dos Apóstolos, mas sim de 4 Evangelhos em 5 Volumes, uma vez que o Evangelho atribuído a Lucas é escrito em dois Volumes, sendo o primeiro a apresentação de um Jesus histórico, filho de Maria e o segundo uma denúncia da fundação de um judeo-cristianismo ou judeo-messianismo nos antípodas de Jesus, transformando-o no mítico messias/cristo ou Jesuscristo, o filho de David.

Aliás o autor, ele próprio, justifica esta nova edição em nota introdutória: "Às leitoras, aos leitores do livro-rascunho, devo um pedido de desculpa e de compreensão. Na altura da sua publicação, tinha-o como versão definitiva. Só depois, graças a certas reacções de pessoas amigas e militantes desta mesma Causa, às quais aqui publicamente agradeço, é que meti de novo mãos ao trabalho e o resultado final e definitivo aqui fica. Felizes, pois, aquelas pessoas que lerem-escutarem esta versão definitiva do Livro. Sem dúvida, muito mais completo e de compreensão bem mais acessível que a versão-rascunho anterior”. (fim de citação)

Uma análise atenta a este livro projecta-nos logo à partida para uma imagem gráfica um pouco diferente do que os últimos livros do Padre Mário nos sugerem e o retorno a uma simbólica iconoclastia que nos remete para edições anteriores e relevantes do autor, algo que traduzido prosaicamente seria: o que de particularmente relevante e controverso que o Padre Mário tem para nos trazer veste-se de preto e amarelo.

Acima da advertência já referida “versão definitiva do livro 50” título revelador de uma doutrina jesuânica que nos conduz à reflexão de como devemos voltar a Jesus, a um projecto maiêutico que nos habitará no terceiro-milénio em contraponto de uma adoração mítica de um cristo-da-fé. Em subtítulo, enfaticamente exclamado, a explicação de uma nova leitura dos evangelhos relevando a expressão “desencriptados”.

Aliás o termo desencriptação, dominante neste frase, merece alguma reflexão. Recentemente mais utilizado ligado a áreas técnicas, é interessante decomposta etimologicamente: apartada do prefixo oposto (des) remete-nos para criptação ou criptografia que por sua vez tem origem na composição das palavras gregas “kriptos” que significa “escondido”, com a palavra “graphia” que todos bem sabemos significa “escrita”. Tudo isto para explicar que o acto assumido do autor no sentido de “desencriptação”, não sendo propriamente inédito, é perfeitamente legítimo, no caso, sustentador da tese que o livro defende. Não podemos entender os Evangelhos como textos límpidos; muitas passagens são difíceis de entender e contextualizar. Há inclusive a noção de que nenhuma passagem resulta de uma interpretação particular, daí resultando, por excelente exemplo, o louvável e altruísta reconhecimento do Padre Mário de que a versão definitiva deste livro foi reavaliada e corrigida por acção e reação de amigos e militantes de sua mesma causa.

A criptação da linguagem, muito comum na poesia, por exemplo, onde por vezes a própria linguagem é ocultiva e sugestiva, é apanágio dos textos bíblicos. Daí a legitimidade absoluta da interpretação, porventura polémica do conteúdo dos textos deste livro. A sua legitimidade é incontestável.

Antes de voltar à apresentação do livro, uma pequena nota à parte que acho imprescindível partilhar convosco.

O acto de editar é dar voz. Está na base do desenvolvimento da nossa sociedade: é pluralidade, é contribuir com informação para criar opinião, é possibilitar que em torno e a propósito de um livro reflitamos sobre o mundo que nos rodeia. O livro não nos impõe ideias, conduz-nos até ao melhor caminho, aquele que nós escolhemos, inspirado, inerrante, e suficiente.

Este é um livro polémico, sobretudo porque segue em contramão, segue em contramão como aliás quase todos os livros do Padre Mário seguem e como tal o risco de colisão é iminente. É eminente e desejável, como quase o adivinho a comentar. Em várias ocasiões me referi ao Padre Mário como exemplo de coragem, e não considero coragem seguir em contramão, isso é arrojo. Coragem é não abdicar de princípios, não abdicar daquilo que se defende, para viver numa humanizada a tranquilizante paz numa divisão fria em Macieira da Lixa, e não em faustoso paço da Sé por não sucumbir à tentação castrante do D. António Ferreira Gomes. Coragem é expor-se com um sorriso desarmante quando injustiçado e vilipendiado, quando acusado de radical quando confronta os poderes dominantes fáceis e elegantes de seguir para contento das massas, por uns media inscientes: todos bem sabemos como por vezes a ignorância é arrogante! Coragem é aceitar que se use como arma de arremesso uma pretensa ligação à política quando apenas tomou, no momento certo e na hora certa mas indesejável ao poder reinante, atitudes em consciência como presbítero de uma igreja que se moldava com o estado contrárias ao que toda a gente queria que se pensasse.

Edito o Padre Mário há 19 edições pois, entre outras, esta é a minha missão. O meu papel é dar a conhecer o pensamento de alguém que muitos temem ouvir. Curioso, ter dado comigo a reparar que ao longo destes muitos anos de proximidade editorial e pessoal com o Padre Mário sempre que ele é referido na comunicação social há uma expressão que o acompanha: Uma Voz Incómoda! Como se não houvesse mais nada para dizer, sucintamente repetem, à exaustão “Uma Voz Incómoda”. Quando refiro ser o editor do Padre Mário muitas vezes entre outros impropérios lá vem o inevitável “Humm, essa voz incómoda”. Pergunto-me: Incómoda por quê? Incómoda para quem? Incómoda por fugir do normal pensamento? Incómoda por não cumprir o papel que a generalidade das pessoas espera de um presbítero da Igreja? Incómoda por ter um pensamento fora da caixa, inquietante, revelador, desafiante? Ou incómoda por se não o conhecer, ou por influência do meio? Teme-se o que não se conhece ou, pior, teme-se o que não se entende. Mais grave ainda é temer o que não se quer conhecer! O meu papel como editor é dar a conhecer. Admito e aceito que não se concorde. Não posso é tolerar que o demonizem e ostracizem desconhecedora e gratuitamente.

Voltando ao livro.

Repito. Este livro é profunda e urgentemente revelador. E entenda-se revelador, não por conter ou assumir uma verdade absoluta; é revelador por abrir consciências, por pôr-nos a pensar. Apresenta-nos um Jesus histórico desapontadoramente humano, para muitos, pleno e muito mais próximo de nós, seres-vivos consciência, mais povo visível, carne, e menos translúcido mas tangível deus que nos habita em mistério.

E neste sentido faz contraponto a uma versão da história que insiste milenarmente a ser-nos contada. Mesmo numa sociedade moderna e democrática que reconhece as diferentes interpretações domina o “pluralismo interpretativo predominante” que condiciona e demoniza novas leituras, pois nada interessa aos vigentes e dominantes cristianismos, católicos ou protestantes, que antecipam o seu fim à luz dos novos tempos. O cristo-da-fé, o cristo davídico, nada mais é que Poder, parte de um sistema opressor e destrutivo, desvinculado e ausente do homem.

Como antes referi este é livro aberto e conciliador; aponta-nos uma leitura, e o autor fá-lo de uma forma criteriosa, fundamentada e alicerçada. Tem o cuidado, por exemplo, de apresentar os textos canónicos com os verbos conjugados no presente e despe-os de toda a fantasiosa, desnecessária e excessiva eloquência com que os biblistas, ao longo dos tempos, foram acrescentando, conseguindo com isso criar uma ilusão deífica, afastando e deturpando a boa nova original e simples de Jesus de Nazaré, filho de Maria.

O texto do livro desenvolve-se com um título, seguido de um texto com a chave desencriptadora do capítulo que se segue, nas condições que referi antes. Apresentam-se em 5 capítulos pela ordem de Evangelho de Marcos, Evangelho de João, Evangelho de Mateus e os evangelhos de Lucas em 2 volumes.

De notar a extensa e valiosa bibliografia consultada que sustenta boa parte das interpretações. Este é um livro que se anuncia como leitura obrigatória, criador de um novo pensamento para o 3º milénio e que rompe abertamente com o judaísmo davídico, a sua teologia, o seu Templo, a sua Bíblia, o seu Deus todo-poderoso. Comece por ler, atentamente, as 68 partes da INTRODUÇÃO GERAL AO LIVRO; elas orientá-lo-ão numa leitura contextualizada do livro. Entregue-se a uma leitura atenta, crítica, reflectida e sustentada; comente que os seus amigos, familiares, vizinhos. Interrogue-se, perturbe-se, inquiete-se. Acolha as palavras do autor:

“Ousemos seguir e prosseguir Jesus, agora, terceiro milénio adiante!”

Daniel Vicente Guisado

UMA NOVA GERAÇÃO DE ULTRADIREITA SE LEVANTA NA EUROPA

As décadas de germinação das ideias de ultradireita conseguiram mudar significativamente as sociedades ocidentais, tornando-as mais propensas a abraçar novas propostas e cada vez mais radicais”, escreve Daniel Vicente Guisado , cientista político, em artigo publicado por Público, de Madrid. A tradução é do Cepat /IHU

O fenómeno da ultradireita não é novo. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, diferentes grupelhos surgiram para questionar, de forma matizada e soterrada devido ao resultado bélico, os regimes liberais que foram se erguendo tanto nas ruínas dos fascismos, como nos países com democracias consolidadas antes.

O consenso era básico e claro para enfrentá-los: Estados de bem-estar fortes, reconstrução e direitos fundamentais. As novas formações de extrema direita, ancoradas na nostalgia, se opunham a essas regras democráticas.

Com o tempo, e devido à marginalidade que essas formações encontravam em todos os países ocidentais, a extrema direita foi mudando de objetivo e estratégia. O adversário já não era o sistema democrático, mas as elites políticas, os novos valores pós-modernos, as esquerdas.

As consequências de Maio de 68 aceleram essa dinâmica até forçar os especialistas a mudar a tipologia de estudo. Não estávamos mais diante da extrema direita opositora à democracia, mas diante de uma direita radical, em certos momentos populista, que aceitava as regras democráticas e buscava a integração de seus programas e ideias nativistas, autoritárias e populistas na sociedade.

A aparência é importante. A estratégia não era mais derrotar, mas mudar por dentro. O estabelecimento dos regimes liberais no ocidente eram muros quase impenetráveis. A nova direita radical viu um filão de ouro na imigração, na integração supranacional e nas novas elites políticas para crescer eleitoralmente. A guerra do terror que se instaurou após o 11-S, a crise econômica de 2008 e a de refugiados por volta de 2015, foram suas novas munições.

Dados concretos. A ultradireita ficava longe da média de 5% de apoio eleitoral na Europa, antes dos anos 1980. Com a entrada do novo século, começou a superar em muito essa porcentagem. A explosão da crise mundial a colocou nos 10%. Finalmente, hoje, é difícil encontrar um país onde essas formações estejam abaixo dos 15%.

A extrema direita primeiro e a direita radical depois, há décadas, vêm desenvolvendo todo um processo de germinação. Não é um fenômeno novo ou excepcional. O que vemos hoje é o resultado do ontem e do anteontem. Da gradual normalização de ideias e propostas na sociedade. E assim como os partidos e líderes foram substituídos por novos enfoques e lideranças, a partir dos anos 1980, um fenômeno parecido pode começar a ocorrer em breve.

Ninguém ignora dois novos levantes radicais que estão ocorrendo no coração da Europa ocidental. Por um lado, Giorgia Meloni não apenas superou Matteo Salvini, como também lidera a imensa maioria das pesquisas, desde o início do verão. Apesar das semelhanças entre os dois expoentes da direita radical italiana, com Meloni existe um fio grosso e visível que a vincula com Giorgio Almirante, histórico líder do Movimento Social Italiano surgido do DNA da República Nazifascista de Salò.

Assim como também ninguém está alheio aos últimos terremotos políticos na França, onde o polemista e extremista Éric Zemmour, sem nem sequer ter oficializado sua candidatura para as eleições presidenciais do próximo mês de abril, já é avaliado cara a cara com Le Pen nas pesquisas. A surpresa pode explodir e nos encontrar, em alguns meses, diante de um segundo turno entre Macron e Zemmour. Assim como no caso italiano, o polemista pode guardar muitos paralelismos programáticos com Le Pen, mas suas formas e seus apelos vão um passo além.

A priori, duas causas podem estar correlacionadas com o surgimento dessas novas opções políticas. Uma que é óbvia alude às características espaciais da competição política. Elas nos dizem que os movimentos abrem novos espaços.

Há anos, Le Pen busca a moderação para maximizar suas opções presidenciais. Salvini buscou substituir Berlusconi como grande pai da direita italiana. Ambos se deslocaram significativamente de seus programas e discursos iniciais para ser mais eficientes na arena eleitoral, logo, novos espaços à sua direita se abriram.

Essas novas brechas políticas também podem estar correlacionadas com a falta de resultados ou, em seu defeito, com decepções por causa dos poucos resultados. Nesses casos, novos atores podem infundir novos impulsos renovadores pela direita.

No entanto, há uma segunda causa que já apareceu mais acima. As décadas de germinação das ideias de ultradireita conseguiram mudar significativamente as sociedades ocidentais, tornando-as mais propensas a abraçar novas propostas e cada vez mais radicais.

É nesse sentido que vai um dos últimos relatórios do think tank francês Fundação para a Inovação Política. Em suas 40 páginas, encontramos provas de estudos quantitativos que demonstram a importante conversão da França, Alemanha, Itália e Reino Unido aos valores de direita.

O estudo demonstra como quatro em cada dez cidadãos desses países se posicionam à direita, em contraposição a apenas 27% que se definem como de esquerda. Uma correlação que só aumentou nos últimos anos e que, com nuances, é transversal nas diferentes áreas ocupacionais. De empresários a trabalhadores de colarinho azul e branco, a maioria se posiciona à direita.

A razão dessa conversão pode estar relacionada com as opiniões que se tem sobre a imigração, que, conforme apontado antes, faz parte do núcleo essencial da direita radical. Motor de seu crescimento recente.

Por exemplo, na hora de perguntar aos eleitores dos diferentes países se seria necessário fechar, abrir ou deixar as fronteiras nacionais como estão em relação à migração, todos apostam majoritariamente em se fazer o esforço de fechá-las mais. Embora majoritária entre as formações extremistas, é uma opinião compartilhada por eleitores dos dois lados ideológicos e partidários. Dos partidos de esquerda aos de direita.

Também existe uma vitória pela individualidade. Independentemente de partidos ou ideologias, a grande maioria dos cidadãos acredita que as pessoas podem mudar a sociedade através de seus atos, podem escolher livremente sua vida e possuem total controle sobre o seu próprio futuro.

Ao ser questionados se os desempregados, se quisessem e se esforçassem, poderiam encontrar trabalho, a grande maioria acredita que sim. Uma opinião que encontra maior apoio entre as classes socioprofissionais mais baixas.

Um individualismo, além disso, que se conecta com a narrativa da meritocracia. Entre as pessoas que se sentem de direita, 71% pensam que, com esforço, qualquer um pode triunfar. Entre aqueles de esquerda, o número ainda é muito alto, 58%.

Em um terreno fértil como esse, que se viu reforçado nos últimos tempos, é mais racional observar o surgimento e consolidação de opções radicais como as acima mencionadas. Diante de uma Europa à direita, com opções de ultradireitas históricas caminhando para a moderação, é normal que comece a ocorrer uma substituição das mesmas por novas opções que levantam a bandeira da firmeza dos ideais. Figuras como Zemmour ou Meloni que se vangloriam de suas posturas e valores claros.

Sua essência é a tentativa de revalorizar uma política mais própria de outros tempos. Aquela que diz a você que não existem táticas para maximizar votos. Você vê o que existe. É pegar ou largar. Além de terem os ventos a seu favor, possuem a clareza de que devem oferecer falsas seguranças, explorando medos atuais.

A narrativa se apresenta como uma luta civilizatória. Meloni apelando ao “Deus, Pátria e Família” e Zemmour fazendo uso da teoria da substituição, a ideia de uma França onde não haverá mais franceses. A subversão das democracias liberais a partir delas mesmas. O que está em jogo não são medidas concretas, é o devir de nossa civilização religiosa, étnica e nacional, dizem.

Propõem uma modernidade passada ancorada no medo. Como pando de fundo, surge a dúvida de se estar diante de um momento conjuntural ou o início de uma nova ofensiva. De imediato, a sensação de tontura diante das curvas que vêm. Pelo caminho, o objetivo de construir um desejo que supere o seu medo.

Edição 171, outubro 2021

Lilia Sebastiani

DEIXAR-SE TRANSTORNAR PELO DIÁLOGO

"É fundamental que pelo menos os fiéis empenhados, que talvez sejam menos numerosos do que os ‘ainda’ praticantes, mas a única esperança para o futuro, assumam suas responsabilidades eclesiais sem timidez, sintam-se responsáveis pela sinodalidade efetiva da Igreja e façam ouvir com espírito fraterno e senso crítico a sua palavra, mesmo e sobretudo quando pode parecer que a Igreja não a peça verdadeiramente e não a escute suficientemente", escreve Lilia Sebastiani, teóloga italiana e autora, em português, de “Maria e Isabel: ícone da solidariedade” (Paulinas, 1998) e “Maria Madalena: de personagem do Evangelho a mito de pecadora redimida” (Vozes, 1995), em artigo publicado por Rocca, nº. 20. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

A expressão é do Papa Francisco: no dia 18 de setembro, na Sala Paulo VI do Vaticano, dirigiu-se aos fiéis da diocese de Roma com um discurso forte, vivo e muito real, de uma abertura comunicativa que muitas vezes se procura em vão nos discursos oficiais da igreja, especialmente quando fala sobre si mesma.

Um discurso na mesma linha pastoral do Documento Preparatório e do Vade-mécum publicados em 7 de setembro e apreciáveis por sua linearidade e concretude: mas esses últimos são documentos da cúria, enquanto aquele é um discurso pessoal, mais livre e fluido, que ajuda a abordar o sentido e o cerne da sinodalidade em um mundo que agora costuma ser definido como pós-moderno (mesmo que as várias regiões do mundo apresentem diferenças de "modernidade" inclusive muito fortes entre si e não se possa ser generalizar), e que é o mundo em que se desenrola normalmente a vida das paróquias: grandes e pequenas, proféticas e estagnadas ... Também a organização fundada nas paróquias, porém, em muitos casos parece superada: a paróquia é uma circunscrição eclesiástica de origem medieval que agora tem apenas ligações fracas com realidades humanas concretas. Como assinala o Papa Francisco, a reflexão torna-se obrigatória porque empenha a escuta de culturas que, no curto espaço de algumas décadas, mudaram profundamente.

Escutar as mudanças

O conceito de povo é um dos pilares da reflexão eclesial do Papa, e nisso percebemos suas raízes sul-americanas. Na realidade, pelo menos no mundo ocidental do qual temos mais experiência, o povo de que se fala está profundamente transformado, quase irreconhecível, a ponto de tornar difícil o próprio uso dessa palavra. De fato, “o sujeito moderno é considerado e estruturado como simples consumidor” (o papa cita J. Baudrillard, A sociedade de consumo, um livro que já tem 45 anos, mas parece até mais atual do que quando foi escrito).

No eclipse das grandes sínteses (cristãs, marxistas, liberais), sumiram de repente, quase deslocados para a atualidade mais desconfortante ou perturbadora, as referências que, mais amadas ou mais criticadas, nos eram familiares; o seu lugar foi ocupado por “um consumismo cujo poder está nas mãos de poucos grandes grupos de intermediação que, através da publicidade, induzem à compra obsessiva de bens e mercadorias, sem outras referências. A própria publicidade, com os meios de comunicação, distorce a realidade, tornando-a simplesmente uma visão distante e irreal”.

Os mesmos conceitos básicos (pessoa, dignidade, comunidade ...), tão frequentes e, aliás, indispensáveis no discurso eclesial, agora soam como expressões abstratas, pelo menos fora de círculos muito especializados. A parte final do discurso é verdadeiramente notável, porque permite sentir a proximidade de uma igreja que busca seriamente a capacidade de ir além de si mesma. O que se prepara não deveria ser um encontro apenas de bispos ou de católicos, nem um evento voltado principalmente para falar, mas também para a escuta, em todos os níveis.

“... Por que estou lhes dizendo essas coisas? Porque, no caminho sinodal, a escuta deve levar em conta o sensus fidei, mas não deve descurar todos aqueles 'pressentimentos' encarnados onde não o esperávamos: pode haver um 'faro sem cidadania', mas não menos eficaz. O Espírito Santo em sua liberdade não conhece fronteiras e nem mesmo se deixa limitar pelas pertenças. Se a paróquia é a casa de todos no bairro, não um clube exclusivo, recomendo: deixem portas e janelas abertas, não se limitem apenas a tomar em consideração quem frequenta ou pensa como vocês - que serão 3, 4 ou 5%, não mais que isso. Permitam que todos entrem ... Permitam a vocês mesmos ir ao encontro e se deixar questionar, que as suas perguntas sejam as vossas perguntas, permitam-se caminhar juntos: o Espírito lhes conduzirá, tenham confiança no Espírito. Não tenham medo de entrar em diálogo e se deixem transtornar pelo diálogo: é o diálogo da salvação. Não sejam desencantados, preparem-se para as surpresas ... ”.

A análise que o Papa oferece, dirigida explicitamente à sua diocese de Roma (“E é por isso que estou aqui, como vosso Bispo, para partilhar, porque é muito importante que a Diocese de Roma se empenhe com convicção neste caminho. Seria um papelão se a Diocese do Papa não se empenhasse nisso, certo? Um papelão para o Papa e também para vocês"), mas na realidade para todo o mundo católico e além, é simples e direto muito mais do que o apreciável documento preparatório, e serenamente diz coisas de considerável gravidade sobre a mudança histórica acelerada que está em curso, e a respeito da qual se corre o risco de ficar para trás; também destaca riscos não atribuíveis à igreja, se não pela proverbial lentidão que a leva a ficar sempre mais para trás do que as instâncias da história cada vez mais acelerada. A lacuna entre a síntese religiosa e o mundo social tornou-se quase inexplorável.

Não é intenção do Papa Francisco realizar uma análise sociológica exaustiva, mas as suas observações são vibrantes de verdade e concretude, especialmente quando, pronto a reconhecer a responsabilidade também em primeira pessoa, como Bispo entre os bispos, ele observa que a organização eclesial está parada substancialmente nos anos 1950: “... liturgia, catequese, caridade, piedade popular permanecem as mesmas. Diante das transformações, aprofundaram-se os temas da secularização, da nova evangelização, da redescoberta da catequese batismal: tentativas que se revelaram insuficientes na realidade que anulou antigas sínteses. Não percebíamos a velocidade das transformações e - para ser sincero - não foi entendida a sua extensão”. As razões básicas, em sua opinião, são duas: a falta de instrumentos de leitura adequados e a obstinada fidelidade ao que a liturgia, a moral, a teologia ... haviam sugerido no pós-guerra.

A nova visão do mundo parece estar enormemente distante dos comportamentos do passado. A conclusão: “Antes de iniciar este caminho sinodal, o que vocês estão mais inclinado a fazer: cuidar das cinzas da Igreja, isto é, da vossa associação, do vosso grupo, ou cuidar do fogo? Vocês estão mais inclinados a adorar as vossas coisas, que criam fechamentos - eu sou de Pedro, eu sou de Paulo, eu sou desta associação, você da outra, eu sou um padre, eu sou um bispo - ou vocês se sentem chamados a cuidar do fogo do Espírito?”.

O longo caminho sinodal

O caminho sinodal será muito longo; isso também sugere uma certa lentidão. Inevitável, para poder enfrentar as investigações e os trâmites exigidos, mas sem dúvida exposto a riscos: risco de fechamentos para dentro, de repetições ... Um caminho durante o qual até se poderia esquecer que se está em caminho. O percurso do Sínodo 2021-2023, pelo menos na sua configuração externa, terá a sua abertura solene no Vaticano no dia 9 de outubro, com a presença do Papa Francisco. No dia 17 de outubro, a inauguração será realizada nas igrejas locais. Após essa abertura, nas Igrejas locais e em outras realidades eclesiais (os dicastérios da Cúria Romana, os movimentos laicais, as faculdades de teologia das universidades, as Uniões de Superiores/as Maiores e outros grupos e federações de vida consagrada) começa uma fase que se estenderá de outubro de 2021 a abril de 2022 e se destina a ser uma consulta geral a todas essas realidades, com a ajuda do documento preparatório, do Vade-mécum e de um questionário elaborado pela secretaria geral do Sínodo.

Aqui se encontram os primeiros riscos, obviamente; o risco de uma consulta apenas aparente e pouco efetiva, como aconteceu na época do Sínodo sobre a família. A fase diocesana é muito importante, destaca o Papa Francisco no discurso que acabamos de referir, porque realiza a escuta da totalidade dos batizados, sujeito do sensus fidei infalível in credendo. O percurso será marcado por um duplo Instrumentum laboris (não confundir com os dois Instrumenta já publicados, o Documento Preparatório e o Vade-mécum que o acompanha como parte indissociável). O Sínodo dos Bispos também estabeleceu três comissões preparatórias, com quarenta e um especialistas que estão divididos em Comissão Teológica, Comissão Metodológica e Comitê Consultivo para a Orientação.

Nas três comissões trabalharão também 10 mulheres, religiosas e teólogas; a comissão metodológica será coordenada pela sra. Nathalie Becquart, religiosa xaveriana, subsecretária geral do Sínodo.

Em cada diocese, deve ser nomeado pelo bispo um responsável diocesano (ou uma equipe) para consulta, e o mesmo deve ser feito pelas Conferências Episcopais nacionais, a quem serão enviadas as contribuições pertinentes; cada um deverá fazer um discernimento e uma síntese dos resultados a serem enviados à secretaria geral do Sínodo. Todos os outros organismos consultados também enviarão suas contribuições à Secretaria geral. Em seguida, haverá uma reunião pré-sinodal que será seguida do envio das contribuições à respectiva Conferência Episcopal, e cada uma deverá fazer um discernimento e uma síntese dos resultados a serem enviados à Secretaria geral do Sínodo, que também receberá as contribuições de todos os demais organismos. Até setembro de 2022, o primeiro Instrumentum Laboris do Sínodo será publicado como fruto dessas contribuições particulares e do relativo discernimento.

A 'fase continental' do Sínodo sobre a Sinodalidade será a etapa seguinte, de setembro de 2022 a março de 2023, cujo relator geral será o card. Jean-Claude Hollerich, arcebispo de Luxemburgo. Realizar-se-ão encontros internacionais de conferências episcopais (que designarão uma pessoa encarregada de manter as relações com a Secretaria geral do Sínodo) e um discernimento pré-sinodal pelas assembleias continentais, que terminará com a redação de um documento final. Recomenda-se também nessa fase (mas sem prescrições detalhadas) assembleias nacionais de especialistas que enviem suas contribuições à Secretaria geral do Sínodo. Um segundo Instrumentum Laboris nascerá da segunda onda de consultas e contribuições: espera-se que esteja pronto até junho de 2023. A celebração do Sínodo dos Bispos acontecerá no outono europeu.

Preparação e apreensões

Uma preparação indubitavelmente majestosa e capilar, que desperta admiração, mas ao mesmo tempo um misto de desorientação e apreensão, pelo que Pietro Pisarra ("Le christianisme va-t-il mourir?", em baptises.fr) de 8 de setembro de 2021, chame de última tentação.

“A última tentação seria minimizar a envergadura do caminho sinodal, reduzindo-o a uma questão interna, de organização. Ou a uma campanha de marketing, para relançar um produto vencido. E se, diante do êxodo silencioso, das igrejas que se esvaziam, o sínodo fosse a última chance, o kairòs a ser apreendido?”

Em Jesus, de setembro de 2021, apareceu uma entrevista muito interessante com a teóloga francesa Paule Zellitch, presidente da Conférence catholique de baptisé-e-s francophones (Ccbf), empenhada desde 2010 para promover a inclusão dos leigos e das mulheres na Igreja, da qual agora fazem parte também muitos padres.

Para dar uma ideia da situação atual da Igreja Católica, ela usa uma dupla comparação impressionante. Imaginem, diz ela, ver um padre pregando do púlpito em uma língua pouco compreensível para um público mudo e perplexo, que aos poucos se levanta dos bancos para sair da igreja; ou um círculo fechado no qual os membros, todos do sexo masculino, se confrontam apenas entre si.

“... Chegamos ao paradoxo de que, na fé baseada na Palavra, é precisamente a palavra dos fiéis que foi confiscada. É uma Igreja monocromática (...). Os bispos apoiaram a tendência de Wojtyla de reduzir a influência dos teólogos e a possibilidade de fazer novas propostas. Não há contraditório nem debate, os discursos são planos, e isso certamente não é um sinal de saúde na Igreja”. “Os números falam por si: hoje na França 34% dos habitantes declaram-se católicos, mas apenas 2% são praticantes; então, para quem os bispos estão falando?”.

Também os cerca de 10.000 casos de abuso sexual perpetrados por membros do clero nos últimos setenta anos contribuem para a crise geral de credibilidade da instituição-Igreja.

Segundo Paule Zellitch, é preciso combinar a correta verticalidade com uma saudável horizontalidade. Os leigos e as mulheres, na primeira fila, estão cansados de serem marginalizados, tratados como crianças incapazes de tomar uma direção, de ver suas competências ignoradas e seus carismas subvalorizados.

Lembra que o Espírito sopra onde quer e acrescenta: “As hierarquias temem a liberdade de pensamento dos leigos: mas obediência não significa abdicar da inteligência e do espírito crítico, significa seguir Cristo”.

Em relação aos mencionados para a França, os "números da crise" na Itália podem parecer um pouco (apenas um pouco) menos catastróficos, mas, em vista da tendência das últimas décadas, pode-se temer que seja agora apenas uma questão de tempo. É fundamental que pelo menos os fiéis empenhados, que talvez sejam menos numerosos do que os ‘ainda’ praticantes, mas a única esperança para o futuro, assumam suas responsabilidades eclesiais sem timidez, sintam-se responsáveis pela sinodalidade efetiva da Igreja e façam ouvir com espírito fraterno e senso crítico a sua palavra, mesmo e sobretudo quando pode parecer que a Igreja não a peça verdadeiramente e não a escute suficientemente.

Ezio Mauro

A ÚLTIMA AULA DO PROFESSOR NORBERTO BOBBIO

"Parecia que o professor estava completando suas lições sobre a revolução: 'É um acto de esperança heroica, mas cega, e quando a esperança é cega e não tem outro fundamento senão a própria insatisfação com o mundo, o desejo espasmódico de outro mundo completamente diferente e nunca antes visto, finalmente livre e justo e abençoado e resgatado da violência subversiva, essa nada mais é que a máscara do desespero'", escreve o jornalista italiano Ezio Mauro, ex-diretor dos jornais La Stampa e La Repubblica, em artigo publicado por La Repubblica. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

O professor entrou na sala de aula no primeiro andar com a pasta cheia de papéis, como sempre, e colocou-a sobre a mesa. Dois passos, um pigarro nervoso, mais passos com as mãos cruzadas atrás das costas, como se o intervalo acadêmico ainda não tivesse terminado, ou fosse esperar algo. Depois, uma olhada aos bancos, lotados, para a plateia em pé no fundo: ex-alunos junto com estudantes, cidadãos comuns que vieram aqui no Palazzo Nuovo, colegas de faculdade ou de outras disciplinas. Por um momento, veio-lhe à memória outra sala pequena, mas lotada, com professores que quiseram assistir à sua primeira aula de Filosofia do Direito, no antigo palácio dos Marqueses na Universidade de Camerino onde tudo havia começado, em dezembro de 1935. Como então, sentiu a tentação de descer da cátedra, para falar cara a cara com aqueles que tinham vindo ouvi-lo.

Haviam se passado 44 anos, quase meio século de ensino. Porque aquele dia 16 de maio de 1979, uma quarta-feira anônima em Turim, foi para Norberto Bobbio o último dia como professor: a aula número 54.

Quando o professor começou a falar, os gravadores dos estudantes já estavam ligados sobre a mesa. Quarenta anos depois essas palavras retornam, porque depois da formatura de quatro estudantes reunidos com Michelangelo Bovero, o aluno predileto e depois sucessor de Bobbio, transcreveram os textos daquele último ano de ensino, integrando-os com as notas.

Donzelli publica hoje aquelas aulas de filosofia política em um volume com o prefácio afetuoso e fiel de Bovero, e com o mesmo título escolhido pelo professor para seu curso final: Mudança política e revolução. É como se na sua passagem final a paixão civil de Bobbio finalmente se reunisse publicamente com o seu compromisso de docência, após uma vida passada buscando a esquerda nas suas contradições e nas potencialidades dentro da vida do país, e estudando-a nas suas passagens históricas, na história do pensamento e nos infinitos modelos conceituais de sua conturbada história.

O título reúne e destaca o conflito histórico infinito entre o espaço reformador e o impulso revolucionário, a tensão irreconciliável entre o reformismo e o maximalismo que se contrapuseram por um século sem encontrar uma composição unitária para duas interpretações diferentes do mesmo impulso para a emancipação popular, e para a transformação da sociedade na direção da justiça e da igualdade.

Como num testamento intelectual deixado aos seus alunos, Bobbio traça a história do pensamento ocidental, de Platão a Kelsen, organizando no estudo filosófico uma verdadeira investigação sobre a transformação dos sistemas, isto é, sobre as diferentes formas de passagem de uma forma política. a outra, até identificar os vários tipos de "mudança" política, e chegando a Hegel, Marx e ao contemporâneo. Os clássicos não são apenas revisitados, mas ressuscitados pelo modus docendi do professor, que os coloca cada vez em relação com os problemas da época, as contradições da fase, fazendo-os assim agir.

E é justamente o espírito do tempo que explica o espaço e o peso deixado no curso para a teoria da revolução. De fato, Bobbio apresenta essas aulas no final dos anos 1970, uma temporada angustiante de morte e de violência, atravessada quotidianamente pelo mito e pelo medo da revolução, vivida nas ruas italianas pelo terrorismo das Brigadas Vermelhas. E o professor sente o dever de colocar à disposição de seus alunos os conceitos, as categorias, os instrumentos intelectuais para interpretar o problema da revolução e julgá-la. A partir da relação entre mito e realidade que se unem pela primeira vez com a tomada da Bastilha.

A terrível crónica daqueles dias

Antes, a sociedade mais justa era pensada como um ideal transcendente, um objetivo indefinido: depois, entende-se que a revolução é um acontecimento concreto, é imanente, um ideal que se pode realizar e entra na história. Mas, justamente quando a utopia se torna realidade, também se torna objeto de verificação, suscita a crítica, até a acusação capital do revolucionário de ter uma meta demasiado alta para poder ser alcançada, com a condenação da revolução de ser sempre algo inacabado, que muitas vezes trai a si mesma, corrompendo-se em seu oposto. A terrível crônica daqueles dias serve de contraponto às lições, dobra os conceitos à realidade. Quando Moro é assassinado por seus sequestradores, Bobbio se levanta de sua mesa para simplesmente ler uma página de Max Weber:

“Não é o florescer do verão que espera por nós, mas uma noite polar, gelada, sombria e brutal. A política é como a perfuração lenta de tábuas duras. E mesmo os que não são líderes nem heróis devem armar-se com a fortaleza de coração que pode enfrentar até mesmo o desmoronar de todas as esperanças. Somente quem, frente a tudo isso, pode dizer “Apesar de tudo!” tem a vocação para a política”. Depois de uma pausa, Bobbio acrescenta: "Nós também, continuamos apesar de tudo".

Em seus artigos na Stampa, como lembra Bovero, parecia que o professor estava completando suas lições sobre a revolução: “É um ato de esperança heroica, mas cega, e quando a esperança é cega e não tem outro fundamento senão a própria insatisfação com o mundo, o desejo espasmódico de outro mundo completamente diferente e nunca antes visto, finalmente livre e justo e abençoado e resgatado da violência subversiva, essa nada mais é que a máscara do desespero”.

Lição 54

Chegamos assim ao último dia, à lição 54. Entre mudança e revolução - perguntam os alunos a Bobbio -, o que o senhor pensa? “Weber costumava dizer que a cátedra não é para os profetas e os demagogos, e eu sempre disse que mesmo que cada um de nós tenha suas próprias ideias políticas, quando ensina é melhor mantê-las de fora. Por isso, respondo não com as minhas próprias palavras, mas com as de Popper: ‘A violência gera sempre mais violência. E revoluções violentas matam os revolucionários e corrompem seus ideais. Os sobreviventes são apenas os mais habilidosos na arte da sobrevivência. Eu defendo que somente em uma democracia, em uma sociedade aberta, temos a possibilidade de eliminar qualquer inconveniente.

Se destruirmos essa ordem social com uma revolução violenta, não só seremos responsáveis pelos pesados sacrifícios da própria revolução, mas criaremos uma situação que torna impossível eliminar os males sociais, a injustiça e a opressão’”. Bobbio acrescenta algo mais: “Se buscarmos o verdadeiro sentido da mudança histórica, da revolução industrial à revolução feminina, vemos que nenhuma dessas mudanças ocorrem de repente e de forma violenta, mas todas se realizam ao longo do tempo, gradativamente, dia após dia, quase sem nos apercebamos”.

Mas Lenin e Trotsky identificaram fisicamente o lugar do poder em São Petersburgo, e ao conquistar o Palácio de Inverno eles conquistaram o poder: sim, conclui Bobbio sua última lição, "mas o filósofo polonês Kolakowski nos avisa que o mal da sociedade não é poder, mas a alienação. Então eu pergunto a vocês: onde fica o Palácio da Alienação?”.

Tomáš Halík

COM O CORAÇÃO TRISTE”: O ESCÂNDALO DOS PADRES ABUSADORES

O escândalo dos padres abusadores devastou milhares de vidas e expôs uma crise de fé. Em uma conferência internacional sobre essa questão em Varsóvia, na Polônia, no mês passado, Tomáš Halík, um dos principais intelectuais católicos da Europa, defendeu que somente uma reforma profunda pode salvar a Igreja institucional. Halík é professor de Sociologia da Religião na Charles University, em Praga, cidade onde nasceu em 1948. É presidente da Academia Cristã Tcheca e pároco da Igreja Acadêmica de São Salvador. É doutor honoris causa em Teologia pelas universidades de Erfurt e Oxford. Seus livros já foram traduzidos para 19 idiomas e receberam diversos prêmios literários. O artigo foi publicado por The Tablet. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Com espírito de humildade e com o coração contrito – in spiritu humilitatis et in animo contrito – quero tocar em uma das feridas mais dolorosas da Igreja. Até mesmo o corpo místico do Cristo Ressuscitado carrega feridas, e se nós ignorássemos essas feridas, se não quiséssemos tocá-las, não teríamos o direito de dizer com o apóstolo Tomé: “Meu Senhor e meu Deus!”.

De acordo com uma antiga lenda, o próprio diabo apareceu a São Martinho na forma de Cristo. Mas Martinho lhe perguntou: “Onde estão as suas feridas?”. Um Cristo sem feridas, uma Igreja sem feridas, uma fé sem feridas é apenas uma ilusão diabólica. Com coragem, no poder de cura e libertação da verdade, queremos tocar nas feridas infligidas pelo clero católico e autoridades da Igreja aos indefesos, especialmente às crianças e adolescentes, e, portanto, à credibilidade da Igreja no mundo de hoje.

Para entender essa crise e aceitá-la como um kairós, como um desafio e uma oportunidade para amadurecer a nossa Igreja e a nossa fé, precisamos ver e abordar o fenômeno do abuso clerical em um contexto mais amplo. Os sobreviventes e as vítimas de abuso devem estar no centro da nossa preocupação. Devemos lhes dar todo o apoio legal, psicológico e espiritual de que precisam. O culpado deve ser punido e ajudado no caminho do arrependimento e da cura. Devem ser tomadas medidas práticas para minimizar o risco de crianças e adultos vulneráveis serem abusados no futuro. Mas todos esses passos importantes são apenas uma pequena parte daquilo que somos obrigados a fazer.

Tanto Bento XVI quanto o Papa Francisco mostraram o caminho certo: precisamos perguntar o que aconteceu com a nossa Igreja, o que aconteceu com a nossa fé, que possibilitou que algo assim ocorresse. Em muitos lugares do mundo, a Igreja tornou-se um “aparato político” em vez de uma comunidade de fé, como Bento XVI observou. A Igreja deve se livrar da doença de clericalismo, porque os casos de abuso são, acima de tudo, casos de abuso de poder e autoridade na Igreja, como repete o Papa Francisco.

Não é apenas uma questão de indivíduos; é uma doença perigosa do sistema inteiro. Minimizar o problema do abuso, alegar que o problema é ainda maior fora da Igreja ou defender que o problema diz respeito apenas a algumas Igrejas locais mostra cegueira espiritual, hipocrisia e orgulho.

Tentação à negação

Esta conferência internacional sobre a crise dos abusos sexuais está sendo realizada em Varsóvia, porque é no mundo pós-comunista que frequentemente vemos essas atitudes. Devemos rejeitar radicalmente a tentação diabólica de afirmar que os problemas de abuso sexual, psicológico e espiritual são doenças do “Ocidente corrupto”. Ignorar a trave no próprio olho impossibilita ver fenômenos sérios de forma realista e enfrentá-los efetivamente.

Há uma série de razões para a tendência nos países pós-comunistas de negar o problema do abuso clerical. É verdade que, em muitos países sob o regime comunista, os padres tiveram menos oportunidades de abusar de menores, porque, ao contrário do mundo livre, quase não havia instituições religiosas dedicadas ao cuidado de crianças e jovens. E os regimes totalitários, tanto nazista quanto comunista, muitas vezes tentaram desacreditar a Igreja e os padres em particular, acusando-os falsamente de abuso sexual (talvez seja por isso que o Papa João Paulo II, por muito tempo, não acreditou em muitas das acusações contra os padres).

Hoje, com acesso aos arquivos da polícia secreta, podemos ver que os regimes comunistas estavam bem cientes de casos reais de abuso e de outros aspectos sombrios da vida dos padres, como alcoolismo ou corrupção; eles frequentemente chantageavam esses padres, e alguns se tornaram informantes.

Quando havia perseguição estatal à Igreja, a coesão interna e a solidariedade eram fomentadas. Mas o outro lado era uma relutância em ver as sombras escuras dentro das suas próprias fileiras. Após a queda do comunismo, os católicos conservadores do Ocidente vieram aos nossos países, querendo retratar a Igreja como a Bela Adormecida que dormia alegremente durante o Concílio Vaticano II; como um príncipe de um conto de fadas, eles a despertariam com um beijo em sua beleza pré-moderna. A Bela Adormecida, é claro, não deve ter feições feias – portanto, nenhum escândalo de abuso.

Essa imagem falsa é endossada e internalizada com gratidão por alguns católicos na Europa pós-comunista: nós somos a Igreja dos Mártires, purificada pela nossa perseguição, que agora ensinará lições morais ao “Ocidente corrupto”, incluindo os católicos das nossas Igrejas irmãs na Europa ocidental e na América do Norte. Ex Oriente lux, ex Occidente luxus (“Do Oriente vem a luz, do Ocidente vem o luxo”)!

Essa ideologia precisa da imagem do “Ocidente corrupto” como um mundo de consumismo, materialismo e liberalismo, em contraste com o “Santo Oriente”, a heroica Igreja perseguida. A realidade de uma Igreja que, por si mesma, causa sofrimento não se ajusta à imagem de uma sofredora Igreja de mártires. Mas a verdade raramente é preta e branca.

Ocidente liberal e corrupto”

Essa sedutora autoilusão de uma Igreja do Oriente mais pura tomou conta da Europa pós-comunista por muitas razões. Após a queda do comunismo, alguns cristãos não podiam viver sem um inimigo. O “Ocidente liberal e corrupto” tornou-se o substituto ideal para o velho inimigo. Os católicos, antes perseguidos pelos comunistas, agora começaram a usar a retórica antiocidental deixada em seu subconsciente pela lavagem cerebral da propaganda comunista.

O messianismo de algumas nações e Igrejas locais, legado do romantismo (não apenas na Polônia e na Rússia), também desempenhou um papel. O conceito de serem “os escolhidos” (as imagens do Messias sofredor e de um povo sofredor) ajudou as Igrejas a sobreviver em tempos de perseguição; mas, após a queda do comunismo, quando as tristes consequências da perseguição e do isolamento se tornaram aparentes, essas autoimagens se tornaram uma compensação para o complexo de inferioridade sentido em relação ao Ocidente.

A suposição de que a Igreja havia dormido durante o Concílio Vaticano II e as suas reformas durante o comunismo era apenas parcialmente verdadeira. Lembro-me com gratidão dos meus mestres na fé, que passaram longos anos em prisões e campos de concentração nazistas e depois comunistas ou em trabalhos forçados em minas de urânio. Lá eles experimentaram um “ecumenismo concreto” – proximidade e fraternidade não apenas com cristãos de outras Igrejas, mas também com humanistas seculares e até mesmo com marxistas não conformistas.

Alguns deles, no espírito dos profetas, abraçaram os anos de perseguição como uma lição divina, uma purificação da Igreja em relação ao seu triunfalismo inicial. Na prisão, eles sonharam com uma futura forma da Igreja – uma Igreja ecumênica, aberta, pobre e servidora. Quando foram libertados da prisão no fim dos anos 1960, eles abraçaram as reformas do Concílio com entusiasmo e as entendendo como um desafio dado por Deus. Eles introduziram a mim e a muitos outros no espírito do Concílio Vaticano II. Eu me sinto pessoalmente obrigado a ser fiel ao testemunho deles.

A grande maioria dos padres e bispos, no entanto, não teve acesso à literatura teológica contemporânea e não teve essas experiências. Não conhecendo o contexto intelectual, eles não podiam entender completamente a mensagem e o significado do Concílio. As reformas frequentemente permaneceram superficiais e puramente formais – o altar foi virado, a língua nacional foi introduzida na liturgia. Mas a mentalidade não mudou.

Do catolicismo à catolicidade

Os esforços do Concílio para passar “do catolicismo à catolicidade”, para acabar com a fútil guerra cultural com o mundo moderno e, acima de tudo, para abandonar uma compreensão clerical da Igreja permaneceram incompreendidos e não realizados em grande parte da Igreja sob o domínio comunista. Convinha aos regimes comunistas preservar o modelo clerical da Igreja: em muitos países, os padres eram funcionários do Estado comunista e podiam ser manipulados pelo Estado mais facilmente do que os leigos.

A situação em cada país era e é diferente. A secularização dura durante o comunismo e a “secularização suave” na era pós-comunista ocorreram e estão ocorrendo com intensidade variável. Em alguns países, paradoxalmente, a perseguição comunista trouxe à tona um renascimento da religiosidade, embora de curta duração.

Na Boêmia, a parte ocidental da República Tcheca de onde eu venho, a secularização cultural vinha ocorrendo desde o fim do século XIX como resultado da industrialização, da urbanização e de um bom sistema educacional; durante o comunismo, os stalinistas escolheram a Boêmia – provavelmente por causa da sua dramática história religiosa e tradição de anticlericalismo – como um terreno adequado para uma tentativa de criar uma sociedade totalmente ateia.

Mas, depois de um breve renascimento religioso antes e depois da queda do comunismo, quando a Igreja gozava de uma grande simpatia na sociedade, a Igreja se mostrou incapaz de responder adequadamente aos desafios da nova era. Outra onda de “secularização suave” chegou.

Na vizinha Polônia, a situação era bem diferente. Até recentemente, a religiosidade popular – a Volkskirche – tinha sua biosfera sociocultural em uma sociedade predominantemente agrária. O catolicismo era entendido – ao contrário da Boêmia – como parte da identidade nacional. Durante a primeira visita de João Paulo II à sua terra natal em 1979, após sua eleição como papa, ficou claro que a Igreja tinha uma influência moral, psicológica e política muito maior na Polônia do que o governo comunista.

O momento crucial ocorreu apenas no momento da morte de João Paulo II – a Igreja agora enfrentava a tarefa de redescobrir Cristo e o Evangelho por trás do ícone do santo papa polonês. A infeliz aliança de alguns bispos com o atual governo populista e nacionalista prejudicou a Igreja na Polônia muito mais do que meio século de perseguição comunista.

A atual onda de revelações de uma pandemia de abusos na história distante e recente causou um terremoto na Igreja polonesa. O abuso sexual era apenas um aspecto do problema. A menos que a Igreja polonesa consiga agora entender a crise atual como um kairós e um chamado a reformas profundas, a menos que a Igreja revele à sociedade polonesa – e especialmente à geração mais jovem – uma faceta diferente do cristianismo, o processo de secularização na Polônia será ainda mais radical do que na Espanha e na Irlanda.

O atual “escândalo das indulgências”

A crise dos abusos sexuais não é marginal. Hoje, o escândalo do abuso está desempenhando um papel similar ao desempenhado pelos escândalos das indulgências que aceleraram a Reforma na Alta Idade Média. O que em princípio parecia um fenômeno marginal, revela hoje – como então – um problema muito mais profundo. O sistema inteiro está doente: as relações entre a Igreja e o poder político e as relações entre o clero e os leigos, entre muitas outras.

A situação da Igreja Católica hoje se assemelha fortemente à situação pouco antes da Reforma. A Igreja precisa de uma reforma profunda. Se a limitarmos a mudanças institucionais, a reforma permanecerá superficial e poderá levar ao cisma. Precisamos nos inspirar na Reforma católica do século XVI – a sua essência foi um aprofundamento da espiritualidade em toda a Igreja (pensemos no papel desempenhado por místicos como Teresa d’Ávila, João da Cruz e Inácio de Loyola), mas esse período também viu o surgimento de um estilo mais pastoral de ministério episcopal e presbiteral (pensemos em Carlos Borromeu e muitos outros). É necessário não apenas mudar as estruturas, mas também mudar a mentalidade, mudar a cultura das relações dentro da Igreja.

Muitas reformas na Igreja no passado ocorreram apenas após trágicos atrasos. No século XIX, a Igreja perdeu a classe trabalhadora. No início do século XX, cometeu uma autocastração intelectual em uma luta contra o chamado “Modernismo”, que levou à perda de grande parte da intelectualidade e de muitas personalidades proféticas. Nos anos 1960, ela perdeu uma grande parte da geração mais jovem. E agora – na era de uma nova autocompreensão da dignidade das mulheres – ela está perdendo as mulheres. Os esforços do Concílio Vaticano II para chegar a um acordo com o mundo moderno também chegaram tarde demais. Embora a modernidade tenha atingido o seu pico nos anos 1960, ela acabou logo depois.

O Concílio não preparou as Igrejas para a era pós-moderna. Hoje, todo o contexto sociocultural mudou. As Igrejas perderam o seu monopólio sobre a religião. A secularização não destruiu a religião, mas a transformou. O principal concorrente da Igreja hoje não é o humanismo secular, mas as novas formas de religião e espiritualidade que se emanciparam da Igreja.

A Igreja está tendo dificuldade para encontrar o seu lugar em um mundo radicalmente pluralista. E as Igrejas marcadas pelo seu passado comunista estão tendo dificuldade para se orientar nesse mundo.

Obsessão neurótica”

A Igreja reagiu à revolução sexual dos anos 1960 com um pânico moral. A ênfase na moral sexual tornou-se o tema dominante da pregação, e uma lacuna se abriu entre a doutrina da Igreja e a vida de muitos católicos, incluindo padres. Nenhum tema era tão frequentemente discutido pela Igreja quanto o sexo. O Sexto Mandamento muitas vezes vinha em primeiro lugar nos sermões.

O Papa Francisco teve a coragem de chamar isso pelo nome: “obsessão neurótica”. E à medida que o escândalo dos abusos se desenrolava, a reação dentro e fora da Igreja a essas leituras morais foram, naturalmente, um furioso e indignado: “Enxerguem-se!”. A Igreja chegou tarde – talvez tarde demais – para começar a enfrentar essa hipocrisia e esse escândalo dentro das suas fileiras, e muitas vezes apenas em resposta à exposição por parte da mídia secular do abuso e do seu encobrimento.

O que me preocupa é que muitos seminários (especialmente em países pós-comunistas) não oferecem aos candidatos ao sacerdócio uma preparação espiritual e psicológica suficiente para uma vida de celibato. Esta deve incluir uma discussão honesta sobre a homossexualidade, incluindo a orientação homossexual de muitos padres.

Alguns padres lidam com a sua sexualidade por meio de um mecanismo de projeção: as vozes mais beligerantes contra a homossexualidade no sacerdócio frequentemente são de padres de orientação homossexual. A Igreja pagou o preço por ter resistido por muito tempo às intuições da cosmologia, da teoria da evolução e da crítica literária e histórica na exegese bíblica; ela não deveria repetir esses erros, ignorando as intuições da neurofisiologia em sua abordagem à homossexualidade e da antropologia cultural em sua compreensão do desenvolvimento da vida familiar.

“Este tempo não é apenas uma época de mudança, mas uma mudança de época”, disse o Papa Francisco. Os papéis da religião e das Igrejas nas sociedades e culturas estão mudando radicalmente. A secularização não causou o fim, mas sim a transformação da religião. O processo culminante da globalização está encontrando resistência: populismo, nacionalismo e fundamentalismo estão em ascensão.

O nosso mundo está cada vez mais interconectado e, ao mesmo tempo, dividido. A comunidade cristã global também está cada vez mais dividida – mas as maiores divisões hoje não são entre as Igrejas, mas dentro delas. Eu vi as igrejas fechadas e vazias durante a pandemia do coronavírus como um sinal de alerta profético: em breve, esse pode ser o estado da Igreja, se ela não passar por uma reforma profunda.

Communio viatorum

A crise dos abusos é apenas um aspecto da crise do clero como instituição, da crise da Igreja e da crise da fé. Essa crise só pode ser superada por uma nova compreensão do papel da Igreja na sociedade contemporânea – a Igreja como “povo peregrino de Deus” (communio viatorum), a Igreja como “escola de sabedoria cristã”, a Igreja como “hospital de campanha” e a Igreja como lugar de encontro, partilha e reconciliação.

Devemos enfrentar essa crise sem medo ou pânico, com confiança no Senhor da história. A solução pressupõe uma análise espiritual calma e abrangente, um discernimento espiritual.

De acordo com uma antiga lenda tcheca, o construtor de uma igreja gótica em Praga ateou fogo à estrutura de madeira quando a construção foi concluída. Quando o fogo foi acendido, e os andaimes caíram no chão em chamas com um rugido, o construtor sucumbiu ao pânico e cometeu suicídio, acreditando que o seu edifício havia desabado.

Penso que muitos cristãos que estão em pânico neste tempo de mudança estão cometendo um erro semelhante. O que está desabando pode ser apenas um andaime de madeira; quando ele queimar, o edifício da igreja certamente ficará chamuscado pelo fogo, mas o essencial, que há muito tempo estava encoberto, será revelado.

Em meus 43 anos de ministério presbiteral, ouvi dezenas de milhares de confissões. Durante muitos anos, além do Sacramento da Penitência, eu tenho oferecido “aconselhamento espiritual”, que é mais longo e profundo do que a forma ordinária do sacramento permite. Essas conversas também são solicitadas muitas vezes por “buscadores espirituais” não batizados.

Eu expandi a minha equipe de colaboradores para esse ministério, para incluir leigos formados em Teologia e Psicoterapia. Acredito firmemente que o “acompanhamento espiritual” será a tarefa pastoral mais importante da Igreja nos tempos vindouros.

É também o ministério no qual eu mesmo mais aprendi, no qual houve uma certa transformação da minha teologia e da minha espiritualidade, da minha compreensão da fé e da Igreja. Quando meu bispo, o arcebispo de Praga, se recusou resolutamente a falar com as vítimas de abuso sexual clerical (incluindo membros do mosteiro do qual ele era superior na época) e as encaminhou à polícia, eu tive longas conversas noturnas com muitos deles.

Depois disso, muitas vezes eu mesmo não conseguia dormir até de manhã. Eu não ficava sabendo muito mais do que já havia sido denunciado. Mas olhava para esses homens e mulheres nos olhos e segurava as suas mãos quando eles choravam. Era muito diferente de ler as suas declarações nos documentos dos tribunais.

Espaço de verdade, cura e libertação

Eu trabalhei durante anos como psicoterapeuta e sei da proximidade e da interação da dor mental e espiritual, mas isso era algo diferente da mera psicoterapia; eu sentia ali a presença de Cristo com todo o meu coração, de ambos os lados: nos “pequeninos, nos doentes, nos presos e nos perseguidos” e também no ministério da escuta, da consolação e da reconciliação que eu podia oferecer a eles.

Costumo voltar a um breve relato, que é uma espécie de minievangelho no meio do Evangelho de Mateus, a história de uma mulher que sofria de uma hemorragia durante 12 anos, buscou muitos médicos, gastou toda sua fortuna em tratamentos, mas nada ajudava.

De acordo com as autoridades religiosas da época, uma mulher sangrando estava ritualmente impura, não tinha permissão para participar de um rito religioso, e ninguém tinha permissão para tocá-la. O desejo compulsivo da mulher pela intimidade humana, pelo toque humano, levou-a ao ato de quebrar o isolamento obrigatório: ela tocou Jesus. Ela o tocou anonimamente, por trás, tentando permanecer escondida na multidão.

Mas Jesus não queria que ela fosse curada dessa forma. Ele procurou o rosto dela. A mulher se apresentou e, após anos de esconderijo e isolamento, ela pôs em prática aquilo que o seu corpo vinha dizendo – na linguagem do sangue e da dor – prostrando-se diante dele e “contando toda a verdade” diante de todos. E, naquele momento de verdade, ela foi libertada da sua doença.

Eu sonho com uma Igreja que crie um espaço seguro – um espaço de verdade – que cure e liberte. A minha sincera esperança é que esta conferência contribua para a realização desse sonho.

Antonino Infranca

O MARX DE ENRIQUE DUSSEL

"O sistema capitalista dominante é substancialmente um sistema formal que, de facto, é baseado em preços e exclui o momento material da vida humana, e na qualidade de sistema formal é autorreferente. Não é por acaso que o neoliberalismo funda sua ideologia no mercado capitalista e não tem nenhuma postura crítica em relação a ele", escreve Antonino Infranca, doutor em filosofia pela Academia Húngara de Ciências, em artigo publicado de A terra é redonda. A tradução é de Juliana Hass /IHU

Enrique Dussel é considerado o maior conhecedor de Marx no mundo, embora venha do assim-chamado “Terceiro Mundo”; sua leitura vem, em particular, da América Latina, que historicamente foi a primeira vítima do capitalismo, aliás, pode-se afirmar que sem a conquista da América Latina o capitalismo não poderia ter nascido, porque essa conquista ofereceu a quantidade de metais preciosos para desencadear o mecanismo de acumulação primitiva do capital, para usar a terminologia de Marx.

Para compreender a Modernidade é necessário, portanto, partir da condição de vítima da América Latina. Será, então, uma leitura não eurocêntrica, porque é conduzida pela exterioridade do Primeiro Mundo que, com a queda do socialismo, decretou a morte do marxismo. Mas Dussel faz uma simples observação: o socialismo entrou em colapso na Europa, não no Terceiro Mundo, ou seja, em Cuba, na China, no Vietnã, logo, na periferia. Além disso, os estudos marxistas na América Latina estão em grande desenvolvimento e Dussel é o líder desse desenvolvimento, quer dizer, atrás dele o pensamento crítico avança e o marxismo contribui para o trabalho de descolonização da filosofia, um tema que tem pouquíssima repercussão na Europa.

O outro motivo decisivo é a maneira que Dussel conduz sua leitura de Marx; sua leitura é conduzida no estilo dos intérpretes escolásticos de Aristóteles, em outras palavras, linha a linha. Por várias vezes Dussel afirma que ninguém antes dele realizou uma leitura tão detalhada de todos os textos do filósofo alemão, inclusive os inéditos, que Dussel leu nos arquivos de Amsterdã e de Moscou. A descoberta mais interessante que Dussel fez é que Marx reescreveu O Capital quatro vezes e, em cada reescrita, sempre surgem novidades fundamentais na sua obra de crítica da economia política. É sugestivo poder reler Marx à maneira de Dussel, porque o trabalho crítico do filósofo alemão torna-se um work in progress, uma espécie de descrição crítica da essência do modo de apropriação capitalista. Essa descrição torna-se uma crítica, porque não esconde a verdade histórica do modo de apropriação capitalista que é feito de injustiça e de morte.

Dussel definiu Marx como “um filósofo do século XXI”, porque pelo menos 50% de seus textos ainda são inéditos. O resultado dessa leitura é a reproposta de um Marx totalmente original, por ser autêntico e desprovido das incrustações ideológicas ou epistemológicas que o distanciaram da autenticidade dos textos. Assim, cai o Marx dos manuais soviéticos de economia política, que eram considerados verdadeiros manuais dogmáticos a serem seguidos literalmente, enquanto a carta de Marx conduzia em direções exatamente opostas.

Dussel indica o ponto crucial em que o Marx dos soviéticos não corresponde ao Marx autêntico, que não condenava o mercado em sua totalidade, mas sustentava que a produção das mercadorias deve estar ligada ao consumo, à troca e à distribuição, não era possível decidir de cima o que se deveria consumir e, portanto, o que trocar e distribuir, mas consumo, troca e distribuição devem ser planeados “de baixo” – a partir das necessidades vitais da sociedade civil.

Além disso, Marx não falou de “modos de produção”, mas de “modos de apropriação”, isto é, do mundo em que um sistema econômico, como o capitalismo ou o feudalismo e assim por diante, se apropria da fonte criativa do valor, isto é, o trabalho vivo, a subjetividade que trabalha. A história, então, não é história dos modos de produção, mas dos modos de apropriação do trabalho e da subjetividade do trabalhador pelo sistema dominante de cada época. Segundo Dussel, a crítica de Marx parte justamente da subjetividade do trabalhador, de sua corporeidade e, portanto, desenvolve uma crítica econômica material.

Um aspecto de Marx sobre o qual Dussel se debruça é a oposição entre trabalho social e comunitário. Social é o trabalho de um indivíduo que se dirige ao mercado social e é dirigido de fora, ou seja, por um administrador que não trabalha com ele, enquanto comunitário é o trabalho de toda uma comunidade, não apenas trabalho solidário, mas coletivo, como é típico das sociedades pré-capitalistas, especialmente da América Latina. O capitalismo impõe o trabalho social e o socialismo seria o estágio em que o trabalho comunitário é submetido ao controle dos indivíduos livres, associados enquanto possuidores em comum dos meios de produção. Desse modo, os produtores decidem as formas do processamento em comum e, então, da produção, sem qualquer controle externo ao âmbito do trabalho. Pode-se, portanto, notar como o socialismo alcançado esteve longe das ideias de Marx, embora não tenham dado amplas indicações, mas apenas princípios reguladores a serem respeitados na construção do socialismo.

O outro aspecto da autenticidade de Marx, que foi negada de várias maneiras tanto pelos manuais soviéticos quanto pelos brilhantes filósofos ocidentais, é sua relação muito próxima com Hegel. De fato, muitas vezes nas conferências que compõem este livro, Dussel insiste na relação Hegel-Marx, no uso que Marx faz das categorias, do léxico e do método hegelianos. No modo de apropriação capitalista, um papel central é desempenhado pela negação, assim como na dialética hegeliana. A relação entre produção e consumo também é dialética: na origem existe uma necessidade vital do ser humano, que produz o material que permite a satisfação dessa necessidade. É, portanto, uma determinação vital na origem da produção do trabalho e o consumo é a negação da necessidade, satisfazendo-a. Dussel lembra que as determinações de Marx são sempre materiais, derrubando as hegelianas que eram ideais.

Dussel sustenta que Marx derrubou o método hegeliano, colocando o não-ser no início do ser e tornando-o o núcleo racional de sua análise crítica. De fato, ao contrário de Hegel, Marx pensa que o não-ser é real, ou seja, o trabalho vivo, ou a capacidade de trabalho, é a fonte criativa do valor, não o seu fundamento, porque o fundamento é o ser, mas o trabalho vivo ainda não é capital, é força/trabalho que pertence ao ser humano, que se vê obrigado a vendê-la no mercado, porque é pobre e não tem meios de produção para reproduzir a própria vida. O trabalho vivo é o não-ser do capital.

A reprodução da vida do pobre é confiada ao trabalho, que é atividade vital; aliás, Dussel afirma que o trabalho é “atualidade da vida”. O dinheiro, que ainda não é capital, procura justamente o pobre para comprar sua força/trabalho. Mas o pobre com sua capacidade de trabalho é o não-ser do capital. Existe, portanto, um contrato entre dinheiro e trabalho, entre capital e pobre. O pobre é subsumido de fora do capital, dentro do modo de produção do capital; sua força/trabalho é apropriada pelo capital. Se não houvesse pobres, o capital e sua reprodução não poderiam existir. A pobreza é a vida do capital, porque quando o dinheiro coloca em contato força/trabalho, ferramentas de trabalho e matéria-prima, então pode nascer o valor, que é, portanto, um ser, um processo que nasce do não-ser do capital.

Valor é o não-ser da capacidade de trabalho, mas dela é criado. O capital se realiza na medida em que o trabalhador se desrealiza. O valor é a objetivação de trabalho, de vida humana e qualquer processo econômico é vida humana objetivada, ou seja, negada. Aqui está o ponto central das polêmicas que acompanham a releitura dusseliana de Marx: a vida! A vida é o princípio material fundamental de toda ética. A validade de uma norma ética se dá por sua capacidade de participar da reprodução da vida, se não participa da reprodução da vida não é válida.

Dussel foi acusado por todos os intérpretes althusserianos de Marx de ser um místico, porque ele constantemente leva adiante a presença do tema da vida nas obras econômicas de Marx. Mesmo na Itália essas polêmicas foram difundidas, embora em menor grau, porque os italianos, particularmente eurocêntricos, não se dedicam à leitura de autores da Periferia, esperam as instruções do Centro (Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra), condenando-se, assim, a ser Periferia. De fato, é difícil para acadêmicos eurocêntricos aceitar que os termos teológicos, usados por Marx, com perfeita correspondência semântica, não sejam metáforas, mas a derivação de sua crítica da economia política da teologia judaico-cristã.

Na realidade, Dussel é o único caso de um grande pensador que com a queda do socialismo passou para o marxismo. Dussel pode dizer que não foi marxista até os 40 anos. Depois, ele descobriu os pobres da América Latina e tentou entender a origem dessa pobreza e só Marx lhe oferecia os instrumentos teóricos para a compreensão da realidade de sua terra. São instrumentos teóricos críticos, por isso são eficazes para entender a crescente pobreza na América Latina.

Um papel importante na releitura dos textos de Marx por Dussel é desempenhado pela Teoria da dependência. Trata-se de uma teoria nascida na América Latina, mas que hoje diz respeito a toda Periferia do mundo, aliás, diz respeito às relações totais entre o Centro e a Periferia. A Teoria da dependência descreve a transferência de valor da Periferia para o Centro, transferência que cria a dependência dos países periféricos em relação aos centrais. Uma empresa do Centro transfere parte de sua produção para um país periférico, atraída pelo baixo custo da mão de obra daquele país. Os salários pagos aos trabalhadores do país periférico são devolvidos em valor produzido nas mercadorias em menos tempo do que os trabalhadores da mesma empresa no país central. Assim, a empresa aumenta seu lucro.

O importante é realocar a produção para os países periféricos, pagando salários de países periféricos, mas vendendo as mercadorias pelo preço que têm no país central. Outra forma de transferência de valor é representada pelos empréstimos que o Centro concede à Periferia. No caso da América Latina, esses empréstimos foram inicialmente solicitados por ditaduras militares e, então, impostos pelo Centro. Hoje, os empréstimos são dentro das mesmas empresas entre a central e as periféricas. Outra forma de dependência é a tecnológica: o Centro exporta sua tecnologia para a Periferia ao preço do Centro. A Periferia necessita dessa tecnologia para poder produzir mercadorias que possam ser vendidas no Centro, ou seja, tenta competir com as indústrias do Centro.

Na verdade, está comprando as ferramentas de produção a preços altos e vendendo a baixo custo suas mercadorias, quer dizer, transfere valor, que é a vida objetivada, para o Centro. Está exportando vida, porque exporta valor e não pode acumular valor para melhorar as condições de vida de seus pobres. A Teoria da dependência explica, assim, o elevado número de pobres na América Latina ou na Periferia do mundo, onde os pobres são a esmagadora maioria dos seres humanos. Esses pobres nem mesmo são uma classe, porque não são subsumidos pelo capital no processo de produção, são povo, ou seja, têm a própria cultura tradicional, mas não têm os meios para reproduzir a própria vida, são marginalizados e excluídos do sistema capitalista dominante.

A Ética da Libertação de Dussel nasce da releitura de Marx, pode ser considerada, portanto, uma ética marxista. A de Dussel é um caminho paralelo ao de Lukács, o maior filósofo marxista do século XX. Lukács, além de apoiar a estreita relação entre Hegel e Marx, planejava escrever uma ética, mas sua morte impediu a realização dessa ética marxista, porém o século XX terminou justamente com uma ética marxista, a de Dussel, que é uma ética materialista, precisamente porque tem como princípio a vida material do ser humano e sua exploração pelo capital. Dussel argumenta que o uso da rate of explotation (taxa de exploração) por Marx é a revelação da existência de sua ética associada à sua crítica da economia política que, por sua vez, está associada a uma antropologia, uma consciência da exploração das capacidades vitais do ser humano.

O tema da vida é recorrente nas obras de Marx e Dussel, e pode ser retomado com uma leitura filologicamente correta. O trabalho vivo foi mencionado como fonte criativa de valor, então, o trabalho vivo é também fonte criadora de valores morais e é a isso que Lukács se referia nos esboços de sua ética. Segundo Dussel, Marx faz uma crítica ética do capitalismo, pois remete as categorias da economia à fonte criativa dela, que é o trabalho vivo, e não reconhece valor no capital, o qual não produz valor. A produção de valor é o trabalho vivo do ser humano. A moral capitalista, ao contrário, sustenta que o fundamento do valor é o capital e o ser humano é reduzido a coisa, a meio da produção do lucro.

Para Dussel, leitor atento de Marx, o trabalho vivo é antes de tudo o meio para a satisfação das necessidades do ser humano vivente, de todas as necessidades do ser humano, tanto materiais quanto espirituais. Mas todas as necessidades do ser humano são necessidades corporais e naturais, até as necessidades espirituais dizem respeito ao corpo do homem, porque o homem é naturalmente um animal espiritual. Não é possível ter uma vida espiritual digna se passar fome; aliás, a fome é a oposição entre corpo e espírito. Assim, o estranhamento da atividade espiritual do ser humano corresponde à alienação do trabalho vivo, da capacidade corpórea de trabalho do ser humano. As duas formas de desumanização estão intimamente ligadas e indissociáveis, pois corpo e espírito são inseparáveis no ser humano. Esse é o aspecto material da ética de Dussel, que ele apreende de Marx e dele retoma também o caráter universal dessa ética, porque Marx não elaborou uma teoria crítica válida apenas para a Europa, mas para toda a humanidade.

O marxismo de Dussel se baseia justamente na consciência que Marx tinha da preeminência da vida sobre a morte, da necessária reprodução do corpo e do espírito do ser humano. A fome e a pobreza são sofrimento. Marx estava ciente desse sofrimento, assim como o fundador do cristianismo, que era um ser humano que tinha medo da morte (Jesus no jardim Getsêmani), enquanto o fundador da civilização ocidental, Sócrates, não tinha medo da morte. Há, portanto, uma dialética vida/morte e, de fato, Marx capta essa dialética quando fala de trabalho vivo e capital morto. O capitalismo reproduz esse dualismo da civilização ocidental: a força/trabalho do trabalhador está dentro do sistema como a força reprodutiva do sistema, suas necessidades estão fora do sistema, elas só entram nele como fonte de consumo fetichista das mercadorias.

A análise crítica de Dussel parte de uma perspectiva externa ao sistema capitalista dominante, daquela exterioridade na qual ele insiste constantemente. É uma perspectiva presente para Marx, aliás, é a mesma que a de Marx, se tivermos em mente o fato de que Marx só pôde compreender totalmente o capitalismo mudando-se para a Inglaterra, isto é, em contato físico direto com a classe operária, a vítima do capitalismo. Do ponto de vista da exterioridade e da exclusão, Marx e Dussel – este como latino-americano – podem compreender a totalidade do sistema capitalista dominante. Dussel observa acertadamente que os intelectuais marxistas do Centro falaram de totalidade, mas cada totalidade impõe uma exclusão e, portanto, uma exterioridade, à qual se contrapor uma subsunção. Dussel usa sua própria tradução do termo alemão Aufhebung com subsunción, que traduzi literalmente como “subsunção”. Mas o sub da palavra espanhola não deve ser entendido apenas como “estar abaixo”, mas como “aquilo que surge de baixo e o constitui como parte”, como parte integrante e necessária para a constituição do sistema de dominação. De fato, o trabalho vivo é a exterioridade do capital e quando entra no sistema capitalista torna-se trabalho assalariado. As categorias econômicas se transformam na dependência de seu movimento em perfeita sintonia com o método dialético hegeliano.

O sistema capitalista dominante é substancialmente um sistema formal que, de fato, é baseado em preços e exclui o momento material da vida humana, e na qualidade de sistema formal é autorreferente. Não é por acaso que o neoliberalismo funda sua ideologia no mercado capitalista e não tem nenhuma postura crítica em relação a ele; aliás, o neoliberalismo preconiza uma consciência universal do mercado, que é, na verdade, uma abstração da vida real. O mercado universalizou o mundo, mas não universalizou a humanidade. O mercado capitalista está inserido entre o trabalho vivo do ser humano e a satisfação de suas necessidades, ou seja, a reprodução da vida. Na sociedade capitalista moderna, os meios para satisfazer as necessidades são encontrados apenas no mercado, e é precisamente nessa intermediação que ocorre a reificação das necessidades e a fetichização das mercadorias. O mercado é a determinação negativa da força/trabalho como atualidade da vida e a determinação vital da necessidade humana e sua substituição pelo consumo mercantilizante.

Quem não tem dinheiro para ir ao mercado satisfazer suas necessidades está fora do mercado, excluído dos meios de satisfazer as próprias necessidades, é um pobre marginalizado pela moderna sociedade capitalista. O grande problema da humanidade, hoje, é que a maioria da humanidade está excluída do mercado, porque não tem dinheiro. Vale lembrar que Dussel está falando para um público latino-americano, portanto composto por índios, negros, mulatos, mestiços, além de brancos crioulos, que buscam sair do estado de pobreza para colaborar para a melhoria de toda a sociedade civil latino-americana, como é tradição das sociedades latino-americanas, onde o pobre, quando não é completamente anulado pela fetichização das mercadorias e do dinheiro, sempre se coloca na perspectiva de colaborar com os outros para todos melhorarem juntos. Trata-se de um público que sabe o que significa ser pobre.

Erio Castellucci

REFAZER OS PADRES, REPENSANDO OS SEMINÁRIOS

Uma reavaliação do seminário (encontrando talvez outro nome) pode fazer sentido no contexto de uma reavaliação mais global da pastoral do exercício do ministério: são necessárias escolhas corajosas e impopulares, por parte das dioceses e dos seus pastores (esse é o famoso tiro no pé), para simplificar as estruturas, aliviar com dietas adequadas o peso burocrático, administrativo e gerencial que paira sobre os párocos, relançar de maneira sinodal os órgãos de participação, rever o sentido de algumas expressões religiosas tradicionais, que algumas vezes perderam a sua alma cristã.” Publicamos aqui o texto introdutório ao livro “Rifare i preti. Come ripensare i seminari” [Refazer os padres. Como repensar os seminários] (Bolonha: EDB, 2021, 191 páginas), de Enrico Brancozzi. O autor do livro é reitor do Seminário de Fermo, na Itália, e leciona disciplinas teológicas no Instituto Teológico Marchigiano. A introdução foi escrita por Erio Castellucci, arcebispo de Modena-Nonatola, bispo de Carpi e vice-presidente da Conferência Episcopal Italiana, e publicada em Settimana News. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Mais do que antecipar as numerosas, motivadas e provocativas reflexões que Enrico Brancozzi apresenta no livro “Rifare i preti. Como ripensare i seminari” (EDB), a serem seguidas atentamente, tento oferecer uma pequena contribuição prática. De fato, ao ler este livro, reforcei, corrigi e articulei melhor na minha mente uma hipótese de “reforma dos seminários” que há pelo menos oito anos venho propondo em diversos âmbitos.

É sempre perigoso ler um texto para encontrar confirmações das próprias teses anteriores: muitos fazem isso com o magistério pontifício, selecionando aquilo que lhes dá razão e se sentindo, assim, confirmados naquilo que pensam. Alguns também fazem isso com os escritos dos bispos. Eu me perguntei se não estava tratando este livro do mesmo modo. Mas corro o risco e relanço, em edição recebida e corrigida – à luz do estudo do autor –, aquela simples hipótese, que aliás envolve muitas variantes. Acima de tudo, tento entrar nas vestes de um jovem que faz a formação no seminário, com os seus desejos e os seus temores. A casuística obviamente seria vasta.

Ministério e normalidade

Imagino um jovem sincero nas intenções, não problemático demais, sadio de mente: “normal”, em suma. O desejo de ser padre lhe deriva de uma experiência cristã que o fez perceber a beleza da fé, o fez descobrir a alegria de pertencer a Cristo e, portanto, mesmo em meio às dificuldades, também a possibilidade de uma humanidade dedicada a acompanhar outros caminhos, a construir comunidades cristãs.

Os temores, que se desenrolam gradualmente no seu itinerário formativo, focalizam-se na tenacidade dos padres, dadas também as crises que ele reconhece, tanto de alguns que abandonam o ministério quanto de outros que o vivem de forma incoerente, lamuriosa e insatisfeita.

A esse temor de base estão ligados outros, em um emaranhado de causas e de efeitos nem sempre fáceis de destrincar, que, no jovem, também se despertam diante do ministério e da vida de padres dedicados e comprometidos: o perigo de ter que se consumir no futuro para manter estruturas mais do eu para anunciar o Evangelho; o risco de se refugiar em uma pastoral tradicional, que apaga o entusiasmo e se move nos trilhos do “sempre se fez assim”; as incógnitas da gestão do tempo, que às vezes comprime a oração e o descanso em um ativismo exagerado; as dúvidas sobre a qualidade do próprio celibato, dentro de uma rede de relações que tende a ser muito ampla, mas também muitas vezes superficial e funcional; dúvidas acentuadas pelo drama da pedofilia também entre as fileiras do clero.

Pode ocorrer que os temores desse jovem se tornem pouco a pouco mais fortes do que os desejos: então, ele decide sair do seminário, ou continuar, iludindo-se que ele será uma feliz exceção ou, de todos os modos, terá a possibilidade de esculpir um ministério à sua própria medida.

Evidentemente, não estou falando da maioria dos seminaristas, nem mesmo acredito que esses sentimentos – desejos e temores – se concentrem todos na mesma pessoa. Mas os encontros dessas quatro décadas com tantos jovens em formação para o presbitério e depois com tantos padres jovens me fizeram muitas vezes refletir sobre as causas das crises, no tempo do seminário e no do ministério.

A crise e o ministério

Certamente, “crise” não é por si só uma palavra negativa e, em vez disso, em muitos aspectos, é necessária para crescer. “Crise” é discernimento, confronto com a realidade, desencanto, amadurecimento. E afeta todos os cristãos ou, melhor, todos os seres humanos. A questão não é a existência da crise, mas a sua interpretação e a sua gestão.

Na proximidade do Sínodo de 1971, dedicado (também) ao sacerdócio ministerial, quando apareceu a expressão “crise de identidade do padre” – expressão ausente no Concílio –, pretendia-se assinalar a dificuldade de fundamentar teologicamente um ministério ordenado com base no “caráter indelével”; em outras palavras, era uma crise de identidade teológica, embora os seus efeitos – que afetavam a opinião pública, mais interessada no noticiário do que na teologia – fossem de caráter espiritual, pastoral e social.

Eram os anos do abandono em massa do ministério, muitas vezes com um certo clamor midiático e algumas fortes contestações contra as hierarquias eclesiásticas; eram os anos em que os seminários começavam decisivamente a se esvaziar, também na Itália, primeiro os menores e depois os maiores.

Se a opinião pública discutia, certamente não era para esclarecer os verdadeiros temas que estavam na base da crise, ou seja, a relação entre dimensão cristológica e eclesiológica do ministério, os fundamentos da sucessão apostólica ou a origem da teologia do caráter; era antes para se perguntar sobre o valor do celibato eclesiástico e o sentido da limitação da ordenação apenas aos homens. Foi uma crise que se desenvolveu debaixo dos olhos de todos, tanto pelos grandes números quanto pela enorme ressonância.

Essa crise terminou? Em 1992, João Paulo II, no número 11 da exortação Pastores dabo vobis, recordando os trabalhos do Sínodo de dois anos antes, demonstra-se bastante otimista e fala de uma saída da crise. Na opinião dele, seguindo o caminho de um “reto e aprofundado conhecimento da natureza e da missão do sacerdócio ministerial”, os Padres sinodais lançaram as bases “para sair da crise sobre a identidade do sacerdote”.

Ele mesmo, quando ainda era o bispo Karol Wojtyla, havia escrito um artigo perto do Sínodo de 1971, no qual reconstruía a origem e o uso da expressão “crise de identidade do padre”. Ele era, portanto, há muito tempo, um atento observador do fenômeno. Mas talvez nesse parágrafo da Pastores dabo vobis ele se demonstrou excessivamente otimista à luz dos desdobramentos subsequentes.

De facto, a crise certamente não terminou. Hoje ela assume formas menos impressionantes, quase “privadas”, mas não menos preocupantes. Absolutamente não estão em queda os pedidos de dispensa do ministério presbiteral e continua diminuindo na Itália o número dos seminaristas: dois indicadores muito claros de uma crise que continua se fazendo sentir. Não é mais um navio que se move fazendo as sereias cantarem; é um submarino que viaja quase sem ser notado, mas os efeitos mesmo assim são tangíveis. A ressonância nacional geralmente é reservada aos casos de imoralidade escancarada; mas, localmente, despontam muitas situações de crise pessoal.

Uma formação aderente à realidade contemporânea

O livro de Brancozzi discute em detalhes o elemento que certamente está na base dessas dificuldades e de muitas outras: o fim da cristandade também na Itália. Porém, não penso tanto no fato em si, por mais problemático que seja – um tema que se abriria a discussões infinitas sobre a autenticidade da chamada “época cristã”, sobre a interpretação da secularização e assim por diante –, mas sim na fadiga geral da Igreja italiana, e não só, para reconhecer criativamente o fim da cristandade.

Com a sua habitual perspicácia e parrésia, o Papa Francisco, no discurso de felicitações à Cúria Romana antes do Natal de 2019, disse incisivamente: “Irmãos e irmãs, não estamos na cristandade, não mais! Hoje, não somos mais os únicos que produzem cultura, nem os primeiros, nem os mais ouvidos. Precisamos, portanto, de uma mudança de mentalidade pastoral, que não significa passar para uma pastoral relativista. Não estamos mais em um regime de cristandade, porque a fé – especialmente na Europa, mas também em grande parte do Ocidente – não mais constitui um pressuposto óbvio da vida em comum, pelo contrário, muitas vezes é até mesmo negada, zombada, marginalizada e ridicularizada”. E depois se referiu à expressão da última entrevista do cardeal Martini, em 2012, quando disse que a Igreja estava 200 anos atrasada.

Quanto ao nosso assunto, poderíamos tentar traduzir assim: se acreditamos que ainda é válida a figura de presbíteros totalmente dedicados à construção da comunidade eclesial, por meio de um serviço celibatário estável de anúncio e presidência – e há motivos sérios para responder positivamente – então podemos tentar, pelo menos ad experimentum, imaginar um ministério evangelicamente mais singelo e uma formação ao ministério diferente em relação ao seminário atual

Falando em termos gerais, de fato, o atual exercício do ministério e a formação seminarística na Itália respondem mais à situação de “cristandade” já ultrapassada do que à situação de “pluralismo” que já se afirmou. O autor ilustra isso muito bem.

Formamos padres para um tempo que não existe mais

Não me refiro simplesmente aos conteúdos individuais da formação seminarística e permanente, que graças a Deus recebem e relançam quase por toda a parte as perspectivas do Vaticano II, embora permaneçam aqui e acolá alguns bolsões de tradicionalismo ao se reproporem os modelos dos sacerdos alter Christus e do sacerdote como mediator Dei et hominum, que nunca entraram nos textos conciliares. Refiro-me, antes, à estrutura geral da nossa pastoral e da formação seminarística.

Essa estrutura, apesar de ter sofrido muitas e adequadas atualizações ao longo dos séculos e sobretudo nas últimas décadas, manteve-se, porém, nas suas linhas fundamentais, como aquela moldada pelo Concílio de Trento. Esclarecendo antecipadamente, para evitar equívocos, que aquele Concílio teve méritos enormes também nessas duas frentes. Ele renovou de forma decisiva a vida pastoral das dioceses, reduzida muitas vezes ao mínimo necessário, obrigando párocos e bispos à residência, instituindo as visitas pastorais periódicas, consolidando e mais frequentemente refundando a experiência cristã em torno das paróquias, dotadas também do importante instrumento do “catecismo” para os adultos.

A instituição dos seminários, com o decreto Cum adolescum aetas, de 15 de julho de 1563 (cân. 18 dos Decretos de reforma), respondia à necessidade de preparar adequadamente os candidatos ao sacerdócio ministerial, capacitando-os – no estudo e na vida espiritual – para se tornarem “pastores” do rebanho.

A reforma dos seminários foi uma das reformas providenciais daquele grande Concílio, capaz de responder às necessidades pastorais das paróquias e das dioceses. Como o Papa Gregório VII já havia intuído cinco séculos antes, e como o Concílio Vaticano II intuiria quatro séculos depois, toda grande e incisiva reforma na Igreja deve passar também pela renovação do clero.

Valorizando algumas experiências anteriores, como a do Colégio Capranica e depois do Romano e do Germânico, os Padres tridentinos pretenderam dar origem a um lugar no qual os adolescentes que, a partir dos 12 anos, manifestassem uma propensão ao sacerdócio, “antes que os maus os hábitos se apoderem completamente do homem” (COD 750), fossem acolhidos e formados na disciplina, na cultura geral, na liturgia, na espiritualidade, na teologia, na moral e na pastoral.

A história posterior registrou o sucesso dessa reforma e, há quatro séculos e meio, o seminário é o lugar no qual se formam pastores capacitados do ponto de vista espiritual, teológico e pastoral. O reconhecimento mais autorizado da validade dessa estrutura veio precisamente do Concílio Vaticano II, que reiterou a necessidade dos seminários maiores para a formação sacerdotal (cf. OT 4).

O último Concílio, porém, integrou essa abordagem abrindo os horizontes para a grande parte dos “novos mundos”, onde a estrutura estabelecida por Trento não existia ou era muito branda: o impulso missionário do Vaticano II, assim, iniciou reflexões e práticas mais dinâmicas, moldadas no primeiro anúncio e na profecia.

A ilusão de uma exceção italiana

Na Itália, nós nos iludimos, talvez demais, que a “cristandade”, no fim das contas, se manteria de pé. Até alguns anos atrás, alguns falavam de uma “exceção italiana”, como se vivêssemos uma espécie de impermeabilidade em relação à secularização.

As estruturas pareciam aguentar, embora com algumas rachaduras: igrejas e obras paroquiais, internas e externas, abundavam; tradições litúrgicas ou devocionais seculares eram participadas; os organismos pastorais, como os conselhos e os ministérios leigos, no fim das contas, existiam; alguns seminários conseguiam conservar números aceitáveis; até mesmo as instituições públicas – políticas, administrativas e culturais – mostravam um desejo de manter bons contatos com o “mundo eclesiástico”.

A situação, em suma, parecia muito distante daquela que havia sido criado nas Igrejas do Norte da Europa, abaladas pela descristianização, embora não fosse mais aquela considerada ideal no Leste Europeu e especialmente na Polônia.

Eu exagerei deliberadamente alguns tons e negligenciei muitas nuances, mas acredito que o quadro não está muito distante da realidade.

Agora, deixando de lado o quadro geral recém-esboçado e muito mais bem descrito no livro de Brancozzi, tento relançar uma hipótese diferente para a formação dos futuros presbíteros ou, se quiserem, um modelo diferente de seminário.

Creio que os próprios Padres de Trento, se se reunissem hoje, dariam origem a um seminário diferente em relação àquele que eles moldaram providencialmente; e fariam isso, creio eu, precisamente com base na mesma reivindicação da época: a necessidade de formar presbíteros capazes de ser pastores e de estar no meio do rebanho. Provavelmente, porém – continuo com uma certa dose de presunção – eles não apontariam para a tutela do território, mas para a proximidade ao povo de Deus.

Formação e exercício do ministério

Nos anos 1990, quando eu era um presbítero feliz na minha diocese de Forlì-Bertinoro, um amigo frade franciscano, durante uma reunião do centro diocesano de vocações, fez uma intervenção que me impressionou.

Ele disse que os frades têm uma vantagem ao viverem a sua vocação em comparação com os padres diocesanos, porque os anos da sua formação são marcados de maneira homogênea pelo tipo de vida que levarão após a profissão; embora o convento não será mais o mesmo, os ritmos do dia, a marcação do tempo, o tipo de serviço eclesial reproduzirão substancialmente os traços dos anos da preparação.

Os padres diocesanos, por sua vez – assim disse o amigo frade –, são formados de acordo com o ritmo dos religiosos, senão até dos monges, e depois, quando saem do seminário, levam um tipo de vida totalmente diferente.

Essa observação me surpreendeu. Não que eu nunca tivesse pensado nessa tensão entre o seminário e o ministério posterior, mas eu sempre a tinha resolvido na dinâmica de a pessoa se concentrar primeiro para depois ser eficaz na missão, de acordo com a indicação estabelecida pelo próprio Jesus – às vezes indicada como fundamento bíblico do seminário – no ato de constituir os Doze, aos quais “chamou para que estivessem com ele e também para enviá-los a pregar”... (Mc 3,14).

O período de formação seria o “estar com” Jesus, enquanto o do ministério eclesial seria o tempo da missão e da pregação. Na realidade, estou agora convencido de que o seminário deveria consistir, para os sacerdotes diocesanos, em uma experiência mais homogênea à vida que eles vão levar posteriormente, marcada pelo ministério pastoral, e que, portanto, deveria integrar melhor ambos os momentos: o de estar com Jesus e o de ir ao encontro das pessoas.

As significativas mudanças do cenário social, psicológico e pastoral poderiam ser lidas hoje como “sinais dos tempos” que aconselham uma reforma estrutural, e não simples ajustes, do seminário nascido a partir do Concílio de Trento, pelo menos no que diz respeito ao Ocidente secularizado.

Quais candidatos para o ministério?

Como Brancozzi bem observa, a tipologia dos candidatos ao presbitério mudou profundamente nos últimos séculos e, especialmente, com uma forte aceleração nas últimas décadas: se o candidato pensado por Trento era o adolescente que cruzava as portas do seminário aos 11-12 anos de idade para dele sair, se Deus quisesse, uma dezena de anos depois perfeitamente formado e pronto para enfrentar uma realidade certamente nada fácil, mas mesmo assim bastante homogênea do ponto de vista cultural, o seminarista ocidental de hoje é um jovem ou um adulto que cruza as portas do seminário depois de um diploma ou de alguns anos de trabalho, que às vezes carece de estudos clássicos e até de uma sólida base catequética; a provável fragilidade da sua família de origem – fenômeno em contínuo crescimento – contribui para enfraquecer aquela identidade afetiva já posta à prova pelo relativismo ético.

Além disso, a figura teológico-espiritual do presbítero moldada nos últimos 50 anos é mais completa do que aquela que saiu de Trento, já que o Vaticano II remeteu à ordenação sacramental não só a qualificação à tarefa cultual, mas também à tarefa profética e pastoral; o presbítero foi recolocado na trama das relações eclesiais, como irmão entre irmãos no povo de Deus e pertencente a uma família diocesana, o “presbitério”, que, junto com o bispo e os diáconos, constitui o sujeito ministerial fundamental de uma Igreja local; foi arrancado de um pedestal artificial que fazia dele um “homem do sagrado” elevado acima dos outros homens e foi recolocado, como “ministério” (de minus), aos pés dos irmãos, em continuidade com o gesto diaconal escolhido por Jesus na última ceia (cf. Jo 13,1-17).

Mas, acima de tudo, o presbítero do Vaticano II não é um monge ou um religioso dedicado também ao apostolado, mas um ministro cuja própria atividade pastoral contribui para moldar a sua vida espiritual. O último Concílio, de fato, afirmou que o exercício do ministério sacerdotal não só exige, mas também favorece a santidade (cf. PO 13); o fato de que ele a exija era doutrina tradicional, plenamente adequada ao modelo do padre-monge ou do padre-religioso; o fato de que ele a favoreça, em vez disso, é uma doutrina bastante recente, inspirada diretamente em algumas reflexões expressadas pelo cardeal Mercier no início do século XX, destinadas a afirmar a existência de uma espiritualidade própria do “clero diocesano”, baseada no apostolado, sem a necessidade de tomar de empréstimo os seus traços dos religiosos ou dos monges.

Como evidencia o decreto Presbyterorum ordinis 13, são os próprios atos de anunciar a palavra, celebrar os sacramentos e exercer o cuidado pastoral do povo de Deus que oferecem os traços específicos da espiritualidade dos presbíteros, particularmente dos diocesanos. Existe uma espécie de “círculo virtuoso” entre contemplação e ação, entre santidade e apostolado; existe um movimento de retorno que, no próprio exercício do ministério, molda a vida espiritual dos presbíteros.

A doutrina do Vaticano II sobre os presbíteros envolve, portanto, em resumo: a sua plena inserção na comunidade cristã e não uma colocação acima dela; o pertencimento ao presbitério na superação de um ministério individual; a habilitação sacramental à tríplice tarefa de anunciar, celebrar e apascentar, e não apenas aos atos de culto; e, sobretudo, a integração dos atos do ministério na vida espiritual e não a sua colocação após a vida espiritual.

O Papa Francisco convida urgentemente a uma renovação que seja, ao mesmo tempo, prudente e audaz.

Além do seminário

É certamente necessário renovar continuamente, dentro da estrutura existente, o espírito, as motivações, as funções do seminário, como, aliás, faz a Ratio fundamentalis italiana, aprovada em 2007, quando acolheu também a ideia da espiritualidade diocesana e enraizou o ministério e a vida dos presbíteros na “caridade pastoral” (cf. ECEI 8/978-979).

Mas, precisamente por isso, não deveria ser mais um tabu a hipótese de uma mudança estrutural do seminário, pelo menos de modo experimental em algumas dioceses, regiões ou nações, seguindo algumas intuições oferecidas pela Arquidiocese de Paris, que, desde o tempo do cardeal Lustiger, abriu um caminho novo e diferente em relação ao seminário que conhecemos: um caminho que envolvia um ano de orientação comum, chamado de “ano espiritual”, depois uma subdivisão em grupos em algumas “casas paroquiais” (maisons paroissiales) por um biênio, e um triênio, novamente em grupos, em algumas “casas não paroquiais” (maisons non paroissiales).

Todos os seminaristas, no entanto, se encontravam cotidianamente para frequentar as aulas de teologia e periodicamente para os Exercícios Espirituais e alguns momentos de formação e de fraternidade. Não estou dizendo que esse esquema deva ser reproposto – a própria arquidiocese parisiense o revisou e corrigiu –, mas acho que é possível ao menos refletir e experimentar: adelante con juicio.

Uma certa variedade de percursos rumo ao presbiterado diocesano, além disso, também pode ser encontrada na Itália, embora de forma menos estruturada e menos desvinculada do modelo tridentino. Portanto, não é inexplorada a hipótese de oferecer percursos diversificados rumo ao sacerdócio ministerial.

Sabendo muito bem que não existe uma receita infalível e que cada proposta tem vantagens e contraindicações, com o único propósito de suscitar uma reflexão e um debate, atrevo-me a repropor uma (parcial) alternativa experimental à estrutura atual do seminário.

Certamente é indispensável, à luz da grande heterogeneidade daqueles que manifestam interesse pela vocação ao ministério sacerdotal, um ano propedêutico: para verificar a reta intenção dos candidatos, para preencher as principais lacunas culturais no campo humanístico, para pôr as bases catequéticas, para iniciar na vida espiritual e comunitária. Esse tempo não deveria ser estendido, normalmente, além de um ano. Não convence – como o autor também observa – a tendência de dilatar os tempos da formação em relação aos já longos sete anos, porque nem sempre a extensão cronológica corresponde a uma maior incisividade e intensidade; às vezes, pelo contrário, esgota.

Um biênio de vida comum entre os seminaristas no modelo “tridentino” atual, eventualmente na forma regional ou interdiocesana, certamente é útil: para se separar do ambiente de proveniência e conhecer experiências diferentes, para se concentrar nos estudos filosófico-teológicos, recentemente reformados e que ficaram mais exigentes, para viver uma intensa experiência comunitária marcada também por ritmos protegidos e guiados, para estabelecer uma regra de vida pessoal e para aprofundar com serenidade os aspectos fundamentais do seguimento de Jesus na vida do ministério sacerdotal.

O triênio posterior poderia ocorrer em pequenas comunidades junto a paróquias escolhidas pelo bispo, segundo os critérios que já estão vigentes hoje na atribuição das paróquias de serviço aos seminários: uma paróquia na qual o pároco e outras figuras ministeriais desejáveis possam garantir uma certa vida comunitária, tanto na oração quanto no debate e nos momentos de fraternidade; na qual o seminarista possa viver uma experiência de relação rica também com os leigos, sem ser fagocitado pelos compromissos; uma situação logística que permita estudar e se retirar pelo tempo necessário à meditação, à oração pessoal e ao estudo da teologia.

Frequentar a escola de teologia ou de ciências religiosas e reservar tempos adequados de estudo pode ser mais difícil desse modo, mas é uma condição comum a muitos estudantes universitários; e, em todo o caso, é um treinamento que prepara os seminaristas para manterem, também depois, como presbíteros, tempos adequados de estudo e de formação permanente cotidiana.

Na comunidade

O ano de diaconato poderia ser vivido habitando na família de um diácono permanente, a fim de recuperar aquela conotação “doméstica” que o ministério tinha nos primeiros séculos, quando a vida cristã ocorria nas casas e o bispo era considerado – e muitas vezes era – um pai de família; os presbíteros, os irmãos mais velhos e sábios; e os diáconos eram moldados segundo a figura dos servos da casa.

Desse modo, o futuro presbítero pode recuperar melhor aquelas relações familiares das quais se separou, saindo da família de origem e entrando no período formativo. Uma experiência desse tipo ajuda a se encaminhar para o ministério presbiteral de maneira humilde e concreta, tendo bem em mente os problemas cotidianos de uma família.

Naturalmente, também nas duas últimas fases, serão necessários momentos de encontro de todos os seminaristas (e diáconos), para retiros, Exercícios Espirituais, dias de descanso, assembleias.

Eu me referia às variantes, que podem ser muitas: uma pelo menos –mencionada também no livro de Brancozzi e expressada, entre outros, pelo bispo Gualtiero Sigismondi – é a instituição de um ano de “desprendimento”, durante o caminho formativo, no qual o seminarista viva uma experiência forte de proximidade ou, melhor ainda, de missão ad gentes. Isso certamente deixaria uma marca indelével na sua vida e o ajudaria, no futuro ministério, a relativizar muitas questões e “brigas internas” que, depois, correm o risco de parecer primordiais em relação às exigências da evangelização.

As objeções a uma reestruturação experimental desse tipo são muitas: há uma dificuldade psicológica ao se rever uma visão monolítica do seminário e adotar uma visão mais articulada, deslocada e dinâmica; existem várias dificuldades práticas, ligadas à provável escassez de paróquias capazes de responder aos requisitos exigidos; além disso, há diversos problemas relativos à possibilidade de ter acesso aos estudos teológicos do triênio para quem não tem uma faculdade ou um estudo ao alcance das mãos, a menos que se considere a possibilidade de validar alguns cursos junto aos ISSR [Institutos Superiores de Ciências Religiosas], às vezes de qualidade não inferior às instituições teológicas.

A dificuldade de encontrar presbíteros aptos a acompanhar os seminaristas nas paróquias, no entanto, não é maior do que as atuais, visto que poucas dioceses podem agora oferecer educadores já maduros e inseridos vitalmente na pastoral da diocese.

As razões para uma mudança

As vantagens parecem ser mais numerosas. O fato de que os seminaristas já vivem, nos anos de preparação, uma condição homogênea àquela que viverão como presbíteros leva a sentir menos aquele salto da formação ao compromisso pastoral que às vezes determina graves dificuldades e reavaliações.

Nessa hipótese, os candidatos, depois de terem vivido os primeiros três anos em comunidade – um propedêutico e o biênio filosófico-teológico –, aprendem nos três anos seguintes a conservar momentos de oração e meditação, a vida litúrgica, o estudo e a vida comunitária e fraterna e a relacioná-los de forma adequada ao serviço pastoral. Ainda mais se tiverem vivido também um ano em uma realidade caritativa ou missionária.

A “supervisão” dos educadores – já sem os tempos garantidos pela estrutura – será suficiente para desenvolver a capacidade pessoal de harmonizar as diversas dimensões da vida presbiteral.

A inserção viva na própria Igreja local, por meio de uma paróquia, desenvolve de modo natural a dimensão “diocesana” da espiritualidade do futuro presbítero; uma espiritualidade às vezes estudada e teorizada, mas raramente experimentada de modo incisivo.

A experiência de contato cotidiano com uma paróquia e – no ano de diaconato – com uma família representa um elemento importante para a integração dos afetos na personalidade humana, cristã e presbiteral; às vezes, um presbítero que recém-saiu do seminário custa a gerir as relações, especialmente com as mulheres; também porque atualmente ainda são poucos os seminários nos quais foi acolhida a exortação da Pastores dabo vobis no número 66, reiterada na Ratio fundamentalis de 2016 da Congregação para o Clero, no número 151 (e recordada pelo autor), para inserir estruturalmente figuras femininas na formação dos futuros presbíteros.

Por fim, a presença de pequenas comunidades de seminaristas nas paróquias consiste, por si só, em uma pastoral vocacional eficaz e capilar, pois os jovens se deixam espontaneamente interrogar mais pelo estilo de vida dos seus coetâneos que estão se preparando para o ministério presbiteral no meio deles do que pelas meditações e pelas homilias sobre o chamado ao sacerdócio.

Naturalmente, é apenas uma hipótese, e muitas outras modalidades podem ser pensadas. Estou bem ciente de que o problema fundamental não está na forma da preparação, mas no contexto pastoral mais amplo no qual os jovens presbíteros vão se inserir e nas possibilidades reais, para a comunidade cristã, de suscitar, moldar e discernir um caminho vocacional tão exigente.

Mas essa hipótese vai justamente na direção de uma osmose entre o antes e o depois; uma osmose que interroga a fundo também o depois, ou seja, a vida dos presbíteros inseridos na pastoral e a figura das nossas comunidades cristãs, especialmente as paroquiais.

Repensar a pastoral como um todo

Uma reavaliação do seminário (encontrando talvez outro nome) pode fazer sentido, portanto, no contexto de uma reavaliação mais global da pastoral do exercício do ministério: são necessárias escolhas corajosas e impopulares, por parte das dioceses e dos seus pastores (esse é o famoso tiro no pé), para simplificar as estruturas, aliviar com dietas adequadas o peso burocrático, administrativo e gerencial que paira sobre os párocos, relançar de maneira sinodal os órgãos de participação, rever o sentido de algumas expressões religiosas tradicionais, que algumas vezes perderam a sua alma cristã.

Uma dieta desse tipo ajuda os padres a se dedicarem com mais entusiasmo à palavra de Deus, ao crescimento das pessoas e das comunidades, à atualização e à oração, e a dosarem melhor os tempos do descanso e da ação. E ajuda aqueles que se orientam a se tornar padres a reduzir os seus temores pelo futuro, porque veem que não só é possível, mas também apaixonante dedicar-se totalmente à edificação da comunidade cristã, mantendo a densidade humana e a fé, na consciência de ser, sim, uma minoria: mas uma “minoria criativa” (Bento XVI).

Edição 170, setembro 2021

Carlos A. Scolari sobre Paulo Freire

CEM ANOS DE SOLIDÃO PEDAGÓGICA?

Tenho certeza de que pelo menos um livro de Paulo Freire é bibliografia obrigatória em pedagogia, educação ou formação de professores, não só na América Latina. E ainda, quando chegamos à realidade da sala de aula, as ideias e propostas do brasileiro tendem a derreter como um cubo de gelo ao sol ... A massificação do sistema, a burocratização das práticas ou o desinteresse dos atores da interface educacional tornam a “aplicação de Freire” muito difícil nos contextos de ensino-aprendizagem atuais. Também não descartamos que alguns pensem que “aplicar Freire” é bagunça dentro da sala de aula...”, escreve Carlos A. Scolari, professor catedrático em Teoria e Análise da Comunicação Digital Interativa no Departamento de Comunicação da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, Espanha, e coordenador do Programa de Doutorado em Comunicação, da mesma universidade, em artigo publicado por Hipermediaciones. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

Nestes dias comemora-se 100 anos do nascimento de Paulo Freire (1921-1997), talvez o pedagogo mais importante do século XX. E não estou exagerando: segundo um estudo realizado na London School of Economics em 2016 a “Pedagogia do Oprimido” (1970) era o terceiro livro mais citado nas ciências sociais dentro de uma lista onde apareciam autores clássicos como Thomas Kuhn, Michel Foucault ou Clifford Geertz. Este êxito do livro de Freire deve-se às inúmeras (re)edições em castelhano, as quais superaram inclusive as originais em português ou as traduções em inglês.

A “Pedagogia do Oprimido” merece estar na lista. É uma obra revolucionária, escrita em um momento revolucionário por um pensador que, sem necessidade de tomar o fuzil e ir para a montanha, desenvolveu um pensamento radical e profundo que ainda hoje surpreende por sua sensibilidade. De certa forma, o livro de Freire compartilhou destino com outro clássico publicado mais ou menos no mesmo ano e pela mesma afortunada editora (Siglo XXI): “Para ler o Pato Donald” (1972), de Ariel Dorfman e Armand Mattelart. Ambos livros foram e seguem sendo, meio século depois, dois sucessos acadêmicos. Se “Para ler o Pato Donald” desvelava os mistérios da ideologia burguesa e explicava como o imperialismo inculcava uma visão de mundo, a “Pedagogia do Oprimido” era a ferramenta ideal para ativar processos de conscientização e colocar em crise essa (falsa) imagem do mundo. O bom do livro de Freire é que essa conscientização não era o resultado de uma transferência linear do conhecimento (desde uma vanguarda iluminada a um sujeito alienado), mas sim o resultado de um diálogo ou comunicação entre-pares.

A pedagogia de Paulo Freire em 15 ‘snacks

1. Através da manipulação, as elites dominantes tentam conformar progressivamente as massas a seus objetivos.

2. O diálogo não impõe, não manipula, não domestica, não rotula.

3. Falar de democracia e calar o povo é uma farsa. Falar do humanismo e negar os homens é uma mentira.

4. Matar a vida, freá-la, com a redução dos homens a meras coisas, aliená-los, mistificá-los, violentá-los, é característico dos opressores.

5. Não há homem absolutamente inculto: o homem “se humaniza” expressando e dizendo seu mundo. Aí começa a história e a cultura.

6. Não se faz homens em silêncio, mas na palavra, no trabalho, na ação, na reflexão.

7. Quem atua sobre os homens para doutriná-los, adaptá-los cada vez mais à realidade que deve permanecer intocada, são os opressores.

8. A palavra, por ser lugar de encontro e de reconhecimento das consciências, também o é de reencontro e de reconhecimento de si mesmo.

9. Através de seu permanente fazer transformador da realidade objetiva, os homens simultaneamente criam a história e se fazem seres históricos-sociais.

10. Para dominar, o dominador não tem outra saída senão negar às massas populares a verdadeira práxis. Negando-lhes o direito de dizer sua palavra, de pensar corretamente.

11. Só o diálogo, que envolve pensamento crítico, é capaz de gerá-lo. Sem ela não há comunicação e sem ela não há verdadeira educação.

12. A alfabetização, por tudo isso, é pedagogia: aprender a ler é aprender a dizer a palavra. E a palavra humana imita a palavra divina: é criativa.

13. A invasão cultural, indiscutivelmente alienante, feita discreta ou abertamente, é sempre uma violência na medida em que violenta o ser da cultura invadida, que se encontra ameaçada ou perde definitivamente a sua originalidade.

14. Não existe palavra verdadeira que não seja união indestrutível entre ação e reflexão e, portanto, que não seja práxis. Portanto, dizer a palavra verdadeira está transformando o mundo.

15. A concepção problematizadora e a superação da contradição educador-educando: ninguém educa ninguém – ninguém se educa -, os homens se educam pela mediação do mundo.

Como se vê, o pensamento de Freire expressa um humanismo radicalmente transformador de matriz cristã. Por trás de um aparente “programa de alfabetização”, muito em voga no Terceiro Mundo na década de 1960 dentro do projeto desenvolvimentista, escondia-se uma filosofia de libertação que colocava a palavra e a comunicação no centro de sua práxis emancipatória.

Leituras

Entrei no mundo-Freire junto com vários colegas graças à professora Mercedes Pallavicini, da Universidade Nacional de Rosario. Como tantos outros autores, os livros do brasileiro haviam sido proibidos durante a ditadura, então acessar esses textos nos primeiros anos de democracia deixava um gostinho de liberdade na boca. O primeiro livro que li de Paulo Freire foi “Comunicação ou Extensão?” . Se bem me lembro, li quase em sincronia com outro clássico latino-americano, “Compreender a comunicação”, de Antonio Pasquali. Se Freire opôs a comunicação à extensão, Pasquali fez o mesmo com a informação à comunicação. Havia duas maneiras de entender a prática comunicativa, uma de cima para baixo e centralizadora, a outra de baixo para cima e democratizante. Não é por acaso que os livros de Freire dialogavam tão bem com os textos em que se propunha o desenvolvimento de uma “comunicação alternativa” nos anos 1970-80.

Nos anos seguintes li outros livros de Freire como “Educação como prática da liberdade” e a mítica obra “Pedagogia do Oprimido”, além de textos onde suas contribuições foram analisadas; embora participasse de oficinas de formação com base em seu método, nunca me tornei um “professor de alfabetização freiriano”. Por várias décadas, ler Freire ou citá-lo foi um aceno político, um sinal de pertencimento a uma comunidade de leitores onde comunicação, educação e revolução eram uma e a mesma coisa. E ainda assim... Receio que o autor mais citado, o mais vendido e mais celebrado da pedagogia, tenha sido o menos aplicado em sala de aula.

100 anos de solidão?

Tenho certeza de que pelo menos um livro de Paulo Freire é bibliografia obrigatória em pedagogia, educação ou formação de professores, não só na América Latina. E ainda, quando chegamos à realidade da sala de aula, as ideias e propostas do brasileiro tendem a derreter como um cubo de gelo ao sol... A massificação do sistema, a burocratização das práticas ou o desinteresse dos atores da interface educacional tornam a “aplicação de Freire” muito difícil nos contextos de ensino-aprendizagem atuais. Também não descartamos que alguns pensem que “aplicar Freire” é bagunça dentro da sala de aula...

Receio que, como tantos outros autores que também acabaram no cemitério da bibliografia obrigatória, a “Pedagogia do Oprimido” acabou se tornando um tema de prova para uma matéria enfadonha que quase todos esquecerão no final da graduação. Apesar disso, estou convencido de que, se houver interesse por parte do professor ou da escola, o pensamento de Freire sempre pode ser recuperado e aplicado, mesmo nas situações de ensino-aprendizagem mais adversas.

Freire not deal

O que há de mais belo e contundente no pensamento de Paulo Freire é que ele continua incomodando como foi há meio século. Quando em 2019 o presidente Jair Bolsonaro decidiu não renovar o contrato de uma televisão pública voltada para a educação, justificou o fechamento: “Você conhece a programação da TV Escola? Deseduca!”. Bolsonaro sustentou que o tema daquele canal era “totalmente de esquerda” e dedicou recursos públicos a questões como “ideologia de género”. A política do Bolsonaro visa eliminar todos os tipos de ideologia das escolas e universidades em cinco anos. “As coisas têm que mudar”, disse o presidente, e prometeu que daqui a cinco anos “vai acabar a ideologia de Paulo Freire... Tem muita gente formada aqui segundo a filosofia de Paulo Freire, esse energúmeno e ídolo da esquerda”.

Faixa bónus

Por que a proposta de Paulo Freire terminou descolando-se dos discursos acadêmicos? Talvez a resposta se encontre neste artigo de 2013: “Bibliografia do Oprimido? Uma crítica da razão bibliográfica”. Como diz o sempre genial Gonzalo Frasca, “a melhor maneira de domesticar uma ideia é colocá-la para pastar em um programa de estudos”.

Javier Tolcachier

CAPITALISMO DIGITAL, O NOVO ROSTO DO ANTI-HUMANISMO CORPORATIVO

O capitalismo digital é a nova face do colonialismo, cumprindo com perfeição a função de penetração não só econômica, mas também cultural e militar, própria do imperialismo”, escreve Javier Tolcachier, pesquisador no Centro Mundial de Estudos Humanistas e comunicador da agência internacional de notícias Pressenza, em artigo publicado por Rebelión. A tradução é do Cepat /IHU

Como se sabe, o capitalismo passa por uma acelerada fase de reconversão tecnológica, cujo principal elemento é a digitalização.O uso de grandes quantidades de dados, a inteligência artificial, a multiplicação de plataformas em todas as áreas da atividade humana, o teletrabalho, o comércio digital, a computação em nuvem, o entretenimento online, a aplicação em massa da robótica na produção e a internet das coisas são alguns dos fatores visíveis dessa nova revolução industrial.

Embora a conectividade à internet, que é o suporte básico dessas transformações, ainda não alcance toda a população, o crescimento é rasante. Por exemplo, na América Latina e o Caribe, uma ampla região e com relativo atraso na infraestrutura de telecomunicação em comparação aos Estados Unidos, Europa, Ásia-Pacífico e Eurásia, a quantidade de pessoas conectadas à rede duplicou entre 2010 e 2019, alcançando 67%. Também cresceu a cobertura 4G e a velocidade da conexão. A maioria das empresas já está conectada à internet, um grande número utiliza banco eletrônico, utiliza a rede na cadeia de suprimentos e muitas começaram a implantar canais de venda virtuais. Isso nos fala de uma tendência irreversível. Estamos em pleno desenvolvimento da era digital.

Tudo isso foi acelerado no decurso da pandemia. A presença empresarial na internet, o comércio eletrônico, o uso de plataformas de educação e o trabalho a distância tiveram um forte crescimento. Com isso, aumentou o poder concentrado das corporações digitais.

Como demonstração, alguns dados: no segundo trimestre de 2021 e em termos interanuais, a Apple vendeu 50% a mais de telefones iPhone, Amazon e Microsoft também aumentaram seus lucros em uma porcentagem semelhante, o Facebook dobrou os seus lucros e Alphabet (proprietária do Google) multiplicou por 2,6.

Longe de ficarem confinadas a seus negócios originais, essas corporações com matriz nos Estados Unidos diversificaram fortemente seus interesses, abarcando a produção cinematográfica, imprensa, viagens espaciais, automóveis autônomos e realidade aumentada, entre muitos outros.

Além da concentração econômica, é muito preocupante a posição central de tais empresas no relato dominante, controlando as principais vias de comunicação na internet.

Por outro lado, a extrema pobreza, que havia diminuído em nível mundial cerca de 1% ao ano, entre 1990 a 2015, e que já vinha desacelerando sua queda, volta a se aprofundar. Um em cada dez indivíduos no planeta passa fome e milhões de pessoas são lançadas no desemprego e na precarização trabalhista.

Na América Latina, o emprego no setor de tecnologias da informação e a comunicação, que prometiam compensar a perda de postos de trabalho pela automação é proporcionalmente baixo e representa apenas 1,6% do emprego masculino. No caso das mulheres, mais uma vez discriminadas, essa participação é muito menor e corresponde a apenas 0,9%. A diferença entre os estratos populacionais condiciona o direito à educação e aprofunda as desigualdades socioeconômicas. Em síntese, as supostas vantagens da economia digital não diminuíram a desigualdade preexistente, ao contrário, a aprofundam.

Quem são os beneficiados?

Apesar de que os rostos conhecidos (Zuckerberg, Bezos, Gates, Page, Brin ou os herdeiros de Jobs) costumam ser parceiros majoritários de cada um dos empórios digitais, essas empresas têm como grandes acionistas os principais fundos de investimento, ou seja, o setor especulativo.

Para ilustrar, mais de 80% das ações do Facebook estão nas mãos de investidores institucionais, entre os quais estão os principais fundos de investimento (Vanguard Group, Black Rock, FMR, Price (T. Rowe) Associates, State Street Corp., etc.).

No caso da Alphabet, a porcentagem de participação institucional é de 67%, semelhante ao pacote da Amazon (cerca de 60%), constituído pelos mesmos atores especulativos.

O contexto econômico capitalista

A economia especulativa, longe de ter diminuído após o estouro da bolha em 2007-2008, atualmente atinge, embora seja difícil estimar, cerca de 20 vezes o PIB mundial. A sobreacumulação de capital, a continuada emissão de moedas sem lastro em dólar, as baixas taxas de juros e como contrapartida a acumulação de dívida privada e pública, alimentam o negócio especulativo.

O reinvestimento produtivo continuou o seu declínio, diminuindo a oferta de emprego formal para as grandes maiorias. Calcula-se que em apenas dois anos (2017-2019) o investimento estrangeiro direto caiu para a metade.

Neste contexto de parasitismo financeiro, a economia digital se oferece como investimento possível, buscando sair da crise de rentabilidade em que o capitalismo industrial já está imerso há várias décadas. Essa rentabilidade do campo digital se explica por motivos convergentes, entre eles, o baixo valor dos impostos que as empresas assumem (localizadas formalmente em guaridas fiscais, somado à evasão de impostos dos estados nacionais onde operam), a pouca representação sindical no âmbito digital, a absorção de recursos intelectuais e financeiros públicos de pesquisa, o uso dos dados pessoais como matéria-prima gratuita, a destruição da concorrência e a desregulamentação, na prática, do ambiental virtual.

Limitações físicas da expansão capitalista

Por outro lado, o capitalismo em sua busca de crescimento ilimitado atingiu limites físicos indiscutíveis, produzindo fortes desequilíbrios nos ecossistemas vitais. Assim, a digitalização e o extrativismo de bens não tangíveis como os dados, aparecem falsamente como parte de um novo ciclo de reconversão “verde” da economia. Falsamente, porque o consumismo e a acumulação que acarretam seguem tendo como base material os recursos naturais finitos do planeta.

O negócio é planetário, a miséria local

Após o ciclo de instalação neoliberal da globalização, com a consequente destruição dos sistemas públicos e o enfraquecimento dos estados nacionais, o mapa comercial foi estendido a todo o planeta, promovendo escalas mundiais para os negócios. Desse modo, as corporações aproveitam o potencial de um mercado planetário a partir de sua habitual irresponsabilidade social, deixando que os estados fiquem responsáveis por administrar os problemas que deixam em sua passagem.

O panóptico global

O outro recurso fundamental do capitalismo digital é a informação. Desse modo, as corporações transnacionais estabelecem um sistema de vigilância e inteligência globalizado, que aproveita a interferência das plataformas digitais na vida pessoal, obviamente com a finalidade de manter as maiorias ocupadas e controladas, objetivo que, apesar de tudo, não conseguem.

A dependência do Sul

Outro propósito no desenvolvimento de um capitalismo digitalizado é o de manter e aprofundar as distâncias tecnológicas entre o centro e as periferias mundiais e, consequentemente, a dependência do Sul global. No entanto, a OTAN digital comandada pelos Estados Unidos, com seus parceiros menores Europa e Japão, tem hoje seu contrapeso na Muralha chinesa digital, que conseguiu superar parcialmente, assim como vários de seus vizinhos asiáticos, a situação de subdesenvolvimento tecnológico predominante anteriormente.

Mesmo assim, as enormes desigualdades continuam subsistindo. Segundo a CEPAL, enquanto o índice de desenvolvimento das indústrias digitais (composto por fatores mistos [2]) nos Estados Unidos é de 43% e na Europa Ocidental de 36%, na América Latina e o Caribe, África e Ásia Pacífico chega a 18%.

Por outro lado, a infraestrutura permanece com os traços imperiais de seus inícios. Quatro dos 13 servidores-raiz da internet (DNS) permanecem em solo estadunidense e 10 deles são controlados por empresas, universidades e instituições militares ou estatais dos Estados Unidos. Além disso, o inglês continua sendo o idioma utilizado para seus protocolos, linguagens de programação e cada uma das partes constitutivas da internet. Desse modo, o capitalismo digital é a nova face do colonialismo, cumprindo com perfeição a função de penetração não só econômica, mas também cultural e militar, própria do imperialismo.

A captura corporativa do sistema de relações internacionais

Já há tempo, as corporações e um grande número de ONGs vêm intervindo em instâncias e organismos multilaterais em aspectos teoricamente reservados aos Estados e seus governos. Isso é particularmente certo no campo digital, cuja governança está nas mãos de um sistema multissetorial ou de “múltiplas partes interessadas”.

Os envolvidos são a comunidade técnica, o setor privado formado por empresas, os governos, a academia e as assim chamadas organizações da sociedade civil (ou organizações não governamentais), em alguns casos financiadas parcial ou totalmente pelas próprias transnacionais para operar publicamente em favor de seu discurso.

A influência privada, que carece de qualquer legitimação democrática, ameaça cooptar o sistema político de relações internacionais por meio de uma estratégia que corresponde com precisão aos delineamentos do Fórum Econômico Mundial (Davos). Sob o manto do termo “cooperação digital”, essa iniciativa poderia abrir caminho para a elaboração de políticas vinculantes, através da conversão de um organismo de consultas de múltiplas partes interessadas em um de “governança multipartite”.

Tal organismo de alto nível está sendo impulsionado através de um processo lançado pela própria Secretaria Geral das Nações Unidas, que reúne como fundamento as recomendações de um Painel de Alto Nível sobre a Cooperação Digital constituído com o mesmo sistema multipartite anterior e cuja vice-presidência é significativamente ostentada por Melinda Gates, da Fundação homônima, e Jack Ma, fundador da corporação chinesa Alibaba.

É visível que se as corporações obtêm influência decisiva sobre as normas e regras que regem os espaços digitais, pouco poderá ser feito para regulamentá-los a partir do interesse dos povos. Além disso, na medida em que a digitalização avança ainda mais sobre cada área da atividade humana, a influência empresarial se projetará sobre elas, como hoje já acontece nos campos da alimentação, comércio digital e conflito ambiental, para citar apenas alguns exemplos.

Corolário

Enquanto a digitalização e o poder corporativo avançam, as instituições estatais e os movimentos sociais reagem a essas novas realidades com relativa lentidão, sem conseguir se antecipar a cenários futuros. O que está claro é que o poder de uma parte sobre o todo não solucionará nenhum dos problemas das grandes maiorias.

Sendo assim, é fundamental instalar a problemática digital como bandeira de luta dos povos, sensibilizar adequadamente sobre os seus impactos, esclarecer posições políticas coletivas nos movimentos para lhe dar dimensão territorial e exigir novos direitos nas políticas públicas, em conformidade com o novo cenário.

A questão ultrapassou amplamente a esfera do ativismo digital. É imprescindível que os cidadãos assumam as cartas no assunto. Trata-se do futuro comum.

Ivone Gebara /IHU

AS BRAVAS MULHERES AFEGÃS CONTRA O OBSCURANTISMO DO MUNDO

"Basta uma breve análise das recentes manifestações das mulheres nas ruas de Cabul e de outras cidades afegãs para verificarmos sua coragem, sua organização e sua força. E, sobretudo verificarmos os equívocos interpretativos em relação à sua situação real. Sem dúvida, em meio a estas mulheres há avós, mães, esposas, amantes, filhas, parentes de talibãs revoltadas com o obscurantismo manifesto e até forjado, para que os homens pudessem ser temidos e respeitados como superiores. Mas na realidade são elas que são temidas por eles. É a partir delas que políticas de participação e educação ampla das mulheres estão sendo possíveis e muitas reivindicações estão sendo aceites". O artigo é de Ivone Gebara, filósofa, teóloga e religiosa, pertencente à Congregação das Irmãs de Nossa Senhora, que lecionou por 17 anos no Instituto Teológico do Recife (Iter).

Não tenho nenhuma pretensão de apresentar o quadro geral da vida do Afeganistão a partir dos talibãs e de suas recentes reconquistas. Nem mesmo tenho elementos para escrever com autoridade sobre a vida das mulheres afegãs. Converso comigo e com algumas amigas impressionadas como eu com o tipo de notícias que circulam entre nós em relação ao sofrimento das mulheres afegãs.

A impressão geral veiculada provoca em muitos de nós pena das mulheres e raiva do mundo islâmico e em especial dos talibãs acusados de tantos crimes. Fala-se que elas estão impedidas de continuar estudando e mesmo de sair de casa sem estar acompanhadas por um varão da família. Fala-se do apedrejamento e de outras formas de violência.

Mostram-se também as falas das que foram mais privilegiadas pela presença americana e temem perder os lugares conquistados nos últimos anos. Porém elas são minoria num país pobre como o Afeganistão. Pouco se fala da grande maioria das mulheres em estado de pobreza, aquelas relegadas ao mundo doméstico e que quase não tiveram acesso ao mundo das letras e da comunicação global. Nada aparece de sua real luta quotidiana, de sua força para sobreviver e nem de sua pertença a movimentos por direitos sociais.

A pergunta que nós fazemos é em relação à parcialidade das informações que nos chegam e em especial a acentuação de notícias sobre a vida das mulheres vivendo o risco de serem aprisionadas, lapidadas e mortas. Mas, este é apenas um aspecto, um recorte sensacionalista!

De uma forma mais atenta se pode verificar uma espécie de vitimização programada por uma certa imprensa internacional, sem dúvida com cores políticas ocidentais definidas sustentadas pela ideologia dominante. A quem interessa só mostrar a opressão das mulheres? As suspeitas em relação a essa pergunta são numerosas.

A violência contra as mulheres parece ser o centro a partir do qual se chama a atenção do público internacional em relação aos talibãs. As notícias chegam a comover e a encher de raiva contra os violentos homens que estão ou estiveram no poder. Embora não neguemos a violência de que foram e são capazes há um recorte imposto de fora que nos impede de ver outros aspectos dessa problemática tão complexa. Imediatamente corremos o risco de pensar que os 20 anos de presença e dominação norte-americana foram uma espécie de paraíso terrestre, um oasis para as mulheres afegãs. Elas puderam se educar, frequentar universidades, viajar, participar de encontros internacionais e outras benesses nessa linha. E, de repente, muito de repente as mulheres foram dominadas e escravizadas de novo. Foram e se tornam de novo ‘objetos’ nas mãos de poderosos e violentos senhores que as consideram seres incapazes de discernimento pessoal e político. Cria-se a confusão das interpretações, o obnubilamento da realidade vivida, o desconhecimento de mundos culturais diferentes dos nossos e sobretudo da vida das mulheres.

Há uma espécie de exploração de setores políticos dos Estados Unidos que apresentam este país. talvez o mais rico do mundo, como um governo de dimensão messiânica que vem salvar os injustiçados e oprimidos e em particular livrar as mulheres da violência da qual estão sendo vítimas. É como se a presença dos norte-americanos, de suas tropas e armamentos pesados nos diferentes lugares as mulheres estivessem a salvo das muitas formas de violência. Com a presença militar ‘salvadora’ e ‘protetora’ durante 20 anos as mulheres afegãs puderam afinal estudar e muitas vezes andar pelas ruas sem a burka. Puderam enfim, ser respeitadas como cidadãs. Passa-se a ridícula ideia de uma magia estúpida, de um quase milagre proveniente da infinita bondade do imperialismo intervencionista capaz de transformar culturas milenares e dar-lhes um verniz ocidental de liberdade. Passa-se a ideia de que os Estados Unidos com a ocupação militar que fizeram apenas trouxeram benefícios às pobres mulheres afegãs.

Entretanto, basta uma breve análise das recentes manifestações das mulheres nas ruas de Cabul e de outras cidades afegãs para verificarmos sua coragem, sua organização e sua força. E, sobretudo verificarmos os equívocos interpretativos em relação à sua situação real. Sem dúvida, em meio a estas mulheres há avós, mães, esposas, amantes, filhas, parentes de talibãs revoltadas com o obscurantismo manifesto e até forjado, para que os homens pudessem ser temidos e respeitados como superiores. Mas na realidade são elas que são temidas por eles. É a partir delas que políticas de participação e educação ampla das mulheres estão sendo possíveis e muitas reivindicações estão sendo aceitas. É preciso ler a história a partir de outro lado ou a partir do avesso da face ‘direita’ e direta que aparece em certos meios de comunicação. A história depende da perspectiva em que nos situamos, dos valores que defendemos e tentamos viver.

Há uma foto que tem circulado na internet de um solado talibã que tem uma mulher, talvez a sua, atada por uma corrente ao seu próprio braço. A imagem cuja veracidade é duvidosa dada a postura dos personagens quer criar o horror, o repúdio e sobretudo a pena das mulheres tratadas como propriedade. De que vale a pena? De que valem as alertas contra o comportamento dos talibãs em relação às mulheres? Será que essa mesma violência embora com manifestações diferentes não existe em muitos países e inclusive nos Estados Unidos? Será a provocação do sentimento de pena no público na realidade não significa reforçar a boa imagem dos imperialistas do mundo, exaltar seus bons feitos apesar de terem sido atacados quando da destruição das torres gêmeas. Sem dúvida não querem perder sua imagem de salvadores e mantenedores de sua presença imperialista em diferentes lugares do mundo e, um vale-tudo mediático e mentiroso pode ao menos salvar-lhes a cara. Esse processo de atacar para salvar a própria pele se estende também pela América Latina de diferentes formas. Aqui também se demonizam mulheres feministas, se demonizam grupos libertários, grupos anti-racistas, indígenas. Aqui se estupra e se mata impunemente.

Muitos, para mostrarem-se aparentemente distantes de tais aberrações demonizam a cultura violenta e misógina dos talibãs como se fossem isentos dos mesmos vícios embora em formas diferentes aparentemente mais discretas. A hipocrisia não nos falta como tempero de nossas ações políticas e religiosas.

A maioria das pessoas que se impressionam apenas com a violência imposta não percebe que a violência atual é de fato também fruto dos muitos processos de emancipação das mulheres afegãs, uma reação violenta à emancipação que elas mesmas são as autoras e atoras principais há muito tempo. Não é de hoje que a organização de mulheres afegãs existe. Não é de hoje que temos eminentes porém ‘desconhecidas’ intelectuais e ativistas atuando no país e tentando reler suas muitas culturas à luz do mundo de hoje e em diálogo com muitos grupos nacionais e internacionais. Mas elas não contam para o imperialismo mediático global. Suas mentes esclarecidas não têm espaço na mídia internacional capitalista, suas formas de organização são pouco conhecidas. Não podem expressar um outro Islão afegão, não podem revelar a força de suas tradições reinventadas na atualidade e as inúmeras formas de pressão através das quais garantem sua dignidade mesmo com os talibãs.

Nas minhas muitas andanças pelo mundo afora tive o prazer de encontrar algumas poucas afegãs em foros internacionais. Infelizmente não me lembro de seus nomes, mas me impressionou sua presença e a defesa que faziam de sua tradição e de sua liberdade. A liberdade diziam não precisa ser segundo o modelo único do ocidente. Não precisa apenas parecer livre e imitar um modelo estilizado de liberdade vivido por mulheres de elite quer francesas, inglesas ou norte-americanas. O ocidente acredita que só o seu modelo de liberdade é liberdade, só o modelo ocidental de ser mulher é democrático e respeitoso da diferença. De que liberdade estão falando? Que proposta de liberdade estão buscando? Que sentido lhe dão?

A violência contra as mulheres é estrutural e pandêmica em nosso mundo. O que fizeram os ‘Casque-Bleu’, soldados da ONU nos países da África, no Haiti e em tantos lugares do mundo? Estupraram mulheres, aproveitaram de sua situação de poder internacional, dominaram, mataram e deixaram rastros de sangue e desolação. Quantas mulheres depois da partida dos soldados tiveram que arcar com uma gravidez indesejada e com o abandono total da prole pelos bravos e valentes soldados. De cabeça erguida e com fuzis nas mãos esses guerreiros foram buscar outras aventuras bélicas em outros lugares do mundo. Com esses feitos muitos foram considerados e coroados como heróis, considerados salvadores dos pobres oprimidos e até defensores das mulheres.

As ambiguidades da história presente são enormes. As narrativas parciais fazem das vítimas o troféu dos vencedores em muitas direções. Os muitos interesses nessa história fazem com que muitas histórias e interpretações possam ser narradas, porém nenhuma pode pretender ser a única narrativa verdadeira a ser lembrada. Precisamos estar alertas e atentas para não cairmos nas redes do reducionismo das grandes empresas políticas, econômicas e de comunicação do mundo.

É nessa perspectiva que desejo louvar a luta das mulheres afegãs contra o obscurantismo dos poderes que dominam seu país e o mundo. Quero lembrar e reconhecer publicamente sua força de análise das muitas situações de seu país inclusive do resgate que têm feito do islamismo reduzido à mera cumplicidade de forças violentas e cegas. O Islã, ou seja, a religião da paz (Salam) entre as pessoas está sendo pisada em nome de interesses do ocidente e em nome de grupos do oriente que politizam a religião islâmica em favor de poderes e interesses escusos. Ela é bem mais do que isso!

Fica feio declarar publicamente que o medo às mulheres é patente. Os talibãs temem as mulheres. Elas são as avós, as mães e as filhas do povo e não se dobraram mais às fantasias de um poder anacrônico e beligerante que as desvaloriza e exclui. Elas estão mais organizadas do que imaginam, mais lúcidas do que eles, mais articuladas entre elas e mais desejosas de mudar seu mundo de outras maneiras. Elas mudarão ainda mais a história de seu país e já a estão mudando.

Embora algumas testemunhas midiáticas mesmo do Afeganistão só falem da opressão, só se lamentem frente às câmeras de televisão sobre a ação dos opressores talibãs e chorem suas perdas e privilégios a situação real é bem mais complexa.

Há que deixar cada vez mais claro o protagonismo político e religioso de muitas afegãs, sua força, a força de sua voz e de sua resistência nos diferentes rincões do país e sobretudo de diferentes maneiras.

Elas tornarão o Afeganistão uma nova nação, elas concretizarão o sonho de muitas, sonho real de respeito e de convivência com a riqueza cultural das diferenças.

Elas de facto buscam um Salam (Paz) real que se expressa na construção de relações justas desde as pequenas ações solidárias quotidianas e domésticas até as instâncias governamentais de decisão de seu país. Não faltarão dificuldades, não faltaram novas formas de violência e decepções. Mas, as lutas pela dignidade humana e a dignidade de um país são sempre maiores e não se deixarão sucumbir frente as dificuldades.

Viva as mulheres afegãs!

O novo livro de Peter Sloterdijk

'DEPOIS DE DEUS'

As dificuldades do presente correspondem ao diagnóstico de Sloterdijk, e a nossa necessidade de uma esfera global de solidariedade é tão urgente quanto ele afirma. Mas também é verdade que não estamos realmente destinados a viver “depois de Deus”, ou a buscar o nosso abrigo apenas após a partida de Deus. O comentário é de David Bentley Hart, filósofo e teólogo ortodoxo estadunidense. Seu livro mais recente é “That All Shall Be Saved: Heaven, Hell, and Universal Salvation” (Yale University Press). O artigo foi publicado por Commonweal. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

O filósofo-celebridade, espécie em extinção na Europa continental, já está extinto no nosso mundo anglófono. É verdade que, ocasionalmente, um habitante empreendedor de uma das nossas faculdades de filosofia (Daniel Dennett, por exemplo, ou David Chalmers) consegue cultivar um perfil público e vender um número apreciável de livros que, sem serem lidos, ficarão nas prateleiras que servem de imagem de fundo das videoconferências via Zoom.

Às vezes, um teórico estrangeiro exótico com um talento especial para a arte performática (Slavoj Žižek, por exemplo) chama a nossa atenção, pelo menos com o canto do olho. Mas, desde os tempos de Bertrand Russell, nenhum filósofo nativo de língua inglesa alcançou qualquer proeminência popular de verdade. Em parte, sem dúvida, isso é atribuível a um declínio cultural geral na aspiração intelectual, mas é principalmente o resultado do domínio entre nós da tradição analítica, que muitas vezes é uma combinação perfeita entre o tédio formal e a banalidade conceitual. Depois de tornar a nossa filosofia enfadonha, também a tornamos imperceptível.

Portanto, não há realmente nenhum fenômeno na anglosfera hoje comparável ao de Peter Sloterdijk. Na Alemanha, e em grande parte da Europa ocidental, ele desfruta do tipo de visibilidade pública que agora reservamos a maus romancistas populares ou a artistas de segunda linha, embora ele faça pouco esforço para acomodar seu pensamento às limitações da cultura demótica e seja tão prolífico que quase ninguém consegue acompanhar o ritmo do seu trabalho. Parte do seu apelo reside na pura extravagância das suas ideias, e é simplesmente impossível dizer quantos dos seus leitores verdadeiramente o entendem. Mas essa extravagância não deveria ser confundida com superficialidade, e a sua fama não deveria ser descartada como algo acidental ou não merecido.

Sloterdijk levanta questões genuinamente interessantes que nos provocam a pensar de formas novas e às vezes desconfortáveis sobre nós mesmos, ou a nossa cultura, ou o mundo como um todo; e as respostas que ele oferece costumam ser fascinantes, ou pelo menos frutiferamente enfurecedoras. Há também uma espécie de cansaço ostensivo do mundo em seus escritos que pode ser estranhamente encantador. Em certo sentido, seu pensamento é sobrecarregado por aquela profunda consciência histórica que parece ser a vocação peculiar da filosofia continental em seu longo crepúsculo pós-hegeliano. Como resultado, ele tem uma consciência hermenêutica muito afiada da fluidez, ambiguidade e contingência culturais dos termos e conceitos da filosofia para confundi-los com propriedades invariáveis que possam ser absorvidas em algum cálculo proposicional atemporal de uma forma que grande parte da filosofia anglo-americana imagina que pode.

Mas, em outro sentido, é precisamente esse “fardo” da consciência histórica que confere uma paradoxal leviandade ao seu projeto. Muitos dos seus livros parecem expedições em busca de segredos do passado: ancestrais culturais esquecidos, monumentos espirituais apagados, correntes ocultas dentro do fluxo da evolução social. Quer alguém admire ou deplore o seu pensamento – ou tenha uma opinião mista a respeito dele, como eu – ninguém pode plausivelmente alegar que ele é maçador.

O mundo “depois de Deus”

O aparecimento deste livro, portanto, naturalmente suscita certas expectativas. Em grande medida, infelizmente, o próprio livro as decepciona. Idealmente, “After God” seria uma declaração contínua, concentrada e definitiva sobre os temas religiosos que Sloterdijk abordou com frequência no passado, mas apenas obliquamente. Em vez disso, trata-se de uma coleção de artigos e conferências díspares, alguns deles publicados anteriormente, e, como resultado, sofre de mais do que algumas repetições desnecessárias, lacunas exasperantes e fluxos de reflexão tentadoramente abortivos.

No entanto, se lido com um certo grau de paciência, ele fornece uma visão bastante completa da compreensão de Sloterdijk sobre a situação cultural e histórica da humanidade moderna. Definitivamente, é uma fotografia do mundo que passa a existir “depois de Deus” – ou seja, após a “morte de Deus”, a perda por parte da cultura moderna do horizonte abrangente de significado último que antes moldava e sustentava a existência humana. E, mesmo que a fotografia apresentada aqui seja incompleta, ela é rica em detalhes interessantes e ocasionalmente deslumbrantes.

Devo observar que o próprio Sloterdijk é manifestamente incapaz de crença religiosa e, em certa medida, considera claramente tal crença como uma possibilidade cultural e psicologicamente esgotada (mesmo que, como Nietzsche observou há muito tempo, nem todos tenham ficado sabendo da notícia sobre a morte do Bom Velhinho). Mas não há nada de triunfalista em seu ateísmo. Seu projeto – de modo controverso quando ele apareceu em cena pela primeira vez – segue em grande parte a tradição de Nietzsche e Heidegger, e ele está perfeitamente ciente de que a história da gênese da modernidade é também a genealogia de um niilismo metafísico quase inescapável.

Assim como seus dois antecessores problemáticos, ele desdenha da narrativa canônica do “Iluminismo” e quer pensar o seu caminho para além do “humanismo” complacente da era moderna, com seus destrutivos antropocentrismos, egoísmos e esquecimentos do mistério do mundo. Ele não é tão apocalíptico nem tão militantemente melancólico quanto Nietzsche ou Heidegger, mas, ao mesmo tempo, talvez esteja mais consciente do que eles do perigo real de uma época em que as crenças que uma vez forneciam nossos paradigmas culturais e psicológicos foram evacuadas do seu poder de persuadir ou inspirar.

História “psicopolítica” e “almificação” humana

A inseparabilidade desses paradigmas – o cultural e o psicológico – é um princípio-guia do pensamento de Sloterdijk. Ele emprega a linguagem da psicologia e da psicoterapia com muito mais conforto do que a maioria dos filósofos, mas se sente livre para fazer isso em grande parte porque não limita o psicológico ao âmbito do temperamento individual. Para ele, o curso do desenvolvimento cultural e o curso da evolução psíquica são um mesmo processo visto de pontos de vista diferentes. Assim, ele frequentemente fala em termos de história “psicopolítica” ou das diferentes épocas da “almificação” humana. Ele vê a história humana não apenas como uma crônica de condições materiais e sociais em mudança, mas também como um registro das formas mutáveis de interioridade que definem a “essência” humana.

Somos seres históricos; mesmo as nossas almas mais interiores são construções históricas; e isso ocorre principalmente porque possuímos a linguagem. “A doutrina do humano como o ser por meio do qual existe a fala assume inevitavelmente uma forma mediúnica radicalizada.” Sloterdijk fala até com simpatia da prática católica tradicional do exorcismo, enraizada como está no “xamanismo pré-cristão”, porque presume sabiamente um conceito da alma como um lar ou uma gruta aberta através da qual as forças espirituais vêm e vão.

Dada a plasticidade essencial da nossa natureza, a pergunta primária que devemos nos fazer é como chegamos a ser “almificados” do modo como fomos. Como chegamos ao nosso entendimento de nós mesmos como sujeitos autocriadores, seres cuja essência própria é a autonomia racional absoluta, habitando um mundo que existe para nós apenas como um objeto a ser explorado pela nossa vontade de poder?

E, então, devemos nos perguntar a questão seguinte, se, em consequência dessa história psicopolítica, nós agora destruímos efetivamente a nossa capacidade para aquilo que Sloterdijk chama de “coimunidade” contra os patógenos históricos que nos ameaçam.

Qualquer resumo do projeto filosófico maior de Sloterdijk provavelmente soará um pouco absurdo. Eu suspeito que ele tem toda a intenção de que assim seja. Mas, por trás da máscara de carnaval que ele frequentemente opta por vestir, há um filósofo sério com o seu olhar fixo nas dificuldades reais da nossa natureza e da nossa situação histórica como seres humanos da modernidade tardia.

Esferas”, comunidades e “coimunidades”

Sua magnum opus (até este ponto, pelo menos) é a sua amplamente imensa, compulsivamente envolvente e ocasionalmente bizarra trilogia “Esferas”, uma obra de originalidade impressionante e de idiossincrasia desenfreada. É impossível resumi-la, mas em seu cerne jaz um tipo de versão psicofísica do mito do Éden.

Todos nós começamos a nossa existência na segurança do útero, o espaço “intrauterino” onde flutuamos serenamente nos nossos pequenos mares amnióticos, envoltos nas esferas protetoras das nossas placentas. Nossa primeira experiência de alteridade – nossa primeira intuição de nós mesmos como diferenciados do cosmos como um todo – é, de fato, a experiência dos tecidos que nos envolvem e nos protegem. Esse estado, então, é sucedido, mas não necessariamente substituído, por um abraço maternal e, em seguida, por incontáveis outras clareiras protegidas na escuridão do ser. Mas esse primeiro lar sempre permanecerá como uma memória potente que permeia e molda nossas vidas individuais, sociais e espirituais.

O drama da existência humana, portanto – tanto pessoal quanto social – sempre foi a busca e a criação de novas e mais duráveis esferas de imunidade da essência nua e inóspita do mundo; e o alcance dessas esferas, ao longo do tempo, expandiu-se, desde as mais animais e locais até as mais ideais e universais. A toca, a aldeia, o Estado, o império, a ordem liberal internacional; as exóticas generosidades da natureza, o campo cultivado, o vilarejo agrupado, a cidade ramificada, a Cidade do Homem; os temenos locais, o culto tribal, os deuses e espíritos da natureza, os poderes superiores dos céus, as autoridades espirituais cada vez mais universais, os princípios espirituais cada vez mais “verticalmente” transcendentes – o Deus Altíssimo. Todas são esferas da comunidade e da “coimunidade”. Todas têm suas causas, ocasiões e calamidades “psico-históricas”. E todas podem ser – e, de fato, foram – despedaçadas no curso da nossa jornada rumo ao nosso estado atual.

Sem dúvida, há mais do que uma sugestão de divertida perversidade na interpretação “placentária” de Sloterdijk sobre a história e a psicologia humana; mas há também uma poderosa intuição moral a respeito da natureza da dependência humana em relação aos outros e ao mundo ao nosso redor. Além disso, não é a sua intenção fornecer um diagnóstico clínico de alguma “ilusão” que deva ser superada. Por mais freudiana que às vezes seja a linguagem de Sloterdijk, ele tem pouca paciência com a crença severamente “iluminada” de Freud de que devemos amadurecer além dessa nostalgia do útero, ou além das fantasias “infantis” que nos sustentam.

Da mesma forma, por mais heideggeriano que seja o seu senso da essência histórica da humanidade, Sloterdijk compartilha pouco da devoção lúgubre de Heidegger ao mito de um primeiro momento perdido de pureza ontológica. De fato, ele considera a sua “esferologia” como um corretivo à imagem curiosamente solitária de Heidegger do lugar do Dasein no mundo. É uma “espacialização”, como ele diz, da narrativa de Heidegger sobre o “lançamento” humano (Geworfenheit).

Chegamos à existência não dentro do “lá” inexpressivo do homem deslocado brandindo seu martelo na solidão indigente ou heroica; em vez disso, somos “colocados”, desde o início, em locais de relação, tanto interpessoais quanto interanimais – locais que alimentam quaisquer poderes de fruição que possamos possuir e nos protegem da “monstruosidade” de um mundo encontrado an sich. Justamente por essa razão, até mesmo o desabrigo da humanidade tardo-moderna não é um destino inescapável do qual “apenas um deus pode nos salvar”.

A transição “psico-histórica” da Era Axial

Dito isso, Sloterdijk acredita que a humanidade não experimentou nenhuma transição “psico-histórica” mais cheia de consequências do que a da Era Axial, que foi o início de uma história de afastamento progressivo das formas mais primordiais e particulares de pertencimento humano e, portanto, também o início da busca incessante da humanidade por esferas de imunidade cada vez mais elevadas e seguras.

A visão claramente sardônica de Sloterdijk sobre o conto do “Iluminismo” se dirige não apenas aos privilégios pontificais que o conto pretende conferir aos seus contadores – o tipo que floresceu no Terror Jacobino, assim como em todas as atrocidades e coerções “racionalistas” que se seguiram. Dirige-se também à ingenuidade daqueles que não reconhecem que o “Iluminismo” moderno é, para o bem e para o mal, o culminar de uma história muito longa de revoluções e libertações religiosas.

Por pelo menos dois milênios e meio, a humanidade tem sido o produto psico-histórico de um antigo impulso de se afastar da superstição bárbara em relação a uma “alta cultura” de adesão racional a algum princípio espiritual elevado e unificado – Brahma, Tao, o Bem além do Ser, o Deus Único – e assim sair dos matadouros rituais do culto e entrar nas escolas de doutrina.

Desde o início, esse processo envolveu um certo impulso da alma para sair dos seus primeiros abrigos orgânicos e locais rumo a cidadelas de certeza mais abstratas. Junto com isso, inevitavelmente, veio um certo distanciamento da vida. Consequentemente, esse impulso muitas vezes se expressou como a busca de uma sabedoria que transcende o mundo, uma busca por libertação ou moksha, um contemptus mundi que frequentemente se torna um medo neuroticamente fastidioso de ser tocado.

O impulso atinge uma expressão extrema naqueles virtuosos do desespero que as religiões desenvolvidas consideram como sagrados ou sábios ou excepcionalmente iluminados. Essas são almas para as quais a exaltação absoluta de um único princípio incorruptível de “verdade” espiritual é um chamado ao remorso incessante, um trabalho psíquico incomensurável de arrependimento, uma busca pela liberação final apenas em um âmbito além da trivialidade da humanidade comum.

O místico em um estado de contemplação fundida retornou a algo como aquele estado de “flutuação” intrauterino e aborígine – mas agora no “útero” do Deus Único, que é a esfera de imunidade mais impregnável que se possa imaginar.

O processo de “monoteologização”

O capítulo de “After God” dedicado ao gnosticismo, embora sendo o mais desigual em sua compreensão erudita dos materiais, oferece uma interpretação afiada do impulso gnóstico como o gesto característico dessa ascensão “axial” a uma transcendência cada vez mais vertical. É o mesmo impulso ou pathos que se encontra na distinção joanina entre estar “no” mundo e ser “dele”. Todos os elevados dualismos da Era Axial contribuíram para o domínio crescente da humanidade sobre qualquer número de distinções instrumentalmente úteis: alma e coisa, alma e mecanismo, subjetividade e objetividade, propósito e ferramenta, e assim por diante.

E o processo de “monoteologização” por meio do qual níveis mais elevados de divindade progressivamente subordinaram e expulsaram âmbitos e poderes divinos intermediários – um processo que alcançou um de seus zênites mais importantes no primeiro relato da criação no Gênesis, em que o Deus criador é descrito como radicalmente superior à sua criação – também foi a progressiva almificação dos seres humanos como seres soberanos isolados, indivíduos à imagem do único Deus Altíssimo, pessoas plenamente realizadas e, finalmente, subjetividades modernas.

A história cristã leva essa história a um de seus divisores d’água epocais. No Evangelho, há um ataque radical contra todas as estruturas mediadoras da autoridade patriarcal – todas as instituições religiosas e sociais, todos os ofícios estabelecidos de linhagem e privilégio, todas as posições aninhadas de parentesco, povo, reino, império e sacerdócio – pela reivindicação da alma individual de uma filiação imediata ao Deus Único.

Para Sloterdijk, Cristo é o “bastardo de Deus”, o filho natural do Pai, por assim dizer, concebido e nascido fora de todas as linhas legítimas de herança e de todas as estruturas lícitas de autoridade. E a sua revolta antipatriarcal tornou-se com o tempo uma licença concedida a todas as almas: agora cada um de nós, na nossa humanidade individual, libertado por essa apostasia social e espiritual, pode se tornar também um bastardo de Deus, alguém em quem Deus habita diretamente como Pai.

Ao mesmo tempo, e pela mesma lógica, uma nova ordem de desejo social e político foi implantada na natureza humana: a do “igualitarismo infinito”, uma passagem da psicopolítica do comando e da obediência a uma psicopolítica de autodeterminação paritária, a transformação da diferença vertical em horizontal.

Aqui, novamente, a imagem favorita de Sloterdijk é o exorcismo, que deve ser entendido, acredita ele, como uma espécie de purificação de um espaço sagrado, uma limpeza do Templo. A alma já foi concebida “nem como um teatro nem como uma fábrica, como é típico da era moderna, mas sim como um santuário no qual nenhuma imagem podia ser exibida, exceto a do deus-homem – cuja imagem, por sua vez, tinha que representar um Deus indescritível”.

A fonte de uma individualidade soberana

Ao expulsar as forças espirituais mais elementares que antes reinavam com tal capricho na natureza, na sociedade e na alma, o princípio transcendente Uno da Era Axial também se tornava a fonte de uma individualidade soberana. Isso porque a expulsão de maus espíritos da alma tinha que ser completada pela subsequente “entrada de um princípio brilhante, que, como guardião da alma purificada, se tornava o seu novo monitor e fonte de inspiração”. A alma, assim, sofria uma mudança de possessão: agora era o próprio Espírito de Deus que agia dentro dela.

Essa purificação dos recintos internos do “eu” podia ser uma experiência totalmente religiosa, mas também era um episódio crucial na história do Iluminismo e, portanto, da secularização. Pois, quando a mais elevada das esferas protetoras finalmente se despedaçava – como tinha de acontecer – o “eu” soberano se tornava o único santuário remanescente de quaisquer mistérios que ainda restassem. Todas as outras possibilidades de proteção haviam sido sucessivamente exauridas e, então, haviam sido assumidas naquela transcendência final e finalmente haviam desaparecido com ela.

Não que o desejo por essas outras proteções tenha diminuído. Após a partida de Deus, as tentativas da humanidade de se retirar novamente para uma esfera protetora assumiram muitas formas. Para alguns, a liberdade sagrada dos bastardos de Deus se tornou uma luta idealista e psicoterapêutica para fortalecer o ego sitiado contra as profundezas divinas do inconsciente. Todos os ofícios de conforto religioso agora tinham de ser desempenhados pela própria alma, por meio de uma autovigilância e autoabsolvição incessantes.

Para outros, a retirada da religião nas sociedades avançadas possibilitou que a fé se tornasse um regime experimental individualizado – uma “vontade de crer”, entendida como uma espécie de terapia privada e construtivista ou higiene psíquica, naturalmente tendendo na direção do misticismo (Sloterdijk considera William James o mais impressionante defensor dessa pós-religião, dessa religião-como-suplemento vitamínico totalmente americanizada). Para outros, há fanatismos fideístas e dogmatismos reacionários para preencher as ausências deixadas pelo enfraquecimento de uma fé viva. Em todo o caso, as velhas devoções e encantos são irreparáveis. Sem nenhum Deus para nos vigiar, realmente não há nenhum pecado a ser resolvido perante o seu olhar e, portanto, nenhum poder que possa nos reconciliar com um destino indecifrável ou nos resgatar dele.

Espaço “hiperimanente”

O ser humano moderno não quer obedecer a um poder superior, mas quer ser esse poder. Assim que Deus e a alma foram liquidados, ficamos apenas com o mundo como um evento bruto. Nesse espaço “hiperimanente”, uma energia sem propósito desdobra-se à toa ao nosso redor, sem sinais para nos guiar através do terreno sem características próprias.

O mundo realmente se tornou um monstro para nós, e nós, longe de encontrarmos abrigo em quaisquer terríveis esferas de coimunidade, descobrimos apenas que o êxodo controlado rumo à liberdade final que nos foi prometida pelo mito do Iluminismo, em vez disso, provou ser um deslizamento precipitado rumo à desintegração social e ecológica, uma errância psíquica e aquilo que Sloterdijk chama de “heteromobilidade” desabrigada.

As ciências, é claro, podem não notar a monstruosidade do mundo, mas a filosofia sim, e então deve perguntar o que devemos fazer agora. A resposta, no entanto, é evasiva. A religião, claramente, não voltará a retomar a sua antiga autoridade. Tais religiões que ainda existem entre nós são, no máximo, na visão de Sloterdijk, subsistemas sociais locais nos limites da vida cívica.

Mesmo as Igrejas, ao invés de serem associações de almas verdadeiramente orgânicas ocupando o centro das atenções, são sodalícios marginais, cujo único propósito real é alimentar e controlar uma profunda melancolia sobre a impossibilidade da Igreja de antanho. Vários simulacros de religião orgânica – espiritualidades terapêuticas, fundamentalismos, seitas apocalípticas, autoritarismos integralistas e assim por diante – podem prosperar por um tempo aqui ou ali. O anseio religioso pode aumentar brevemente onde o estado de bem-estar social começa a se retirar ou a sociedade civil se torna muito caótica. Mas não encontramos nenhuma verdadeira esfera de coimunidade social adequada à nossa era de “hiperpolíticas” globalizadas e de crise ecológica. E mesmo a imunidade privada pode ser preservada ao longo do tempo apenas dentro do abraço de tal esfera.

Sloterdijk identifica três tipos de sistema imunológico que ele considera necessários para a existência humana: o biológico (naturalmente), o social (que consiste na solidariedade e no apoio compartilhado) e o simbólico ou ritual (que concede aos seres humanos o poder de fontes superiores sempre que eles se sentem impotentes).

O terceiro deles foi enfraquecido irreparavelmente pela secularização e pelo individualismo, enquanto o segundo foi submetido a contínuas diluições e dissoluções. Ainda não descobrimos nenhum sistema eficiente de coimunidade para a sociedade global que agora está emergindo, nem inventamos nenhum novo abrigo contra a monstruosidade de um mundo de destino vazio.

Se eu dei a impressão de que a grande narrativa de Sloterdijk é simplesmente um conto de declínio, é apenas porque me limitei à sua crítica a uma certa narrativa-padrão do moderno. Ele acredita, é verdade, que, em uma era de crise ecológica global e de fragmentação social e política, algo como o poder da religião para criar comunidade e solidariedade é extremamente necessário.

Nova esfera de solidariedade

Ele nota o rugido melancólico, longo e retraído da fé com uma certa tristeza irônica. Ele detesta veementemente, por exemplo, o consumismo irreverente dos turistas que perambulam pelas catedrais vestidos para a praia e tirando fotos. Mas ele absolutamente não deseja retornar aos mitos ou hierarquias do passado. Ele também não se enfurece contra a tecnologia abstratamente, nem mesmo se resigna a ela com pesar em um acesso de anomia heideggeriana. A partir do momento em que um ser humano rachou uma pedra com outra, o nosso destino foi empregar a força ordenada contra a força desordenada, a fim de alcançar os nossos objetivos, e não podemos esperar um futuro melhor que também não seja feito de proezas tecnológicas.

Em vez de uma tentativa de retirada para um passado irrecuperável, Sloterdijk acredita que realmente precisamos de uma nova esfera de solidariedade que possa abranger toda a vida, um abrigo forte o suficiente para criar uma coimunidade robusta para o todo indefeso: uma sociedade global, vida animal e vegetal, a natureza, a própria terra. A religião foi irremediavelmente perdida como um sistema vinculante de valores, de modo que precisamos de uma nova piedade dedicada e sustentada pela unicidade da terra que habitamos, compartilhamos e da qual dependemos.

No que diz respeito a Sloterdijk, além disso, a história da revelação – se é que se pode usar essa palavra – continuou até os dias atuais, e há muitas coisas que aprendemos no caminho para a modernidade, como a nobreza da busca “orgulhosa” da alma do indivíduo por um sistema de liberdade pessoal. Há lições que não devemos abandonar ou nos permitir esquecer se quisermos criar um futuro habitável. Para ele, elas constituem um “Novo Testamento”.

Aqui, pelo menos para mim, os detalhes tendem a se tornar um pouco nebulosos. Acho a política de Sloterdijk amplamente ininteligível, embora eu admita que ela possa ter algum tipo de coerência profunda que eu simplesmente não consegui captar. Tudo o que consigo ouvir são as dissonâncias.

Às vezes, ele pode soar tão infantilmente fútil quanto qualquer libertário estadunidense fulminando contra as disposições do bem-estar social. Em outras ocasiões, ele dá voz a um desdém saudável pelo culto democrático liberal da mediocridade, assim como pela prisão da rotina na qual o Estado moderno e a economia moderna mantêm tantas pessoas cativas. Em outras ocasiões, seu pavor nietzschiano da era dos “Últimos Homens” parece sobrepujar a sua visão de solidariedade global e o seu senso da nossa patética dependência humana das esferas de coimunidade.

No entanto, é essa visão e esse senso, assim como a humanidade essencial e despretensiosa de ambos, que iluminam e guiam o seu pensamento da melhor forma. Mesmo assim, como eu continuo tão pouco convencido da existência real da visão política mais ampla de Sloterdijk quanto da existência real de seres mitológicos, eu não estou disposto a dilatar o conteúdo das primeiras mais do que a especular sobre a biologia dos últimos.

O posicionamento dos cristãos

O que os cristãos podem fazer diante de toda essa história? Por que eles deveriam se importar? Bem, para começar, eles deveriam reconhecer que Sloterdijk, ao confirmar o diagnóstico de Nietzsche sobre a morte de Deus no mundo desenvolvido, não está fazendo nada mais do que declarar um fato histórico evidente.

O desaparecimento daquele horizonte transcendente de significado e esperança em cujo abraço cômodo quase todas as pessoas e culturas uma vez subsistiram é simplesmente um fait accompli. O extremismo frenético dos fundamentalismos e dos nacionalismos religiosos e integralismos cripto-fascistas do nosso momento atual atesta de forma pungente a natureza inconcebível para a cultura moderna tardia de um Deus que é qualquer outra coisa exceto a construção tanto da vontade de poder quanto de uma necessidade emocional desesperada.

Nada disso é um verdadeiro sinal de um reavivamento da fé; tudo isso são apenas as contrações hediondas de um rigor mortis que se aprofunda. E, na medida em que o cristianismo genuinamente vivo do passado foi a fonte vital do “Iluminismo” no mundo ocidental, o afastamento desse cristianismo por parte da cultura ocidental levou embora todas as possibilidades anteriores de “coimunidade” que ele resumia em si mesmo.

As épocas do espírito não são reversíveis, nem mesmo suscetíveis de recapitulação. Essa é uma visão hegeliana da qual ninguém deveria duvidar: grandes transições históricas e culturais não são meramente rupturas, mas também momentos de crítica. A racionalidade da história jaz no triunfo incessante da experiência sobre a mera teoria e, portanto, na impossibilidade de qualquer simples retorno às ingenuidades pré-críticas. Mais cedo ou mais tarde, quase toda economia cultural é derrotada pelas suas próprias contradições internas, impedindo a interrupção desse processo natural por uma repentina conquista externa. E a nova ordem que a sucede provavelmente não está mais livre de contradições próprias, que, por sua vez, ficarão expostas.

Mais precisamente, o colapso de toda ordem cultural é também a exaustão da síntese que essa cultura encarnava. A inocência cede ao desencanto, e o desencanto não pode se reverter em inocência.

Entre cristandade e cristianismo

Certamente, isso foi provado no caso da cristandade e da sua sequência, a secularização. A cristandade do império ou do Estado-nação, sendo uma liga de dois princípios irreconciliáveis em última instância, inevitavelmente se subverteu. Ela persistiu por tanto tempo em virtude de uma devoção cultual genuinamente orgânica com uma infraestrutura prática e teórica durável. Mas as suas contradições inerentes acabaram destruindo essa base.

A linguagem e os princípios do Evangelho frequentemente iluminavam a sociedade que os estimava; os ofícios e os poderes do Estado consistentemente protegiam, preservavam e promoviam a religião que os legitimava. Mas a aliança era um pacto suicida. O solvente mais devastador da cristandade, no fim, foi a presença indelével do cristianismo dentro dela. A força corrosiva mais destrutiva do cristianismo como fonte confiável de ordem social foi, no fim, o fardo esmagador da cristandade sobre ele.

A resistência a esse destino sempre se revelou infrutífera, precisamente porque tendeu a proceder a partir de dentro da racionalidade da velha cristandade. Na cultura católica, por exemplo, pelo menos desde o tempo do Concílio de Trento, a luta contra a realidade da fragilidade intrínseca da velha ordem tem sido constante e totalmente fútil. Tem sido como uma tentativa de salvar uma casa já engolida pelo mar, acrescentando novas fechaduras às suas portas.

Apesar das inúmeras riquezas culturais e sociais criadas pela acomodação instável entre o Evangelho e o império – e mesmo que muitas dessas riquezas ainda pudessem ser recuperadas dentro de uma nova síntese cristã –, mesmo assim a cristandade do passado era uma catástrofe fecunda, e o seu terminus inevitável sempre foi o secularismo. E, com o passar do tempo, esse secularismo acabou se tornando um niilismo metafísico totalmente autoconsciente.

Quanto à ordem secular liberal que se sucedeu à cristandade, as suas próprias tensões e volatilidades internas são muito óbvias. No campo econômico, ela criou prodígios de produção e destruição material, assim como formas de poder e opressão em uma escala antes inimaginável.

Na esfera social, ela criou lutas incessantes entre visões incompatíveis do bem, embora não fornecendo nenhum índice transcendente claro de valores para julgar os seus conflitos. Para o bem ou para o mal, ela eliminou ou marginalizou quase todas as formas mediadoras ou subsidiárias de agência social e reduziu a ordem social significativa às reivindicações interdependentes, mas necessariamente antagônicas, do Estado, do capital e do indivíduo soberano.

E Sloterdijk tem toda a razão: nessas condições, temos pouca defesa contra as calamidades ecológicas e sociais que criamos para nós mesmos. Portanto, novamente, dadas essas realidades, o que os cristãos devem fazer?

Secularismo, a fase terminal da cristandade

Certamente, o que eles não deveriam fazer é se entregar a nostalgias e ressentimentos doentios, ou acalmar seus distúrbios com fantasias restauracionistas infantis. A crítica imanente da história expôs muitas das velhas ilusões por aquilo que elas eram, e não pode haver um retorno inocente às estruturas de poder cujas hipocrisias foram tão claramente reveladas.

Existem inúmeras razões, por exemplo, para rejeitar a atual voga do “integralismo” católico de direita: seus voos imbecis de fantasia em relação a um papado imperial; seu modelo essencialmente moderno de absolutismo eclesial; sua devoção a um quadro de ordem social e política cristã que não poderia ser menos “integralista” ou mais “extrínseco” e autoritário em seus mecanismos; o elemento perturbadoramente palpável de devaneio sadomasoquista em seu endosso a várias formas extremas de coerção, subjugação, violência e exclusão; a ausência total do ethos real de Cristo entre seus objetivos; a sua estranha semelhança com uma convenção de entusiastas do Star Trek discutindo seriamente sobre estratégias para realmente estabelecer uma Federação Unida de Planetas.

Mas a maior razão para desprezar todo o movimento é que ele nada mais é do que um esforço ressentido para reconstituir a própria história de fracasso cujas consequências ele deseja corrigir. O secularismo não foi imposto ao mundo cristão por alguma força hostil adventícia. Ele simplesmente é a velha cristandade em sua fase terminal.

Nessa medida, os cristãos têm muito a aprender com a narrativa de Sloterdijk, mesmo que possam contestar alguns de seus detalhes. Dito isso, o adorável fardo de consciência histórica de que eu falava acima também pode incapacitar a imaginação política e moral. “Genealogia” demais – história demais, como Nietzsche advertia – pode produzir um fatalismo paralisante. O próprio Sloterdijk está perfeitamente ciente disso, mas é notável o quão paroquial é a sua suposição de que a situação atual do Ocidente deve determinar o futuro da religião, ou mesmo apenas a “esfera” cristã da imunidade.

Ele pode estar certo, é claro, mas eu acho que às vezes ele deixa de avaliar o grau em que a história é sempre um âmbito de novidades radicais. A genealogia tende a criar a impressão de que a evolução cultural é governada por uma lei inflexível de causalidade eficiente e material, mas, de fato, os processos históricos são constantemente redirecionados por causalidades formais e finais que simplesmente não podem ser previstas.

Outra visão social cristã

As configurações da velha ordem cristã são irrecuperáveis agora, e, em muitos aspectos, é melhor assim. Mas as possibilidades de outra visão social cristã, talvez radicalmente diferente, ainda precisam ser exploradas e cultivadas. Castigado por tudo o que foi aprendido com os fracassos do passado, livre da nostalgia e do ressentimento, ansioso por reunir todos os fragmentos mais úteis, belos e enobrecedores do edifício em ruínas da velha cristandade a fim de integrá-los em padrões melhores, os cristãos ainda podem ser capazes de imaginar uma síntese social e cultural completamente diferente.

O pensamento cristão sempre pode retornar ao novum apocalíptico do evento do Evangelho em seu primeiro início e, haurindo um renovado vigor dessa fonte inesgotável, imaginar novas expressões do amor que ele deve proclamar ao mundo e novos caminhos para além do impasse do presente.

O resultado final, se os cristãos conseguirem se libertar do mito de uma era de ouro perdida, pode ser algo mais selvagem e estranho do que podemos conceber atualmente, ao mesmo tempo mais primitivo e mais sofisticado, mais anárquico em alguns aspectos e mais ordenado em outros.

Se tal coisa é possível ou não, no entanto, é necessário compreender que o lugar onde nos encontramos agora não é um destino fixo. Ele se torna isso somente se estivermos indispostos a distinguir a grandeza opulenta, mas frequentemente decadente, da cristandade da verdadeira glória cristã da qual ela ficou tão aquém.

As dificuldades do presente são tão formidáveis quanto sugere o diagnóstico de Sloterdijk, e a nossa necessidade de uma esfera global de solidariedade que possa realmente abrigar a vida do todo é tão urgente quanto ele afirma. Mas também é verdade que não estamos realmente destinados a viver “depois de Deus”, ou a buscar o nosso abrigo apenas após a partida de Deus.

De facto, de todos os futuros que podemos imaginar, esse pode ser o mais impossível de todos.

(Peter Sloterdijk. After God. Tradução ao inglês de Ian Alexander Moore. Ed. Polity, 280 páginas).

Edição 169,junho 2021

Boaventura de Sousa Santos

15 TESES SOBRE O PARTIDO-MOVIMENTO

Neste momento de lutas defensivas é importante defender a democracia liberal, representativa para neutralizar os fascistas e para a partir dela radicalizar a democratização da sociedade e da política. Só o partido-movimento pode travar esta luta”, escreve Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado por Outras Palavras /IHU.

Que fazer, se as desigualdades explodem e a “velha política” desencanta maiorias? Defender instituições exauridas, mas ameaçadas pelo fascismo? Tatear em busca de nova democracia, ainda incerta? Ou combinar as duas ações — mas como?

1. Não há cidadãos despolitizados; há cidadãos que não se deixam politizar pelas formas dominantes de politização, sejam elas partidos ou movimentos da sociedade civil organizada. Os cidadãos e as cidadãs não estão fartos da política, mas sim desta política; a esmagadora maioria dos cidadãos não se mobiliza politicamente nem sai à rua para se manifestar, mas está cheia de raiva em casa e simpatiza com quem se manifesta; em geral, não tem condições para aderir a partidos ou participar em movimentos ou interesse em o fazer, mas quando vem para a rua só surpreende as elites políticas que perderam o contato com “as bases”.

2. Não há democracia sem partidos, mas há partidos sem democracia. Uma das antinomias da democracia liberal do nosso tempo reside em ela assentar cada vez mais nos partidos como forma exclusiva de agência política, ao mesmo tempo que os partidos são internamente cada vez menos democráticos. Tal como a democracia liberal, a forma partido-tradicional esgotou o seu tempo histórico. Os sistemas políticos democráticos do futuro têm de combinar a democracia representativa com a democracia participativa a todos os níveis de governação. A participação cidadã tem de ser multiforme e multicanais. Os próprios partidos devem ser internamente constituídos por mecanismos de democracia participativa.

3. Ser de esquerda é um ponto de chegada e não um ponto de partida e, portanto, prova-se nos factos. A esquerda tem de voltar às suas origens, aos grupos sociais excluídos, que ela esqueceu há muito tempo. A esquerda deixou de falar ou de saber falar com as periferias, com os mais excluídos. Quem fala hoje com as periferias e com os mais excluídos são as igrejas evangélicas pentecostais ou os agitadores fascistas. Hoje, o ativismo de esquerda parece limitar-se a participar numa reunião do partido para fazer (quase sempre ouvir quem faz) uma análise de conjuntura. Os partidos de esquerda, tal como existem hoje, não são capazes de falar com as vozes silenciadas das periferias em termos que estas entendam. Para mudar isso, a esquerda, ou melhor, as esquerdas devem ser reinventadas.

4. Não há democracia, há democratização. A responsabilidade da esquerda reside em que só ela serve genuinamente a democracia. Não a limita ao espaço-tempo da cidadania (democracia liberal). Pelo contrário, luta por ela no espaço da família, da comunidade, da produção, das relações sociais, da escola, das relações com a natureza e das relações internacionais. Cada espaço-tempo convoca um tipo específico de democracia. Só democratizando todos os espaços-tempo é que se consegue democratizar o espaço-tempo da cidadania e da democracia liberal representativa.

5. O partido-movimento é o partido que contém em si o seu contrário. Para ser um pilar fundamental da democracia representativa, o partido-movimento deve ser construído por processos não representativos e antes participativos e deliberativos. Nisto consiste a passagem da forma partido-tradicional para a forma partido-movimento. Consiste em aplicar à vida interna dos partidos a mesma ideia de complementaridade entre democracia participativa/deliberativa e democracia representativa que deve orientar a gestão do sistema político em geral. A participação/deliberação respeita a todos os domínios do partido-movimento, da organização interna à definição do programa político, da escolha de candidatos às eleições à aprovação de linhas de ação na conjuntura.

6. Ser membro da classe política é algo sempre transitório. Tal qualidade não deve permitir que se ganhe mais do que o salário médio do país; os membros eleitos para os parlamentos não inventam temas ou posições, veiculam os que provêm das discussões nas estruturas de base; a política partidária tem de ter rostos, mas não é feita de rostos; o ideal é que haja mandatos coletivos que permitam a rotação regular de representantes durante a mesma legislatura; a transparência e a prestação de contas têm de ser totais; o partido é um serviço dos cidadãos para os cidadãos e por isso deve ser financiado por estes e não por empresas interessadas em capturar o Estado e esvaziar a democracia.

7. O partido-movimento é uma contra-corrente contra dois fundamentalismos. Os partidos convencionais sofrem de um fundamentalismo anti-movimento social. Consideram que têm o monopólio da representação política e que esse monopólio é legítimo, precisamente porque os movimentos sociais não são representativos. Por sua vez, muitos movimentos sofrem de um fundamentalismo anti-partido. Consideram que qualquer colaboração ou articulação com os partidos compromete a sua autonomia e diversidade e acaba sempre em tentativa de cooptação. Enquanto a democracia representativa estiver monopolizada por partidos anti-movimento e a democracia participativa por movimentos sociais, ou associações anti-partido, não será possível qualquer articulação entre democracia representativa e participativa com prejuízo para ambas. É preciso vencer esses dois fundamentalismos.

8. O partido-movimento combina a ação institucional com a ação extra-institucional. Os partidos tradicionais privilegiam a ação institucional, dentro dos quadros legais e com mobilização das instituições, tais como, o parlamento, os tribunais, a administração pública. Pelo contrário, os movimentos sociais, embora utilizem também a ação institucional, recorrem muitas vezes à ação direta, aos protestos e manifestações nas ruas e nas praças, aos sit-ins, à divulgação de agendas por via da arte (o artivismo). Em face disto, a complementaridade não é fácil e tem de ser pacientemente construída. Não podemos generalizar as condições de ação coletiva: há condições políticas em que as classes que estão no poder são muito repressivas, muito monolíticas; há outras em que são mais abertas, menos monolíticas, e há muita competição entre elas. Quanto mais competição entre elites, mais brechas se abrem para que por elas entrem o movimento popular e a democracia participativa. O importante é identificar as oportunidades e não as desperdiçar. São muitas vezes desperdiçadas por razões de sectarismos, dogmatismos, carreirismos. A prática dos movimentos tem frequentemente de oscilar entre o legal e o ilegal. Em alguns contextos, a criminalização da contestação social está reduzindo a possibilidade tanto da luta institucional como da luta extra-institucional legal. Nesses contextos, a ação coletiva pacífica pode ter de enfrentar as consequências da ilegalidade. Sabemos que classes dominantes sempre usaram a legalidade e a ilegalidade segundo as suas conveniências. Não ser classe dominante reside precisamente em ter de contar com as consequências da dialética entre legalidade e ilegalidade e proteger-se na medida do possível.

9. A revolução da informação e as redes sociais não constituem, em si, um instrumento incondicionalmente favorável ao desenvolvimento da democracia participativa. Pelo contrário, podem contribuir para manipular a tal ponto a opinião pública que o processo democrático pode ser fatalmente desfigurado. O exercício da democracia participativa necessita hoje, mais do que nunca, de reuniões presenciais e discussões face a face. A tradição das células partidárias, dos círculos de cidadãos, dos círculos de cultura, das comunidades eclesiais de base tem de ser reinventada. Não há democracia participativa sem interação de proximidade.

10. O partido-movimento assenta na pluralidade despolarizada e no reconhecimento das competências específicas. A pluralidade despolarizada é aquela que permite distinguir entre o que separa e o que une as organizações e promover as articulações entre estas com base no que as une, sem perder a identidade do que as separa. O que as separa apenas fica em suspenso por razões pragmáticas. O partido-movimento tem de saber combinar questões generalistas com questões setoriais. Os partidos tendem a homogeneizar as suas bases sociais e a centrar-se nas questões que as abrangem a todas ou a largos setores delas. Pelo contrário, os movimentos sociais tendem a concentrar-se em temas mais específicos, tais como o direito à habitação, a imigração, a violência policial, a diversidade cultural, a diferença sexual, o território, a economia popular, etc. Trabalham com linguagens e conceitos distintos dos que são usados pelos partidos. Os partidos podem sustentar uma agenda política com mais permanência que os movimentos. O problema de muitos movimentos sociais reside na natureza da sua irrupção social e mediática. Em determinado momento têm uma atividade enorme, estão todos os dias na imprensa, e no mês seguinte já estão ausentes ou entram em refluxo com as pessoas deixando de ir às reuniões ou às assembleias. A sustentabilidade da mobilização é um problema muito sério porque, para que se consiga uma certa continuidade na participação política, é preciso haver articulação política mais ampla que envolva partidos. Por sua vez, os partidos estão sujeitos a transformar a continuidade da presença pública na condição para a sobrevivência de quadros burocráticos.

11. O partido-movimento prospera numa luta constante contra a inércia. Podem gerar-se duas inércias: por um lado, a inércia e o refluxo dos movimentos sociais que não se conseguem multiplicar e densificar a luta e, por outro, os partidos que não mudam em nada as suas políticas ficam sujeitos à estagnação burocrática. Superar estas inércias é o maior desafio para a construção do partido-movimento. Trabalhando com experiências concretas, nota-se que os partidos, ao ter vocação de poder, costumam lidar bem com a questão dos desequilíbrios dentro do espaço público. Mas porque competem pelo poder, não querem transformá-lo, querem tomá-lo. Os movimentos sociais, ao contrário, sabem que as formas de opressão tanto vêm do Estado, como de atores econômicos e sociais muito fortes. Em algumas situações, a distinção entre a opressão pública e a opressão privada não é demasiado importante. Os sindicatos, por exemplo, têm uma experiência notável de luta contra atores privados: os patrões e as empresas. Tanto os movimentos sociais como os sindicatos estão hoje marcados por uma experiência muito negativa: os partidos de esquerda nunca descumpriram tanto as suas promessas eleitorais quando chegaram ao poder como ultimamente. Esse descumprimento faz com que a deslegitimação dos partidos seja cada vez maior em mais países. Essa perda do controle da agenda política somente pode ser recuperada por meio dos movimentos sociais enquanto articulados nos novos partidos-movimentos.

12. A educação política popular é a chave para sustentar o partido-movimento. As diferenças entre partidos e movimentos são ultrapassáveis. Para isso é necessário promover o interconhecimento por via de novas formas de educação política popular: rodas de conversas, ecologias de saberes, oficinas da Universidade Popular dos Movimentos Sociais; discussão de possíveis práticas de articulação entre partidos e movimentos: orçamentos participativos, plebiscitos ou consultas populares, conselhos sociais ou de gestão de políticas públicas. Até agora as experiências são sobretudo de escala local. Há que desenvolver a complementaridade em nível nacional e global.

13. O partido-movimento vai para além da articulação entre partido e movimento social. Depois de mais de quarenta anos de capitalismo neoliberal, de colonialismo e de patriarcado sempre renovados, de concentração escandalosa da riqueza e de destruição da natureza, as classes populares, o povo trabalhador, quando explode ou irrompe de indignação, tende a fazê-lo fora dos partidos e dos movimentos sociais. Uns e outros tendem a ficar surpreendidos e a ir atrás da mobilização. Para além de partidos e movimentos, há que contar com os movimentos espontâneos, com as presenças coletivas nas praças públicas. O partido-movimento tem de estar atento a estas irrupções e ser solidário com elas sem tentar dirigi-las ou cooptá-las.

14. Vivemos um período de lutas defensivas. Compete ao partido-movimento travá-las, não perdendo de vista as lutas ofensivas. A ideologia de que não há alternativa ao capitalismo – que, de fato, é uma tríade: capitalismo, colonialismo (racismo) e patriarcado (sexismo) – acabou por ser interiorizada por muito do pensamento de esquerda. O neoliberalismo conseguiu combinar o fim supostamente tranquilo da história com a ideia da crise permanente (por exemplo, a crise financeira). Por esta razão, vivemos hoje sob o domínio do curto prazo. É preciso atender às suas exigências porque quem está com fome ou é vítima de violência doméstica não pode esperar pelo socialismo para comer ou ser libertada. Mas não se pode perder de vista o debate civilizatório que põe a questão das lutas de médio prazo e ofensivas. A pandemia, ao mesmo tempo que tornou o curto prazo em urgência máxima, criou a oportunidade para pensar que há alternativas de vida e que se não queremos entrar num período de pandemia intermitente temos de atender aos avisos que a natureza nos está a dar. Se não alterarmos os nossos modos de produzir, de consumir e de viver, caminharemos para um inferno pandêmico.

15. Só o partido-movimento pode defender a democracia liberal como ponto de partida e não como ponto de chegada. Num momento em que os fascistas estão cada vez mais perto do poder, quando não estão já no poder, uma das lutas defensivas mais importantes é defender a democracia. A democracia liberal é de baixa intensidade porque é pouca. Aceita ser uma ilha relativamente democrática num arquipélago de despotismos sociais, econômicos e culturais. Hoje em dia, a democracia liberal é boa como ponto de partida, mas não como ponto de chegada. O ponto de chegada é uma profunda articulação entre a democracia liberal, representativa e a democracia participativa, deliberativa. Neste momento de lutas defensivas é importante defender a democracia liberal, representativa para neutralizar os fascistas e para a partir dela radicalizar a democratização da sociedade e da política. Só o partido-movimento pode travar esta luta.

Leo Vinicius Liberto

PODERÁ O PRECARIADO ASSOMBRAR O CAPITAL?

Novo livro examina a fundo os trabalhadores-emblema do capitalismo pós-moderno. Super-explorados por mega-corporações, espalham lutas pelo mundo. Prezam sua autonomia. Parecem indomesticáveis. Mas até onde irá sua rebeldia? O texto é de Leo Vinicius Liberto na apresentação ao livro Delivery Fight: A luta contra os patrões sem rosto de Callum Cant, editado pela Veneta, publicado por OutrasPalavras.

Enquanto lia Delivery Fight não pude deixar de recordar o já clássico Greve na Fábrica, de Robert Linhart. Com seus pontos comuns e diferenças, o livro de Callum Cant faz parte desse mesmo gênero de literatura, infelizmente não numeroso, em que a experiência do trabalho, as formas de controle e a construção das lutas são apresentadas pelo olhar de um trabalhador.

Robert Linhart era um jovem militante e intelectual que se inseriu como operário numa fábrica da Citroën na França no final dos anos 1960. Seu objetivo era fomentar a luta e organização dos operários daquela fábrica. Callum Cant, diferentemente, foi fazer entregas pela Deliveroo sem o objetivo militante, apesar de ser um militante e de ter sido ativo na organização da greve dos entregadores em Brighton, no período em que trabalhou para a Deliveroo. O objetivo dele ao se cadastrar no aplicativo era ter mais uma fonte de renda.

Apesar de o livro de Linhart ser magnífico para se estudar algumas áreas do conhecimento, como a ergonomia, a sociologia e psicologia do trabalho, será no livro de Callum Cant que encontraremos uma preocupação em analisar a organização do trabalho, a composição dos trabalhadores e as lutas deles. Mas deixemos as comparações de lado. O motivo de Greve na Fábrica ter aparecido neste Prefácio é servir como referência para situarmos historicamente a experiência relatada e analisada em Delivery Fight ao longo dos últimos setenta anos de luta de classes.

Do fordismo à fábrica difusa

O cenário apresentado por Robert Linhart foi emblemático do último grande ciclo mundial de lutas da classe trabalhadora, situado nas décadas de 1960 e 1970. A maior greve geral mundial até então, ocorrida de forma selvagem em maio de 1968 na França, mostrava que o chão das grandes fábricas era ainda local privilegiado de luta e rebeldia da classe trabalhadora. No ano seguinte, na Itália, no que ficou conhecido como “outono quente”, ocorreu uma das mais intensas mobilizações de trabalhadores da história, com mais de 300 milhões de horas de trabalho perdidas por greves, das quais 230 milhões foram nas indústrias. Costuma-se dizer que o “Maio de 68” italiano durou uma década, pois as lutas se estenderam com incrível intensidade até a segunda metade da década de 1970. O caráter espontâneo, por fora dos sindicatos, das contínuas lutas de fábrica fizeram as grandes plantas da Fiat, tidas como termômetros da luta de classes naquele país há décadas, serem consideradas ingovernáveis por volta de 1974. Para além das greves selvagens e da intimidação a supervisores, as faltas ao trabalho chegaram a 28% em certas semanas.

Essa tentativa de fuga da subordinação do trabalho expressa na rebeldia e nas formas de luta operárias levou o capital a fugir dessa insubordinação. Na Itália, ainda nos anos 1970, a resposta dada à insubordinação operária foi a reestruturação produtiva, com a automatização, a terceirização e a descentralização do processo produtivo, além do aumento do setor informal da economia [4]. Cabe ressaltar que a maior planta da Fiat, em Mirafiori, concentrava 63 mil operários no final dos anos 1960, sendo a maior fábrica do mundo. Esse processo de reorganização e dispersão da produção foi uma resposta global dos capitalistas àquele ciclo de lutas da classe trabalhadora.

A intensidade daquelas lutas havia posto em xeque o fordismo como forma de controle e organização do trabalho. Intelectuais italianos envolvidos nas lutas daquelas décadas passaram a denominar de fábrica difusa essa dispersão e terceirização da produção, que a espraiava pelo território da cidade, retirando a centralidade das grandes fábricas. Na expressão de Antonio Negri, a cidade passaria a ser produtiva como antes era a terra trabalhada. Se o livro de Linhart ilustrava perfeitamente o cenário daquele ciclo de lutas, Callum Cant nos traz uma ilustração equivalente da experiência de trabalho e de lutas nessa fábrica difusa pós-fordista.

Os entregadores de aplicativos são hoje uma das expressões mais notáveis das tendências que se desencadearam como resposta à crise do fordismo gerada pela Z’insubordinação da classe trabalhadora. A ampliação do setor informal (ou a exploração direta da informalidade), a expansão da relação de serviço, a terceirização, a produção se confundindo com o próprio território da cidade, o desmanche da proteção trabalhista e social, a fuga por parte das empresas da própria relação de trabalho buscando transformar os trabalhadores em consumidores do seu serviço. Todas essas características da reestruturação produtiva pós-fordista são vividas pelos entregadores de aplicativos.

Multiculturalismo e luta de classes

Apesar de ambientado na Inglaterra, o livro de Callum Cant toca diretamente ao leitor brasileiro não apenas pelo fato de a organização do trabalho imposta aos entregadores de aplicativos ser muito parecida na Inglaterra e no Brasil. Como o leitor terá oportunidade de verificar através das palavras do autor, os imigrantes brasileiros eram particularmente conhecedores de táticas de greve, tendo disparado as greves em Brighton (2016) e desempenhado papel importante na consolidação da greve em Londres (2018). Isso em si talvez marque uma diferença da composição dessa força de trabalho na Europa e no Brasil. Lá, uma grande parte dos entregadores de aplicativos são imigrantes vindos de outros países, frequentemente não legalizados. A participação de imigrantes nessa força de trabalho tem aumentado à medida que os rendimentos baixam e os estudantes locais se retiram da atividade.

O esforço relatado por Callum Cant para ultrapassar a barreira linguística que separava entregadores de diversas nacionalidades nos remete ao tema do multiculturalismo na luta de classes. Na fábrica em que Robert Linhart trabalhou na França, como fica bastante nítido através de seu relato, os patrões se aproveitavam de uma força de trabalho multicultural, formada em grande parte por imigrantes, de modo a melhor manter os trabalhadores separados e sem unidade coletiva. Além das diferenças de língua, as identidades étnicas, religiosas, algumas das quais com rixas históricas, eram usadas pelo comando e controle capitalista. A greve naquela fábrica da Citroën foi possível porque a barreira das diferenças de origem e de identidade foi sendo superada pela condição operária compartilhada no local de trabalho. Na fábrica difusa, em que a produção se espalha pela cidade e pelo tempo de vida, as classes capitalistas continuam contando com as diferenças e rixas identitárias para que a força de trabalho não se constitua como coletividade em luta.

Programas políticos e a política eleitoral também podem se constituir como força de fragmentação dos trabalhadores. Os motoboys brasileiros que estavam na vanguarda das greves relatadas por Callum Cant simpatizavam com Jair Bolsonaro e compartilhavam conteúdos dessa nova direita nos grupos de WhatsApp dos entregadores brasileiros. Contradições à parte, o fato é que eles constituíram uma prática de antagonismo direto ao capital, lutando contra a exploração a que eram submetidos pelas empresas de entrega por aplicativos. No Brasil, durante a mobilização para as paralisações nacionais dos entregadores dos dias 1º e 25 de julho de 2020 – o Breque dos Apps –, a classe pôde se constituir porque deixou de lado as preferências partidárias e eleitorais individuais. A comunidade emergia da experiência comum do trabalho e sabiamente não se falava de política nos grupos de WhatsApp de organização e divulgação do Breque. A organização e mobilização da categoria constituía uma política contra a exploração, sem dúvida. Tratava-se de uma política implícita nas práticas de mobilização e luta dos entregadores, o que era diferente de identidades políticas evidenciadas em programas e preferências partidárias e eleitorais.

Foi a política nesse sentido identitário, [6] com potencial de fragmentar os trabalhadores, que veículos e pessoas de esquerda acabaram reforçando ao concederem enorme destaque e sobrevalorizarem a importância do grupo Entregadores Antifascistas. Introduzindo um elemento de identidade política, o “antifascismo”, eles introduziram um elemento de tensão e divisão. Não por algum entregador se considerar fascista, evidentemente. Mas por trazer algo externo à experiência comum de trabalho, o único elemento capaz de ser imediatamente compreendido por todos e de unificar e constituir a classe.

O Breque dos apps e o fantasma da autonomia operária

Como disse antes, havia sim um programa político implícito nas práticas do Breque dos Apps. Para usar um termo corrente nos anos 1970, principalmente na Itália, o Breque dos Apps foi uma expressão política de “autonomia operária”. Autonomia “operária” numa dimensão alcançada em São Paulo que não se via nos centros urbanos brasileiros havia pelo menos quarenta anos.

Comunicação horizontal e participação ativa dos entregadores imprimindo e distribuindo eles próprios os cartazes, gravando vídeos, por fora de entidades sindicais – e em parte até mesmo contra o sindicato em São Paulo. A percepção dessa autonomia e horizontalidade foi o que possibilitou um efeito de contágio pelo Brasil, para dentro e para fora da categoria, e até mesmo fora do país, fazendo do chamado de greve para o dia 1º de julho uma greve internacional, com a paralisação se estendendo a outros países da América Latina. Essa participação ativa da categoria na construção da mobilização e a comunicação horizontal entre os trabalhadores tornaram o Breque dos Apps uma mobilização diferente daquelas puxadas por direções sindicais. Essa forma potencializou o movimento e também o seu impacto. Um movimento que não é controlado por direções sindicais não é limitado por convenções, normas, leis, e possui assim uma imprevisibilidade que em si constitui uma força sua. A autonomia “operária” se constituía já na própria construção do Breque.

Puxar uma greve nacional de entregadores de aplicativos para o dia 1º de julho foi uma ideia discutida e decidida em grupos de WhatsApp de entregadores de alguns estados. A ideia de uma greve nacional já vinha sendo gestada desde os primeiros meses do ano e ganhou impulso com ações de luta dos entregadores em algumas cidades, como em Rio Branco, Rio de Janeiro e São Paulo. Seguindo mais ou menos uma ordem decrescente de importância para a mobilização dos entregadores, as reivindicações eram: 1) Aumento do valor das corridas; 2) Aumento do valor mínimo por entrega; 3) Fim dos bloqueios e desligamentos indevidos; 4) Seguro de roubo, acidente e vida; 5) Fim do sistema de pontuação; 6) Auxílio-pandemia (EPIs e licença). Evidentemente, as tendências e relações que se estabeleciam entre entregadores e sindicatos, políticos e instituições não são homogêneas Brasil afora. Mas o que prevaleceu, principalmente em São Paulo, onde o movimento era mais potente, foi uma posição de autonomia total quanto a sindicatos, partidos, instituições… quando não com uma atitude de aversão aberta e declarada. Dias antes da paralisação, um vídeo gravado por alguns motoboys de São Paulo que estavam bastante engajados na organização do Breque sintetizou a perspectiva autônoma do movimento.

Baseando as pautas na atividade dos entregadores de aplicativos e explicitando que não havia vínculo político com ninguém nem com sindicatos, sendo uma iniciativa e ação dos próprios entregadores, eles demonstravam uma aguçada consciência de classe prática. Mais do que isso, mostravam como o movimento era uma expressão de continuidade da autonomia operária que precipitou a crise do fordismo nos anos 1970, dessa vez numa condição pós-fordista. Como diz um ex-operário italiano bastante ativo nas lutas e na construção dessa autonomia operária nos anos 1960 e 1970: a passividade dos trabalhadores normalmente pode ser superada, pois ela seria consequência da falta de referências políticas e organizativas alternativas ao sindicato. 8 Em parte, era isso que também estava sendo constituído pelos entregadores: uma referência de organização alternativa ao sindicato. Como no último grande ciclo de lutas da classe trabalhadora, o potencial disruptivo da ação dos trabalhadores vinha de fora do sindicato, quando não se voltava diretamente contra ele.

Impossível dizer o número de entregadores que aderiram à paralisação em 10 de julho de 2020 no Brasil. Em São Paulo, especificamente, talvez seja difícil até mesmo fazer uma estimativa. Provavelmente foi a maior paralisação de entregadores de aplicativos no Ocidente. A imagem midiática, espetacular, foi a da imensa manifestação que saiu da Avenida Paulista e terminou ocupando a Ponte Estaiada. Contudo, a autonomia de classe se expressou de forma menos visível aos olhos do público. Foram os incontáveis piquetes auto-organizados em locais de coleta de pedidos, como shopping centers, que fizeram desse o dia de maior ex- pressão de autonomia “operária” nos centros urbanos brasileiros das últimas décadas.

Para o dia 25 de julho era nítido que não havia a mesma energia e disposição dos entregadores para se envolver com a paralisação. Mesmo assim, ao menos em São Paulo ela foi bastante expressiva. Dessa vez a paralisação teve um tom de “greve de pijama”. Muitos ficaram em casa. Mas os piquetes em alguns shoppings eram desnecessários uma vez que o movimento de trabalho estava mesmo muito abaixo do normal. Grande parte dos entregadores de fato não havia ido trabalhar.

O movimento conseguiu trazer uma boa exposição da situação vivida pelos entregadores de aplicativos. A imagem das empresas de aplicativo saiu arranhada, e esse prejuízo à marca certamente foi maior do que aquele trazido pela paralisação do trabalho. No entanto, comparada com as greves de entregadores na Inglaterra relatadas por Callum Cant, o Breque dos Apps objetivamente conquistou muito pouco. Talvez o único ganho objetivo tenha sido alguma melhora para que não haja tantos bloqueios indevidos por parte da maior empresa do mercado, mas sem nada oficializado. Essa diferença em termos de conquistas e compromisso das empresas na Inglaterra e no Brasil é indício de que aqui os trabalhadores estão enfrentando um poder econômico mais soberano, mais difícil de ser constrangido. Algo que a existência do modelo OL no Brasil também nos indica, o que veremos mais adiante.

A composição de classe

A atração exercida tanto por Delivery Fight quanto pelo Breque dos Apps sobre aqueles que buscam um mundo mais justo certamente se relaciona com a esperança ou expectativa de que a classe trabalhadora esteja se recompondo nas novas condições técnicas e de relações de trabalho que chamamos vagamente de pós-fordismo. Pós-fordismo que os entregadores de aplicativo tão bem representam na sua versão talvez mais extrema, que tem sido denominada de uberização. O conceito de composição (e recomposição) de classe surgiu em meio a uma corrente de intelectuais italianos, os quais se envolveram nas lutas operárias dos anos 1960 e 1970. É dessa referência teórica, chamada operaísmo, que Callum Cant parte para analisar o seu próprio trabalho como entregador, assim como a organização e a luta da categoria.

O leitor irá encontrar em Delivery Fight a explicação mais didática de que tenho conhecimento dos conceitos de composição de classe, de composição técnica, de composição política e de composição social (este último acrescido posteriormente aos conceitos originais dos operaístas italianos). Callum Cant é excepcionalmente didático e claro na explicação desses e de outros conceitos importantes para se compreender e analisar a organização do trabalho e as relações de produção. Essa já seria uma virtude que por si só justificaria o livro.

Esquematicamente podemos dizer que o último grande ciclo de lutas da classe trabalhadora se baseou numa determinada composição de classe. Com a reestruturação produtiva para responder a essas lutas, o capital gerou um processo de fragmentação e decomposição da classe trabalhadora. Esse processo de fragmentação, iniciado há décadas, ainda está em curso. No entanto, as lutas que ocorrem com maior ou menor intensidade podem indicar um processo ou tendência de recomposição de classe. Pelo menos é nessa expectativa que olhamos para as lutas dos trabalhadores. Estar atento aos indícios de uma possível recomposição de classe é também estar atento a uma nova ­subjetividade dos trabalhadores, emergente a partir de novas ­condições de vida e de experiência de trabalho. Uma nova composição de classe implica uma nova política, novos desafios e novas questões postas, que certamente não constituirão um caminho de regresso histórico ao fordismo. Ora, o fordismo como forma de organização da produção e de pacto social foi posto em crise pela própria luta dos trabalhadores.

A falta de perspectiva histórica aliada a um afastamento da realidade vivida pelos trabalhadores e a um desinteresse em compreendê-los têm feito muitos acadêmicos atribuírem a rejeição da maioria dos motoboys à CLT, ou a preferência em não terem carteira assinada, a uma suposta ideologia empresarial e de empreendedorismo que estaria impregnando esses trabalhadores. Todos os trabalhadores sempre buscam autonomia e segurança social. Busca por autonomia que se expressa desde as tentativas subterrâneas de controlar o ritmo de trabalho até os momentos revolucionários de tomada dos meios de produção e autogestão generalizada. Como Callum Cant deixa claro, e também como relatam entregadores de aplicativos do Brasil à China, uma vantagem evidente que faz os entregadores de aplicativos preferirem em geral esse trabalho a uma série de outros é a ausência de chefe. Os chefes costumam ser uma das principais fontes de incômodo e estresse em qualquer trabalho. A carteira assinada está relacionada a esse tipo de subordinação clássica.

O que a maioria dos motoboys está dizendo com essa rejeição à carteira assinada e à CLT é que não estão dispostos a abrir mão da autonomia e flexibilidade que possuem em troca da proteção trabalhista e previdenciária da CLT. Ora, isso não impediu que se colocassem em luta aberta contra as empresas de aplicativos de entrega nem, que reivindicassem proteção social, como deixam claro o Breque dos Apps e suas pautas.

A composição técnica, nas palavras de Cant, diz respeito a como os trabalhadores são organizados como força de trabalho produtiva. Por isso Delivery Fight traz uma brilhante análise da organização do trabalho dos entregadores de aplicativos, além de descrever e analisar a organização deles enquanto classe que luta (a composição política).

Normas de produção e o risco de acidentes

Central a essa organização do trabalho é o salário por peça, que já mencionamos. Ele por si só induz que os entregadores autogerenciem e autointensifiquem o trabalho. A percepção de risco de Callum Cant era assim reduzida enquanto ele fazia as entregas, em relação a quando ele pedalava fora do trabalho.

Ocupações ligadas ao transporte rodoviário possuem as maiores taxas de mortalidade por acidente de trabalho no Brasil . E isso mesmo desconsiderando os que estão na informalidade. Na China, as pressões exercidas pela organização do trabalho imposta pelas empresas levam os entregadores a se arriscarem ainda mais. Tempos reduzidos para realizar as entregas, com rotas que desconsideram as regras de trânsito, e punições financeiras e de desligamento por atraso levam os entregadores a avançarem o sinal vermelho e a andarem na contramão, o que gera um aumento expressivo dos acidentes e mortes de motoboys. Como no Brasil e nos outros países, essas empresas não são responsabilizadas pelos acidentes e não arcam com nenhum custo de afastamento do trabalho nem de reparo do instrumento de trabalho, de modo que as empresas não se veem incentivadas a mudar as regras que determinam os acidentes. Quando os acidentes se tornam uma questão pública, uma série de medidas cosméticas ou que acabam penalizando os entregadores acabam sendo postas em prática, em nome da segurança no trabalho. Para não entrarmos nos diversos exemplos chineses de medidas que supostamente visam prevenir acidentes mas que não tocam nas regras impostas pelas empresas que determinam a maior parte dos acidentes, responsabilizando unicamente os trabalhadores pela prevenção, fiquemos com um exemplo ocorrido em Florianópolis.

Em setembro de 2020, uma espécie de operação-padrão massiva envolvendo a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar levou à apreensão de inúmeras motocicletas de entregadores, além de um número maior de multas, flagelando ainda mais trabalhadores que se viram do jeito que podem com extensas jornadas para conseguir pagar as contas a cada mês. As blitze eram diárias e em tantas vias da cidade que alguns entregadores chegaram a não sair para trabalhar tamanha a dificuldade de se deslocar sem passar por elas. In- dignados, os motoboys chamaram uma manifestação para o dia 23 de setembro. Com a repercussão na imprensa, o discurso do comando da Polícia era de que se tratava de ação motivada pelo aumento no número de acidentes com motoboys. A lição é clara: se a segurança e saúde dos trabalhadores não estão incorporadas à organização do trabalho como valor exterior à maximização do lucro, elas aparecerão como força policial sobre os trabalhadores.

A liberdade do trabalhador contra o controle e a disciplina do explorador

Um ponto importante destacado por Callum Cant é que a precariedade dos vínculos trabalhistas não significa necessariamente menor poder desses trabalhadores, podendo ocorrer exatamente o contrário. O vácuo de legislação trabalhista que implica ausência de direitos e de proteção social também implica que os entregadores estão fora da legislação que enquadra as formas de luta de organização dos trabalhadores. Todo um espaço se abre para lutas mais autônomas, contundentes e imprevisíveis quando não há necessidade de aviso prévio, formalização ou de seguir procedimentos de negociação quanto à ocorrência de greves. Cant apresenta o exemplo histórico dos operários da construção civil e dos estivadores ingleses. A ausência de vínculo empregatício propiciava um grande poder de barganha aos estivadores. Para lhes retirar esse poder, os capitalistas terminaram por incorporá-los como empregados em tempo integral, com salários fixos.

Para fugir do vínculo empregatício, essas empresas de entrega por aplicativos terceirizam o trabalho para uma multidão, considerando-os trabalhadores autônomos, ou mesmo consumidores de seus serviços. Para Callum Cant, esse status de trabalhador autônomo (independent contractor na Inglaterra) se torna necessário para que possam implementar o sistema de salário por peça. Somado a isso, a automatização da função de supervisão (o chamado “algoritmo”) completa a caracterização do que tem sido o típico modelo de relação de trabalho de entregadores de aplicativo pelo mundo. Mas Callum Cant nos mostra que o supervisor automático exerce mal uma das funções da supervisão, isto é, da chefia: disciplinar o trabalhador. Disciplinar para trabalhar, assim como para não contestar e não lutar. A essa deficiência na função disciplinar brilhantemente apresentada por Callum Cant, podemos acrescentar que o modelo típico de entrega por aplicativos cria uma incerteza de quantos entregadores a empresa terá disponíveis em determinado horário, uma vez que em tese os entregadores possuem liberdade de logar e deslogar da plataforma quando bem quiserem. Essa incerteza tende a se tornar mais problemática para as empresas, por exemplo, em dias ou horas de chuva, quando a demanda tende a aumentar e o número de entregadores logados tende a diminuir.

Para resolver o problema da indisciplina e dessa incerteza sobre o número de entregadores à disposição, a atual conjuntura histórica tem permitido que as empresas de entrega por aplicativos deem uma resposta diferente da que foi dada aos estivadores ingleses. Essa conjuntura é a de debilidade geral da classe trabalhadora, num período de décadas de relativa estagnação econômica e de desindustrialização, com consequente subemprego em massa. A resposta diferente que essas empresas de entrega por aplicativos já dão pode ser vista num modelo de relação de trabalho que não existe na Europa – segundo informações que troquei com o nosso autor – mas que existe por aqui.

No Brasil, apesar de ser adotado também pela Bee, esse modelo ficou conhecido pelo iFood como OL. O iFood possui dois tipos de entregadores, o Nuvem e o OL. O Nuvem é o modelo típico que caracterizamos acima, o mesmo descrito por Callum Cant a partir de seu próprio trabalho. Aquele em que o entregador pode logar e deslogar quando quiser, isto é, a princípio trabalhar quando quiser, não possuindo chefe ou supervisor humano. O OL por sua vez tem que cumprir horários todos os dias, com um dia de folga por semana. Ele possui chefe/supervisor humano, o Operador Logístico, uma espécie de supervisor terceirizado do iFood que determina os dias de folga e em quais turnos (manhã, tarde, noite) o entregador terá que trabalhar. O modelo OL responde ao problema da indisciplina do trabalhador: os entregadores OL, a grosso modo, não participaram do Breque dos Apps. Se faltarem ao trabalho podem ser desligados por seus Operadores Logísticos, que funcionam como pequenos patrões. Por outro lado, esse modelo garante à empresa a certeza de que haverá determinado número de entregadores trabalhando, não importa o clima, uma vez que não possuem liberdade para logarem e deslogarem quando quiserem e tampouco para rejeitarem corridas.

Na China as duas grandes empresas de entrega por aplicativo alocam grande parte das suas forças de trabalho sob um modelo bastante parecido com o do OL, no qual os entregadores têm supervisores humanos terceirizados e são obrigados a cumprir uma jornada de trabalho definida. No entanto, na China eles recebem um valor mínimo fixo, enquanto no Brasil não. Nos Estados Unidos, uma empresa de compras e entregas por aplicativos chamada Instacart possui um modelo algo semelhante para toda a sua força de trabalho. Há supervisores humanos e turnos de trabalho, que são escolhidos pelos trabalhadores conforme seu ranqueamento. A Deliveroo na Europa, embora não tenha supervisores humanos, possui em grande parte das cidades um sistema de turnos em que o trabalhador deve escolher horários pre-definidos para trabalhar, por ordem de ranqueamento. Um sistema parecido com o de distribuição de comida do filme O Poço, em que os grupos mais abaixo no ranqeamento ficam com as sobras de horários e regiões, até sobrarem apenas os piores e poucos horários e regiões para os do fundo do “poço”. Não poder cumprir um turno programado por causa de um acidente ou qualquer outro imprevisto, como um assalto, costuma jogar o entregador em direção ao fundo do poço no ranqueamento.

O que vem pela frente?

Em suma, o capital já está impondo um regime de trabalho com o sistema OL que mistura a subordinação despótica fordista com a ausência de direitos e proteção social que tem sido tendência no pós-fordismo. Já é realidade o paradoxo de ser empregado sem salário e sem vínculo empregatício com qualquer emprego – algo que não foi visto antes na história do capitalismo. A lógica é que esse paraíso para os capitalistas tenda a se expandir nessa e em outras categorias, se depender da vontade deles. E é a vontade deles, praticamente sem obstáculos, que tem prevalecido nos últimos anos, ao menos no Brasil.

A obrigação de possuir os instrumentos de trabalho e o salário por peça são duas características presentes no trabalho de entrega para aplicativos que tendem a se generalizar para outras atividades. Por isso os entregadores de aplicativos também podem nos antecipar, quem sabe, tendências para uma recomposição de classe no futuro. Uma tendência nesse contexto de baixa demanda por trabalho e de subemprego em massa é que a reivindicação de um salário mínimo se torne cada vez mais comum, pois seria a única forma de conseguir aumento salarial ou, pelo menos, tentar evitar a redução salarial. Tendência de redução salarial que afeta particularmente os serviços, como nos explica Aaron Benanav [12]. O aumento do valor mínimo por entrega e o valor mínimo por quilometragem foram reivindicações dos entregadores de aplicativos em julho de 2020 no Brasil, que nos servem como exemplo. Se isso parece ser uma reivindicação rebaixada quando comparada a outros tempos, pouco importa. O que irá importar do ponto de vista revolucionário, de fortalecimento de novas relações sociais, é a forma que terão as lutas e os movimentos. Como salienta Benanav, há uma diferença importante das lutas que viveremos em relação às lutas históricas da classe trabalhadora. Elas não serão mais relacionadas à industrialização, mas às consequências do fim desta.

Os capitalistas contam com a nossa dificuldade de construir lutas contínuas e que não se burocratizem, ainda mais em tempos de baixa demanda por trabalho. Contam também com a maior dispersão e fragmentação dos trabalhadores em relação aos tempos de Robert Linhart na fábrica da Citroën. E nada indica que a ampliação do poder deles sobre nós encontrará um revés tão logo. Mas uma coisa eles não podem evitar: a rebeldia. Como dizia um revolucionário do século XIX, o ser humano é dotado de duas faculdades preciosas: o pensamento e a necessidade de se revoltar. Haverá muitos gritos de Já Basta contra essa vida insuportável de sofrimento e indignidade que o lucro e o poder deles impõem. Callum Cant nos traz de forma inspiradora um desses gritos. O facto de você estar com esse livro nas mãos é sinal de que esse grito ecoa em direção a outros gritos de rebeldia…

Eles jamais poderão contar com um sono tranquilo.

Paulo Suess, teólogo /IHU

IGREJA SEM SAÍDA?

"Muitos sonhos do Papa Francisco e de amplos setores do Povo de Deus se tornarão caminhos, provavelmente, só depois de um século. O tempo pode ajudar a discernir melhor entre 'ordem divina' e 'ordem cultural' e a transformar os setores da Igreja sem saída em irmãos e irmãs de uma Igreja em saída. Só o tempo pode curar a Igreja de lacunas coletivas de memória, de falta de coragem, divisões internas e contradições pastorais, por hora ainda consideradas de 'ordem divina', mas que se podem revelar de ordem cultural e histórica", escreve Paulo Suess, doutor em Teologia Fundamental, fundador do curso de Pós-Graduação em Missiologia, na então Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção, em São Paulo, assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário - Cimi e professor em várias Faculdades de Teologia no ciclo de Pós-Graduação em Missiologia.


E direi que escrevo para tentar que sejamos mais fortes do que o medo do erro ou do castigo, na altura de fazer a escolha no eterno combate entre os indignos e os indignados.”

Eduardo Galeano

Na Conferência de Aparecida, o então cardeal Bergoglio de Buenos Aires teve um papel importante na redação do documento final. Como Papa Francisco, Bergoglio incorporou Aparecida na Igreja universal e trouxe o binômio “fidelidade e audácia” para a cátedra de São Pedro. Fiel ao passado e audaz na abertura aos imperativos do futuro, “a Igreja é chamada a repensar profundamente e a relançar com fidelidade e audácia sua missão nas novas circunstâncias latino-americanas e mundiais” (DAp 11).

Essa missão é ordem e obra do amor de Deus. Qual é a finalidade dessa missão? A Evangelii Gaudium (EG) aponta para quatro pilares de uma pastoral em chave missionária (EG 33ss):

a) Abandonar o cômodo critério pastoral do “fez-se sempre assim” (EG 33).

b) “Ouvir a todos” (EG 31). A escuta faz parte de um “processo participativo” que promove “uma comunhão dinâmica, aberta, missionária” (EG 31) e sinodal.

c) “Saída de si próprio para o irmão” (EG 179). A Igreja em saída é uma Igreja despojada e com as portas abertas (cf. EG 46). No outro “está o prolongamento permanente da Encarnação para cada um de nós” (EG 179). A “resposta à doação absolutamente gratuita de Deus” (EG 179) é a saída de si como “absoluta prioridade” da vida cristã. “A vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros. Isto é, definitivamente, a missão” (EG 10).

d) Concentrar-se “no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário” (EG 35). “As elaborações conceituais hão de favorecer o contato com a realidade que pretendem explicar, e não nos afastar dela” (EG 194).

Quem se propõe a “ser o fermento de Deus no meio da humanidade” (EG 114) está sempre em busca de “respostas que encorajem, deem esperança e novo vigor para o caminho” (ibid.) do povo de Deus. Essa Igreja cumpre a sua missão quando se torna “o lugar da misericórdia gratuita, onde todos possam sentir-se acolhidos, amados, perdoados e animados a viver segundo a vida boa do Evangelho” (EG 114).

Como operacionalizar essa missão? “Sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias”? (EG 20). A Igreja “em saída” encontra obstáculos. A saída exige “prudência e audácia” (EG 47), “humildade social” (EG 240, 288), “coragem” (EG 33, 167, 194) e “ousadia” (EG 85, 129). Audazes são aqueles evangelizadores “que se abrem sem medo à ação do Espírito Santo” (EG 259). Guiada por esse “Espírito da Verdade”, “Defensor” (Jo 14,16.26) da humanidade e “Pai dos pobres”, a Igreja de Aparecida já pensou suas propostas para além das fronteiras do continente latino-americano e assumiu, “por meio de um impulso missionário corajoso e audaz” (DAp 337), sua “missão de advogada da justiça e dos pobres” (DAp 533) do mundo, incluindo entre esses pobres “a nossa Terra oprimida e devastada” (LS 2).

Ao falar da missão falamos da Igreja, não só como protagonista, mas também como destinatária da missão. As sombras de um mundo fechado são também sombras de uma Igreja fechada, sem saída (cf. FT 9). O jornalista e escritor Eduardo Galeano nos propõe que, “em tempos sombrios, tenhamos talento suficiente para arriscar voar à noite como os morcegos [...] e que sejamos inteligentes o suficiente para ser desobedientes quando recebemos ordens contraditórias com nossa consciência”.

Muitas vezes, a Igreja não tem chaves para abrir sequer as próprias portas atrás, das quais guarda seus mistérios e as razões de suas prescrições, nem consegue ir além de meras propostas e abrir portas fechadas do mundo. Em ambas as portas, Jesus está batendo e cobrando a promessa de uma Igreja que se diz “em saída” (EG 20ss), missionária e solidária, encarnada e profética. São portas pelas quais migrantes e moradores em situação de rua, indígenas e afro-americanos, desempregados e famintos querem entrar em países e Igrejas sem preconceitos e nacionalismos, sem fundamentalismo e colonialismo, em fábricas para trabalhar, em supermercados para comer, em hospitais com vagas e em universidades para todos. A chave para transformar os setores de uma Igreja sem saída em setores de uma Igreja em saída faz parte de sua missionariedade, de sua consciência de que tem uma missão permanente, não para converter almas, mas para abrir com força profética portas e caminhos, liderada pela “intimidade itinerante” (EG 23) com Jesus, que é porta e caminho.

Já há muito tempo antes da pandemia da Covid-19, nosso estilo de vida nos fez arrogantes, alimentando processos de degradação ambiental e social, através da apropriação de “bens de um consumo privilegiado que impede a construção de um mundo para todos” (PPC, n. 86). E a Laudato Si' (LS) do Papa Francisco, amplia esse pensamento do plano social para o ambiental: “O ritmo de consumo, desperdício e alteração do meio ambiente superou de tal maneira as possibilidades do planeta, que o estilo de vida atual – por ser insustentável – só pode desembocar em catástrofes, como, aliás, já está acontecendo periodicamente em várias regiões” (LS 161). Agora essa catástrofe alcançou o mundo inteiro. A pandemia que nos envolve a todos não pode ser corretamente analisada sem o “mecanismo consumista compulsivo” que arrasta as pessoas “pelo turbilhão das compras e gastos supérfluos” (LS 203). Tudo está interligado (cf. LS 16, 91, 117, 138, 240): “a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior” (LS 10).

Se não houver conversão e transformação de condutas, modos de produção e de consumo, a pandemia pode ser o aviso prévio de catástrofes maiores, pode ser o “contado, pesado, dividido”, aviso que apareceu na parede do salão de festa durante o banquete do rei Baltazar, quando os cálices sagrados do templo de Jerusalém foram profanados. Às pressas foi chamado o profeta Daniel que decifrou a escrita misteriosa assim: Os dias do reino da luxúria estão contados, a insustentabilidade de seu estilo de vida foi pesada, o território de arrogância será dividido entre seus inimigos (cf. Dn cap. 5). Não se trata de uma interpretação precipitada ou apocalíptica, mas de um futuro possível.

A pandemia sufocou o Aleluia em muitas gargantas. Sombras além da pandemia, mas não totalmente desligadas dela, caíram sobre todos os continentes. O “Documento para o Caminho”, do Celam (2021), texto preparatório para a Assembleia Eclesial da América Latina e do Caribe, dá-nos uma seleção dessas sombras, vistas pelo mundo católico: secularização, declínio acentuado do número de católicos, bem como a emigração de muitos deles para outras realidades eclesiásticas, desencontro pastoral nos processos de urbanização, grandes lacunas na assunção das lideranças femininas; escândalos de abusos sexuais de crianças e adolescentes, e portas fechadas para o esclarecimento do clamor silenciado desses crimes.

A Igreja sem saída para os problemas do mundo que ela, muitas vezes, reproduz, por exemplo, nas questões ambientais, do machismo e da colonialidade, está também sem saída para seus próprios problemas, prisioneira de leituras cristalizadas em épocas remotas, como a contradição solúvel entre a afirmação de que “a Igreja vive da Eucaristia” e a escassez de “ministros autorizados para celebrá-la” (ILSA 126c) e na questão do diaconato das mulheres. Uma Igreja pré-moderna, representada por seu setor hegemônico, não vai convencer o mundo moderno da coerência evangélica e relevância mundial de sua proposta missionária. A credibilidade da Igreja geralmente se enfraquece pela rigidez ahistórica de sua ortodoxia.

Qual é a missão dessa Igreja e quais são as propostas missionárias dos diferentes setores? Quais são as palavras-chave, as ações decisivas e as condições prévias de credibilidade que transformam uma Igreja sem saída em uma Igreja em saída, mística, missionária, militante? Em seus discursos, o Papa Francisco está fazendo ressoar com insistência uma palavra programática que considera chave, capaz de abrir portas desnecessariamente fechadas pela tradição: a sinodalidade. Assim, compreende-se a sua proposta de transformar a “VI Conferência Episcopal” que, depois de catorze anos, deveria seguir à V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, de Aparecida, em “Primeira Assembleia Eclesial”. Ela será realizada no México, em novembro de 2021, com participação basicamente virtual do Povo de Deus e com amplas consultas de todos os setores eclesiais.

Tivemos um ensaio prévio dessa nova metodologia que enfatiza a escuta e participação dos leigos e das leigas no Sínodo para a Amazônia (2019), que juridicamente ainda foi um sínodo de Bispos. Desde o Vaticano II, essa escuta do Povo de Deus procura superar a separação entre a Igreja docente e a Igreja discente, porque todos os batizados participam das três missões de Cristo, profeta, sacerdote e rei. “O consensus fidelium é um critério seguro para determinar se uma doutrina ou uma determinada prática faz parte da fé apostólica.”

Em suas propostas de “Novos caminhos para o ministério eclesial”, no Documento Final (DFSA 93-111) desse Sínodo, os bispos foram fiéis às vozes que ouviram nas consultas dos seus povos e testemunharam: “Em grande parte dessas consultas, o diaconato permanente foi solicitado para as mulheres” (DFSA 103). Foram igualmente fiéis às consultas quando, junto com as comunidades, pediram à Igreja para se abrir e “ordenar sacerdotes homens idôneos e reconhecidos pela comunidade [...], podendo ter uma família legitimamente constituída e estável, para sustentar a vida da comunidade cristã pela pregação da Palavra e pela celebração dos Sacramentos nas áreas mais remotas da região amazônica” (DFSA 111).

Os bispos da Amazônia parecem ter compreendido a crítica do Papa Francisco por ocasião da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), realizada no Rio de Janeiro em 2013, quando se dirigiu à Comissão de Coordenação do Celam: em nossa pastoral ainda somos prisioneiros dos “parâmetros da `cultura de sempre´ [...] anulando a força do Espírito Santo” e “estamos um pouco atrasados no que a Conversão Pastoral indica” (JMJ 28.07.2013). O Documento Final do Sínodo para a Amazônia superou, fiel às consultas prévias, em muitas propostas a “cultura de sempre” e o “atraso na Conversão Pastoral”.

Ao comparar esse Documento Final do Sínodo para a Amazônia com a Exortação Apostólica Pós-Sinodal “Querida Amazônia”, do Papa Francisco, observam-se algumas reservas face às propostas que vieram da escuta do Povo de Deus. Na videomensagem, em preparação da “Primeira Assembleia Eclesial”, o Papa ainda nos falou ainda: “Todos somos parte desse Povo de Deus, que é infalível `in credendo´ (no ato de sua fé), como nos disse o Concílio”. Mesmo a chave da “infalibilidade in credendo” não abre todas as portas, porque o sínodo tem “normalmente função consultiva”, mas poderia, ao mesmo tempo, “gozar também de potestade deliberativa caso o Romano Pontífice a quisesse conferir”(EC n.3). Na separação do poder consultivo e do deliberativo, persiste a separação da Igreja docente e da discente.

Segundo o Papa Francisco, a escuta sinodal vai além de uma “simples escuta”. Trata-se de uma escuta que “acompanha o caminho pondo-se em viagem com as pessoas” (JMJ, Ao Episcopado Brasileiro, n. 3, 27.07.2013). Mas, nessas viagens, como vimos ao comparar o “Documento Final” dos padres sinodais com a “Querida Amazônia” do Papa, encontram-se novamente portas fechadas, apesar das palavras prometedoras sobre “a pastoral em chave missionária” (EG 33-35).

O que a Igreja experimentou depois do Sínodo para a Amazônia foi o fato de que, também para o Papa Francisco, homem de portas abertas, existem portas fechadas, portas que a chave missionária ainda não consegue abrir, a não ser pelo preço de um cisma. Também a Assembleia Eclesial de outubro de 2021 não vai escapar desse impasse entre a escuta de um sem-número de vozes com suas propostas concretas e a triagem dessas propostas pelos guardas da “ordem divina.

Quem não se lembraria desse impasse do conto de Kafka “Diante da Lei”: “Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda lhe diz que, por enquanto, não pode autorizar lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde. – `É possível´ – diz o guarda. – `Mas não agora!´. [...] O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente.”

Muitos sonhos do Papa Francisco e de amplos setores do Povo de Deus se tornarão caminhos, provavelmente, só depois de um século. O tempo pode ajudar a discernir melhor entre “ordem divina” e “ordem cultural” e a transformar os setores da Igreja sem saída em irmãos e irmãs de uma Igreja em saída. Só o tempo pode curar a Igreja de lacunas coletivas de memória, de falta de coragem, divisões internas e contradições pastorais, por hora ainda consideradas de “ordem divina”, mas que se podem revelar de ordem cultural e histórica.

O Sínodo para a Amazônia e a Assembleia Eclesial do México já fazem parte de um processo rumo à XVI Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, marcada para outubro de 2023, em Roma. Esse Sínodo, novamente episcopal, terá como tema “Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão”, que lembra o terceiro capítulo do Documento Final de Puebla (1979): Evangelização na Igreja da América Latina: Comunhão e Participação. A Igreja vai novamente convocar o Povo de Deus para uma ampla escuta, que não é sinônimo de “participação”. As demandas do Povo de Deus vão superar as autorizações consideradas “possíveis”. A resposta do guarda, no conto de Kafka, sobre a entrada na Lei – “ainda não, talvez mais tarde” –, pode fortalecer o setor fundamentalista e para a catolicidade da Igreja pode ser tarde demais.

Leo Vinicius Liberto

PODERÁ O PRECARIADO ASSOMBRAR O CAPITAL?

Novo livro examina a fundo os trabalhadores-emblema do capitalismo pós-moderno. Super-explorados por mega-corporações, espalham lutas pelo mundo. Prezam sua autonomia. Parecem indomesticáveis. Mas até onde irá sua rebeldia? O texto é de Leo Vinicius Liberto na apresentação ao livro Delivery Fight: A luta contra os patrões sem rosto de Callum Cant, editado pela Veneta, publicado por OutrasPalavras.

Enquanto lia Delivery Fight não pude deixar de recordar o já clássico Greve na Fábrica, de Robert Linhart. Com seus pontos comuns e diferenças, o livro de Callum Cant faz parte desse mesmo gênero de literatura, infelizmente não numeroso, em que a experiência do trabalho, as formas de controle e a construção das lutas são apresentadas pelo olhar de um trabalhador.

Robert Linhart era um jovem militante e intelectual que se inseriu como operário numa fábrica da Citroën na França no final dos anos 1960. Seu objetivo era fomentar a luta e organização dos operários daquela fábrica. Callum Cant, diferentemente, foi fazer entregas pela Deliveroo sem o objetivo militante, apesar de ser um militante e de ter sido ativo na organização da greve dos entregadores em Brighton, no período em que trabalhou para a Deliveroo. O objetivo dele ao se cadastrar no aplicativo era ter mais uma fonte de renda.

Apesar de o livro de Linhart ser magnífico para se estudar algumas áreas do conhecimento, como a ergonomia, a sociologia e psicologia do trabalho, será no livro de Callum Cant que encontraremos uma preocupação em analisar a organização do trabalho, a composição dos trabalhadores e as lutas deles. Mas deixemos as comparações de lado. O motivo de Greve na Fábrica ter aparecido neste Prefácio é servir como referência para situarmos historicamente a experiência relatada e analisada em Delivery Fight ao longo dos últimos setenta anos de luta de classes.

Do fordismo à fábrica difusa

O cenário apresentado por Robert Linhart foi emblemático do último grande ciclo mundial de lutas da classe trabalhadora, situado nas décadas de 1960 e 1970. A maior greve geral mundial até então, ocorrida de forma selvagem em maio de 1968 na França, mostrava que o chão das grandes fábricas era ainda local privilegiado de luta e rebeldia da classe trabalhadora. No ano seguinte, na Itália, no que ficou conhecido como “outono quente”, ocorreu uma das mais intensas mobilizações de trabalhadores da história, com mais de 300 milhões de horas de trabalho perdidas por greves, das quais 230 milhões foram nas indústrias. Costuma-se dizer que o “Maio de 68” italiano durou uma década, pois as lutas se estenderam com incrível intensidade até a segunda metade da década de 1970. O caráter espontâneo, por fora dos sindicatos, das contínuas lutas de fábrica fizeram as grandes plantas da Fiat, tidas como termômetros da luta de classes naquele país há décadas, serem consideradas ingovernáveis por volta de 1974. Para além das greves selvagens e da intimidação a supervisores, as faltas ao trabalho chegaram a 28% em certas semanas.

Essa tentativa de fuga da subordinação do trabalho expressa na rebeldia e nas formas de luta operárias levou o capital a fugir dessa insubordinação. Na Itália, ainda nos anos 1970, a resposta dada à insubordinação operária foi a reestruturação produtiva, com a automatização, a terceirização e a descentralização do processo produtivo, além do aumento do setor informal da economia [4]. Cabe ressaltar que a maior planta da Fiat, em Mirafiori, concentrava 63 mil operários no final dos anos 1960, sendo a maior fábrica do mundo. Esse processo de reorganização e dispersão da produção foi uma resposta global dos capitalistas àquele ciclo de lutas da classe trabalhadora.

A intensidade daquelas lutas havia posto em xeque o fordismo como forma de controle e organização do trabalho. Intelectuais italianos envolvidos nas lutas daquelas décadas passaram a denominar de fábrica difusa essa dispersão e terceirização da produção, que a espraiava pelo território da cidade, retirando a centralidade das grandes fábricas. Na expressão de Antonio Negri, a cidade passaria a ser produtiva como antes era a terra trabalhada. Se o livro de Linhart ilustrava perfeitamente o cenário daquele ciclo de lutas, Callum Cant nos traz uma ilustração equivalente da experiência de trabalho e de lutas nessa fábrica difusa pós-fordista.

Os entregadores de aplicativos são hoje uma das expressões mais notáveis das tendências que se desencadearam como resposta à crise do fordismo gerada pela Z’insubordinação da classe trabalhadora. A ampliação do setor informal (ou a exploração direta da informalidade), a expansão da relação de serviço, a terceirização, a produção se confundindo com o próprio território da cidade, o desmanche da proteção trabalhista e social, a fuga por parte das empresas da própria relação de trabalho buscando transformar os trabalhadores em consumidores do seu serviço. Todas essas características da reestruturação produtiva pós-fordista são vividas pelos entregadores de aplicativos.

Multiculturalismo e luta de classes

Apesar de ambientado na Inglaterra, o livro de Callum Cant toca diretamente ao leitor brasileiro não apenas pelo fato de a organização do trabalho imposta aos entregadores de aplicativos ser muito parecida na Inglaterra e no Brasil. Como o leitor terá oportunidade de verificar através das palavras do autor, os imigrantes brasileiros eram particularmente conhecedores de táticas de greve, tendo disparado as greves em Brighton (2016) e desempenhado papel importante na consolidação da greve em Londres (2018). Isso em si talvez marque uma diferença da composição dessa força de trabalho na Europa e no Brasil. Lá, uma grande parte dos entregadores de aplicativos são imigrantes vindos de outros países, frequentemente não legalizados. A participação de imigrantes nessa força de trabalho tem aumentado à medida que os rendimentos baixam e os estudantes locais se retiram da atividade.

O esforço relatado por Callum Cant para ultrapassar a barreira linguística que separava entregadores de diversas nacionalidades nos remete ao tema do multiculturalismo na luta de classes. Na fábrica em que Robert Linhart trabalhou na França, como fica bastante nítido através de seu relato, os patrões se aproveitavam de uma força de trabalho multicultural, formada em grande parte por imigrantes, de modo a melhor manter os trabalhadores separados e sem unidade coletiva. Além das diferenças de língua, as identidades étnicas, religiosas, algumas das quais com rixas históricas, eram usadas pelo comando e controle capitalista. A greve naquela fábrica da Citroën foi possível porque a barreira das diferenças de origem e de identidade foi sendo superada pela condição operária compartilhada no local de trabalho. Na fábrica difusa, em que a produção se espalha pela cidade e pelo tempo de vida, as classes capitalistas continuam contando com as diferenças e rixas identitárias para que a força de trabalho não se constitua como coletividade em luta.

Programas políticos e a política eleitoral também podem se constituir como força de fragmentação dos trabalhadores. Os motoboys brasileiros que estavam na vanguarda das greves relatadas por Callum Cant simpatizavam com Jair Bolsonaro e compartilhavam conteúdos dessa nova direita nos grupos de WhatsApp dos entregadores brasileiros. Contradições à parte, o fato é que eles constituíram uma prática de antagonismo direto ao capital, lutando contra a exploração a que eram submetidos pelas empresas de entrega por aplicativos. No Brasil, durante a mobilização para as paralisações nacionais dos entregadores dos dias 1º e 25 de julho de 2020 – o Breque dos Apps –, a classe pôde se constituir porque deixou de lado as preferências partidárias e eleitorais individuais. A comunidade emergia da experiência comum do trabalho e sabiamente não se falava de política nos grupos de WhatsApp de organização e divulgação do Breque. A organização e mobilização da categoria constituía uma política contra a exploração, sem dúvida. Tratava-se de uma política implícita nas práticas de mobilização e luta dos entregadores, o que era diferente de identidades políticas evidenciadas em programas e preferências partidárias e eleitorais.

Foi a política nesse sentido identitário, [6] com potencial de fragmentar os trabalhadores, que veículos e pessoas de esquerda acabaram reforçando ao concederem enorme destaque e sobrevalorizarem a importância do grupo Entregadores Antifascistas. Introduzindo um elemento de identidade política, o “antifascismo”, eles introduziram um elemento de tensão e divisão. Não por algum entregador se considerar fascista, evidentemente. Mas por trazer algo externo à experiência comum de trabalho, o único elemento capaz de ser imediatamente compreendido por todos e de unificar e constituir a classe.

O Breque dos apps e o fantasma da autonomia operária

Como disse antes, havia sim um programa político implícito nas práticas do Breque dos Apps. Para usar um termo corrente nos anos 1970, principalmente na Itália, o Breque dos Apps foi uma expressão política de “autonomia operária”. Autonomia “operária” numa dimensão alcançada em São Paulo que não se via nos centros urbanos brasileiros havia pelo menos quarenta anos.

Comunicação horizontal e participação ativa dos entregadores imprimindo e distribuindo eles próprios os cartazes, gravando vídeos, por fora de entidades sindicais – e em parte até mesmo contra o sindicato em São Paulo. A percepção dessa autonomia e horizontalidade foi o que possibilitou um efeito de contágio pelo Brasil, para dentro e para fora da categoria, e até mesmo fora do país, fazendo do chamado de greve para o dia 1º de julho uma greve internacional, com a paralisação se estendendo a outros países da América Latina. Essa participação ativa da categoria na construção da mobilização e a comunicação horizontal entre os trabalhadores tornaram o Breque dos Apps uma mobilização diferente daquelas puxadas por direções sindicais. Essa forma potencializou o movimento e também o seu impacto. Um movimento que não é controlado por direções sindicais não é limitado por convenções, normas, leis, e possui assim uma imprevisibilidade que em si constitui uma força sua. A autonomia “operária” se constituía já na própria construção do Breque.

Puxar uma greve nacional de entregadores de aplicativos para o dia 1º de julho foi uma ideia discutida e decidida em grupos de WhatsApp de entregadores de alguns estados. A ideia de uma greve nacional já vinha sendo gestada desde os primeiros meses do ano e ganhou impulso com ações de luta dos entregadores em algumas cidades, como em Rio Branco, Rio de Janeiro e São Paulo. Seguindo mais ou menos uma ordem decrescente de importância para a mobilização dos entregadores, as reivindicações eram: 1) Aumento do valor das corridas; 2) Aumento do valor mínimo por entrega; 3) Fim dos bloqueios e desligamentos indevidos; 4) Seguro de roubo, acidente e vida; 5) Fim do sistema de pontuação; 6) Auxílio-pandemia (EPIs e licença). Evidentemente, as tendências e relações que se estabeleciam entre entregadores e sindicatos, políticos e instituições não são homogêneas Brasil afora. Mas o que prevaleceu, principalmente em São Paulo, onde o movimento era mais potente, foi uma posição de autonomia total quanto a sindicatos, partidos, instituições… quando não com uma atitude de aversão aberta e declarada. Dias antes da paralisação, um vídeo gravado por alguns motoboys de São Paulo que estavam bastante engajados na organização do Breque sintetizou a perspectiva autônoma do movimento.

Baseando as pautas na atividade dos entregadores de aplicativos e explicitando que não havia vínculo político com ninguém nem com sindicatos, sendo uma iniciativa e ação dos próprios entregadores, eles demonstravam uma aguçada consciência de classe prática. Mais do que isso, mostravam como o movimento era uma expressão de continuidade da autonomia operária que precipitou a crise do fordismo nos anos 1970, dessa vez numa condição pós-fordista. Como diz um ex-operário italiano bastante ativo nas lutas e na construção dessa autonomia operária nos anos 1960 e 1970: a passividade dos trabalhadores normalmente pode ser superada, pois ela seria consequência da falta de referências políticas e organizativas alternativas ao sindicato. 8 Em parte, era isso que também estava sendo constituído pelos entregadores: uma referência de organização alternativa ao sindicato. Como no último grande ciclo de lutas da classe trabalhadora, o potencial disruptivo da ação dos trabalhadores vinha de fora do sindicato, quando não se voltava diretamente contra ele.

Impossível dizer o número de entregadores que aderiram à paralisação em 10 de julho de 2020 no Brasil. Em São Paulo, especificamente, talvez seja difícil até mesmo fazer uma estimativa. Provavelmente foi a maior paralisação de entregadores de aplicativos no Ocidente. A imagem midiática, espetacular, foi a da imensa manifestação que saiu da Avenida Paulista e terminou ocupando a Ponte Estaiada. Contudo, a autonomia de classe se expressou de forma menos visível aos olhos do público. Foram os incontáveis piquetes auto-organizados em locais de coleta de pedidos, como shopping centers, que fizeram desse o dia de maior ex- pressão de autonomia “operária” nos centros urbanos brasileiros das últimas décadas.

Para o dia 25 de julho era nítido que não havia a mesma energia e disposição dos entregadores para se envolver com a paralisação. Mesmo assim, ao menos em São Paulo ela foi bastante expressiva. Dessa vez a paralisação teve um tom de “greve de pijama”. Muitos ficaram em casa. Mas os piquetes em alguns shoppings eram desnecessários uma vez que o movimento de trabalho estava mesmo muito abaixo do normal. Grande parte dos entregadores de fato não havia ido trabalhar.

O movimento conseguiu trazer uma boa exposição da situação vivida pelos entregadores de aplicativos. A imagem das empresas de aplicativo saiu arranhada, e esse prejuízo à marca certamente foi maior do que aquele trazido pela paralisação do trabalho. No entanto, comparada com as greves de entregadores na Inglaterra relatadas por Callum Cant, o Breque dos Apps objetivamente conquistou muito pouco. Talvez o único ganho objetivo tenha sido alguma melhora para que não haja tantos bloqueios indevidos por parte da maior empresa do mercado, mas sem nada oficializado. Essa diferença em termos de conquistas e compromisso das empresas na Inglaterra e no Brasil é indício de que aqui os trabalhadores estão enfrentando um poder econômico mais soberano, mais difícil de ser constrangido. Algo que a existência do modelo OL no Brasil também nos indica, o que veremos mais adiante.

A composição de classe

A atração exercida tanto por Delivery Fight quanto pelo Breque dos Apps sobre aqueles que buscam um mundo mais justo certamente se relaciona com a esperança ou expectativa de que a classe trabalhadora esteja se recompondo nas novas condições técnicas e de relações de trabalho que chamamos vagamente de pós-fordismo. Pós-fordismo que os entregadores de aplicativo tão bem representam na sua versão talvez mais extrema, que tem sido denominada de uberização. O conceito de composição (e recomposição) de classe surgiu em meio a uma corrente de intelectuais italianos, os quais se envolveram nas lutas operárias dos anos 1960 e 1970. É dessa referência teórica, chamada operaísmo, que Callum Cant parte para analisar o seu próprio trabalho como entregador, assim como a organização e a luta da categoria.

O leitor irá encontrar em Delivery Fight a explicação mais didática de que tenho conhecimento dos conceitos de composição de classe, de composição técnica, de composição política e de composição social (este último acrescido posteriormente aos conceitos originais dos operaístas italianos). Callum Cant é excepcionalmente didático e claro na explicação desses e de outros conceitos importantes para se compreender e analisar a organização do trabalho e as relações de produção. Essa já seria uma virtude que por si só justificaria o livro.

Esquematicamente podemos dizer que o último grande ciclo de lutas da classe trabalhadora se baseou numa determinada composição de classe. Com a reestruturação produtiva para responder a essas lutas, o capital gerou um processo de fragmentação e decomposição da classe trabalhadora. Esse processo de fragmentação, iniciado há décadas, ainda está em curso. No entanto, as lutas que ocorrem com maior ou menor intensidade podem indicar um processo ou tendência de recomposição de classe. Pelo menos é nessa expectativa que olhamos para as lutas dos trabalhadores. Estar atento aos indícios de uma possível recomposição de classe é também estar atento a uma nova ­subjetividade dos trabalhadores, emergente a partir de novas ­condições de vida e de experiência de trabalho. Uma nova composição de classe implica uma nova política, novos desafios e novas questões postas, que certamente não constituirão um caminho de regresso histórico ao fordismo. Ora, o fordismo como forma de organização da produção e de pacto social foi posto em crise pela própria luta dos trabalhadores.

A falta de perspectiva histórica aliada a um afastamento da realidade vivida pelos trabalhadores e a um desinteresse em compreendê-los têm feito muitos acadêmicos atribuírem a rejeição da maioria dos motoboys à CLT, ou a preferência em não terem carteira assinada, a uma suposta ideologia empresarial e de empreendedorismo que estaria impregnando esses trabalhadores. Todos os trabalhadores sempre buscam autonomia e segurança social. Busca por autonomia que se expressa desde as tentativas subterrâneas de controlar o ritmo de trabalho até os momentos revolucionários de tomada dos meios de produção e autogestão generalizada. Como Callum Cant deixa claro, e também como relatam entregadores de aplicativos do Brasil à China, uma vantagem evidente que faz os entregadores de aplicativos preferirem em geral esse trabalho a uma série de outros é a ausência de chefe. Os chefes costumam ser uma das principais fontes de incômodo e estresse em qualquer trabalho. A carteira assinada está relacionada a esse tipo de subordinação clássica.

O que a maioria dos motoboys está dizendo com essa rejeição à carteira assinada e à CLT é que não estão dispostos a abrir mão da autonomia e flexibilidade que possuem em troca da proteção trabalhista e previdenciária da CLT. Ora, isso não impediu que se colocassem em luta aberta contra as empresas de aplicativos de entrega nem, que reivindicassem proteção social, como deixam claro o Breque dos Apps e suas pautas.

A composição técnica, nas palavras de Cant, diz respeito a como os trabalhadores são organizados como força de trabalho produtiva. Por isso Delivery Fight traz uma brilhante análise da organização do trabalho dos entregadores de aplicativos, além de descrever e analisar a organização deles enquanto classe que luta (a composição política).

Normas de produção e o risco de acidentes

Central a essa organização do trabalho é o salário por peça, que já mencionamos. Ele por si só induz que os entregadores autogerenciem e autointensifiquem o trabalho. A percepção de risco de Callum Cant era assim reduzida enquanto ele fazia as entregas, em relação a quando ele pedalava fora do trabalho.

Ocupações ligadas ao transporte rodoviário possuem as maiores taxas de mortalidade por acidente de trabalho no Brasil . E isso mesmo desconsiderando os que estão na informalidade. Na China, as pressões exercidas pela organização do trabalho imposta pelas empresas levam os entregadores a se arriscarem ainda mais. Tempos reduzidos para realizar as entregas, com rotas que desconsideram as regras de trânsito, e punições financeiras e de desligamento por atraso levam os entregadores a avançarem o sinal vermelho e a andarem na contramão, o que gera um aumento expressivo dos acidentes e mortes de motoboys. Como no Brasil e nos outros países, essas empresas não são responsabilizadas pelos acidentes e não arcam com nenhum custo de afastamento do trabalho nem de reparo do instrumento de trabalho, de modo que as empresas não se veem incentivadas a mudar as regras que determinam os acidentes. Quando os acidentes se tornam uma questão pública, uma série de medidas cosméticas ou que acabam penalizando os entregadores acabam sendo postas em prática, em nome da segurança no trabalho. Para não entrarmos nos diversos exemplos chineses de medidas que supostamente visam prevenir acidentes mas que não tocam nas regras impostas pelas empresas que determinam a maior parte dos acidentes, responsabilizando unicamente os trabalhadores pela prevenção, fiquemos com um exemplo ocorrido em Florianópolis.

Em setembro de 2020, uma espécie de operação-padrão massiva envolvendo a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar levou à apreensão de inúmeras motocicletas de entregadores, além de um número maior de multas, flagelando ainda mais trabalhadores que se viram do jeito que podem com extensas jornadas para conseguir pagar as contas a cada mês. As blitze eram diárias e em tantas vias da cidade que alguns entregadores chegaram a não sair para trabalhar tamanha a dificuldade de se deslocar sem passar por elas. In- dignados, os motoboys chamaram uma manifestação para o dia 23 de setembro. Com a repercussão na imprensa, o discurso do comando da Polícia era de que se tratava de ação motivada pelo aumento no número de acidentes com motoboys. A lição é clara: se a segurança e saúde dos trabalhadores não estão incorporadas à organização do trabalho como valor exterior à maximização do lucro, elas aparecerão como força policial sobre os trabalhadores.

A liberdade do trabalhador contra o controle e a disciplina do explorador

Um ponto importante destacado por Callum Cant é que a precariedade dos vínculos trabalhistas não significa necessariamente menor poder desses trabalhadores, podendo ocorrer exatamente o contrário. O vácuo de legislação trabalhista que implica ausência de direitos e de proteção social também implica que os entregadores estão fora da legislação que enquadra as formas de luta de organização dos trabalhadores. Todo um espaço se abre para lutas mais autônomas, contundentes e imprevisíveis quando não há necessidade de aviso prévio, formalização ou de seguir procedimentos de negociação quanto à ocorrência de greves. Cant apresenta o exemplo histórico dos operários da construção civil e dos estivadores ingleses. A ausência de vínculo empregatício propiciava um grande poder de barganha aos estivadores. Para lhes retirar esse poder, os capitalistas terminaram por incorporá-los como empregados em tempo integral, com salários fixos.

Para fugir do vínculo empregatício, essas empresas de entrega por aplicativos terceirizam o trabalho para uma multidão, considerando-os trabalhadores autônomos, ou mesmo consumidores de seus serviços. Para Callum Cant, esse status de trabalhador autônomo (independent contractor na Inglaterra) se torna necessário para que possam implementar o sistema de salário por peça. Somado a isso, a automatização da função de supervisão (o chamado “algoritmo”) completa a caracterização do que tem sido o típico modelo de relação de trabalho de entregadores de aplicativo pelo mundo. Mas Callum Cant nos mostra que o supervisor automático exerce mal uma das funções da supervisão, isto é, da chefia: disciplinar o trabalhador. Disciplinar para trabalhar, assim como para não contestar e não lutar. A essa deficiência na função disciplinar brilhantemente apresentada por Callum Cant, podemos acrescentar que o modelo típico de entrega por aplicativos cria uma incerteza de quantos entregadores a empresa terá disponíveis em determinado horário, uma vez que em tese os entregadores possuem liberdade de logar e deslogar da plataforma quando bem quiserem. Essa incerteza tende a se tornar mais problemática para as empresas, por exemplo, em dias ou horas de chuva, quando a demanda tende a aumentar e o número de entregadores logados tende a diminuir.

Para resolver o problema da indisciplina e dessa incerteza sobre o número de entregadores à disposição, a atual conjuntura histórica tem permitido que as empresas de entrega por aplicativos deem uma resposta diferente da que foi dada aos estivadores ingleses. Essa conjuntura é a de debilidade geral da classe trabalhadora, num período de décadas de relativa estagnação econômica e de desindustrialização, com consequente subemprego em massa. A resposta diferente que essas empresas de entrega por aplicativos já dão pode ser vista num modelo de relação de trabalho que não existe na Europa – segundo informações que troquei com o nosso autor – mas que existe por aqui.

No Brasil, apesar de ser adotado também pela Bee, esse modelo ficou conhecido pelo iFood como OL. O iFood possui dois tipos de entregadores, o Nuvem e o OL. O Nuvem é o modelo típico que caracterizamos acima, o mesmo descrito por Callum Cant a partir de seu próprio trabalho. Aquele em que o entregador pode logar e deslogar quando quiser, isto é, a princípio trabalhar quando quiser, não possuindo chefe ou supervisor humano. O OL por sua vez tem que cumprir horários todos os dias, com um dia de folga por semana. Ele possui chefe/supervisor humano, o Operador Logístico, uma espécie de supervisor terceirizado do iFood que determina os dias de folga e em quais turnos (manhã, tarde, noite) o entregador terá que trabalhar. O modelo OL responde ao problema da indisciplina do trabalhador: os entregadores OL, a grosso modo, não participaram do Breque dos Apps. Se faltarem ao trabalho podem ser desligados por seus Operadores Logísticos, que funcionam como pequenos patrões. Por outro lado, esse modelo garante à empresa a certeza de que haverá determinado número de entregadores trabalhando, não importa o clima, uma vez que não possuem liberdade para logarem e deslogarem quando quiserem e tampouco para rejeitarem corridas.

Na China as duas grandes empresas de entrega por aplicativo alocam grande parte das suas forças de trabalho sob um modelo bastante parecido com o do OL, no qual os entregadores têm supervisores humanos terceirizados e são obrigados a cumprir uma jornada de trabalho definida. No entanto, na China eles recebem um valor mínimo fixo, enquanto no Brasil não. Nos Estados Unidos, uma empresa de compras e entregas por aplicativos chamada Instacart possui um modelo algo semelhante para toda a sua força de trabalho. Há supervisores humanos e turnos de trabalho, que são escolhidos pelos trabalhadores conforme seu ranqueamento. A Deliveroo na Europa, embora não tenha supervisores humanos, possui em grande parte das cidades um sistema de turnos em que o trabalhador deve escolher horários pre-definidos para trabalhar, por ordem de ranqueamento. Um sistema parecido com o de distribuição de comida do filme O Poço, em que os grupos mais abaixo no ranqeamento ficam com as sobras de horários e regiões, até sobrarem apenas os piores e poucos horários e regiões para os do fundo do “poço”. Não poder cumprir um turno programado por causa de um acidente ou qualquer outro imprevisto, como um assalto, costuma jogar o entregador em direção ao fundo do poço no ranqueamento.

O que vem pela frente?

Em suma, o capital já está impondo um regime de trabalho com o sistema OL que mistura a subordinação despótica fordista com a ausência de direitos e proteção social que tem sido tendência no pós-fordismo. Já é realidade o paradoxo de ser empregado sem salário e sem vínculo empregatício com qualquer emprego – algo que não foi visto antes na história do capitalismo. A lógica é que esse paraíso para os capitalistas tenda a se expandir nessa e em outras categorias, se depender da vontade deles. E é a vontade deles, praticamente sem obstáculos, que tem prevalecido nos últimos anos, ao menos no Brasil.

A obrigação de possuir os instrumentos de trabalho e o salário por peça são duas características presentes no trabalho de entrega para aplicativos que tendem a se generalizar para outras atividades. Por isso os entregadores de aplicativos também podem nos antecipar, quem sabe, tendências para uma recomposição de classe no futuro. Uma tendência nesse contexto de baixa demanda por trabalho e de subemprego em massa é que a reivindicação de um salário mínimo se torne cada vez mais comum, pois seria a única forma de conseguir aumento salarial ou, pelo menos, tentar evitar a redução salarial. Tendência de redução salarial que afeta particularmente os serviços, como nos explica Aaron Benanav [12]. O aumento do valor mínimo por entrega e o valor mínimo por quilometragem foram reivindicações dos entregadores de aplicativos em julho de 2020 no Brasil, que nos servem como exemplo. Se isso parece ser uma reivindicação rebaixada quando comparada a outros tempos, pouco importa. O que irá importar do ponto de vista revolucionário, de fortalecimento de novas relações sociais, é a forma que terão as lutas e os movimentos. Como salienta Benanav, há uma diferença importante das lutas que viveremos em relação às lutas históricas da classe trabalhadora. Elas não serão mais relacionadas à industrialização, mas às consequências do fim desta.

Os capitalistas contam com a nossa dificuldade de construir lutas contínuas e que não se burocratizem, ainda mais em tempos de baixa demanda por trabalho. Contam também com a maior dispersão e fragmentação dos trabalhadores em relação aos tempos de Robert Linhart na fábrica da Citroën. E nada indica que a ampliação do poder deles sobre nós encontrará um revés tão logo. Mas uma coisa eles não podem evitar: a rebeldia. Como dizia um revolucionário do século XIX, o ser humano é dotado de duas faculdades preciosas: o pensamento e a necessidade de se revoltar. Haverá muitos gritos de Já Basta contra essa vida insuportável de sofrimento e indignidade que o lucro e o poder deles impõem. Callum Cant nos traz de forma inspiradora um desses gritos. O facto de você estar com esse livro nas mãos é sinal de que esse grito ecoa em direção a outros gritos de rebeldia…

Eles jamais poderão contar com um sono tranquilo.

Edição 168, maio 2021

Marco Grieco

POR QUE A ÍNDIA TEM TANTO MEDO DE UM VELHO JESUÍTA?

Por que o governo indiano tem tanto medo de um jesuíta de 84 anos que sofre de Parkinson a ponto de prendê-lo no meio da noite e o encarcerar por mais de oito meses? É uma pergunta que nem na sexta-feira o Supremo Tribunal respondeu, depois de mais um recurso dos advogados do padre Stan Swamy, o jesuíta indiano preso junto com 15 ativistas em outubro passado e ainda detido na prisão de Taloya, em Mumbai. A reportagem é de Marco Grieco, publicada por Domani, 25-05-2021. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Em 21 de maio, os juízes deram parecer negativo sobre sua libertação, apesar da deterioração de sua saúde: "O tribunal analisou o relatório dos médicos e depois falou diretamente com Stan, contatado por videoconferência", disse o advogado jesuíta padre Arockiasamy Santhanam. O próximo pedido de libertação sob fiança será avaliado em 7 de junho: por enquanto, o jesuíta continua na prisão por supostas ligações com os rebeldes maoístas, embora o próprio religioso sempre tenha dito não estar envolvido, com uma tese inclusive abalizada por uma investigação do Washington Post.

“Na realidade, a fiança poderia ser obtida por motivos de saúde, visto que também existem outros doentes, mas até agora a opção não foi considerada”, explica ao Domani o padre Ashok Ohlol, jesuíta da província indiana de Ranchi, e próximo ao Padre Swamy: "Desde que foi preso, não tive oportunidade de falar com ele", admite com amargura.

O jesuíta terrorista

Tudo começou com o incidente de Bhima Koregaon. Em dezembro de 2018, a poucos quilômetros de Pune, os nativos indianos Dalit e Adivasi estavam reunidos para comemorar o 200º aniversário da Batalha de Bhima Koregaon. Durante as manifestações, eclodiram algumas violências intercomunitárias que também envolveram agentes locais.

A Agência Nacional de Investigação (NIA), que trata de desentocar supostos dissidentes do governo, começou a prender ativistas e acadêmicos rotulando-os de terroristas com base em supostas ligações com guerrilheiros maoístas reconstruídas por meio de arquivos encontrados no laptop de um ativista.

As denúncias foram desmontadas em 2018 pelo Washington Post que demonstrou, com a ajuda de uma empresa forense digital, que o material considerado comprometedor havia sido inserido no PC por um hacker. As provas, entretanto, não pararam as autoridades locais que, em nome da famigerada lei antiterrorismo Unlawful activties prevenction act, deram início a detenções forçadas sem qualquer possibilidade de recurso legal. Em outubro passado foi a vez do padre Swamy, que foi levado sob custódia durante a noite, porque seu nome aparecia na questionável lista.

De nada valeu o apelo de 2.500 indianos de renome, entre acadêmicos e políticos, incluindo o ex-chefe do Estado-Maior da Marinha da Índia, Laxminarayan Ramdas: "O recente relatório do Arsenal, preparado com base em provas eletrônicas coletadas pela NIA, revelou como documentos falsos foram inseridos nos computadores dos acusados.

É preocupante que o tribunal tenha decidido ignorar essa prova”, diz a carta. Há oito meses, o jesuíta, sofrendo de mal de Parkinson e parcialmente surdo, está relegado na superlotada prisão de Taloya, em uma cidade que foi dizimada pela segunda onda da pandemia de Covid-19.

Em defesa dos nativos

Na Índia, o empenho da Companhia de Jesus desde sempre está enraizado nas missões sociais. Desde a década de 1990, o Padre Swamy está empenhado em acolher os marginalizados, como os nativos e os expulsos das castas. Sua atividade tomou o nome de Bagaicha, uma pequena comunidade constelada de casas de tijolos, que ainda acolhe as minorias descartadas pela sociedade indiana em rápida expansão, cega às instâncias de independência dos povos tribais.

Com o tempo, a atividade dos jesuítas foi assim se entrelaçando com aquela dos ativistas, única barreira social aos variados memorandos de entendimento estipulados entre governos locais e indústrias de mineração, ansiosas por colocar as mãos no subsolo das florestas, ricas em minerais como o alumínio e bauxita.

A exploração do subsolo tem um enorme custo social porque induz ao despovoamento as populações nativas como os adivasis, marginalizadas por um Estado que, pelo menos no papel, deveria protegê-las.

Falsa tutela

Nos anos 2000, com a sucessão de operações de evacuação e strategic hamleting para agrupar a população nativa e liberar as aldeias nas florestas para as mineradoras, o Padre Swamy combinou o acolhimento e a integração dos marginalizados com a formação dos nativos para que tivessem consciência de seus direitos, inclusive tutelados pelas leis sobre o desenvolvimento das comunidades rurais, como o Chota Nagpur Tenancy Act de 1906 ou a norma sobre direitos florestais de 2007.

Tarefa nada fácil: os interesses pela extração de minerais nas florestas são tão altos que o próprio Supremo Tribunal da Índia, ao longo dos anos, ratificou a política colonial que atribui aos governadores estaduais a gestão de seus territórios. Essa operação invalidou a histórica decisão "Samantha versus Andhra Pradesh", na qual o Supremo Tribunal em 1997 declarou as terras de propriedade dos tribais, proibindo seu arrendamento a terceiros, em nome do quinto programa da Constituição indiana que preserva a terra das minorias tribais.

Cinco anos depois, porém, na decisão "Balco Employees Union versus Union of India", os mesmos juízes expressaram ressalvas sobre a anterior, pois "o contencioso de interesse público não pode ser usado como arma para decisões econômicas ou financeiras que tenham sido tomadas pelo governo no exercício do seu poder administrativo”. Em outras palavras, o Tribunal Superior negava de fato o direito de propriedade aos nativos, considerando-os ocupantes abusivos.

Resistência nas florestas

Aqueles que se opunham às expropriações eram, assim, assimilados aos guerrilheiros maoístas, ou seja, os revolucionários que, inspirados pela revolução rural de Mao Zedong, a partir dos anos 1960 iniciaram uma resistência armada contra o exército do governo.

Ao longo dos anos, tiroteios e emboscadas tomaram a forma de verdadeiras execuções sumárias, envolvendo também as populações nativas que, reivindicando independência para si mesmas, eram catalogadas como unidades terroristas. Ainda hoje, em nome da luta implacável contra os maoístas, os militares invadem aldeias, perpetram violências e esvaziam as florestas, rotuladas como áreas "afetadas por terroristas".

Como lembra Marina Forti em Il cuore di tenebra dell’India (Mondadori, 2012), o Padre Swamy participou da primeira inspeção das florestas ocupadas pelas forças de segurança nas operações militares do governo Green Hunt e Anaconda.

Para conter essa violência cega, o jesuíta tentou, então, reportar-se aos princípios da própria constituição indiana como garantia de proteção para os nativos. Mesmo assim, ainda hoje 47% das pessoas que vivem em áreas rurais são pobres. Paralelamente, os governos locais assinam centenas de protocolos de entendimento com empresas industriais para a criação de polos de mineração, escondidos por atrás de centros de pesquisa ou sedes humanitárias de nomes retumbantes.

Igreja silenciosa

De acordo com o relatório do think tank independente Land Rights Initiative, os adivasis representam 8% da população da Índia, mas têm quatro vezes mais probabilidade de serem deslocados pelo desenvolvimento industrial. Em estados como Jharkhand, onde os nativos estão sob constante ameaça de despejo, 9 por cento são católicos.

No entanto, no passado, o jesuíta criticou o silêncio da Igreja Católica face às incursões e à violência dos militares nas aldeias: “Se a Igreja fica em silêncio, mais cedo ou mais tarde os adivasis irão revoltar-se. A igreja deve quebrar o silêncio e se unir aos movimentos populares, caso contrário, terá falhado a sua missão”, trovejou o jesuíta entrevistado em 2012 por Marina Forti.

Agora que está preso e em condições precárias, a comunidade local faz sentir sua proximidade: “Há uma equipe que cuida de suas atividades enquanto ele está preso - admite o padre Ohlol, que acrescenta - até agora nenhum comentário chegou da Santa Sé. As informações chegaram certamente ao superior geral dos jesuítas e, muito provavelmente, também ao Vaticano”.

Na sua curta intervenção em vídeo, o idoso e debilitado jesuíta admitiu na sexta-feira um agravamento do seu estado, mas expressou a sua preocupação pelos outros reclusos, pedindo para permanecer perto da sua comunidade: “Stan está mais preocupado com os outros do que consigo próprio. O seu é verdadeiramente um espírito cristão”, disse seu advogado comovido.

Byung-Chul Han

O VÍRUS CAPITALISTA DO CANSAÇO INCESSANTE

"Em breve teremos vacinas suficientes para vencer o vírus. Mas não haverá vacinas contra a pandemia da depressão", escreve Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta sul-coreano que é docente de Filosofia e Estudos Culturais na Universität der Künste de Berlim, e autor, entre outras obras, de Sociedade do Cansaço. Nascido em Seul, é considerado um dos filósofos contemporâneos mais interessantes. O artigo é publicado originalmente em The Nation e reproduzido por Outras Palavras. A tradução é de Simone Paz /IHU

A covid-19 é um espelho que reflete em nós as crises da nossa sociedade. Ela torna os sintomas patológicos — que já existiam antes da pandemia — mais visíveis. Um desses sintomas é o cansaço. Todos nós, de um jeito ou de outro, nos sentimos muito cansados. É um cansaço fundamental que nos acompanha o tempo todo e em todo lugar, como nossas próprias sombras. Durante a pandemia, temos nos sentido ainda mais cansados. A ociosidade, que o lockdown nos impõe, nos faz ficar mais cansados. Algumas pessoas afirmam que é possível descobrirmos a beleza do lazer, e que a vida pode desacelerar. Na verdade, o tempo durante a pandemia não é governado por lazer ou desaceleração, mas por cansaço e depressão.

Por que nos sentimos tão cansados? Hoje, o cansaço parece ser um fenômeno global. Dez anos atrás, publiquei um livro, A Sociedade do Cansaço, no qual eu descrevia o cansaço como uma doença que aflige a sociedade neoliberal das realizações. O cansaço que experimentamos durante a pandemia me fez pensar no assunto novamente. O trabalho, por mais difícil que seja, não provoca um cansaço fundamental. Podemos estar exaustos depois do trabalho, mas esse cansaço não é o mesmo que o cansaço fundamental. O trabalho, em determinado ponto, acaba. A compulsão de realização à qual nos sujeitamos vai para além desse ponto. Está conosco nas horas de lazer, nos atormenta até durante o sono e, muitas vezes, nos faz passar noites sem dormir. Não é possível recuperar-se da compulsão de realização. É essa pressão interna, especificamente, que nos cansa. Portanto, há uma diferença entre cansaço e exaustão. O tipo certo de exaustão pode até nos livrar do cansaço.

Distúrbios psicológicos como a depressão ou o esgotamento (burnout) são sintomas de uma profunda crise de liberdade. São um sinal patológico, e indicam que a liberdade de hoje muitas vezes acaba virando compulsão. Achamos que somos livres. Mas, na verdade, nós nos exploramos intensamente até colapsar. Nos realizamos e nos otimizamos até a morte. A lógica traiçoeira da conquista nos obriga a nos anteciparmos permanentemente. Sempre que conquistamos algo, na sequência, já queremos conquistar mais, ou seja, queremos estar mais uma vez à frente de nós mesmos. Mas, obviamente, é impossível você mesmo se ultrapassar. Essa lógica absurda acaba levando a um colapso. O sujeito realizador acredita que é livre, quando na verdade é um escravo. É um escravo absoluto na medida em que se explora voluntariamente, mesmo sem a presença de um senhor.

A sociedade neoliberal da realização torna essa exploração possível mesmo quando não há dominação. A sociedade disciplinar, com seus mandamentos e proibições, que Michel Foucault expôs em seu livro Vigiar e Punir, não descreve essa sociedade da realização atual. A sociedade da realização explora a própria liberdade. E a autoexploração é mais eficiente do que a exploração comandada por outros, porque ela anda de mãos dadas com um sentimento de liberdade. Kafka expressou com grande clareza o paradoxo da liberdade do escravo que acredita ser o senhor. Em um de seus aforismos, ele escreve: “O animal arranca o chicote de seu dono e se chicoteia para tornar-se seu próprio amo, sem saber que isso não passa de uma fantasia produzida por um novo nó na chicotada do amo”. Essa autoflagelação permanente nos deixa cansados e, em última análise, deprimidos. Em certo aspecto, o neoliberalismo se baseia na autoflagelação.

O mais sinistro sobre a covid-19 é que aqueles que pegam a doença sofrem exatamente de cansaço e esgotamento extremos. A doença parece simular um cansaço fundamental. E há cada vez mais relatos de pacientes que se recuperaram, mas que continuam sofrendo de sintomas graves a longo prazo, entre eles, a “síndrome da fadiga crônica”. Uma expressão que descreve isso muito bem é: “as baterias não carregam mais”. As pessoas afetadas não são mais capazes de trabalhar e ter algum desempenho. Elas precisam fazer um esforço até para servir-se de um copo d’água. Ao caminhar, precisam fazer paradas frequentes para recuperar o fôlego. Sentem-se mortos-vivos. Um paciente relata: “A sensação é como se você tivesse o celular com apenas 4% de bateria, e você realmente só tem esse 4% para o dia inteiro e não pode recarregá-lo”.

Mas o vírus não cansa apenas as pessoas que têm ou tiveram covid. Agora, ele gera cansaço até nas pessoas saudáveis. Em seu livro Pandemic! Covid-19 Shakes the World (“Pandemia! A covid-19 sacode o mundo”), Slavoj Žižek dedica um capítulo inteiro à pergunta: “Por que estamos cansados o tempo todo?” Claramente, Žižek também sente que a pandemia nos deixou cansados. Neste capítulo, o autor discorda da ideia do meu livro, A Sociedade do Cansaço, argumentando que a exploração por terceiros não foi substituída pela auto-exploração, foi apenas transferida para países do Terceiro Mundo. Concordo com Žižek que esta transferência ocorreu. A Sociedade do Cansaço refere-se principalmente às sociedades neoliberais ocidentais e não à situação do operário chinês. Mas, com ajuda das mídias sociais, a forma de vida neoliberal também vem se expandindo pelo Terceiro Mundo. A ascensão do egoísmo, da atomização e do narcisismo na sociedade é um fenômeno global. As mídias sociais fazem de todos nós produtores, empreendedores cujas vidas são o negócio. Globalizam a cultura do ego que corrói a comunidade, corrói tudo o que é social. Nós nos produzimos e nos colocamos em exposição permanente. Essa autoprodução, essa contínua “exibição em vitrine” do ego, nos deixa cansados e deprimidos. Žižek não aborda este cansaço fundamental, que é característico dos nossos tempos e que foi agravado pela pandemia.

Žižek surge numa passagem de seu livro pandêmico para aquecer a tese da auto-exploração, escrevendo: “Elas [pessoas que trabalham em casa] poderão ter ainda mais tempo para ‘explorar a nós mesmos’ [sic]”. Durante a pandemia, o campo de trabalho neoliberal ganhou um novo nome: home office. Trabalhar em casa é mais cansativo do que trabalhar no escritório.

No entanto, isso não pode ser explicado em termos de aumento da auto-exploração. O que é cansativo é a solidão envolvida, o interminável sentar-se de pijama na frente do computador. Somos confrontados com nós mesmos, compelidos constantemente a meditar e especular sobre nós mesmos. Em conclusão, o cansaço fundamental é um tipo de cansaço do ego. O escritório doméstico intensifica isso, envolvendo-nos ainda mais profundamente connosco. Fazem falta outras pessoas, que poderiam distrair-nos do nosso ego. Cansamos por falta de contacto social, de abraços, de toque corporal. Em condições de quarentena, começamos a perceber que talvez as outras pessoas não sejam o “inferno”, como escreveu Sartre em Sem Saída, mas a cura. O vírus também acelera o desaparecimento do outro, como descrevi em A Expulsão do Outro.

A ausência do ritual é outra razão para o cansaço induzido pelo home office. Em nome da flexibilidade, estamos perdendo as estruturas e arquiteturas temporais fixas que estabilizam e revigoram a vida. A ausência de ritmo, em particular, intensifica a depressão. O ritual gera comunidade mesmo sem necessidade de comunicação, enquanto que hoje prevalece a comunicação sem comunidade. Mesmo aqueles rituais que ainda mantínhamos, como jogos de futebol, shows e idas a restaurantes, ao teatro ou ao cinema, foram cancelados. Sem rituais de encontro ou comemoração, somos jogados às profundezas de nós mesmos. Ser capazes de cumprimentar pessoas cordialmente é que nos torna seres, e não um simples peso. O distanciamento social desmonta a vida social. Isso nos cansa. As outras pessoas são reduzidas a potenciais portadoras do vírus, das quais devemos manter uma distância física. O vírus amplifica nossas crises atuais. Está destruindo a comunidade, que já estava em crise. Isso afasta uns dos outros. Isso nos torna ainda mais solitários do que já éramos nesta era de mídia social que reduz o social e nos isola.

A cultura foi a primeira coisa a ser abandonada durante o lockdown. O que é a cultura? Ela gera comunidade! Sem ela, não passamos de animais apenas querendo sobreviver. Não é a economia, mas sobretudo a cultura, a chamada vida comunitária, que precisa se recuperar desta crise o mais rápido possível.

As constantes reuniões de Zoom também nos deixam cansados. Elas nos transformam em zumbis do Zoom. Nos obrigam a nos olharmos permanentemente no espelho. Olhar para o próprio rosto na tela é cansativo. Somos continuamente confrontados com nossos próprios rostos. Ironicamente, o vírus apareceu justamente nos tempos da selfie, moda que pode ser explicada como decorrente do narcisismo de nossa sociedade. O vírus intensifica esse narcisismo. Durante a pandemia, todos nós somos constantemente confrontados com nossos próprios rostos; produzimos uma espécie de selfie sem fim na frente de nossas telas. Isso nos cansa.

O narcisismo do Zoom produz efeitos colaterais peculiares. Ele levou a um boom nas cirurgias estéticas. Imagens distorcidas ou borradas na tela levam as pessoas ao desespero, enquanto se a resolução da tela for boa, de repente detectamos rugas, calvície, manchas hepáticas, bolsas nos olhos e outras imperfeições da pele pouco atraentes. Desde o início da pandemia, as pesquisas no Google por cirurgia estética dispararam. Durante o bloqueio, os cirurgiões plásticos foram inundados com perguntas de clientes que buscavam melhorar sua aparência cansada. Fala-se até de uma “dismorfia do Zoom”. O espelho digital incentiva essa dismorfia (a preocupação exagerada com supostas falhas na aparência física). O vírus leva ao limite o frenesi de otimização, que já nos dominava antes da pandemia. Também, aqui, o vírus é um espelho da nossa sociedade. E no caso da dismorfia do Zoom, o espelho é real! Cresce em nós o puro desespero com nossa aparência. A dismorfia do Zoom, essa preocupação patológica com nossos egos, também nos cansa.

A pandemia também revelou os efeitos colaterais negativos da digitalização. A comunicação digital é muito unilateral e atenuada: não há olhares, não há corpos. Falta a presença física do outro. A pandemia faz com que essa forma de comunicação, essencialmente desumana, se torne a norma. A comunicação digital nos deixa muito, muito cansados. É uma comunicação sem ressonância, uma comunicação sem felicidade. Em uma reunião do Zoom, não podemos, por razões técnicas, nos olhar nos olhos. Tudo o que fazemos é olhar para a tela. A ausência do olhar do outro nos cansa. Esperançosamente, a pandemia nos fará perceber que a presença física de outra pessoa é algo que traz felicidade, que a linguagem implica experiência física, que um diálogo bem-sucedido pressupõe corpos, que somos criaturas físicas. Os rituais que temos perdido durante a pandemia também implicam em experiência física. Eles representam formas de comunicação física que criam comunidade e, portanto, trazem felicidade. Acima de tudo, eles nos afastam de nossos egos. Na situação atual, o ritual seria um antídoto para o cansaço fundamental. O aspecto físico também é inerente à comunidade como tal. A digitalização enfraquece a coesão da comunidade na medida em que tem o efeito de desencarnar. O vírus nos afasta do corpo.

A obsessão com a saúde já era galopante antes da pandemia. Agora, estamos basicamente preocupados com a sobrevivência, como se estivéssemos em um estado de guerra permanente. Na batalha pela sobrevivência, a questão de uma vida boa não entra em jogo. Apelamos a todas as forças da vida, só para prolongar a vida a qualquer custo. Com a pandemia, esta batalha feroz pela sobrevivência sofre uma escalada viral. O vírus transforma o mundo em uma enfermaria de quarentena, na qual a vida é congelada para nossa sobrevivência.

Hoje, a saúde passou a ser o principal objetivo da humanidade. A sociedade de sobrevivência perdeu o sentido da boa vida. Até o prazer é sacrificado no altar da saúde, que se torna um fim em si. Nietzsche já a chamava de nova deusa. A proibição ao cigarro também expressa a mania pela sobrevivência. O prazer tem que dar lugar à sobrevivência. O prolongamento da vida torna-se o valor mais alto. No interesse da sobrevivência, sacrificamos voluntariamente tudo o que torna a vida digna de ser vivida.

A razão exige que, mesmo em pandemia, não sacrifiquemos todos os aspectos da vida. É tarefa da política garantir que a vida não se reduza a uma vida plana, nua e crua, à mera sobrevivência. Eu sou católico. Gosto de frequentar igrejas, especialmente nestes tempos estranhos. No ano passado, no Natal, participei de uma Missa do Galo que aconteceu apesar da pandemia. Isso me deixou feliz. Infelizmente, não havia incenso, coisa que eu amo muito. Eu me perguntei: será que há também uma proibição estrita dos incensos durante a pandemia? Por quê? Ao sair da igreja, estendi a mão para a bacia de água benta, como de costume, e tomei um susto ao perceber que ela estava vazia. Do lado dela, foi colocado um frasco de desinfetante.

Corona blues é o nome que os coreanos deram à depressão que se espalha durante a pandemia. Em quarentena e sem interação social, a depressão se aprofunda. A depressão é a verdadeira pandemia. A Sociedade do Cansaço partiu do seguinte diagnóstico:

Cada era tem as suas próprias inquietações características. Assim, já existiu uma era bacteriana; no fim, ela acabou com a descoberta dos antibióticos. Apesar do medo generalizado de uma epidemia gripal, não vivemos em uma era viral. Graças à tecnologia imunológica, já a deixamos para trás. Do ponto de vista patológico, o incipiente século XXI não é determinado nem por bactérias nem por vírus, mas por neurônios. Doenças neurológicas como depressão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno de personalidade limítrofe (TPL/Borderline) e síndrome de burnout (esgotamento) marcam o panorama da patologia no início do século XXI.

Em breve teremos vacinas suficientes para vencer o vírus. Mas não haverá vacinas contra a pandemia da depressão.

A depressão também é um sintoma da sociedade do burnout. O sujeito da realização sofre de burnout no momento em que ele não é mais capaz de “ser capaz”. Ele não consegue atender à sua demanda autoimposta para ser produtivo e realizar metas, propósitos. Não ser mais capaz de “ser capaz” leva à autorrecriminação destrutiva e à autoagressão. O sujeito da realização trava uma guerra contra si mesmo e morre nela. A vitória nessa guerra contra si mesmo é chamada de esgotamento.

Vários milhares de pessoas cometem suicídio todos os anos na Coreia do Sul. A principal causa é a depressão. Em 2018, cerca de 700 crianças em idade escolar tentaram se suicidar. A mídia fala até em um “massacre silencioso”. Em contraste, até agora apenas 1.700 pessoas morreram de covid-19 na Coreia do Sul. A altíssima taxa de suicídio é simplesmente aceita como um efeito colateral da sociedade da realização. Nenhuma medida significativa foi adotada para reduzir essa taxa. A pandemia intensificou o problema do suicídio — na Coreia do Sul, a taxa de suicídio aumentou rapidamente desde seu início. O vírus, aparentemente, também agrava a depressão. Mas em todo o mundo não se presta atenção suficiente às consequências psicológicas da pandemia. As pessoas foram reduzidas à existência biológica. Todos ouvem apenas os virologistas, que assumiram autoridade absoluta na hora de interpretar a situação. A maior crise causada pela pandemia é o fato de que a vida, sozinha, tenha virado um valor absoluto.

O vírus da covid-19 desgasta nossa sociedade já esgotada, aprofundando as linhas das falhas sociais patológicas. Isso nos leva a um cansaço coletivo. O coronavírus também poderia ser chamado de vírus do cansaço. Mas o vírus também é uma crise no sentido grego de krisis, o que significa um ponto de inflexão. Pois também pode nos permitir reverter nosso destino e fugir de nossa angústia. Ela apela, com urgência: mude de vida! Mas só conseguiremos fazer isso se revisarmos radicalmente nossa sociedade, se conseguirmos encontrar uma nova forma de vida imune ao vírus do cansaço.

Boaventura de Sousa Santos

COLÔMBIA EM CHAMAS: O FIM DO NEOLIBERALISMO SERÁ VIOLENTO

O neoliberalismo não morre sem matar, mas quanto mais mata, mais morre. O que está acontecendo na Colômbia não é um problema colombiano, é um problema nosso, das e dos democratas do mundo”, escreve Boaventura de Sousa Santos, doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale, professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, em artigo publicado Al Poniente. A tradução é do Cepat /IHU

A Colômbia está em chamas. Atualmente, é um dos países com o maior número de mortos por covid-19, ocupando o quarto lugar na região, depois dos Estados Unidos, Brasil e México, tendo até o momento apenas 3,5% da população totalmente vacinada e sendo parte dos países que se negam a apoiar a solicitação de liberação das patentes das vacinas.

É também o país que, em 2020, contabilizou 42,5% de sua população em condição de pobreza monetária, com 15,1% da mesma em condição de pobreza monetária extrema. A estes dados mínimos, mas significativos, podemos somar que, após a assinatura do acordo de paz de 2016, foram assassinados de 700 a 1.100 defensores e defensoras de direitos humanos (os números variam entre as ONGs e as instituições governamentais).

As regiões que antigamente eram de domínio das FARC-EP, hoje estão em disputa por diferentes grupos armados ilegais, que não apenas buscam interesses econômicos (narcotráfico, mineração ilegal) como também trazem consigo um horrível e sangrento interesse pelo controle sobre a população civil, afetando gravemente o tecido social, sendo que isto é apenas a ponta do iceberg do novo panorama que o país atravessa.

É neste contexto, e após quase 3 anos sob o governo de uma direita opositora ao acordo de paz, que em meio a uma pandemia que matou milhares de pessoas o povo trabalhador foi às ruas para levantar sua voz contra uma anunciada reforma tributária que buscou, sobre a lógica do governo, arrecadar 23 trilhões de pesos (algo próximo a 6,3 bilhões de dólares) para melhorar as finanças públicas e financiar os programas de assistência social. Ainda que seja verdade que o país precisa melhorar seu sistema tributário, esta reforma delineava aumentar o número de pessoas declarando e pagando impostos sobre a renda com o aval, a visão e o marco conceitual do Fundo Monetário Internacional – FMI.

Conceber a ideia de que mais pessoas sejam as encarregadas em tributar e financiar os gastos do Estado, em teoria, não soa descabido, aliás, levaria a pensar que seriam as pessoas de alta renda que mais pagariam impostos, tendo em conta os princípios de progressividade, equidade e eficiência tributária consagrados na Constituição Política da Colômbia.

Mas, segundo os dados do Banco Mundial, a Colômbia é um dos países mais desiguais da América Latina (o índice GINI é de 51,3), refletindo uma política tributária inadequada e regressiva que possibilita uma alta concentração do ingresso e a riqueza, ocasionando um menor desenvolvimento, levando em conta que a renda e a riqueza ficam nas mãos de uma percentagem muito pequena da população. A reforma delineada se uniria ao longo e complexo sistema tributário do país que não reflete uma verdadeira política progressiva e que está cheio de benefícios tributários dirigidos às pessoas de maior renda.

Poderíamos afirmar que, a partir de 2016, o povo trabalhador tomou as ruas e praças da Colômbia exigindo a defesa da paz e o cumprimento dos acordos, a proteção dos líderes sociais e a solidariedade àqueles que foram assassinados, assim como a rejeição a propostas de modificação dos regimes de aposentadoria, trabalhistas e tributários. Assim, nos últimos 5 anos, a Colômbia viu suas ruas percorridas por jovens, mulheres, indígenas, afrodescendentes, professores, aposentados e estudantes que geraram factos incomuns, como presenciar uma das maiores manifestações no país, desde os anos 1970, como foi a realizada no dia 21 de novembro de 2019 (21N).

Graças a este empoderamento popular, e apesar da pandemia de covid-19, a Colômbia voltou a marchar de 09 a 21 de setembro de 2020 para protestar contra o abuso policial, a má gestão do Governo na crise econômica e social provocada pela pandemia e para levantar uma voz que dissesse basta aos massacres no país, que não tiveram trégua apesar das medidas de confinamento.

Em especial, é preciso destacar a Minga do Sudoeste Colombiano, ocorrida em outubro de 2020, liderada pelas organizações indígenas, que emocionou por seus lemas e coragem e que conseguiu mobilizar uma grande parte da sociedade em torno de suas exigências, após sua marcha pelo país, conquistando a opinião favorável de milhões de pessoas que as receberam calorosamente em cada cidade, durante sua viagem até a capital.

Neste panorama, o povo decidiu, a partir do dia 28 de abril (28A) de 2021, marchar contra a reforma tributária e o governo indolente. A repressão das forças policiais é brutal. O mal-estar cidadão foi objeto de estigmatização e repressão da força pública, o que fez com que diferentes organizações de direitos humanos registassem, entre 28 de abril e 05 de maio, um total de 1.708 casos de violência policial, 381 vítimas de violência física pela polícia, 31 mortes (em processo de verificação), 1.180 detenções arbitrárias contra os manifestantes, 239 intervenções violentas pela força pública, 31 vítimas de agressão em seus olhos, 110 casos de disparos de armas de fogo pela polícia e 10 vítimas de violência sexual pela força pública. De igual modo, a Defensoria do Povo (a figura do ombudsman na Colômbia) destacou que foram registadas 87 queixas por supostos desaparecimentos, durante os protestos da Paralisação Nacional do 28A.

O que começou como uma forte oposição a uma reforma impopular e a um ministro da fazenda que desconhecia o valor de uma dúzia de ovos (e em geral de toda a cesta familiar), chegou ao ponto de não só conseguir que tal reforma seja retirada no congresso e que tal ministro renuncie, como também que o presidente da república Iván Duque Márquez tenha proposto um espaço de diálogo com diferentes setores da sociedade civil, diálogo que até o momento parece ser apenas entre as elites do país, de cima, e nunca de baixo.

As organizações sociais sabem por experiência que deste governo não se deve esperar nada de bom, mas como sempre fizeram, não se recusam ao diálogo. A primeira vitória do movimento cidadão nas ruas sobre a retirada da reforma não veio de forma pacífica ou gratuitamente. Além dos números antes mencionados e coletados pelas ONGs do país, o presidente Duque anunciou a militarização do país, antes de ceder ao clamor social. A partir do dia 01 de maio, as redes sociais e as ruas colombianas viram o horror de um avanço militar típico de um estado de exceção ditatorial, com a polícia disparando contra manifestantes pacíficos e desarmados. Talvez esta tenha sido a resposta mais violentamente repressiva em tempos de pandemia, em nível mundial.

Particularmente, em Cali, os protestos tiveram uma intensidade muito especial devido à mobilização das organizações indígenas, após o cruel assassinato de Sandra Liliana Peña, governadora indígena de apenas 35 anos que havia proposto a recuperação dos conhecimentos tradicionais e que rejeitava a presença de todos os atores armados em seu território. Esta cidade é o segundo centro urbano mais negro da América do Sul, cheia de contradições e lutas, e que viu como reprimem seu povo da forma mais aberrante possível.

A situação é tal que, em meio a uma reunião pacífica e transmitida ao vivo pelas redes sociais, é possível observar o esquadrão antidistúrbios marcando presença para dispersar a manifestação, causando a morte de um jovem diante de mais de 1.000 espectadores que observavam pela internet. De Siloé, uma comuna (favela) em Cali, também foi denunciado que durante a noite do dia 04 de maio não foi possível acessar o serviço de internet na região.

A frágil resposta à violência policial pelas instituições colombianas (tanto administrativas, como judiciais) abriu espaço para que civis armados ameacem (e em certas ocasiões disparem) os manifestantes sob a ideia de que são “vândalos” e “terroristas”. Em Cali, os estudantes fizeram circular o seguinte “diálogo”: “Temos 25.000 armas”, gritava um homem vestido de branco de sua cara camionete estacionada em frente à Universidade de Valle (Univalle). “Nós temos uma das melhores bibliotecas do país”, respondeu-lhe um estudante. Em Pereira, o prefeito promovia uma “frente comum” que incluía membros da segurança privada, o exército e a política para “recuperar a ordem e a segurança cidadã”, fazendo com que um jovem fosse ferido com oito balas e que esteja agonizando em um hospital de tal cidade.

Para onde caminha a Colômbia?

Esta pergunta é importante para a Colômbia, mas para além da Colômbia, vejo nos recentes acontecimentos na Colômbia o embrião de muito do que acontecerá no continente e no mundo, nas próximas décadas. Claro que cada país tem a sua especificidade, mas o que acontece na Colômbia parece anunciar o pior dos cenários que identifiquei em meu recente livro sobre o período pós-pandemia (O futuro começa agora: da pandemia à utopia).

Este cenário consiste na negação da gravidade da pandemia, na política de sobrepor a economia à proteção da vida, e na obsessão ideológica-política de voltar à normalidade, mesmo quando a normalidade é o inferno para a grande maioria da população. As consequências da pandemia não podem ser magicamente freadas pela ideologia dos governos conservadores, a crise social e econômica pós-pandêmica será gravíssima, sobretudo porque se acumula com as crises que preexistiam à pandemia. Será, por isso, muito mais grave.

As políticas de auxílio emergencial por mais deficientes que sejam, combinadas com o abrandamento econômico causado pela pandemia vão causar um enorme endividamento do Estado e o agravamento da dívida será uma causa adicional para mais e mais austeridade. Os governos conservadores não conhecem outro meio de lidar com os protestos pacíficos do povo trabalhador contra a injustiça social, a não ser a violência repressiva. Responderão assim, e a mensagem incluirá a militarização crescente da vida quotidiana. O que implica o uso de força letal que foi desenhada para inimigos externos. A degradação da democracia já bastante evidente se aprofundará ainda mais. Até que ponto o mínimo democrático que ainda existe colapsará, dando espaço a novos regimes ditatoriais?

Este cenário não é especulação irrealista. Um relatório recente do FMI faz a mesma previsão. Os autores Philip Barrett e Sophia Chen dizem que as pandemias podem ter dois tipos de efeitos sobre a agitação social: um efeito atenuante, suprimindo a possibilidade de causar distúrbios ao interferir nas atividades sociais, bem como um efeito contrário, que aumente a probabilidade de mal-estar social e, por conseguinte, sejam gerados distúrbios ou protestos, na medida em que a pandemia se enfraqueça.

O que não dizem é que os protestos serão motivados pelas mesmas políticas que o FMI e as agências financeiras promovem em todo o mundo. É tanta a hipocrisia do mundo em que vivemos, que o FMI ignora ou oculta as consequências de suas abordagens. O povo colombiano merece e precisa de toda a solidariedade internacional. Não estou seguro que a terão abertamente das agências internacionais que dizem promover os direitos humanos, apesar destes estarem sendo violados tão gravemente na Colômbia.

Imaginemos por um momento que o que está acontecendo na Colômbia estivesse ocorrendo em Caracas, na Rússia ou qualquer outra parte do mundo declarado como não amigo dos Estados Unidos. Certamente, a OEA, o alto comissariado da ONU, e o governo norte-americano já estariam em campo para denunciar os abusos e propor sanções aos governos infratores. Por que a suavidade nos comunicados emitidos até o momento?

Não se pode escapar de ninguém que a Colômbia é o melhor aliado dos Estados Unidos na América Latina, sendo o país que se ofereceu para instalar sete bases militares dos Estados Unidos em seu território (situação que, felizmente, não ocorreu por intervenção da Corte Constitucional). As relações internacionais no presente vivem o momento mais escandaloso de hipocrisia e parcialidade: somente os inimigos dos interesses norte-americanos cometem violações dos direitos humanos. Não é novo, mas agora é mais chocante.

As agências multilaterais se rendem a esta hipocrisia e parcialidade, sem qualquer tipo de vergonha. Os colombianos, isso sim, podem esperar a solidariedade de todos os democratas do mundo. Em sua coragem e em nossa solidariedade reside a esperança. O neoliberalismo não morre sem matar, mas quanto mais mata, mais morre. O que está acontecendo na Colômbia não é um problema colombiano, é um problema nosso, das e dos democratas do mundo.

No momento, as manifestações na Colômbia não se veem próximas de acabar e apesar de ter passado uma semana, desde o início das mesmas, devemos insistir em superar o medo que ronda as ruas do país e insistir na esperança de um futuro prometedor, mais justo e em paz, para um país que quis acabar um conflito de mais de 50 anos, por meio de um Acordo que agoniza sob as garras do capitalismo abissal.

François Dubet

O FIM DA SOCIEDADE DE CLASSES?

A questão não é saber se existem classes sociais. Continuam existindo, sobretudo classes dirigentes que possuem uma forte consciência de si mesmas, de seus interesses e de sua identificação com as leis da economia liberal. O que nos interpela é saber se o regime de classes continua estruturando as desigualdades sociais e se abarca as representações e identidades dos atores”, escreve François Dubet, sociólogo e professor emérito da Universidade de Bordeaux, em artigo publicado pela revista latino-americana de ciências sociais Nueva Sociedad, Nº 292. A tradução é do Cepat /IHU

As revoluções democráticas e industriais inauguraram um novo regime de desigualdades, o das classes sociais, nascido do encontro de duas grandes revoluções. A “providência democrática” instaura a igualdade e a liberdade de todos. A abolição das barreiras estamentais faz com que os indivíduos não tenham mais impedimentos para mudar de posição na escala das desigualdades, o prestígio e o poder.

Mas se a destruição do regime estamental resulta em uma sociedade integrada por indivíduos livres e iguais, uma sociedade fundada sobre a vontade geral e o contrato – não sobre a tradição e o sagrado -, essa revolução é antes de tudo política. Não inaugura por si só um novo regime de desigualdades. Segue existindo ricos e pobres, rentistas e trabalhadores, camponeses, artesãos, comerciantes e burgueses, proprietários e proletários, mas ainda não é uma sociedade de classes.

Para isso, é necessário que, no marco democrático, se estabeleça um novo tipo de economia, um novo modo de produção: o da Revolução Industrial. O regime de classes sociais é construído em torno da formação de uma classe operária miserável e o surgimento de uma classe de industriais capitalistas. Como ninguém mais se define essencialmente por seu nascimento e categoria, a posição na divisão do trabalho se torna central. E é ainda mais essencial porque as desigualdades continuam sendo extremamente fortes, ao mesmo tempo em que se desenvolvem em um marco político e moral que afirma a igualdade de todos.

Está claro que no apogeu do desenvolvimento industrial, na Europa ocidental, a maioria da população não pertence à classe operária, nem à dos capitalistas. Embora Marx tenha destacado o preeminente e inexorável enfrentamento entre proletários e capitalistas, não deixava de enumerar uma dúzia de classes em As lutas de classes na França. Mais à frente, Max Weber traçaria uma distinção entre as classes, definidas pelas relações de produção, e os grupos, definidos pelo poder e o prestígio, mas em sua avaliação, o regime de classes seria o das sociedades industriais.

Este regime de desigualdades é moderno em mais de um conceito. Nele as posições sociais se definem pelo trabalho, a criatividade humana, e não pela tradição e a ordem teológico-política. Também é moderno porque, embora as desigualdades de classes colidam com o princípio democrático da igualdade dos indivíduos, não são eliminadas. São contestadas em nome da igualdade democrática. As classes sociais nascem, portanto, do encontro contraditório entre a igualdade democrática e a divisão do trabalho capitalista. Mais ainda, são a expressão do conflito entre essas duas dimensões.

Por este motivo, o regime de classes vai além das fábricas e as grandes concentrações industriais. As classes sociais se tornam “factos sociais totais”, um “conceito total”, nos termos de Raymond Aron. O regime de classes é um modo de ler as desigualdades sociais porque a somatória das classes forma um conjunto. As posições nas relações de produção determinam a renda, os modos de vida, os vínculos com a cultura, as representações da vida social e a oposição entre “nós” e “eles”. Nesse sentido, não há classes sem consciência de classe, sem a articulação de uma entidade para si e uma oposição à classe dominante.

O postulado de uma sobredeterminação das atitudes, os comportamentos e as representações pela posição de classe adquire tal consistência que, durante um longo período, os sociólogos procurarão relacionar posições sociais objetivas com atitudes subjetivas, a fim de “verificar” a existência das classes sociais. Na França, este modo de compreender as desigualdades se encarnou em Pierre Bourdieu, para quem o capital econômico determina, “em última instância”, as outras formas de capital.

Lutas pela igualdade

O regime de classes parece ainda mais robusto porque acabou estruturando a representação política. Após a oposição entre conservadores e liberais, clericais e modernos, monárquicos e republicanos, todos eles definidos por sua relação com o Antigo Regime, a representação política foi construída em torno dos conflitos de classe, da oposição entre os representantes dos trabalhadores e os da burguesia. Em todas as partes, foram estabelecidas esquerdas e direitas que supostamente representavam classes, seus interesses e sua visão de mundo. Em todas as partes, parecia que os operários e seus aliados votavam à esquerda e que a burguesia e seus aliados votavam à direita.

Na sociedade industrial, o regime de classes sociais teve sua expressão em movimentos sociais e sindicatos orientados a um modelo de justiça social que apontava para a redução das desigualdades entre as posições sociais, por meio dos direitos sociais, o Estado de Bem-estar, os serviços públicos e as transferências sociais. Esse modelo de justiça instava menos a desenvolver a mobilidade social, em nome da igualdade de oportunidades, que a reduzir as desigualdades entre as posições sociais e entre os lugares ocupados pelos indivíduos na divisão do trabalho.

Se a mobilidade social se desenvolvia, era porque a igualdade social ganhava espaço, mas a mobilidade não era o primeiro objetivo da justiça. A luta pela igualdade social era legítima porque os indivíduos eram considerados fundamentalmente iguais, mas também porque a sociedade devia devolver aos trabalhadores uma parte das riquezas produzidas, das quais a exploração capitalista os havia privado.

Os direitos sociais eram, antes de mais nada, os dos trabalhadores e suas famílias, protegidos contra os efeitos da doença e o desemprego, e que, em nome de seu trabalho, conquistavam o direito à saúde, o descanso e a aposentadoria. Na sociedade salarial, os direitos dos trabalhadores se tornaram progressivamente direitos sociais universais [3]. Graças à ação dos partidos e sindicatos, e sob o efeito das greves e mobilizações, as desigualdades foram notoriamente reduzidas, sobretudo quando o crescimento permitiu transferir riquezas para os trabalhadores e os mais pobres, sem que a situação dos ricos se degradasse. Em definitivo, no século XX, as desigualdades sociais foram reduzidas porque eram, antes de tudo, desigualdades de classe.

Muito além da tradição marxista, a leitura das desigualdades sociais, em termos de classe, acabou se impondo. Quais eram as dimensões de classe do Estado, a educação, a cultura, as recreações, o consumo? Não se tratava apenas de traçar uma correlação entre posições de classe, práticas e representações coletivas, mas de mostrar como essas práticas (e as instituições) contribuíam para a formação e a reprodução de uma ordem que ia muito além das fábricas e os conselhos de administração.

Quando tal forma de análise predominava na França, nos anos 1960 e 1970, as classes sociais funcionavam como um explicandum e um explicans, ao mesmo tempo aquilo que precisa ser explicado e o que explica o que precisa ser explicado: as classes explicam os comportamentos e as consciências de classe que, por sua vez, explicam as classes.

O influxo desta representação era tão poderoso que as outras desigualdades ficavam em um segundo plano e, inclusive, acabavam desaparecendo em prol exclusivo da desigualdade que importava, a desigualdade de classe. Os migrantes eram vistos menos como erradicados discriminados, do que como trabalhadores superexplorados. As desigualdades impostas às mulheres eram as de trabalhadoras e esposas de trabalhadores, e parecia evidente que sua igualdade passaria apenas pelo trabalho.

Em certa medida, as classes sociais podiam ser consideradas instituições às quais se atrelavam representações da sociedade, identidades e significados comuns. Suscitavam um orgulho nos indivíduos vítimas das desigualdades, atribuíam causas às injustiças sofridas, escreviam narrativas coletivas, indicavam utopias e memórias de lutas. No regime de classes, as provas individuais eram inscritas em apostas coletivas, em certo sentido, anônimas.

Para que essas “instituições imaginárias” funcionassem, tornaram-se “realidades” pela ação de associações, sindicatos, representantes locais eleitos, periferias com prefeitos “vermelhos” (como era o caso da periferia parisiense), movimentos de educação popular, movimentos esportivos, etc. Na Europa industrial, as desigualdades de classe se cristalizavam em mundos sociais dominados e explorados, mas mundos que ofereciam aos indivíduos dignidade e capacidades de resistência.

Dos explorados aos inúteis

A questão não é saber se existem classes sociais. Continuam existindo, sobretudo classes dirigentes que possuem uma forte consciência de si mesmas, de seus interesses e de sua identificação com as leis da economia liberal. O que nos interpela é saber se o regime de classes continua estruturando as desigualdades sociais e se abarca as representações e identidades dos atores.

A situação atual, paradoxal, acentua-se mais pelo fato de que se caracteriza ao mesmo tempo pelo aprofundamento das desigualdades e o declínio do regime de classes. Em não poucos aspectos, esta conjuntura histórica não deixa de lembrar a da primeira metade do século XIX, época em que surgiam novas desigualdades, ao passo em que se esgotava a sociedade do Antigo Regime. A questão social era a do pauperismo e as classes perigosas, mas não ainda a da “classe” operária.

O esgotamento do regime de classes é uma das consequências das mutações do capitalismo mundial. As sociedades industriais capitalistas tinham sido formadas dentro de sociedades nacionais (mais exatamente, dentro de sociedades nacionalizadas, protegidas por fronteiras e direitos alfandegários e administradas por Estados soberanos que fixavam culturas nacionais), mas a globalização mudou as coisas.

Agora, as classes operárias europeias e estadunidenses estão submetidas à concorrência dos trabalhadores dos países emergentes, pior remunerados e igualmente qualificados, ao passo que as antigas burguesias industriais se tornaram potências financeiras. Em vez da ideia de um processo de globalização homogênea, pode-se preferir a noção de “capitalismo desconexo”, caracterizado pela separação e a tensão entre as diferentes esferas da atividade econômica, os mercados financeiros, a governabilidade das empresas, os lugares de produção e o consumo.

Embora a classe operária nunca tenha tido a unidade atribuída a ela, em grande medida o trabalho operário se transformou com o sistema de produção just in time, as relações diretas com os clientes, as tecnologias inteligentes e a multiplicação dos status, enquanto em setores inteiros, como a construção e as obras públicas, ainda predomina a mobilização da força física. Pouco a pouco, a produção industrial deixa de lado o taylorismo em favor do lean management, mas os empregos de serviços, por sua parte, estão cada vez mais taylorizados. Atualmente, em média, os empregados ganham menos que os operários.

Nas grandes empresas, a relação social industrial mudou de caráter. Se em épocas passadas o proprietário também era o chefe, presente em sua fábrica e seu castelo, como os mestres-ferreiros, hoje o chefe não é mais necessariamente o proprietário. Quando as empresas fecham, não é mais incomum que os executivos sejam interpelados para que o proprietário, muitas vezes um grupo financeiro, tome conhecimento e se manifeste.

Na França, as “formas particulares de emprego” (designação eufemística para os contratos por tempo determinado e os interanuais) passaram de 3,4%, em 1983, a 10,5%, em 1998, e a 12%, em 2012. Com a uberização das atividades, surgem trabalhadores autônomos, dependentes de um único cliente ou da plataforma que os encaminha clientes, e clientes encarregados de avaliar a qualidade do serviço prestado. Os autônomos são mais pobres e frágeis que os operários. Como posicionar esses “independentes dependentes” em uma estrutura de classes?

Em definitivo, justapõem-se vários sistemas produtivos. Alguns participam diretamente na globalização dos intercâmbios e o desenvolvimento das tecnologias de ponta, ao passo que outros permanecem em mercados nacionais e nichos locais. Uma parte dos trabalhadores, importante na França, atua nos serviços públicos, onde, embora estejam protegidos, sofrem como os outros as novas formas de gerenciamento.

Os profissionais da saúde dos hospitais públicos estão sob esse sistema, assim como acontece com os operários, embora isto não enriqueça ninguém. Por último, uma parte crescente da população enfrenta o desemprego, a precariedade do trabalho ocasional e do trabalho informal, quando não está completamente excluída. Hoje em dia, os mais pobres são sem classe ou underclass. Não são bem explorados, mas relegados, “inúteis”.

A saída do regime de classes

Mesmo que se pense que as classes continuam existindo, o sistema de classes explode. A mesma classe social se despedaça em uma série de mercados econômicos e mercados trabalhistas. A velha divisão entre os operários não qualificados e os operários profissionais é substituída por uma explosão das qualificações e status. O que constituía a unidade da classe operária parece cada vez mais incerto.

Não muito tempo atrás, os sociólogos buscavam as desigualdades “por trás” das classes sociais. Agora, ao contrário, alguns deles buscam as classes sociais, princípios de unidade, “por trás” das desigualdades. Assim como antes falávamos de classes sociais, estrutura, exploração e estratificação funcional, hoje em dia, falamos de desigualdades, no plural.

Os trabalhos sobre as desigualdades tiveram um crescimento explosivo na França e em todos os outros países. Multiplicam-se porque as antigas classes sociais não podem mais ser definidas pela somatória mais ou menos estável de desigualdades. Você pode ser um operário e ter estudado até depois dos 20 anos, ser o companheiro de uma empregada, viver e consumir como as classes médias, ou então provir de um país pobre, ter um emprego esgotador e precário, residir em um bairro de “moradias sociais” das periferias ou viver em um bairro considerado um gueto.

Esta dispersão das condições de vida é acentuada devido ao que Olivier Galland chama de “despadronização das trajetórias”. A trajetória típica – estudos, trabalho, casamento, trabalho, aposentadoria – sofre em grande medida uma mudança radical por causa do longo período de espera até se alcançar um emprego estável, as idas e voltas entre o emprego, o desemprego e os estudos, a formação tardia da companheira, as separações, os novos casamentos e as famílias formadas, as longas aposentadorias e a prolongada velhice. Todas essas trajetórias biográficas são fatores consideráveis de desigualdade. Para se convencer, basta ver a proporção de famílias monoparentais entre os pobres.

A explosão do regime de classes abre o espaço das desigualdades à multiplicação dos grupos. Destes, nenhum pode se definir verdadeiramente como uma classe social. À dualidade de proletários e capitalistas e à tripartição das classes altas, médias e baixas, somam-se novos grupos: os executivos e os criativos, os cosmopolitas móveis e os locais imóveis, os incluídos e os excluídos, os estáveis e os precarizados, os urbanos e os rurais, as classes populares e a underclass, etc. Junto a essas dicotomias, definidas muitas vezes mais pela relação com a mudança do que por uma posição hierárquica, convém somar a distinção cada vez mais predominante entre nacionais e migrantes, maiorias e minorias, idades e gerações, homens e mulheres.

Todas estas distinções afetam diretamente o regime de classes sociais. Por exemplo, os trabalhadores imigrantes com vocação de ser trabalhadores “como os outros” são gradualmente percebidos como minorias. Quanto mais minorias existem nas sociedades (ou, em todo caso, quanto mais são percebidas), mais as solidariedades são restritivas e reservadas aos semelhantes e mais fortes parecem ser as desigualdades sociais.

Classes populares, no plural

O tema da sociedade de consumo parece ter saído de moda. No entanto, apesar de o consumo em massa, como tal, não ter reduzido as desigualdades, afetou profundamente as barreiras entre as classes. Para me valer das palavras de Edmond Goblot, os níveis sucederam as barreiras. Antes, alguns eram privados dos bens que outros dispunham: automóveis, eletrodomésticos, televisores, férias, mas desde os anos 1960, todos ou quase todos têm acesso a eles.

Isto não produz uma vasta classe média informe e homogênea, porque uma hierarquia fina de níveis de consumo substitui as velhas barreiras de classe. As residências são menos diferenciadas entre as que possuem ou não automóvel, do que pelos modelos, preços e suas categorias. A diferenciação se dá menos entre os que saem de férias e os que não saem, do que entre os que se acampam em lugares agrestes e os que esquiam ou possuem uma casa na beira da praia.

Embora esta gradação mina as barreiras de classe e favorece a homogeneidade dos modos de vida, exacerba os processos de distinção, quando a posição social é incessantemente exposta por meio do consumo. As classes altas buscam continuamente os sinais de sua distinção, ao passo que as classes baixas procuram se apropriar deles. Assim, como sabem muito bem todos os “criativos” do negócio da publicidade, o que ontem era um “diferencial”, hoje, torna-se “vulgar”, assim que as categorias inferiores se apropriam do mesmo.

Com esses processos, as desigualdades mudam de caráter: não marcam mais uma oposição entre “nós” e “eles”, mas se distribuem ao longo de uma fina e sutil escala do prestígio associado ao consumo. Uma escala que atravessa as próprias classes sociais, porque cada um deve se diferenciar tanto de seu vizinho como dos membros de outra classe. As classes populares, no plural, substituem a classe operária no singular.

É possível observar o mesmo mecanismo em áreas a priori distantes do consumo. Se o mundo juvenil dos anos 1950 e 1960 estava tenazmente cindido entre uma juventude que trabalhava ao final dos estudos obrigatórios e uma juventude que prosseguia seus estudos no lycée ou na universidade, a massificação escolar transferiu as desigualdades para o próprio seio da escola.

Hoje em dia, quase 80% dos jovens de 20 anos estão escolarizados, mas as desigualdades opõem os estabelecimentos escolares, as especializações, as formações escolhidas, as línguas estudadas. Sem exceção, estes elementos gozam de um prestígio bem consolidado. Assim como no consumo, a massificação pode exacerbar o sentimento de desigualdade, porque não se compara com os que estão mais distantes, mas com os que estão relativamente próximos.

Para retomar as palavras de Edgar Morin, constataremos que o consumo de massas desencadeou um cracking cultural. Onde havia moléculas sociais integradas – as classes -, revelou-se uma infinidade de átomos cada vez menores. Em outros termos, o consumo multiplicou os públicos, sem que estes abarquem posições de classe: os jovens, os não tão jovens, os urbanos, os rurais, os apaixonados por futebol, os apaixonados pela música, etc. E dentro desses públicos, em especial, multiplicam-se as tribos e subtribos em função de suas recreações, seus gostos e seus estilos.

Basta observar um grupo de estudantes secundaristas para avaliar a tirania das marcas e os looks, o peso do conformismo e a expansão das tribos juvenis. Da mesma forma, quando as telas, as redes e os canais se multiplicam, os públicos se proliferam e, em grande medida, se individualizam, já que cada um compõe seu próprio programa, em afinidade com aqueles que são próximos.

Assim, a própria teoria da distinção cai em descrédito. Embora Bourdieu tenha postulado que a escala dos gostos culturais era isomórfica com as hierarquias sociais, a sociologia do consumo atual evidencia lógicas omnívoras. Os indivíduos compõem seus próprios gostos com empréstimos dos diversos registos da cultura. Alguém pode gostar ao mesmo tempo de ópera, rap, futebol e dos reality shows. E como pode ser chique! Por isso, busca-se uma distinção em relação a uma categoria social inferior, ao mesmo tempo em que se afirma uma singularidade em relação à escala convencional das distinções.

Observação

Este artigo é um fragmento do livro [traduzido da versão em espanhol] La época de las pasiones tristes. De cómo este mundo desigual lleva a la frustración y el resentimiento, y desalienta la lucha por una sociedad mejor (Siglo Veintiuno, Buenos Aires, 2020).

Edição 167, abril 2021

Francesco Sisci

EUA-CHINA: UM CAMINHO SEM VOLTA?

Quem vai julgar, os chineses, as pessoas dos países desenvolvidos ou a maioria das pessoas do mundo? O que os indianos ou outros asiáticos, por exemplo, pensarão? Por alguns anos, vimos uma guerra se aproximando, mas agora a grande questão parece ser: com essa massa crescente de problemas, como a guerra pode ser evitável? Talvez todas as pessoas no mundo tenham que pensar muito sobre isso, especialmente aquelas nos EUA e na China, que ingenuamente tocavam tambores beligerantes”, escreve o sinólogo italiano Francesco Sisci, em artigo publicado por Settimana News. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

O presidente da China, Xi Jinping, aceitar participar da cúpula convocada pelo presidente dos EUA Joe Biden sobre mudança climática foi um raro raio de luz no meio de uma situação muito sombria.

Diferenças e rivalidade

Os dois países têm diferenças e divergências quanto a ideologia, cultura, civilização, comércio, administração de moeda, Hong Kong, Xinjiang e direitos humanos. Existe rivalidade pela primazia global. Existem disputas em andamento no ciberespaço e no espaço; há uma grande competição por tecnologia e pela Iniciativa Um Cinturão e Uma Rota.

Existem reivindicações conflitantes e disputas profundas em muitas áreas geopolíticas: Taiwan, Mar do Sul da China, Ilhas Senkaku, fronteira com a Índia, Coreia do Norte e as negociações e o futuro de Mianmar, Irã e Rússia. Há crescentes fissuras sobre o papel futuro do yuan digital em relação ao dólar.

Existem tensões demais, e parece provável que essas tensões não possam ser resolvidas e sejam exageradas. Além disso, as mudanças tectônicas globais que estão sendo provocadas pela covid e suas consequências estão alimentando ainda mais essas tensões.

As vacinas estão criando uma área para tensões diplomáticas e políticas, e os pacotes de estímulo aumentam ainda mais as divergências.

Aumento financeiro

Europa, Estados Unidos e Japão precisam e querem um pacote de estímulo para tirar a economia da atual crise. Será possivelmente o maior pacote de ajuda financeira da história global. Milhares de trilhões serão despejados na economia para remodelar o sistema de riqueza e o comércio mundial. As medidas vão trazer inflação e já há sinais nos Estados Unidos de que os preços estão entrando em alta.

A China, por outro lado, não precisa de um pacote de estímulo. Apresentou crescimento de 18,3% no primeiro trimestre do ano e um grande plano de infraestrutura já está em andamento. Além disso, a demanda global por produtos industriais chineses impulsiona o crescimento na China nos últimos meses.

Além disso, uma injeção de dinheiro poderia forçar a China a importar inflação com aumentos de preços de commodities, petróleo e minério, e assim impor aumentos de preços de ações à classe média chinesa com consequências insondáveis. Qualquer um desses desafios poderia ser resolvido por si mesmos, mas, combinados, eles causam um grande ponto de interrogação.

Sem status quo prévio

Com certeza, a União Europeia está quase desmoronando após o Brexit, como se a saída do Reino Unido da união gerasse uma desordem maior. Angela Merkel está se aposentando na Alemanha e não há certezas sobre quem seguirá sua forte liderança. Emmanuel Macron na França é forte, mas o desafio colocado pela extrema-direita não deve ser subestimado.

Na Itália, tem-se o paradoxo de um líder muito forte, Mario Draghi, em um corpo extremamente fraco, o sistema de partidos italianos, que está quase se dissolvendo no ar. As coisas podem até estar melhores nos Estados Unidos, mas não muito.

A divisão entre democratas e republicanos é difícil de superestimar, e o ex-presidente Donald Trump continua extremamente controverso na política americana. A divisão cultural está ficando muito profunda, com a esquerda se apegando a uma nova correção política que molda tudo e a região central do país sentindo-se esquecida e preterida pelas duas costas.

Ferrovias e rodovias dificilmente param no Meio-Oeste, onde não há crescimento e onde as pessoas se apegam a uma forma conservadora, senão reacionária, de ver o mundo. Em tudo isso, no Ocidente e na China, as pessoas pensam que essas divisões significam que os Estados Unidos e a Europa nunca conseguiriam dominar a unidade necessária para enfrentar a China de forma dura.

Por outro lado, algumas pessoas no Ocidente pensam que confrontar a China poderia ser uma bênção, já que a China pode se tornar a única coisa que une os países do Ocidente e lhes dá um motivo alternativo para seguir em frente.

Em tudo isso, não há status quo anterior para voltar. Se a paz for encontrada, não pode ser a situação que existia cinco ou seis anos atrás. Isso acabou. Aqui, os EUA têm alguns planos: forçar Xi a renunciar ou derrubar o PCC. Esses planos podem ser questionáveis, difíceis de obter, mas são objetivos concretos. Por outro lado, a China não tem “contra-proposta”.

Aparentemente, quer o status quo anterior, mas isso já se foi e não está claro o que um novo status quo pode ser. O confronto de duros, embora talvez ofensivos, gols americanos com a falta de gols chineses constrói um labirinto impossível de comunicações em curto-circuito.

O que a China pode fazer nisso tudo?

Além disso, não há um esforço contínuo para conter as tendências atuais, até porque as principais fontes de impulso no momento são as vacinas e os pacotes de estímulo, que afastam esta parte do mundo da China e contra ela.

O que a China pode fazer em tudo isso? Já no final da década de 1990, na época do relatório Cox e logo após o retorno de Hong Kong ao continente, a China deveria ter pensado que esse dia de acerto de contas teria chegado e deveria ter abordado uma das questões que poderiam ajudar a mitigar a situação.

Certamente, fazer mudanças suficientes no sistema político pode não ter evitado totalmente a situação atual, mas um diálogo, mesmo um choque entre dois sistemas democráticos, tem menos probabilidade de terminar em um confronto destrutivo.

Japão e Estados Unidos tiveram suas diferenças nas décadas de 1980, 1990 e início do século XXI, e os Estados Unidos tiveram profundas divergências com a União Europeia. No entanto, apesar de toda a retórica ruim, nenhum desses conflitos resultou em guerra porque eles faziam parte de uma aliança militar e eram todos democracias.

Em tudo isso, era possível ver o caminho a seguir para a China há 20 anos. A China deveria ter buscado uma maior colaboração militar com os Estados Unidos, reformas democráticas e um ensino de inglês mais amplo e mais rápido para conectar mais chineses com o resto do mundo e, assim, fazê-los valer mais.

O maior obstáculo foi o fracasso em ter uma verdadeira transição de poder de Jiang Zemin para Hu Jintao no Congresso do Partido em 2002. Então Hu Jintao foi nomeado secretário do partido, mas Jiang Zemin permaneceu como chefe da poderosa Comissão Militar. Isso criou uma grande confusão na administração e uma situação em que todos estavam no comando de tudo, muita gente tinha poder de veto e decisões profundas politicamente sensíveis foram adiadas, não tomadas ou apenas minimamente tratadas.

Justiça, não hegemonia

Por outro lado, os dividendos comerciais e econômicos foram distribuídos em uma espécie de sistema instável que ia de cima para baixo sem muita organização. Este sistema durou por mais de uma década até que Xi Jinping assumiu o poder dez anos depois, marginalizando seus antecessores e começando a desvendar a bagunça existente. Ele fez isso, é claro, entrando em conflito com os interesses adquiridos que haviam sido construídos nas últimas décadas.

Ele também o fez da maneira mais fácil que era natural para o sistema partidário que governava a China por dentro e por fora - isto é, concentrando o poder em suas mãos. No entanto, com o andamento de toda política, isso criou problemas próprios e, na verdade, essa concentração de poder impede agora a China de se engajar nas reformas políticas e na cooperação militar que poderiam aproximar a China dos EUA e, assim, diminuir o atrito.

Em Bo'ao, em 20 de abril, Xi argumentou corretamente que o mundo precisa de justiça, não de hegemonia, mas quem pode fornecer justiça? O que é justiça ou injustiça? A justiça está tirando 1,4 bilhão de pessoas da pobreza, como os chineses com razão tem se orgulhado, mas e sobre reprimir os dissidentes?

Como a guerra pode ser evitável?

Quem vai julgar, os chineses, as pessoas dos países desenvolvidos ou a maioria das pessoas do mundo? O que os indianos ou outros asiáticos, por exemplo, pensarão?

Por alguns anos, vimos uma guerra se aproximando, mas agora a grande questão parece ser: com essa massa crescente de problemas, como a guerra pode ser evitável? Talvez todas as pessoas no mundo tenham que pensar muito sobre isso, especialmente aquelas nos EUA e na China, que ingenuamente tocavam tambores beligerantes.

Nos EUA, a onda de sentimento anti-Pequim estava crescendo lentamente e também seria demorada e difícil de controlar.

Xi pode reverter a situação na China, um país com um sistema muito diferente e mais responsivo ao seu líder? Também será muito difícil e o Partido Comunista Chinês é uma fera muito difícil de domar, como atestou a longa campanha anti-corrupção, mas Xi se mostrou cauteloso, inteligente e extremamente corajoso. Se talvez haja um homem que possa fazer isso, pode ser ele.

Massimo Faggioli

A BARCA DE PEDRO OU UM CARDUME? OS PERIGOS ONLINE DA VIDA DOS CATÓLICOS

Até hoje, não houve nenhuma tentativa significativa por parte da autoridade da Igreja de dar sentido teológico a como nossa vida comunitária online impacta a comunidade eclesial e sua unidade. A Igreja Católica sempre foi rápida em usar os meios de comunicação modernos, mas lenta e cautelosa em avaliá-los”, escreve Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por La Croix International. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

Três líderes da Igreja em Roma recentemente apontar a perigosa situação da polarização entre católicos neste momento. O primeiro foi o cardeal Raniero Cantalamessa. O capuchinho, que é o pregador oficial da Casa Papal, notou em sua homilia da Sexta-Feira da Paixão que a fraternidade e a unidade entre católicos está profundamente ferida. Ele disse que cabia aos pastores da Igreja “serem os primeiros a fazer um sério exame de consciência” e “se perguntar para onde conduzem o seu rebanho – para a sua posição ou para a de Jesus”.

Três dias depois foi a vez do cardeal Pietro Parolin, o secretário de Estado do Vaticano, em uma entrevista que foi para o ar em 05 de abril, na Rádio COPE, da Igreja espanhola. Ele afirmou que as divisões são reais e danosas. “Qualquer um que vê a situação da Igreja hoje está preocupado por essas coisas, porque elas estão aí”, afirmou Parolin.

Então, apenas dois dias depois disso, o Papa Francisco falou na audiência geral de quarta-feira, fazendo o que parecia ser uma piada gentil sobre a importância que alguns católicos dão aos media sociais, enquanto ele fala sobre a oração e a comunhão com os santos.

“Aqueles que rezam são ‘expansivos’, eles propagam a si mesmo continuamente, com ou sem posts nas redes sociais: desde hospitais ou momentos festivos, encontrando aqueles que sofrem silenciosamente”, afirmou. “O sofrimento de cada um é o sofrimento de todos, e a felicidade de um é transmitida para a alma de qualquer outro”, acrescentou o Papa.

Igreja institucional é marcada pelo silêncio

É muito interessante seguir o que Francisco diz sobre a internet e as redes sociais. O jornalista italiano, Guido Mocellin, está monitorando a presença online do Papa há bastante tempo para o jornal L’Avennire. Esse jornal, que é da Conferência dos Bispos da Itália, tornou-se um dos mais corajosos jornais da Itália por causa da atenção que dá a questões internacionais e sociais.

A parte sobre as redes sociais de Francisco é interessante porque a Igreja institucional é marcadamente silenciosa sobre o que nossa vida online significa para nosso senso de comunhão. Até o momento, não houve nenhuma tentativa significativa por parte da autoridade da Igreja de dar sentido teológico a como nossa vida comunitária online impacta a comunidade eclesial e sua unidade.

A Igreja Católica sempre foi rápida em usar os meios de comunicação modernos, mas lenta e cautelosa em avaliá-los.

De Pio XI a Paulo VI

Mais de duas décadas depois que várias indústrias cinematográficas nacionais foram estabelecidas, o Papa Pio XI publicou uma encíclica em 1936 sobre o cinema. Vigilanti Cura foi direcionada especificamente aos bispos dos Estados Unidos, dois anos depois de terem estabelecido “uma cruzada sagrada contra os abusos do cinema e confiada de maneira especial à 'Legião da Decência'”.

Um dos primeiros documentos aprovados pelo Concílio Vaticano II (1962-65) foi o Inter Mirifica, um decreto sobre as comunicações sociais. Refletiu sobre como usar os meios de comunicação de massa “para a instrução dos cristãos e todos os seus potenciais para o bem-estar das almas”. O Vaticano então publicou uma instrução pastoral em 1971 para atualizar o decreto conciliar. Foi intitulado Communio et Progressio. Agora, existem várias formas de mídia social, que existem há mais de vinte anos. Mas a Igreja institucional não tem falado muito sobre esse tipo de meio online de comunicação social.

O Vaticano nos anos desde João Paulo II

Apenas algumas igrejas locais se esforçaram, especialmente pelo impacto da cultura digital na catequese e na formação dos ministros e dos sacerdotes, em particular. Nos Estados Unidos, tanto as Diretrizes para Catequese, de 2020, quanto o documento “Dom da Vocação Sacerdotal”, de 2016, (também chamado de nova Ratio Fundamentalis) referem-se à realidade da cultura digital como algo que necessariamente deve ser levado em consideração, como uma especialista, Daniella Zsupan- Jerome, apontou à America.

Mas não há muito mais sobre a Igreja na internet, especialmente vindo do Vaticano, em termos de reflexão intelectual. Por exemplo, o Papa Francisco criou um novo Dicastério para a Comunicação em 2015, que ele encarregou de reformar e consolidar as operações diversificadas de mídia do Vaticano. O que quer que se pense dessa reforma, o novo dicastério é o braço executivo e não – ou pelo menos ainda não – um lugar onde o Vaticano pense sobre os media. Por exemplo, a página web do dicastério tem uma seção que oferece documentos magisteriais da Igreja nas mídias. A mais recente é uma instrução que João Paulo II emitiu em janeiro de 2005. Isso foi há mais de 15 anos!

Os recursos “litúrgicos e quase religiosos” do catolicismo online

Muitos católicos agora parecem passar mais tempo online do que assistindo à maioria das outras atividades, incluindo rezar. Mas, de facto, nossa vida online tem recursos litúrgicos e quase religiosos: solenidades no calendário, seus santos e mártires, uma hierarquia entre os celebrantes-líderes e a assembleia, formas de sanções e ex-comunicação, etc.

Essas características absorventes da vida online desempenham um papel importante na radicalização das identidades religiosas, incluindo a católica, e são um fator no aumento da polarização e divisão na Igreja.

Este fenômeno é algo que a chamada ecclesia discens (os membros da Igreja que deveriam ser ensinados) está aprendendo mais rapidamente do que a suposta ecclesia docens (os membros da Igreja encarregados do ensino).

A ecclesia docens deve assumir isso.

A romancista e ensaísta americana Patricia Lockwood segue as interações de uma protagonista anônima com uma plataforma virtual chamada “o portal” em seu romance de estreia, No One Is Talking About This (“Ninguém está falando sobre isso”, em tradução livre). Ela descreve como a vida online afeta nossa vida de uma maneira que poderia ensinar muito aos líderes da Igreja.

Por exemplo, ela diz que nossa vida comunitária online é vivida como um cardume que intuitivamente muda de direção em conjunto, deixando isolado e exposto a predadores quem não os segue. Seu uso de 'fluxo de consciência' é apropriado para uma comunidade vivida na qual frequentemente “vivemos uma mente que não é inteiramente nossa, na qual somos objeto tanto quanto sujeito”.

Quando o fanatismo religioso descobriu a internet

A dinâmica da linguagem que Lockwood descreve se aplica à linguagem dos fanáticos religiosos nas redes sociais, incluindo aqueles que se identificam como católicos. “O que começou como a brincadeira verbal mais elástica e fácil de entender logo surgiu no jargão, depois na doutrina e depois no dogma”, observa ela.

Isso me lembra alguns dos ditames de grandes inquisidores católicos do século XXI que se autoproclamam e que têm muitos seguidores no Twitter. Lockwood claramente sabe uma ou duas coisas sobre a perigosa mistura de internet e fanatismo religioso.

Ela ficou famosa em 2017 por seu livro de memórias Priestdaddy, no qual anatomizou a experiência de ser criada como filha de um padre de direita. Seu pai era um ex-pastor luterano que se converteu ao catolicismo e foi autorizado a manter sua esposa e família por meio de uma autorização especial do Vaticano.

Mas essa vida online dos católicos não é toda de más notícias.

A nova forma de comunhão virtual tornada possível pela internet pode ser um compartilhamento de virtudes. É o grande tempo para a reflexão teológica sobre a mídia social

Um livro muito interessante publicado em 2020 por uma emerge teóloga católica estadunidense, Katherine Schmidt, apontou as consequências teológicas e as oportunidades da internet para a Igreja. “Na ausência de uma versão do século XX de liminaridade, onde os membros do Corpo de Cristo se envolvem em trocas simbólicas, a internet tornou-se um potencial local para a comunhão”, diz ela.

“Sem ignorar a natureza esmagadoramente vitriólica, divisionista e até violenta da comunicação social online, é possível ver momentos de troca simbólica que refletem o amor gratuito de Deus que aprendemos na Eucaristia”, escreve Schmidt.

A pandemia de covid-19 mudou nossas vidas ainda mais para os espaços virtuais. E então é hora de uma reflexão teológica sobre as redes sociais.

Isso é necessário não apenas por causa do número de católicos que passam uma parte significativa de suas vidas ali, mas porque as redes sociais já mudaram a dinâmica de comunicação dos líderes da Igreja – em alguns casos de forma desastrosa, na maioria dos casos de forma inconsciente.

Para seminaristas e jovens clérigos, a Internet parece ter substituído as fontes institucionais de aprendizagem e treinamento em alguns casos.

Katherine Schmidt argumentou em outro lugar que a alfabetização digital deve ser exigida para todos os ministros e líderes na Igreja, leigos e clericais, mas especialmente nos cursos do seminário.

Diferentes seminários e conferências episcopais têm diretrizes e políticas sobre o tema, mas podemos nos perguntar se ou como estão funcionando. E seria interessante olhar para as diretrizes e políticas para seminaristas e clérigos nas dioceses cujos bispos apresentam regularmente comportamentos embaraçosos nas redes sociais.

O facto de o Papa Francisco ter um dos perfis mais seguidos no Twitter nada diz sobre a consciência da Igreja e dos efeitos profundos das redes sociais na vida dos católicos e na comunhão eclesial.

A Barca de Pedro deve ser e se comportar de maneira diferente de um cardume. E, ainda, a percepção do lado de fora e a autopercepção da Igreja são cada vez mais moldadas pelas divisões expostas na vida online de seus membros.

Ruth Kelly

POR UMA ECONOMIA HUMANA E RADICAL: AGREGANDO VALOR AO CAPITALISMO

"A pandemia expôs profundas desigualdades e injustiças, e escancarou medos e ressentimentos. É difícil argumentar que o livre mercado está funcionando. É hora de desconstruir o nosso pensamento tradicional sobre economia e substituí-lo por uma abordagem baseada em valores?". A opinião é de Ruth Kelly, membro inglesa do Conselho para a Economia, que supervisiona as finanças do Vaticano. Ela foi correspondente de Economia do jornal The Guardian por quatro anos nos anos 1990 e ocupou vários cargos nos governos trabalhistas de Tony Blair e Gordon Brown, chefiando os departamentos de Educação, Transportes, e Comunidades e Governo Local. Nesta última função, também foi ministra da Mulher aos 36 anos, sendo a mulher mais jovem a fazer parte do gabinete britânico. Entre 2015 e 2020, foi pró-vice-reitora de pesquisa e empreendimento na St Mary’s University, em Twickenham, Inglaterra. O artigo foi publicado por The Tablet. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Ao longo do ano passado, muitos de nós tiveram as nossas crenças fundamentalmente desafiadas. Se a crise financeira em 2008 se mostrou insuficiente como um gatilho para a mudança, as principais divisões sociais expostas pelo Brexit e a fragilidade de um sistema global desnudado pela crise do coronavírus transformaram a forma como pensamos o mundo.

Em vez de serem relegados para o fundo da hierarquia social, os trabalhadores nos nossos hospitais e lares de idosos, nas nossas ruas e nos nossos supermercados tornaram-se os heróis da linha de frente, lutando contra uma ameaça existencial.

Começamos a valorizar muito mais a resiliência – no serviço de saúde, no nosso mercado de trabalho e nas nossas vidas – à medida que lutávamos para lidar com demandas novas e imprevisíveis. Valorizamos mais os nossos vizinhos e as nossas comunidades.

Também na economia, aquilo que valorizamos, o modo como o medimos e as metas económicas que almejamos como sociedade passaram, de repente, para o primeiro plano do debate, popularizados por economistas como Kate Raworth e Mariana Mazzucato.

De facto, o conceito de “valor” formava a peça central da recente série de Conferências Reith proferidas pelo ex-governador do Banco da Inglaterra, Mark Carney, e parece ter chegado tão longe quanto ao Vaticano.

O Papa Francisco, em seu recente livro “Vamos sonhar juntos” (Ed. Instrínseca, 2020), cita Raworth e Mazzucato como vozes que são “sinais dos tempos”, nos chamando a usar o atual momento de crise para “pensar grande, repensar as nossas prioridades – aquilo que nós valorizamos, aquilo que queremos, aquilo que buscamos – e nos comprometermos a agir em nossa vida diária de acordo com aquilo com que sonhamos (...) e com uma nova abordagem da economia, que coloque ‘os pobres e o planeta no centro de um novo pensamento’”.

Economia baseada em valores

Então, será que chegou a hora de desconstruir o nosso pensamento tradicional sobre a economia e substituí-lo por uma abordagem econômica baseada em valores naquilo que está se tornando conhecido como “capitalismo do bem comum”?

Certamente, é difícil argumentar que as coisas estão bem do modo como estão. A nossa experiência da pandemia expôs profundas desigualdades, não apenas em renda e riqueza, mas também em saúde, educação, acesso digital e entre diferentes grupos raciais. A experiência do dia a dia de muitos daqueles que mais valorizamos no mercado de trabalho foi vista como imprevisível, insegura e mal paga.

Assim, Raworth e Mazzucato chegam a este debate com um claro apelo à ação: reformar o capitalismo e rejeitar o conceito do homo economicus como ator economicamente racional, preocupado apenas em maximizar o seu próprio lucro, estabelecido em livros básicos de economia.

À primeira vista, Raworth e Mazzucato parecem ter muito em comum. Ambas defendem uma reforma fundamental das finanças, rejeitam a visão de curto prazo nos negócios e pedem um papel maior para os bancos de investimento regionais e nacionais financiados pelo governo para investir em infraestrutura de longo prazo.

Nesse sentido, ambas parecem estar na corrente principal do pensamento econômico de esquerda. Mas elas têm objetivos fundamentalmente diferentes: Raworth defende que a economia ocidental desenvolvida abandone o crescimento econômico como uma meta e viva dentro dos limites ambientais; Mazzucato, ao destacar o papel do Estado na inovação, pede-nos para reimaginar o Estado como o motor do crescimento econômico.

Economia Donut”

Raworth, em seu livro ambicioso e bem escrito, “Economia Donut” (Ed. Zahar, 2019), provavelmente é a mais radical, seguindo o turbilhão de economistas ambientalistas como George Monbiot. Entendendo o poder das imagens e das narrativas para moldar o pensamento, ela capta a ideia de um “espaço justo” no qual as pessoas vivam de forma sustentável e bem, por meio da imagem de um donut [rosquinha]: quem vive nesse espaço justo fica entre o anel interno, representando o “fundamento social do bem-estar abaixo do qual ninguém deve cair”, e o anel externo, que é o “teto ecológico da pressão planetária que a economia não deve ultrapassar”. Ela se inspira em dois importantes economistas heterodoxos.

O primeiro, Hyman Minsky, ficou famoso após a crise financeira, pois seu trabalho sobre como o sistema financeiro poderia gerar choques por meio da sua própria dinâmica interna parecia ser capaz de explicar o desenvolvimento e a mecânica do crash.

O outro, Thomas Piketty, em seu best-seller “O capital no século XXI” (Ed. Intrínseca, 2014), distinguiu entre dois tipos de famílias: aquelas que possuem capital – como terra, habitação e ativos financeiros que geram aluguel, dividendos e juros – e aquelas famílias que possuem apenas o seu trabalho, que gera apenas salários, mostrando que, ao longo do tempo, os retornos do capital tendem a crescer mais rápido do que a economia como um todo, fazendo com que a riqueza fique cada vez mais concentrada nas mãos de poucos.

Raworth usa essas análises para defender que a ênfase contínua dos governos no crescimento econômico, se não for controlada, nos mantém no caminho da degradação ambiental e das crescentes desigualdades sociais.

Raworth tem uma série de ideias-chave fascinantes. Em primeiro lugar, ela está indubitavelmente certa ao dizer que os formuladores de políticas precisam de uma compreensão muito mais completa da antropologia humana do que a fornecida por modelos econômicos simples – as necessidades e os desejos não são ilimitados, ou pelo menos não precisam ser. Qualquer indivíduo – ou mesmo sociedade – tem a capacidade de recuar e dizer “já chega”.

Ela também está certa ao criticar a medida do crescimento econômico, o PIB, tantas vezes utilizado pelos formuladores de políticas e pelos analistas como um indicador de bem-estar. Ele ignora completamente as contribuições feitas pelo trabalho não remunerado em casa, pelos nossos recursos compartilhados (como a economia digital ou os nossos espaços públicos – às vezes chamados de “bens comuns” [the commons]) e pelo Estado para o nosso bem-estar geral. Ele também não leva em conta se o crescimento é “sustentável” ou não, pois não contabilizamos a depreciação dos ativos naturais no nosso sistema de contas nacionais.

Em vez de ficar obcecada com o crescimento do PIB, Raworth argumenta que devemos procurar criar uma matriz de indicadores diferentes para monitorar o bem-estar da nossa nação e do mundo: mortalidade, conquistas educacionais e afins.

Que crescimento buscamos?

A análise que Raworth fornece é forte. Eu concordaria com ela se ela tivesse parado ao analisar aquilo que não funciona na sociedade e na economia hoje, e se não tivesse entrado no mundo das previsões e das prescrições. Sugerir que os países ocidentais ignorem completamente o crescimento do PIB e se concentrem em outros bens humanos, em grande parte por causa de futuras restrições ambientais, leva a uma receita desnecessariamente dura – e politicamente inconcebível.

Eu acho que ela está errada em sua conclusão de que a economia mundial é um jogo de soma zero: o crescimento econômico nos países em desenvolvimento não significa necessariamente uma diminuição do crescimento nos desenvolvidos.

O que importa é o tipo de crescimento que buscamos: é muito mais fácil imaginar um crescimento sustentável baseado no uso de TI e big data do que baseado na manufatura. Ela também desconsidera muito o poder da economia e a possibilidade de que a tecnologia seja capaz de fazer uma diferença real para lidar com problemas ambientais como as mudanças climáticas, já que os preços mudam com o passar do tempo para refletir a escassez de recursos naturais e para incentivar a inovação. “O crescimento verde em países de alta renda absolutamente não está no horizonte: em vez disso, é hora de ‘virar verde’ sem crescimento”, afirma ela.

Nisso, ela segue uma linha de pensamento que pode ser rastreada através dos debates sobre o relatório do Clube de Roma de 1972, “Os limites do crescimento”, até se chegar a Thomas Malthus, que previu que o crescimento populacional do mundo inevitavelmente seria limitado pela disponibilidade de alimentos.

Raworth é otimista quanto ao futuro, pedindo que a economia seja reformada por meio de uma perspectiva de sistemas e que as atividades dos negócios, desde o seu início, sejam projetadas para serem distributivas e regenerativas. Ela se baseia em um grande número de exemplos do que isso significa – de sistemas monetários alternativos em assentamentos informais na África oriental até bancos de tempo suíços para uma economia compartilhada.

Por mais impressionantes que possam ser, no entanto, eles parecem ser de uma escala muito pequena e peculiares aos seus contextos a ponto de fornecerem um modelo para uma reformulação total da economia mundial.

Valor” econômico

Mazzucato, por sua vez, também ataca o PIB, como definido atualmente, mas a partir de um ângulo diferente. Assim como Raworth, ela critica a suposição implícita de que o valor não pode ser criado por cuidadores, por bens que são comercializados mas não precificados e, em particular, o fato de que a medida não captura qualquer criação de valor por parte do Estado. Ela pede que abramos o debate sobre o que se entende por “valor” econômico, para além daquilo que se vê no preço de bens e serviços.

Ao contrário das teorias de Aristóteles, Adam Smith, David Ricardo ou Karl Marx, observa ela, os economistas neoclássicos modernos tendem a se apoiar em uma teoria do valor subjetiva e não objetiva. O valor está nos olhos de quem vê, não no suor do trabalhador, ou, como ela diz, o preço é igual ao valor.

Para Mazzucato, em uma medida melhor da riqueza da nação, os serviços financeiros sairiam da nossa medida do bem-estar de uma nação, e entraria uma parcela significativa dos gastos do governo.

Em muitos aspectos, Mazzucato está certa. Não importa que o PIB seja um indicador pobre do bem-estar; ele é uma medida pobre da riqueza gerada na economia. Todas as transações incluídas na nossa definição do PIB são medidas como os preços pagos por elas no mercado, quando disponíveis, ou como uma soma das rendas de todos na economia.

Seu pesadelo particular sobre o PIB, porém, é de que, nas definições-padrão, o valor do governo é simplesmente a soma dos salários do setor público – nem mais, nem menos. Grande parte do trabalho dela tenta mostrar que o Estado é de fundamental importância para impulsionar a inovação e a riqueza, enfatizando, por exemplo, o papel do apoio do governo dos Estados Unidos no sucesso das grandes empresas estadunidenses de tecnologia, como a Apple, ao lado da iniciativa privada.

Em um retorno ao grande governo, ela argumenta que o Estado deve ser ativo no objetivo de criar “valor público” na sociedade e na economia.

Em “Mission Economy: A Moonshot Guide to Changing Capitalism”, ela nos encoraja a aplicar “o mesmo nível de ousadia e experimentação aos maiores problemas do nosso tempo” em comparação com aquele aplicado pelos Estados Unidos em 1962, quando se propôs a enviar um homem à Lua antes do fim da década.

De acordo com Mazzucato, em vez de começar com a presunção de que as preferências da sociedade (por exemplo, uma redução na desigualdade, um aumento na resiliência do sistema de saúde ou um desejo de enfrentar as mudanças climáticas) serão reveladas no mercado, ela quer que invertamos a fórmula tradicional, com o Estado criando aquilo que ela chama de “missões” para uma ação mais ampla do setor privado. Uma missão poderia envolver muitos desafios diferentes: no caso, digamos, de “saúde e bem-estar do cidadão”, eles poderiam variar da qualidade do ar à saúde dos adolescentes, à solidão e ao combate à demência. Parece difícil argumentar contra o desejo de que o governo se concentre em desafios difíceis e complexos que afetam a essência do nosso bem-estar.

Mas, como observou o economista italiano Alberto Mingardi, a visão de Mazzucato é muito ousada ao afirmar que a intervenção governamental não é apenas “propícia”, mas de fato “necessária” para que a inovação emerja.

O papel do Estado

Uma das fraquezas de Mazzucato é que a sua evidência empírica da importância do Estado na promoção da inovação é fraca. Como destacou Mingardi, é difícil estabelecer o papel do Estado olhando para as evidências, como ela faz, apenas dos últimos 50 anos – um período durante o qual os gastos do governo cresceram de cerca de 10% do PIB para mais de 40% em praticamente todas as democracias ocidentais.

Em muitos aspectos, seria surpreendente se essa escala de investimento público não tivesse produzido alguns empreendimentos inovadores ao longo do caminho. O que não está claro é como Mazzucato pode explicar a Revolução Industrial durante o século XIX, em relação à qual seria difícil afirmar que foi alimentada pelos gastos do governo.

Ela também ignora o papel que os consumidores desempenham em uma economia de mercado, negligenciando o fato de que a inovação não tem a ver apenas com o progresso tecnológico em si mesmo, mas sim ao atendimento das necessidades dos indivíduos na sociedade.

Uma pergunta melhor talvez seria se o governo é o “melhor” estimulador da inovação, ou se as empresas e os indivíduos privados poderiam se sair melhor com a mesma quantidade de dinheiro disponível.

Mas Mazzucato está certa em abrir o debate sobre o valor e sobre como o valor é expressado e medido – tanto no mercado quanto na esfera pública. Até mesmo economistas tradicionais estão questionando agora se o boom nos serviços financeiros, por exemplo, no período que antecedeu a 2008 realmente contribuiu para o crescimento econômico.

Na minha opinião, o problema com a economia surge, na realidade, quando os economistas ultrapassam o limite, ou quando as deliberações econômicas são aplicadas acriticamente, sem referência às instituições, cultura e normas predominantes.

Em termos simples, os problemas surgem quando nos tornamos uma “sociedade de mercado” em vez de uma “economia de mercado”, e quando o preço de um produto ou serviço passa a ser equiparado ao seu valor.

Valor e valores

Tanto Raworth quanto Mazzucato fazem questão de enfatizar que os mercados estão necessariamente “embutidos” nas instituições e na sociedade, moldados tanto pela regulamentação, quanto pelas normas e pela cultura. A importância das normas sociais é um ponto destacado por Mark Carney em suas conferências e em seu novo livro, “Value(s): Building a Better World for All”.

Uma leitura mais nuançada de Adam Smith e Milton Friedman do que às vezes retratada pelos críticos do livre mercado sugere que eles entenderam esse ponto com clareza. Carney cita o elogio de Friedman ao valor para o acionista, que, observa ele, inclui uma advertência frequentemente esquecida: “A responsabilidade de um executivo corporativo é ganhar o máximo de dinheiro possível, conformando-se às regras básicas da sociedade, tanto aquelas incorporadas na lei quanto nos costumes éticos”.

Embora Raworth e Mazzucato sejam suaves em relação ao modo como a “ética” e a “moral” devem ser restauradas ao pensamento econômico, Carney argumenta que elas são fundamentais para fazer o capitalismo servir à sociedade.

Na opinião de Carney, a resposta para o debate preço/valor não está em se livrar dos mercados, mas em criar as instituições certas nas quais eles possam prosperar e os valores humanos certos para apoiar a sua operação eficiente.

Carney concentra sua crítica ao capitalismo naquilo que ele descreve como a “tragédia do horizonte”, particularmente crítica em relação ao combate contra as mudanças climáticas, uma batalha na qual ele se colocou à frente agora.

Essa “tragédia do horizonte” significa que as pessoas subestimam o impacto das suas ações no futuro – dito de modo mais simples, elas tendem a não se preocupar com o futuro, até que ele as atinja. Como os impactos catastróficos das mudanças climáticas recairão amplamente sobre as gerações futuras, a única maneira de seguir em frente é começar a se comportar de forma diferente, valorizando o futuro com mais força hoje.

Mas há uma nota de otimismo. Carney argumenta que, durante a crise da pandemia, os valores mais profundos das pessoas foram revelados, valores que não se refletiram nas economias de mercado até o momento. “Os valores do dinamismo e da eficiência econômicos se somaram aos da solidariedade, da justiça, da responsabilidade e da compaixão”, afirma. E, para quem se preocupa com as perspectivas de ação contra as mudanças climáticas, ele defende que a sociedade está começando a valorizar mais a sustentabilidade, que é “uma pré-condição para a solução da crise climática”.

Carney tenta lidar com essa “tragédia do horizonte” trazendo para a mesa a obra do jurista Cass Sunstein e dos economistas Tim Besley e Torsten Persson. A obra deles, diz ele, mostra que o recente aumento no apoio às causas verdes, especialmente entre os jovens, pode ter um efeito bola de neve, em que a demanda dos consumidores catalisará investimentos em tecnologias verdes e tornará o ambiente político mais “verde” em um ciclo de autorreforço. No fim, os preços refletiriam melhor o desejo da sociedade por produtos mais verdes e abordagens mais sustentáveis, ajudando os esforços da sociedade para enfrentar as mudanças climáticas. “É assim – afirma ele – que os valores impulsionam o valor.”

Influência católica

Apesar de toda a sua ênfase nos valores, Carney não faz referência à sua fé católica ou à influência dela em seu pensamento em sua série de conferências. Uma economista menos conhecida, Mary L. Hirschfeld, é mais explícita sobre a influência da teologia católica em seu pensamento no livro “Aquinas and the Market: Toward a Humane Economy” [Tomás de Aquino e o mercado: rumo a uma economia humana, em tradução livre].

Na opinião dela, o homo economicus também deve ser rejeitado por ser muito simplista e por ter uma noção muito unidimensional dos seres humanos. Em vez disso, ela defende que deveríamos retornar a um mundo de duas camadas, como pintado por Aquino, em que os humanos podem ser guiados pelas suas emoções e paixões, mas também são capaz de guiar essas paixões à luz da apreensão da razão sobre o verdadeiro e o bom.

Por isso, o homo economicus e modelos econômicos simples são úteis para analisar escolhas básicas, mas têm pouca relevância em situações em que os humanos escolhem agir de acordo com a sua razão superior.

Nessa compreensão mais sofisticada do mundo, a questão sobre como pensar a natureza de duas camadas da razão humana é central, assim como a preocupação com o impacto que a cultura tem sobre o equilíbrio entre as duas camadas e a nossa capacidade de pensar sobre como o a cultura molda a nossa capacidade de buscar o genuíno florescimento humano.

E, finalmente, embora a pesquisa empírica molde a economia, ela nunca poderia substituir as discussões filosóficas e teológicas sobre o bem e a felicidade humanos.

Em suma, o capitalismo pode precisar ser reformado, mas, em última análise, somos nós, as partes interessadas, os criadores e os tomadores, que devemos mudar, se quisermos avançar na direção de uma economia mais justa e sustentável.

Edição 166, março 2021

Andrea Grillo

UM NOVO “CASO GALILEU”?

"A pretensão de uma 'doutrina de sempre' em matéria matrimonial e sexual é uma reconstrução abstrata, que esquece a história. No momento em que o sexo se transforma em sexualidade, perde, em grande medida, a sua natureza de mera “função para o outro” e assume uma relevância direta para o sujeito, a doutrina deve encontrar novos recursos de argumentação e de orientação". A opinião é de Andrea Grillo, teólogo leigo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado em Come Se Non. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Em uma entrevista de 2015, Matthew Fox, com olhar aguçado, disse que “a questão da sexualidade é o caso Galileu do nosso tempo”. Creio que essa frase sabe nos dar o pano de fundo certo para entender a dimensão do “responsum” com que o órgão doutrinal da Igreja Católica tentou negar à Igreja o poder de abençoar os “casais homossexuais”.

Não devemos nos deixar distrair pelo tema “escabroso”: o problema não diz respeito principalmente à “homo-sexualidade”, mas sim à “sexualidade” como tal, como cifra do mundo tardo-moderno, que a Igreja Católica, pelo menos em algumas das suas instituições, custa a conhecer e a reconhecer.

Gostaria de tentar dizer, em palavras simples, como é grande o desafio que se esconde por trás da pequena página de argumentação do “responsum”.

Um “sinal dos tempos” difícil de decifrar

Estamos diante de um conflito de interpretações e de uma reformulação do saber tradicional que tem muitos aspectos de absoluta importância. Por isso, parece-me que o tema da homossexualidade implica um “escopo” muito mais amplo do que podemos, em média, reconhecer. Tento resumi-lo em poucas questões que se implicam em cascata.

A questão sistemática que me parece decisiva é a seguinte: é possível ou mesmo necessário considerar a homossexualidade sob a categoria das “ofensas à castidade”? Mas, bem antes disso, por trás da questão da homossexualidade, está uma questão maior, ou seja, a questão geral da sexualidade.

Em outras palavras, o verdadeiro problema não é a variante “homo” da sexualidade, mas sim a sexualidade tout-court. A homossexualidade pode parecer “desordenada” porque a heterossexualidade é pensada como “ordenada” apenas quando referida à geração. Mas esta é uma visão totalmente aceitável?

Obviamente, não afirmo que isso não tenha fundamento, mas me pergunto se isso é realmente tão exclusivo. Para ir ainda mais longe, pergunto-me: o fato de o exercício da sexualidade não ser “pecado” apenas dentro do matrimônio é realmente a resposta evangélica à descoberta da sexualidade, diferente do simples “sexo”? Não há, em tudo isso, uma indevida sobreposição entre natureza, cultura e evangelho?

Tento elaborar essas diversas questões de forma inicial, como simples impulsos à reflexão, tentando mostrar a exigência de uma acurada elaboração de novas categorias, sem as quais a doutrina católica corre o risco de ser apenas uma “defesa” de princípios sacrossantos, mas com instrumentos teóricos e operacionais não mais adequados.

Para defender a tradição, de fato, os “talentos” não podem ser “enterrados no chão”, mas devem ser empregados com coragem e com paciência, no diálogo cultural de hoje, não mais apenas na cultura de Agostinho, de São Tomás de Aquino, de Lutero ou o cardeal Gasparri.

Uma compreensão “funcional” da sexualidade

Se, por muitos séculos, a Igreja Católica definiu o “contrato de matrimônio” como um exercício do “ius in corpus”, ou seja, o direito exclusivo, em relação a cada um dos cônjuges, sobre o sexo do outro para fins de geração, é evidente que ela não se encontrou equipada, conceitualmente, para enfrentar a “transformação da intimidade” e o “nascimento da sexualidade” em uma sociedade aberta.

Quando o sexo se torna sexualidade, isto é, quando, de instrumento, ele começa a participar também da lógica do fim, não só o pecado está em jogo, mas também se torna central nele a definição (autodefinição e heterodefinição) do sujeito.

Assim, a representação de uma sexualidade legitimamente exercida apenas no marco da relação matrimonial é uma forma exasperada de substituir do “cumprimento” pela realidade complexa da existência. Na existência humana, faz-se experiência da sexualidade não apenas no matrimônio: este é um dado que emerge “in natura” e na sociedade aberta, que não censura previamente os comportamentos.

Desse modo, inevitavelmente, tudo o que cai “fora” do matrimônio (antes ou ao lado, para os noivos ou para os celibatários-solteiros) é irremediavelmente compreendido apenas com a categoria do pecado e, portanto, é mal compreendido.

Sem querer redimensionar a seriedade dos discursos sobre a continência e sobre a castidade – que continuam qualificando a vida propriamente humana – é óbvio que eles pressupõem um horizonte de experiência comum – no nível pessoal e social – que muito mudou nos últimos dois séculos. Mas aqui, evidentemente, nas reações, o risco de um maximalismo moral se desposa continuamente com uma organização sistemática das coisas abstrata demais. Um reequilíbrio entre os “bens” do matrimônio implica necessariamente outra repartição entre bem e mal, mais matizada e menos drástica. Que impõe uma redefinição da sexualidade em ordem não só à geração, mas também à relação e ao “bonum coniugum” e até ao “bonum sui”, em um matrimônio pensado não mais principalmente como “ato”, mas como “percurso” e como “processo”.

O facto de a sexualidade estar, no processo, só no fim é uma conjectura abstrata, que não repousa na experiência real. Se pensarmos bem, isso sempre foi verdade apenas para algumas mulheres, mas quase nunca para os homens. A nostalgia pelo “mundo ordenado” de antigamente é também a nostalgia por um contexto em que todos os rapazes, como “militares”, descobriam o sexo rigorosamente “fora do matrimônio” e muitas vezes, infelizmente, nas “casas de prazer”. O que não assegurava uma grande partida como iniciação à vida sexual e matrimonial.

O espaço teórico do sexto mandamento e a sua extensão pós-tridentina

Se permanecermos na percepção “pecaminosa” da questão sexual, porém, devemos reconhecer que o “sistema dos pecados” nem sempre foi o mesmo. A estrutura “clássica” de meditação e elaboração cristã sobre o pecado não foi construída sobre o “decálogo”, mas sobre os “sete pecados capitais”.

Essa organização tinha um ordenamento dos pecados como o de Dante: soberba, inveja, ira, avareza, preguiça, gula, luxúria. O último nível era o menos severo. Com o Concílio de Trento, o esquema eclesial enraizou no decálogo a estrutura dos pecados. Mas o “de sexto” estende-se aos “atos impuros” e assume um relevo que fará do pecado sexual, na era burguesa, o pecado “por antonomásia”.

Essa desproporção faz parte da nossa herança. Por isso, a percepção da dimensão “de pecado” da homossexualidade interfere emocional e afetivamente na questão, distorcendo o olhar e a razão. Pode parecer surpreendente, mas, no inferno de Dante, o vício da “sodomia” está próximo da usura e da blasfêmia. É pecado da sociedade antes que da intimidade. A história, mesmo a mais distante de nós, também pode nos dizer algo de útil para “recontextualizar” o fenômeno e não entendê-lo mal.

Natureza, cultura e fé: uma relação mais complexa do que o esperado

Se a referência à “natureza” certamente pode ser de destaque, é necessário atentar acuradamente para as mil formas de “inculturação do natural” que inevitavelmente acompanham o discurso sobre o homem e sobre a mulher. Que são animais “nunca apenas naturais”.

A palavra e a mão mudam a natureza e a transformam. Sempre. Por isso, os argumentos que se fundamental em um “dado natural” devem se acautelar para não projetar sobre a natureza a ordem social, o medo afetivo ou a desconfiança do caráter.

Não há dúvida de que a grande distinção entre “secondo natura” e “contro natura” pode funcionar bastante bem no mundo antigo, medieval e no início da modernidade. Em particular, um “abuso” da referência “contro natura” ocorreu precisamente em consideração à aceleração científica e tecnológica dos séculos XIX e XX. Assim, um padre de bicicleta, uma mulher que pratica esportes ou um paciente cardíaco cujo coração foi transplantado foram, nos 60 anos antes do Vaticano II, casos clássicos de “escândalos contro natura”.

Portanto, a partir da modernidade tardia, é preciso vigiar com cuidado sobre um uso da referência à “natureza” que pressupõe grandes mediações culturais, às quais devem ser cuidadosamente dedicadas considerações e distinções preciosíssimas. É evidente que a natureza impede que uma relação homossexual tenha diversas experiências, que podemos considerar decisivas. Mas definir uma relação “contro natura” apenas a partir de algumas diferenças fisiológicas e biológicas corre o risco de exasperar apenas alguns aspectos dela e de perder a consideração do fato em si.

Eu diria, portanto, que neste caso a distinção, embora necessária, entre pecado e pecador não é suficiente. É a compreensão do pecado e da sua relação com o bem que exige um suplemento de intelecto e de coração.

O relevo do “pecado” e a irrelevância da “forma de vida”

Não há dúvida de que a “libertação da questão do pecado” é um ponto que deve ser considerado. Aceitar a homossexualidade “sem problemas” não é uma solução. Se a orientação homoafetiva não considera a ausência de geração como um problema seu, ela não elabora corretamente a sua própria experiência.

Mas a centralidade da relação com o pecado do ser humano e com a sua superação em Deus não pode ser o horizonte primeiro para a compreensão da homossexualidade. Ou, melhor, não deveria sê-lo da sexualidade, porque não o é de todo o restante da experiência. E isso precisamente porque, se o pecado é original, mais original é a graça.

Aqui ainda fazemos a experiência, difícil e dura, de um “primado do pecado” na autoconsciência cristã e católica, que muitas vezes se torna “culpabilização de toda a diversidade”. Se tentarmos aduzir “argumentos naturais” – como a objetiva “não diferença” entre dois homens ou entre duas mulheres, que exclui uma “compenetração” – devemos também reconhecer que a sua gestão cultural influencia definitivamente na própria percepção natural. E a própria fecundidade que a natureza exclui, a cultura não exclui.

Sobre isso, creio eu, uma reflexão que não se polarize imediatamente sobre as “patologias pessoais ou sociais”, mas considere o bem real que os sujeitos podem viver para si mesmos e para o próximo impõe uma revisão das categorias de fundo. Caso contrário, repetimos evidências que não correspondem à realidade. Assim como acontece com o início e o fim da vida, a natureza e a cultura não se deixam distinguir como evidências imediatas. Isso também vale para a sexualidade.

A sombra longa do Decreto Tametsi

Há, depois, um aspecto decisivo da passagem do sexo à sexualidade que coloca a Igreja diante de uma “questão copernicana” decisiva. Ou seja, a reconsideração da “competência” eclesial sobre a “matéria matrimonial e sexual”. Para entender o “tom” do responsum e também a sua ingenuidade, devemos voltar a 1563 e à invenção da “forma canônica” do matrimônio. Ou seja, a uma grande virada em toda a cultura ocidental, que transferiu para a Igreja Católica, para as dioceses e para as paróquias o “catálogo dos matrimônios”.

Pense-se que é a partir daí que nasce a possibilidade de definir árvores genealógicas ou de usar os sobrenomes, que são justamente o fruto das decisões tridentinas. A Igreja assumiu naquele momento a competência sobre o matrimônio, isto é, sobre o contrato assim como sobre a bênção. Nos 1.563 anos anteriores, nunca havia sido assim. As pessoas se casavam não importa onde, e na Igreja havia o espaço para a bênção das núpcias.

É claro que hoje nos constrangemos com a bênção que os casais do mesmo sexo também pedem: acostumamo-nos a pensar em uma “competência integral” e custamos a recuperar competências parciais. Mas esse foi um trauma do qual já nos demos conta há 140 anos, a partir da Arcanum Divinae Sapientiae, de Leão XIII, em 1880, com a “pretensão” de uma competência exclusiva da Igreja Católica sobre o matrimônio, a ser oposta às pretensões consideradas absurdas do Estado liberal: este era o grito de uma Igreja cercada e pressionada.

Mas temos uma tradição mais longa do que 1563. Temos até uma tradição que fez da “laicidade do matrimônio” o seu “bolim”. Por acaso esquecemos que São Tomás dizia que a “geração” ocorre de muitas maneiras: somos gerados pela natureza, pela cidade e pela Igreja?

Com efeito, o modelo tridentino de competência eclesial sobre o matrimônio entrou em crise no século XIX e, com a Familiaris consortio, encontrou um ponto de não retorno. No momento em que se diz que os “divorciados recasados” não perdem a comunhão eclesial, o modelo oitocentista não funciona mais. A Amoris laetitia saiu dele definitivamente, embora o responsum do dia 15 de março finja que pode ficar dentro dele, mas às custas de interromper a relação com a realidade, observando-a por um olho mágico muito estreito e obscuro.

Novas descobertas e a sociedade aberta

A pretensão de uma “doutrina de sempre” em matéria matrimonial e sexual é uma reconstrução abstrata, que esquece a história. No momento em que o sexo se transforma em sexualidade, perde, em grande medida, a sua natureza de mera “função para o outro” e assume uma relevância direta para o sujeito, a doutrina deve encontrar novos recursos de argumentação e de orientação.

Para fazer isso, ela deve ouvir o Evangelho e a experiência dos homens e mulheres. Muitas vezes, esquecemos que a questão sexual e a questão de gênero estão intimamente ligadas, não apenas terminologicamente. O exercício da sexualidade muda no momento em que se descobre, científica, cultural e socialmente, que a mulher não é “a parte passiva na geração” e, portanto, é ativa no gerar, no exercício da sexualidade e no papel social.

Quando há apenas uma cabeça no matrimônio, ou seja, o marido, ou há duas, as coisas já não são mais as mesmas. Estes são fatos irreversíveis que mudam a doutrina eclesial do matrimônio, goste-se ou não. E a Igreja, quanto antes se der conta disso, antes responderá adequadamente às “perguntas” que recebe, ou que talvez faça por conta própria a si mesma.

A redução tridentina como instinto autorreferencial

Assim como no “caso Galileu”, a questão sexual (e homossexual) suscita reações viscerais. Como a Igreja pode dizer que o “bem de Deus” é para todos os homens e mulheres, até mesmo para os não batizados? Se o anúncio diz respeito a sujeitos individuais ou a relações com as coisas, não há problema: você pode abençoar o veleiro Luna Rossa ou um tanque, uma boiada inteira ou uma associação de pesquisa sobre os flamingos. Mas, se tiver relação com o exercício da sexualidade, primeiro você pede o atestado de boa conduta, a conformidade com a natureza, a ausência de segundas intenções, e depois, eventualmente, você se põe em jogo.

Essa atitude é o fruto de uma história cheia de paixões, de julgamentos e de preconceitos. Mas a tradição eclesial é mais antiga do que o decreto Tametsi. E tem os recursos para responder “afirmativamente”, até mesmo no nível estritamente canônico. Contanto que, em Roma, ou na Alemanha ou nos EUA, autoridades ou teólogos decidam não vestir a sua peruca e não proclamem, como verdade de sempre, o concentrado de representações antimodernas com o qual a Igreja Católica tentou resistir, como podia, à geada do século XIX.

Temos a cultura e a força para estar à altura da realidade. Se nos trancarmos nas Salas do Santo Ofício, se dermos a palavra apenas a quem está disposto a vestir a peruca e a se camuflar de um homem de 200 anos atrás para ainda sermos católicos, nos tornaremos dignos de não sermos levados a sério.

A questão da bênção dos casais homossexuais é muito mais séria do que parece no texto do “responsum”: tentemos dar à oficialidade eclesial um perfil mais nobre e menos provinciano. Senão, um novo “caso Galileu” se tornará ingovernável e acabará nos obrigando a nos envergonharmos e a pedirmos perdão daqui a 50, 100 ou 300 anos.

Texto de Alejandro Tena

E A GUERRA CONTRA A TERRA DESEMBOCOU NUMA PANDEMIA GLOBAL

Um ano procurando um culpado. Durante estes 365 dias da pandemia, os dedos da humanidade apontaram para todos os tipos de causas, sem encontrar respostas, apenas estigmas e conspirações. O evidente é que as explicações para este colapso parcial dos sistemas socioeconômicos – que durante os primeiros meses de epidemia adquiriu traços distópicos – não estão ligadas à aleatoriedade da natureza, nem aos interesses rebuscados de uma nação asiática para alterar a ordem geopolítica mundial, mas se alista diretamente à forma como o ser humano se relaciona com a Terra. A origem do novo coronavírus não é um pangolim, nem um laboratório, mas uma crise ecológica provocada pelas sociedades neoliberais e sua cultura do crescimento material. O Texto é de Alejandro Tena, publicada por Público, de Madrid. A tradução é do Cepat /IHU

“Não há dúvidas sobre isso”, concorda Fernando Valladares, doutor em Ciências Biológicas e pesquisador do Conselho Superior de Investigações Científicas – CSIC. Embora não se saiba a origem exata da covid-19, todas as certezas científicas do momento apontam para a perda de biodiversidade gerada por atividades econômicas como o desmatamento, o comércio e a criação intensiva de espécies animais.

A própria ONU alertou sobre como a guerra contra a Terra e a deterioração dos ecossistemas estão levando a humanidade a uma nova era marcada pelo surgimento de epidemias. Tanto que o último relatório da IPBES (Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas) destaca que na natureza existem 1,7 milhão de vírus desconhecidos que podem saltar para a espécie humana, a qualquer momento, em um processo de zoonose.

Para Valladares, a destruição da natureza é essencial para entender a origem desta conjuntura epidêmica em que as civilizações modernas se viram imersas. “Estamos defecando sobre os ecossistemas, tornando-os praticamente disfuncionais e isso tem algumas consequências”, alerta o especialista. Onde existe uma mata, onde existem populações de mamíferos e aves, existe biodiversidade, que nada mais é do que um escudo protetor que coloca barreiras entre o ser humano e os patógenos que se concentram nos reservatórios naturais.

Existem três níveis de variedade natural que contribuem para controlar a proliferação de patógenos. Por um lado, a diversidade de formas de vida: predadores e presas, carnívoros e herbívoros, de sangue frio e de sangue quente. Cada uma destas funções contribui para um equilíbrio natural que impede que haja superpopulação de espécies que abriguem maior número de reservas virais. Por outro lado, nos ecossistemas existe uma biodiversidade que atinge animais dentro de um mesmo grupo, ou seja, diferentes tipos de roedores, de aves, de mamíferos. “Isto é um mecanismo de diluição que ajuda a diminuir as cargas virais”, pondera o pesquisador.

Por último, existe uma terceira escala de biodiversidade que atinge um nível genético, de tal forma que um vírus não afeta da mesma forma todos os animais de uma mesma espécie concreta. “Nós, humanos, temos mecanismo e o percebemos com o coronavírus, com a doença se manifestando de formas muito diferentes em cada um dos pacientes”.

A forma como o ser humano interage com animais e o modo como elimina hectares de matas e expande suas cidades sobre a natureza contribuem para que todos estes mecanismos sejam alterados, fazendo com que os vírus e bactérias que permanecem ocultos saltem para o ser humano.

“A Terra é um sistema muito complexo de relações, onde cada espécie tem sua função. De alguma forma, há décadas invadimos os ecossistemas, alterando habitats e colocando espécies selvagens perto de nós. Isto nada mais faz do que aumentar os riscos de que haja zoonose”, expõe Gema Rodríguez, responsável por Espécies Ameaçadas no Fundo Mundial para a Natureza (WWF).

Um círculo vicioso de más práticas

Na perda de biodiversidade e o aumento de riscos de zoonoses intervêm elementos que se retroalimentam em um círculo vicioso. Por um lado, a mudança climática provocada pela atividade econômica do ser humano, baseada na queima intensiva de combustíveis fósseis e na mudança de usos da terra. O aumento de temperaturas do planeta é crucial para entender a propagação da Covid, conforme aponta uma recente pesquisa da Science of the Total Environment, que detalha como as mudanças na temperatura acabaram alterando os ecossistemas de tal modo que as populações de morcegos – animal que serve de reservatório de diversos tipos de coronavírus – de Mianmar e Laos se deslocam para Yunnan, China.

A economia fóssil provocou uma grande crise climática que é determinante para entender como os vetores de contágio de vírus de origem animal se aproximam cada vez mais do ser humano. A Covid não é um caso isolado. O zika, a malária e a dengue também guardam relação com a forma como as espécies de mosquitos se mudam para novos habitats com a progressivo aumento dos termômetros.

No caso da Espanha, o último relatório do Ministério para a Transição Ecológica e a Fundação Biodiversidade alerta sobre como as transformações no clima podem tornar a península ibérica um lugar perfeito para que se assentem mosquitos que transmitem o vírus do Nilo ou os carrapatos que propagam a Febre Hemorrágica da Crimeia-Congo (FHCC).

“Esta pandemia é um sintoma a mais de que o ser humano não está em paz com o planeta Terra. Do ponto de vista semântico, poderíamos dizer que a relação com o Planeta é violenta”, opina Unai Pascual, economista do Centro Basco para a Mudança Climática (BC3) e um dos autores do último relatório da IPBES sobre biodiversidade e pandemias.

O especialista faz referência a outros impulsionadores diretos de processos de zoonoses, que, por sua vez, aceleram ou contribuem para a mudança climática. “As mudanças no uso da terra são determinantes”, sustenta. Neste ponto, ressalta que o desmatamento tem “algumas implicações notáveis, já que o corte intensivo de árvores é uma forma direta de destruição da biodiversidade, além de ser uma das principais causas do surgimento de doenças infecciosas de origem zoonótica”, como o SARS e o ebola, cuja propagação está condicionada ao deslocamento de espécies de animais, após a devastação de matas, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), que estima que 70% dos surtos têm a ver com essa perda de espaços verdes.

O desmatamento – que acarreta uma carga de emissões de CO2 e destrói sumidouros de carbono que ajudam a combater a mudança climática – está diretamente relacionado ao modelo agropecuário industrializado, ao passo que onde hoje são eliminadas matas, amanhã serão cultivadas monoculturas de soja ou palma destinadas à alimentação do gado nas grandes granjas.

Tanto é que, segundo o Instituto Real de Assuntos Internacionais, 76% do corte intensivo de árvores tem a ver com tais cultivos. O peso que a pecuária industrial adquiriu na economia neoliberal é, segundo Valladares, “uma bomba-relógio” frente à irrupção de novas epidemias. E é que, nas últimas décadas, as grandes granjas – além de gerar uma importante massa de gases do efeito estufa – foram reservatórios de patógenos que acabaram saltando para o ser humano. A gripe aviária ou a gripe suína são os dois exemplos mais recentes.

Não só a pecuária intensiva é um fator de risco. O coronavírus também colocou no foco midiático o impacto que os mercados úmidos e a criação de espécies invasoras podem acarretar na saúde. O mercado de Wuhan, epicentro da pandemia da covid-19, foi determinante para entender como o ser humano se expõe ao entrar em contato com espécies retiradas de seus habitats.

Não em vão, esta epidemia também revelou os problemas de outras práticas perigosas que são desenvolvidas na Europa, como a criação intensiva de visons-americanos, uma espécie invasora que foi a origem de diversos surtos no velho continente, durante 2020. Gema Rodríguez, cuja organização reivindica o fechamento das fábricas peles, argumenta que “a criação de espécies selvagens equivale a criar vetores de doenças”.

A criação de espécies silvestres é muito comum na Espanha, onde existem granjas de javalis e de lebres destinadas à caça, cuja concentração em espaços reduzidos fragiliza seu sistema imunológico e favorece a propagação de patógenos e doenças como a tuberculose.

A raiz do problema

A pecuária industrial, o desmatamento, a criação de espécies selvagens e a própria mudança climática são impulsionadores diretos do surgimento de novas epidemias como a do coronavírus, práticas concretas e visíveis que, segundo Valladares, levam a humanidade a uma era onde as pandemias poderão ser cada vez mais frequentes.

“Se continuarmos assim, é objetivo dizer que teremos mais processos de zoonoses. De fato, é possível que ocorram múltiplas epidemias ao mesmo tempo. É uma questão de probabilidade e estatística: quanto mais biodiversidade perdermos, menos capacidade os ecossistemas terão para nos proteger”, expõe o biólogo.

Para o economista do BC3, é importante entender que os impulsionadores diretos da pandemia se alimentam de impulsionadores indiretos relacionados “com a governança, a economia e as normas que regulamentam o comércio em nível local, regional e global”. Em outras palavras, o corte intensivo de árvores e o financiamento da agricultura e o gado não são práticas isoladas, mas respondem a mecanismos econômicos do sistema neoliberal de crescimento expansivo e a uma cosmovisão sociocultural baseada no consumo material.

“O facto de que existem algumas normas que permitem estas atividades, não significa que sejam boas. Isso é o que devemos começar a falar, metendo a mão em todo o metabolismo econômico”, argumenta Pascual.

O sistema de crescimento econômico está se deparando com os limites físicos do planeta, do qual cada vez restam menos recursos para extrair. A natureza, de uma forma quase mitológica, envia seus sinais de alerta em forma de pandemia, em forma de colapso. É que a tirania do PIB, a cultura de medir a prosperidade de um Estado em função de sua riqueza material, está começando a ter resultados paradoxalmente antieconômicos.

“Precisamos diminuir o consumo, reorientar a econômica para os cuidados, desacelerar. Antes de pisar no freio, temos que distribuir e direcionar os recursos produtivos das economias para uma forma sustentável. Se não mudarmos os mecanismos de governança em todos os níveis, continuaremos perdendo biodiversidade, acelerando a mudança climática e sofrendo pandemias”, com um grande custo, não só humano, mas na economia dos países. “A única forma de prevenir novos vírus é desacelerar. Não é uma opinião, é um fato baseado em toneladas de artigos científicos que nos dizem que é mais custoso reagir diante de uma pandemia do que prevenir”, argumenta Pascual.

Para Valladares, os estragos causados pela Covid deveriam ser o suficiente para que a humanidade “aprenda” uma lição valiosa sobre a importância da biodiversidade. “O enfoque, até agora, foi muito paternalista e marcado por atuações simbólicas. Buscamos salvar o lince, o lobo, o urso panda, mas não fomos à raiz do problema, que é avançar para um sistema que garanta que os ecossistemas possam trazer segurança”, adverte Valladares.

No entanto, um ano após a deflagração da Covid, com a vacina cada vez mais perto, os dados não levam a enxergar que as coisas possam mudar. De fato, não se observa um retrocesso em atividades econômicas vinculadas ao desmatamento. Boa prova disso é que, conforme aponta Pascual, enquanto o preço do petróleo oscilou, durante 2020, o das commodities agrícolas como a soja e a palma teve um crescimento linear, durante todo o ano.

Quando a covid chegou, há um ano, as bases do sistema econômico oscilaram. As grandes cidades se esvaziaram, os hospitais entraram em colapso e as economias nacionais desabaram. De certo modo, a pandemia é um espelho que devolve o reflexo destrutivo da atividade humana. Agora, a luz que anuncia o fim do túnel parece tão próxima como uma picada de agulha, mas a pergunta, após este pesadelo, é se a nova normalidade trará uma vacina para os ecossistemas.

José I. González Faus

COMO FAZER UMA ORAÇÃO? UM CONVITE

A abertura ao Mistério pode assumir a forma de um apelo ao meu íntimo, uma consciência da minha situação de dependência (mas dependência do amor), uma oferta de liberdade plena e um apelo ao amor mais desinteressado, sobre todos aqueles em quem a autonomia e o pecado da criação impedem o aparecimento da vontade amorosa do Criador (portanto, na vida de Jesus, os enfermos, os pobres e oprimidos foram os verdadeiros protagonistas)”, escreve o teólogo jesuíta José I. González Faus, em artigo publicado por Religión Digital. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

Qualquer acompanhante espiritual deve ter recebido várias vezes a pergunta de como fazer uma oração. Antes que uma resposta, estas linhas querem ser um convite. Dizem que a oração é algo como o respiro da alma. Talvez porque seja útil começar pela respiração do corpo: porque respirar é a atividade mais importante e mais inconsciente de todas as que fazemos. Vamos começar por fazê-la conscientemente.

1.

Uma postura cómoda, mas não relaxada, mais vertical; tomar consciência do movimento de inspirar e expirar: lentos e até o fundo dos pulmões. Este movimento de repetir uma e outra vez, sem palavras. Na verdade (como dizia Jesus), na oração sobram as palavras, se são necessárias é somente para evitar nossas constantes distrações. Porém, a meta é um silêncio cheio, não um silêncio vazio. E que acabará sendo apenas silêncio exterior, mas não interior.

Tentemos preencher esse silêncio de pequenos mantras que procurem ser expressões de afetos e necessidades pessoais, bem breves e ditas lentamente (Te amo, quero te amar, obrigado, necessito tua ajuda, quero confiar em ti, diga-me o que devo fazer... ou alguma prece do Pai-Nosso).

2.

Esse será o começo de um mero exercício que teria que procurar converter em hábito: os hábitos tornam fácil o que antes era difícil. Torna-se custoso, tenhamos em conta que a melhor definição da oração não é a de “falar com Deus”, mas sim de “buscar Deus” (Inácio de Loyola não temia dizer que de cem pessoas que dizer ter muita oração é provável que noventa não tenham). Portanto: convertamos a sensação de tempo perdido ou de distrações em uma demonstração prática de que isso de encontrar Deus me importa tanto que estou disposto a gastar todo o tempo e todo o esforço que precisar. Recordando a “Quimera do Ouro” de Chaplin, façamos nós uma autêntica “quimera de Deus”.

3.

Quando essa respiração silenciosa (ou quase silenciosa) se torna um hábito, é muito provável que nos deixe com uma sensação profunda do mistério que nos cerca. Ao contrário do que é um mero “enigma”, o verdadeiro mistério continua a ser tanto mais mistério quanto mais se aprofunda nele: porque o mistério é infinito. Aquilo que chamamos de Deus é o Infinito. Por isso, quando queremos encerrá-lo em nossos esquemas ou ideias, o falsificamos e o tornamos um ídolo.

Essa percepção do Mistério que nos rodeia nos deixará com uma sensação de paz. De profunda paz. Então não iremos mais orar como quem vai a um exercício pesado e inútil, mas procurando essa paz. E essa busca já é um exercício de afeto não expresso.

4.

Então, de acordo com diferentes tradições, mas válidas para todos, essa sensação do Mistério pode desdobrar-se de diferentes maneiras.

4.1

Para as tradições orientais, o Mistério está “dentro de mim”, na parte mais profunda de mim: descer até essa profundidade do meu ser equivale a encontrar o melhor de mim mesmo; E é isso que a oração cristã pede quando diz "Venha, Espírito Santo".

4.2

A tradição judaica sabe muito bem que o Mistério é o Criador e o Libertador. Criador significa que ele é a Fonte de tudo, mas de uma forma que é incompreensível para mim e não da maneira que posso fazer as coisas. Os teólogos debateram se seria melhor chamar Deus de Causa ou Fundação. E essa discussão, que não tem resposta, serve para mostrar que a ação de Deus é diferente de qualquer coisa que possamos imaginar: o acerto da Bíblia às vezes é comentado quando usa um verbo (barah) para a criação de Deus que nunca foi usado para obras humanas. As línguas latinas queriam torná-lo mais compreensível usando a palavra “criar” para obras de arte: como quando algum Mozart pega uma melodia e acordes que não estavam em lugar nenhum “do nada” ou Michelangelo tira um berço de um bloco de mármore onde aquele personagem não estava. Mas a intuição bíblica é ainda melhor.

Libertador significa que temos algo ou muita escravidão não reconhecida dentro de nós. O livro do Êxodo nos diz que os hebreus no Egito reclamaram da escravidão externa à qual o Faraó os sujeitou. Mas, contra todas as probabilidades, quando Deus chama Moisés para tirá-los do Egito e libertá-los, uma das objeções que Moisés faz é esta: “Senhor, eles não vão querer” (6, 12). Na verdade: é mais fácil para nós negar a escravidão externa do que buscar nossa liberdade interna.

4.3

Por fim, a tradição cristã acrescenta algo incrível a essas experiências do Mistério: que esse Mistério é Amor. Tanto que, por amor ao ser humano, e para nos aproximar plenamente a Ele, veio para viver o nosso a própria vida, tirando a fragilidade humana e expondo-se à nossa maldade, naquele “Impregnado” (ou “Ungido” = Cristo) de Deus, que foi Jesus de Nazaré.

Então a razão e as culturas humanas tentaram explicar isso e falavam de subsistência e natureza: uma língua que hoje nos escapa, mas era inevitável na cultura grega (e que deu origem a essa estranha expressão de “união hipostática”). Com certeza, se o cristianismo tivesse sido implantado na Índia, eles teriam falado de “advaita” ou “não-dualidade”: uma expressão que costumamos distorcer de nosso orientalismo barato, mas que vem nos dizer que somos apenas uma pretensão de advaita e que Cristo é a plenitude dessa não-dualidade que faz com que não sejamos (como acreditava Sartre) “uma paixão inútil”.

Resumindo: a abertura ao Mistério pode assumir a forma de um apelo ao meu íntimo, uma consciência da minha situação de dependência (mas dependência do amor), uma oferta de liberdade plena e um apelo ao amor mais desinteressado, sobre todos aqueles em quem a autonomia e o pecado da criação impedem o aparecimento da vontade amorosa do Criador (portanto, na vida de Jesus, os enfermos, os pobres e oprimidos foram os verdadeiros protagonistas).

5.

Com esses contextos de fundo, todo esse hábito de respiração serena e profunda preencherá o silêncio com sensações afetivas e estados de ânimo que talvez necessitem alguma palavra para não nos distrairmos, como disse antes, porém sabem bem que toda nossa linguagem, por mais elaborada que nos pareça, não passa de algo assim como os sons que um bebê emite quando começa a falar e que somente sua mãe pode entender.

6.

Tudo o que foi dito antes não foi mais que a afinação dos instrumentos que ouviremos em um concerto. Ficam agora as diversas partituras a serem seguidas: refletir sobre uma palavra de Jesus, ou imaginar uma cena evangélica, ou contemplar desde nossa interioridade a enorme maldade e o imenso sofrimento que há em nosso mundo, ou debulhar as palavras de alguma oração oral composta por outrem, ou simplesmente seguir estando degustando dessa sensação de Mistério. Aqui já não posso descrever mais estes caminhos que se poderá encontrar com facilidade quando esteja afinado com seu instrumental.

7.

Mas gostaria de concluir com outra observação: o título que dei a essas reflexões é uma paródia do complicado “Convite à Valsa” de C. M. von Weber, que Berlioz posteriormente orquestrou e tornou mais acessível a nós, leigos. Ora, o título alemão da obra de Weber era propriamente um “convite à dança”, mas seus compassos têm aqueles harmônicos de placidez e sugestão, tão típicos da valsa, onde parece que, mais do que bailar, se era bailado; e suponho que é daí que vem o título espanhol. Queria dizer com aquela paródia que a oração pode se tornar uma espécie de descanso, plácido e sugestivo como a dança.

Sim. Mas uma dança que, na nossa situação de Aliança, nos leva à esperança e, de imediato, àquele esforço de “lavrar”.

Giannino Piana

UM HUMANISMO TECNOLÓGICO

"No entanto, seria incorreto (e, aliás, contraproducente) entregar-se a atitudes apocalípticas, sem colher os indiscutíveis benefícios que essa tecnologia pode trazer se for mantida sob controlo e colocada ao serviço de objetivos humanizadores. Também neste caso é necessário não esquecer a ambivalência estrutural de toda conquista humana ou lembrar - como argumentava Francis Bacon - que toda inovação “sempre conserta algo, mas prejudica alguma outra coisa”. Trata-se, portanto, de elaborar um modelo ético capaz de fornecer orientações positivas tanto no nível pessoal como no social.", escreve Giannino Piana, teólogo italiano, ex-professor das universidades de Urbino e de Turim, na Itália, e ex-presidente da Associação Italiana dos Teólogos Moralistas, em artigo publicado em Il Gallo. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

A revolução digital em curso representa o desafio mais importante que o homem é chamado a enfrentar para definir sua identidade e planejar seu futuro. As ferramentas disponíveis têm de fato um impacto decisivo na vida das pessoas e da sociedade, visto que afetam os vários setores em que se desenvolve a economia, a política, a cultura, etc. - e exercem grande influência na formação da opinião pública - basta pensar na troca de milhões de informações - de fato condicionando, inclusive de forma pesada, as escolhas de cada um.

Potencialidade e perigos. A tecnologia digital, com suas múltiplas implicações, bem analisadas em um volume recente de Marco Damilano e Antonio Nicita (Big Data. Come stanno cambiando il nostro mondo, IlMulino 2020), onde potencialidades e perigos são registrados, não muda apenas os aspectos externos da convivência, mas, dando origem a novos usos, novas práticas e novos hábitos, afeta a vida interior pessoas (sua consciência) e acaba produzindo uma verdadeira mutação antropológica. Por isso, não pode ser considerada neutra - como pensam aqueles que remetem tudo ao uso positivo ou negativo que é feito -, mas deve ser avaliada levando-se em consideração que sempre desdobra seus efeitos em um contexto de uso e na relação com as outras tecnologias. Para entender a extensão da influência exercida por essas tecnologias e as repercussões que elas têm na condução da vida econômica e social, basta lembrar a importância adquirida pelas chamadas TI (Tecnologia da Informação) incluindo Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft, que, além de ter entrado de forma invasiva e generalizada na vida de todos graças à multiformidade do uso que delas se pode fazer - na verdade, servem para comunicar e fazer compras, para escrever, contar, planejar, desenhar e intermináveis outras atividades cotidianas - ocupam os cinco primeiros lugares no ranking de valor de mercado das empresas estadunidenses, desfrutando de uma posição dominante que em outros tempos não teria sido tolerada.

Efeitos negativos no lado socioeconômico

Os efeitos negativos de sua presença no nível socioeconômico são evidentes. Graças à sua entrada no mercado, a concentração de grandes empresas aumentou, enquanto a taxa de entrada de novas empresas caiu drasticamente e os lucros das empresas digitais cresceram enormemente, graças também à ausência de políticas de concorrência e regulação dos mercados por causa da negligência ou da cumplicidade do poder político. A consequência negativa desses processos tem sido o aumento das desigualdades; a redução da concorrência de fato provocou (e só poderia provocar) uma queda nos investimentos e uma desaceleração no crescimento da produção.

Mas o aspecto ainda mais grave e preocupante é a redução dos empregos, com o aumento da pobreza até mesmo na chamada classe média. A cota de geração de empregos das empresas digitais é de fato muito limitada para todas as empresas mencionadas, com exceção da Amazon, que possui uma rede de distribuição que necessita de mão de obra (e que, no entanto, representa apenas 0,4% dos postos de trabalho totais nos EUA). Isso significa que sua atividade tem um impacto quantitativo muito modesto sobre o crescimento econômico dos EUA - são atividades que exercem extrema influência sobre o sistema econômico no nível de geração de valor com escassos resultados sobre o da economia real - e que acaba determinando um retrocesso na produtividade e no emprego. Se passarmos então à análise dos efeitos que envolvem mais diretamente a vida pessoal, os riscos de recaídas negativas não são menos relevantes. Dois são sobretudo os dados que emergem imediatamente a esse respeito e que merecem atenção: a perda de algumas faculdades subjetivas fundamentais e a perda da privacidade.

Os efeitos do envolvimento subjetivo

O primeiro desses dados - a perda das faculdades subjetivas - é o resultado do uso crescente dessas ferramentas para realizar operações feitas no passado diretamente pela pessoa, que colocava ativamente em função suas próprias capacidades. A consciência de que são capazes de realizar operações cada vez mais complexas em espaços de tempo muito curtos e que, portanto, favorecem um aumento exponencial dos poderes cognitivos do homem, leva ao seu uso ilimitado, também para operações simples, que no passado eram geridas por cada um ativando as faculdades pessoais, como a memória, a racionalidade, a fantasia, etc., com o perigo (não puramente hipotético) de sua total atrofia. Tudo o que constitui nosso Eu migra para um banco de dados por meio das telas; assim, é determinada uma extensão do self realizado por meio do gêmeo digital, que impede a ativação das faculdades pessoais.

O outro dado - o da privacidade - é consequência do primeiro. A entrega dos dados pessoais à máquina coincide com a sua publicidade, portanto, com o cerceamento total da privacidade. Para além da preocupante união entre o poder de monopólio e propriedade da informação - a coleta de dados pessoais pelas empresas de informação tem fins principalmente comerciais - a construção do gêmeo digital garante que os dados pessoais se tornem disponíveis para terceiros e que uma sondagem da vida de cada pessoa seja possível detectando em detalhes os vários aspectos de sua personalidade e identificando claramente suas escolhas preferenciais.

Dietrick De Kerckhove e Maria Pia Rossignaud destacaram claramente a relevância desses dois dados e a ligação entre eles, e escrevem: Confiando nos instrumentos virtuais, delegamos a eles poderes consideráveis e nós, como indivíduos, perdemos cada vez mais memória, capacidade de julgamento, imaginação e privacidade ... De fato, a maior parte dos nossos dados pessoais já está disponível para terceiros, e por isso o cenário plausível que combina tecnologias para smartphones e assistentes digitais é o de casais digitais não só do nosso presente, mas de cada detalhe da nossa vida.

E acrescentam: Estar equipados com um gêmeo baseado num banco de dados, aprendizado de máquina e inteligência artificial com instrumentos pertinentes provavelmente fornece a cada um de nós acesso a poderes cognitivos enormemente aumentados, mas quanto mais usamos esses poderes, menos dependeremos de nossas faculdades internas: pensar, imaginar, planejar, projetar, julgar, escolher, decidir e seremos cada vez mais transparentes nos mínimos detalhes (La grande migrazione verso il gemello digitale, in "Avvenire", 9 de julho de 2020, p 24).

Para tornar ainda mais radical a dimensão da mudança, para a qual há quem fale de uma verdadeira revolução antropológica, é a reviravolta das coordenadas espaço-temporais tradicionais, com a demolição do dualismo passado-presente em razão de um presentismo, que dá a sensação de ubiquidade ou dá origem - como defende Antonio Loperfido (Ti ricorderò per sempre. Lutto e immortalità artificiale, Edizioni Dehoniane 2020) - a uma espécie de "imortalidade digital".

As redes sociais, em particular o Facebook, há muito que iniciaram uma reconversão da sua função de espaço de relação para um gigantesco arquivo de memórias, com a produção de uma autobiografia coletiva, na qual as relações, além de se estenderem quantitativamente de forma desmedida, podem se tornar evanescentes e desaparecer. Eles criam estranhos efeitos delirantes a ponto de alimentar a falsa crença de uma relação contínua com o parente falecido.

Não menos relevante (e de fato desestabilizadora) é o que Baudrillard define como a "morte da realidade", ou seja, a substituição do real pelo virtual e, em um sentido mais amplo, a prevalência da opinião subjetiva sobre os fatos objetivos; a presunção, em outras palavras, de que nossa relação com a realidade é mais importante do que a própria realidade, que é portanto destituída de significado. A relação simbiótica que a pessoa estabelece com a máquina, que se sacraliza assumindo as características de uma verdadeira divindade, e portanto transformada em fonte de verdade, determina uma troca sutil mas avassaladora entre as dinâmicas psicológicas do sujeito e os mecanismos próprios da tecnologia: uma troca destinada a afetar profundamente a forma como nos relacionamos com o mundo, dando vida a atitudes e comportamentos alienantes.

A definição de um modelo ético adequado

A tecnologia digital, pelo impacto que tem - como vimos - na vida das pessoas e da comunidade exige ser submetida a um severo escrutínio crítico no terreno ético. No entanto, seria incorreto (e, aliás, contraproducente) entregar-se a atitudes apocalípticas, sem colher os indiscutíveis benefícios que essa tecnologia pode trazer se for mantida sob controlo e colocada ao serviço de objetivos humanizadores. Também neste caso é necessário não esquecer a ambivalência estrutural de toda conquista humana ou lembrar - como argumentava Francis Bacon - que toda inovação “sempre conserta algo, mas prejudica alguma outra coisa”. Trata-se, portanto, de elaborar um modelo ético capaz de fornecer orientações positivas tanto no nível pessoal como no social.

Isolamento e autorreferencialidade

No primeiro nível - o pessoal - o verdadeiro desafio é a capacidade de reagir ao perigo de uma forma de individualismo indefinido, construindo um viver juntos, feito de verdades compartilhadas e valores comuns. A tecnologia digital, alicerçando-se na subjetividade individual, favorece a tendência a uma forma de autorreferencialidade, que é, aliás, destituída, graças à redução assinalada no exercício das faculdades propriamente humanas, de uma verdadeira participação pessoal. Deve-se acrescentar - e este é o aspecto mais relevante – que para acentuar a subjetivação tem contribuído (e contribui), de maneira determinante, a relação cada vez menos direta (e física) com o outro, substituído pela mediação do instrumento comunicativo, e a negação da importância dos fatos para a prevalência das opiniões, com a consequente ausência de um critério objetivo de verdade e de quadro de valores compartilhado.

A possibilidade de vencer essas perigosas tentações implica, por um lado, uma utilização moderada e prudente da tecnologia digital, com a capacidade de se distanciar mesmo através da suspensão temporal; estar constantemente conectados cria uma dependência que acaba por condicionar fortemente a própria existência, também em termos de tempo dedicado às mensagens, determinando uma forma de escravidão psicológica, que também pode assumir (os casos se multiplicam a cada dia) conotações claramente patológicas. E comporta, por outro lado, o cultivo de iniciativas que permitam o desenvolvimento, não apenas virtual, das relações interpessoais e de atitudes pessoais ligadas ao exercício de faculdades superiores. A consciência de que a pessoa (cada pessoa) necessita para crescer um tu e um nós deve levar a abrir espaço para encontros situados em contextos espaço-temporais precisos, que dão real concretude à experiência da própria vida.

Uma política para a tecnologia

Se passarmos então para o lado socioeconômico - este é o segundo nível - a questão fundamental passa a ser aquela do controle do sistema e, mais radicalmente, da identificação de um uso alternativo dos instrumentos a disposição. O mercado é hoje dominado - como vimos - pelos gigantes da web, que com as suas plataformas digitais exercem uma influência decisiva nas escolhas dos consumidores, violando a sua liberdade mediante o levantamento do perfil de cada um, dos gostos e hábitos e das propensões para compra; tudo isso constitui um instrumento fundamental para a ativação de estratégias comerciais e políticas.

O capitalismo digital, que representa a principal forma do capitalismo de hoje, precisa ser regulado por normas precisas, que contenham seus efeitos negativos, tanto em termos de segurança como de privacidade, e permitam às pessoas manter a identidade e o crescimento pessoal. A política é então chamada em causa, pedindo a adoção de inovações estratégicas importantes, que não podem ser promovidas pelos Estados individualmente, mas requerem um compromisso transnacional. O aumento desmedido do poder tecnológico e da interdependência planetária exigem que as intervenções sejam planejadas em conjunto, cuja eficácia se dá pela capacidade de interferir nos processos em curso de forma cada vez mais extensa - a globalização tornou evidente a impossibilidade de Estados individuais lidar com problemas que transcendem amplamente suas fronteiras - e com autoridade cada vez maior.

A gravidade das questões em jogo torna necessária, se queremos preservar as perspectivas de um verdadeiro humanismo e não caminhar para um transumanismo, que gere um homem aumentado, mas não melhorado, a identificação de um caminho comum dos povos e dos cidadãos no sinal da criação das condições para a concretização de processos inspirados naqueles valores que fundamentam a possibilidade de uma expressão autêntica de si mesmos, a partir da própria liberdade, e criam as premissas para uma convivência civil democrática e solidária.

Edição 165, fevereiro 2021

Roberto Marchesini

COMO AS MÁQUINAS NOS TRANSFORMAM

A queda da centralidade universalista do ser humano é evidente. O humanismo, antes, oferecia valores-bússola, mas hoje não é mais capaz de fazê-lo. A filosofia pós-humanista tenta dar novos pontos de referência, em um cenário em que a técnica não é mais um instrumento, mas sim um agente de mudança do humano. A reflexão é de Roberto Marchesini, etologista italiano e fundador da zooantropologia, em artigo publicado por Agenda Digitale. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Com o advento de novas tecnologias, mas, mais em geral, devido ao deslocamento de significado da relação do ser humano com a téchne, levantam-se hoje novos desafios interpretativos da tecnopoiese e da leitura do humano, os quais também investem, embora em um segundo momento, sobre a reflexão ética.

A ética da simpatia de memória humeana (do filósofo David Hume) ou a de Emmanuel Lévinas sobre o conceito de alteridade, ambas baseadas no reconhecimento de uma condição-presença somática comum, que remete a uma responsabilidade em relação ao outro, encontram-se desarmadas pela disjunção irreversível entre agente e paciente moral, em relação não tanto aos âmbitos espaciais – como ainda em vigor no domínio das mídias analógicas –, mas sim à projeção narcisista do sujeito dentro de uma dimensão própria de vivência, em virtude da imersão digitálica [digitalica, no original].

A mediação digitálica, de fato, que também absorveu todas as outras intermediações instrumentais, não mantém os sujeitos interagentes no mesmo plano de encontro somático; consequentemente, não pode mais se limitar ao problema das forças em campo ou, em outras palavras, não pode mais ser abordada em termos de extensão-amputação, como se evidencia na leitura de Marshall McLuhan, porque não é a distância que é posta em questão, não é uma potencialização que é inaugurada pela digitalização, isto é, não são as relações de força os verdadeiros pontos críticos, mas sim a ruptura do plano intersomático nas relações.

A virada de sentido do novo século na relação com a téchne

Se até a primeira metade do século XX ainda se podia falar de téchne como de um conjunto de entidades de suporte, parceladas em uma multidão de instrumentos disjuntos, com o advento da revolução digitálica, ela, ultrapassando a condição analógica dos elementos instrumentais separados entre si, assume uma consistência dimensional, ou seja, faz-se ecossistema. A téchne torna-se, portanto, um segundo ambiente que, mesmo quando põe em contato, coloca o sujeito em uma condição de relacionalidade dessomatizada, razão pela qual falamos de tecnosfera.

Na tecnosfera, o ser humano é chamado a uma ação de projeção, ou seja, em termos de plena vivência ou de adesão a uma segunda realidade, a fim de poder usufruir das diversas utilidades funcionais – tanto a leitura de um texto, a assinatura de um documento, a escuta de um trecho musical ou a assistência de um filme – movendo-se de modo dimensional entre elas, exatamente como se fosse em um ambiente. Isso muda consideravelmente a noção de presença e responsabilidade nas práticas, uma vez que toda produção do sujeito – seja ela uma simples postagem em uma mídia social ou uma decisão que envolva centenas de pessoas agida com um simples clique – é sempre mediada de modo desestrutural em relação ao plano somático e não se limita ao âmbito telecinético.

Constatamos isso cotidianamente nas páginas do Facebook, onde o que se dissolve é o próprio conceito de identidade relacional e consequencial das práticas agidas. O ente dessomatizado não está simplesmente distante, mas dissolve qualquer conotação de presença, ou seja, não é mais chamado a presenciar de modo direto e identitário as suas ações, razão pela qual a téchne, de suporte, torna-se dimensão de imersão e adaptação a um novo regime mais semelhante à projeção da Alice, de Lewis Carroll, e com fortes seduções narcisistas e solipsistas que afetam inevitavelmente o estado de agente moral do indivíduo.

A redefinição crítica da relação com a tecnologia

Ao mesmo tempo, a revolução digitálica impõe uma redefinição crítica da nossa relação com a téchne, pois também destaca retrospectivamente a insubsistência da leitura humanística que põe o ser humano como:

1. criador de técnica por ser necessitado em virtude de uma carência;

2. autárquico no processo ideativo tecnopoiético;

3. capaz de um pleno controle sobre a evolução da téchne;

4. autodeterminante em seu próprio projeto.

Essa transformação, que pôs em discussão não só o conceito de instrumento, mas também algumas das dicotomias tradicionais vigentes e fundacionais da relação entre o ser humano e a tecnologia – como as de: invenção/descoberta, artificial/natural, corpo/prótese – contribuiu para a emergência de um novo paradigma cultural, que leva o nome de “pós-humanismo”, chamado a redefinir a nossa relação com a téchne, a partir do questionamento dos três pressupostos fundadores do humanismo: o princípio de incompletude biológica do ser humano ou de ausência de uma categoria natural específica; a leitura emanativa e autárquica do processo tecnopoiético; a visão clássica da téchne, considerada a serviço do ser humano e interpretada segundo cânones bem precisos de externalidade, ergonomia, vestição, volante, exoneração e passividade.

Podemos, então, afirmar que, se é verdade que a revolução digitálica inaugurou novas criticidades a serem respondidas, é igualmente verdade que ela simplesmente conclamou e evidenciou aspectos que já estavam vigentes nas primeiras expressões culturais do ser humano. A reflexão, portanto, investe como um todo sobre esses três pressupostos fundadores que hoje parecem evidentemente contraditos.

O pós-humanismo, de facto, não deve ser considerado uma forma de anti-humanismo, nem uma simples desconstrução dos termos identificadores do humano, mas sim uma revisitação deles, com base em uma visão relacional – eco-ontológica – dos eventos predicativos e dos resultados quando falamos de humano; por isso, poderíamos considerá-lo como uma espécie de neo-humanismo não antropocentrado, mesmo que, justamente em razão da descontinuidade em relação à imagem vitruviana e aos pressupostos-consequências a ela ligados, eu prefira o termo pós-humanismo. O princípio não é a negação de um predicativo específico que pode ser definido sob o termo de humano, mas como se chega a este último: de acordo com a visão pós-humanística, o humano é o resultado relacional do Homo e não o seu produto emanativo-compensatório, razão pela qual o humano é impensável por reconhecimento interno.

Nesta leitura eco-ontológica do predicado – em que a expressão humana é o fruto da relação que contraímos com uma entidade não humana – ou, em outras palavras, “híbrida” do resultado antropopoiético, a téchne desempenha um papel nada secundário, já que representa uma das fontes mais importantes de hibridação e, consequentemente, de antropopoiese. Segundo a leitura pós-humanística, a condição humana nunca esteve sob o pleno controle do ser humano; hoje essa constatação é apenas mais explícita, e não pode ser obtida em pureza e autodeterminação, mas por meio de uma multiplicidade de eventos cofatoriais. A partir das primeiras expressões culturais, fomentos de téchnai, o ser humano trilhou a estrada da hibridação, deixando-se contaminar pelo mundo externo e descentrando-se em relação ao legado biológico recebido pela filogênese. Nessa perspectiva, o humano se transforma em uma espécie de entidade sincicial que deve renunciar ao pleno protagonismo na rota da sua própria navegação.

Tais metamorfoses interpretativas também têm profundas implicações éticas, em particular nos aspectos: i. da relação entre o âmbito descritivo e prescritivo, não mais tão claramente distinguível como se apresentava na perspectiva tradicional; ii. da identificação do estatuto de paciente moral, em consequência da queda da simetria agente-paciente e da superação do antropocentrismo; iii. da dificuldade – eu diria precisamente da impraticabilidade – na elaboração de uma normatividade tanto de ordem deontológica quanto consequencialista a partir da incerteza da certificação racional sobre as práticas.

Para abordar o tema da tecnoética, entendendo com este termo o advento de deslocamentos fundamentais no sistema de valores e prescritivo que a tecnologia inaugurou e está cada vez mais colocando em campo e, consequentemente, a necessidade de refletir sobre novas questões morais, decidi levar em consideração dois assuntos: os deslocamentos na concepção pós-humanista da téchne; e os problemas éticos referentes ao advento da tecnosfera.

A metamorfose pós-humanista do conceito de téchne

Para analisar as mudanças que vêm se configurando principalmente com a revolução digitálica do século XX, deslocamentos que, ao invés de inaugurar, evidenciaram algumas dificuldades interpretativas da relação entre homem e téchne, assim como pensadas pelo paradigma humanístico – daí a proposta filosófica pós-humanística – é necessário partir de uma perspectiva, por assim dizer, antropológica dessa relação e compreender quais aspectos requerem uma revisão.

Temos, então, três assuntos-chave para discutir:

1. uma análise ontológica do humano que, partindo de uma leitura crítica do mito prometeico, fundamento do paradigma humanístico de Pico della Mirandola a Gelhen, hoje não pode prescindir dos pressupostos da revolução darwiniana e das evidências científicas;

2. uma revisitação do processo tecnopoiético, redefinindo o caráter de criatividade do engenho humano e os resultados antropopoiéticos;

3. uma avaliação do significado da téchne à luz da emergência digitálica e tecnosférica e também da superação dos cânones tradicionais de interpretação da relação entre o ser humano e o suporte tecnológico.

A visão humanista da predicação humana, no centro de toda ontologia antropocentrada, pode ser remetida ao mito dos dois titãs Epimeteu e Prometeu; o primeiro, dispensador de predicados performáticos somatizados; o segundo, chamado a ressarcir a falta de declinação funcional corpórea no ser humano por meio do fogo e da téchne.

Podemos entrever nessa fundação todos os germes do antropocentrismo ontológico: i. em primeiro lugar, ao criar uma dupla genealogia predicativa que desconecta o ser humano das outras espécies, tornando-o não uma entidade específica, mas sim especial; ii. desvinculando assim o homem da normatividade e da predeterminação do conjunto natural, ou seja, tornando-o livre na medida em que não é declinado, poderíamos dizer emancipando-o da natureza; iii. depois, tornando-o uma entidade neutra, que, portanto, pode aspirar-pretender se colocar como métrica do mundo, mas também como recipiente e subsunção de mundo, por ser capaz de utilizar os mais variados instrumentos para obter qualquer declinação performativa; iv. some-se a isso a autodeterminação, a autopoiese e, em última instância, a autarquia ontológica, isto é, a pureza em relação a toda contaminação telúrica, por estar separado da função ou por não estar atordoado na função, para citar Heidegger; v. enfim, capaz de se colocar no leme do seu próprio percurso de realização e tensional em termos de verticalização ontológica.

A falta de um grau natural introduz a ideia de Pico de um ser humano como medida do mundo e proteiforme no resultado ontológico: desde os seus primórdios – aliás, uma retomada de legados já presentes nas duas tradições ocidentais – o humanismo se perfila como uma liberação do ser humano de qualquer vínculo, colocando a animalidade como um contratermo, um porto do qual é possível zarpar e uma polaridade da qual é preciso se distanciar, através de múltiplas oscilações de fundo. Ao mesmo tempo, o humanismo é funcional ao propor uma concepção livre e autorreferida do ser humano, uma espécie de nova aurora capaz de permitir entrever o destino do homem para além das brumas do teocentrismo.

Surge daí uma imagem conclamada no prospecto vitruviano de Leonardo, em que o ser humano: i. tem uma forma não conjugada sob o perfil performativo e, portanto, neutro-larval de tal modo a poder ser medida do mundo; ii. propõe-se como universal, capaz não só de informar o mundo (antropoplástica), mas também de subsumi-lo e contê-lo; iii. mantém uma pureza intrínseca justamente em virtude da necessidade de um instrumento que distancia o corpo do substrato sobre o qual age; iv. é autopoiético, autodeterminante, portador de fins intrínsecos, autárquico e, portanto, emanativo em todas as suas expressões culturais; v. requer a intervenção de uma muleta ou de uma contenção por parte de um ente externo, não só performativo, mas também normativo.

Obviamente, o modo de conceber a vacuidade ou a insuficiência da natureza humana se torna funcional a uma visão consequente do ato ideativo, produtivo e introjetivo da téchne, aquilo que eu defini como tecnopoiese. O ser humano nu, imperfeito, incompleto, portador de faltas e de insuficiências – e aqui os diversos autores que se sucederam na leitura antropológica e filosófica do predicar humano nos entregaram uma miríade de versões diferentes, embora todas sob o mesmo princípio – se dirige à téchne para compensar, mas também para reforçar a intenção de verticalização existencial ou de exoneração. Podemos dizer que toda a parábola humanística, que entra em crise no início do século XX, se fundamenta nessa mitopoiese da incompletude da natureza humana. A falta se traduz em liberdade, plasticidade, desvinculação, autodeterminação, disjunção, distinção, sustentando aquele antropocentrismo ontológico que será a base sobre o qual se construirá a idade moderna e todos os seus pressupostos.

Essa leitura, portanto, considera o ato-evento tecnopoiético como: i. compensação, em relação a uma deficiência biológica, capacidade de sustentar e reequilibrar, de modo muito semelhante a uma muleta; ii. ressarcimento, em relação a uma insuficiência, contrapasso de uma injustiça, que torna viável uma sobrevivência de outra forma impossível; iii. completude, em relação ao resultado performativo, poderíamos dizer aperfeiçoamento ou contenção, capaz de canalizar além de dar forma a uma energia de outra forma fora de controle; iv. proteção, em relação à larvalidade biológica, ou seja, capaz de atuar como segunda pele ou como âmnio protetor, habitação do ser humano desprovido de um nicho ecológico próprio; v. autarquia, isto é, autossuficiência em relação à declinação e igualmente descontaminação com respeito ao não humano, expressão emanativa da pureza humana e igualmente recursividade em manter ou enfatizar tal pureza; vi. emancipação dos vínculos da natureza, com a consequente liberdade na definição dos próprios fins e igualmente autopoiese na construção de si mesmo.

Além disso, considera-se que a tecnopoiese produz consequentemente uma disjunção e uma exoneração, interpretável de acordo com diversas perspectivas, por exemplo, na diferença entre Gelhen e Plessner, que introduzem substancialmente duas consequências: 1) a exuberância, daí a necessidade de uma contenção em relação ao exterior; 2) o distanciamento, daí a imagem do humano contemplativo ou não pobre de mundo.

As características da téchne na leitura humanista

A téchne na leitura humanista assume, portanto, algumas características: i. veste funcionalmente o humano, concedendo-lhe os dotes que lhe faltam; ii. potencializa e canaliza ainda mais uma força predicativa inerente; iii. é ergonômica, pois é fruto de uma antropoplástica, razão pela qual se adapta ao corpo que a informa; iv. é acessória e desempenha o papel de instrumento a serviço dos nossos fins; v. aumenta a independência e a distância entre o humano e o mundo, ou seja, não imerge na performatividade, mas emancipa da função; vi. é o fruto autárquico e emanativo do engenho humano, é a expressão mais autêntica do ser humano e do seu impulso ascensional; vii. permanece externa e mantém a pureza interna do humano, razão pela qual todo evento cultural é considerado um rito de purificação; viii. distingue o ser humano das outras espécies, tornando-o especial e não específico; ix. tem uma direcionalidade própria, compensatória ou ressarcitória, de contenção ou normativa, habitativa e disjuntiva em relação à natureza; x. está sob o pleno controle do ser humano.

Pós-humanismo

São esses os pontos que desejo pôr em discussão, a partir da leitura do ser humano, tanto sob o perfil antropológico quanto ontológico. Podemos, então, nos perguntar se ainda faz sentido, por exemplo, em uma visão darwiniana da processualidade filogenética, falar de uma falta ab-origene da dotação humana e, acima de tudo, se o próprio conceito de completude-incompletude faz sentido.

Na minha opinião, não: 1) sob o perfil puramente teórico, por duas razões básicas: i. porque a filogênese não completa/aperfeiçoa nada, ou seja, não prevê essa métrica avaliativa, de fato, um legado essencialista, ii. porque, em uma lógica replicativa, ou seja, de fitness diferencial dos sujeitos presentes em uma população, não é possível um zeramento das pressões seletivas, mas apenas um deslizamento;

2) sob o perfil da investigação morfofuncional, porque, de fato, o ser humano se apresenta no máximo como especializado-redundante ao invés de carente: i. tomemos como exemplo a conformação especializada em comparação às outras antropomorfas da diferenciação anatomofuncional do trem anterior em relação ao posterior, ii. sem esquecer a redundância do sistema neurobiológico, que apresenta não apenas o exorbitante número de neurônios, mas também uma arquitetura detalhada do próprio sistema. E são apenas dois pequenos exemplos.

Mas, então, nos perguntamos: por que é tão forte, eu diria quase intuitiva, a ideia de uma carencialidade do ser humano, razão pela qual lemos a tecnopoiese como um evento compensatório?

Do meu ponto de vista, a “sensação de carência”, porque é disso que se trata, nada mais é do que uma distorção cognitiva atribuível ao chamado viés de interpretação a posteriori. É normal, de fato, que, uma vez assumida uma parceria tecnomediada, haja: 1. uma percepção de carência sob o perfil performativo, por estarmos habituados a outros padrões de eficácia; 2. uma percepção de déficit de credenciamento, pois a téchne inaugura novos costumes sociais e de pertencimento; 3. uma dependência ontogenética em relação ao suporte tecnológico, pois cada instrumento exerce algumas faculdades, deprimindo outras; 4. uma correlação evolutiva na práxis ontogenética, pois o hábito com uma técnica-tecnologia produz informações organizacionais capazes de dar um cabeamento específico aos sistemas biológicos, especialmente de interface; 5. deslizamentos filogenéticos de longo prazo, porque uma técnica ou um suporte modifica as pressões seletivas vigentes dentro de uma população, redefinindo o bauplan morfogenético da espécie.

A tecnopoiese conjuga o humano sobre as suas próprias coordenadas

Nessa chave, temos, portanto, uma tecnopoiese que não compensa, mas conjuga o ser humano – ao longo das cinco escansões apresentadas acima – sobre as suas próprias coordenadas. Poderíamos dizer que o ser humano, por meio do suporte técnico-tecnológico, se correlaciona com uma dimensão performativa, exatamente como na construção do nicho em ecologia evolucionista, razão pela qual toda emergência tecnopoiética produz uma condição de carência. O humanismo considera a falta como um “apriori” que põe em movimento a tecnopoiese. Em relação ao que foi dito acima, é necessário, ao contrário, considerar a falta como uma percepção “a posteriori” da própria tecnopoiese. A tecnopoiese é como o enamoramento, só que, depois dela, sente-se a falta do parceiro.

A falta, portanto, é a consequência e não a causa da projeção tecnopoiétic. Isso significa que o modo de ler a natureza humana, como carencial em comparação com as outras espécies, nada mais é do que uma distorção cognitiva, que, no entanto, pode nos dizer muito sobre o volante da tecnopoiese. O mito, de fato, não faz referência apenas à engenhosidade trapaceira do titã Prometeu, mas também sublinha a pluralidade dos predicados que Epimeteu dispensa, predicados que se abrigam nas virtudes somáticas dos outros animais.

Essa é a melhor prova de fogo para compreender a fonte inspiradora da própria tecnopoiese: o ser humano construiu a sua própria coleção de téchnai tendo os animais como protocolo de revelação de possibilidades a serem alcançadas.

Eis, então, que devemos considerar o evento tecnopoiético como um ato dialógico e não solipsista, heteronormatizado e não autárquico, referido e não autorreferencial, fruto: da projetividade prometeica de um ser humano redundante, desejoso e fortemente empático-imaginativo, mas também do valor epifânico dos predicados epimeteicos presentes nas outras espécies.

Em uma concepção pós-humanística, o ser humano, como espécie biológica, resultado de um percurso filogenético que não pode contradizer as dinâmicas do fitness, não pode ser definido como incompleto ou carente, mas, ao mesmo tempo, precisamente em virtude da própria exuberância identificativa e imaginativa, que o levou a ver epifanias existenciais nos animais, seu dimensionamento não é atribuível de modo exclusivo à sua natureza filogenética. A condição humana é um fruto híbrido.

Isso pode nos levar a crer que a crítica que é feita se refere exclusivamente à análise biológica da natureza humana. Não é assim, porque o paradigma da incompletude e a genealogia exclusivamente prometeica representam os fundamentos de toda uma série de considerações, cujo conjunto sustenta o edifício humanístico.

Se esses dois pressupostos desmoronam, o que desaparece e decai é a imagem vitruviana: i. o ser humano não pode mais ser considerado como uma entidade totalmente desvinculada de caracterizações internas; ele perde aquela plasticidade total que é condição sine qua non da pretensa verticalização ontológica; ii. também não pode aspirar a se situar como unidade de medida do mundo se renunciar à condição de neutralidade declinativa; iii. não pode mais se fundar iuxta propria principia, ou seja, não pode se definir como uma entidade autárquica, explicável por reconhecimento interno; iv. deve renunciar a qualquer hipótese de pureza, disjunção e distinção em relação a tudo o que o rodeia, reconhecendo-se na imersão e na hibridação, e não no distanciamento; v. deve abandonar também a pretensão de estar no leme do seu próprio projeto antropopoiético, reconhecendo outras cofatorialidades e heteronomias na construção da sua própria condição.

A leitura pós-humanística do ato tecnopoiético

De acordo com a leitura pós-humanística, o ato tecnopoiético, por isso, deve ser interpretado de forma diferente: i. não compensa/reequilibra um déficit ou uma condição desadaptativa, mas cria condições de instabilidade interna e percepção de carência; ii. não ressarce, mas cria mais dependências e novas necessidades; iii. em vez de compensação, é correto falar de correlação e de novas conjugações performativas; iv. não mantém uma pureza, mas, ao invés disso, hibrida e antropodecentra; v. não se compõe em autarquia, mas é fruto de uma epifania de encontro com alteridades; vi. não emancipa da natureza, mas aumenta as dependências em relação às evoluções ecológicas; vii. não realiza as finalidades do ser humano, mas acrescenta fins ou desloca o eixo projetual do humano; viii. não veste nem tutela a integridade do corpo, mas o força por meio de uma somatização do suporte.

A tecnopoiese leva a um distanciamento do mundo? Só aparentemente, porque, quanto mais numerosos forem os intermediários entre sujeito-mundo, maior é a dependência, por exemplo, a especialização performativa.

A visão humanística é irênica e tranquilizadora ao se situar como uma “história exatamente assim”. Aqui a técnica ajuda, porque compensa uma carência e porque exonera de uma tarefa. A téchne, na tradição clássica, é construída sobre o princípio ergonômico, ou seja, deve se adaptar ao corpo. Hoje, descobrimos, talvez com surpresa – daí a tendência à remoção –, que é o corpo que deve se adaptar à téchne, que toda tecnopoiese produz não equilíbrio e não estabilidade, que inaugura campos de imprevisibilidade, justamente como um tsunami ontológico.

A téchne não mostra um “como”, nunca dá vida a um fenômeno a se seguir/imitar, mas mostra um “porquê”, uma dimensão existencial.

Impacto da téchne sobre o humano

A téchne, portanto: i. desveste o humano, tornando-o mais exposto ao mundo; ii. como um vírus, produz novos predicados; iii. não é ergonômica; adapta e disseca o corpo; iv. acrescenta ou inaugura novos fins, aos quais nos submetemos; v. aumenta a dependência; pensemos apenas na nossa atual exposição ecológica; vi. traz de volta de forma arquetípica o imprimatur epifânico, tornando o humano não explicável iuxta propria principia; vii. introjeta-se profundamente, conjuga o corpo e é sempre interna;

viii. tem diversos níveis na natureza, não existe uma dicotomia natural versus artificial; ix. é sempre criativa, ocasional, fruto histórico e de serendipidade e encontros; x. nunca está sob o pleno controle do homem.

O advento da tecnosfera na revolução digitálica

A transformação social introduzida pela revolução informática do século XX está diante dos olhos de todos e, mesmo assim, na minha opinião, até agora só permitiu entrever poucos e escassos resultados das consequências que está determinando e das potencialidades que irá desdobrando ao longo das próximas décadas.

A explosão de entidades computacionais, que marcam o trabalho na escrivaninha, nos acompanham na forma de smartphones, ditam o ritmo das nossas ocupações durante as viagens através dos tablets ou se infiltram de modo nem sempre evidente em grande parte do nosso mundo, não modificou, senão minimamente, aquela percepção de eletrodoméstico que ainda informava o lendário Programma 101 da Olivetti, como entidade destinada ao projeto de funcionalidade da casa.

A perspectiva que se inaugurou nos anos 1960 de uma dimensão para o consumo familiar, a mesma que transforma os animais domésticos em pets, não é capaz de compreender a liquefação das relações sociais que está iniciando como contrapartida a uma aparente liberação hedonista.

As gerações que se sucederam nas últimas décadas do século XX, a partir do baby boom, estão cada vez mais ganhando confiança com a digitalização das diversas práticas operacionais e fruitivas, mas continuam pensando de forma analógica. O instrumento, sob essa ótica, é algo que repousa em um local bem preciso e que serve para cumprir uma determinada função, razão pela qual se interpreta a sua utilização através da ergonomia de acesso.

Se a televisão, o celular, a câmara de vídeo ou o leitor de mp3 utilizam tecnologia informática, temos igualmente acesso a eles de modo disjunto, ou seja, através de instrumentos bem distintos, como era a prática no mundo analógico. Tal atitude muda radicalmente na virada do século, e as novas gerações, definidas para esse fim como “nativas digitais”, mostram um acesso às tecnologias completamente diferente, não mais de utilização, mas sim de imersão. A chamada realidade virtual absorve cada vez mais a existência cotidiana das pessoas, tornando-se uma dimensão de vida. Mas são os jovens, que cresceram dentro desse milieu, aqueles que não conseguem imaginar um mundo sem computadores, que mostram as primeiras transformações de forma evidente, acentuando o afastamento da relação direta com o próximo e enfatizando a relação mediada pela janela digitálica, que cada vez menos lembra, não apenas conceitualmente, mas também fruitivamente, a imagem do instrumento doméstico, que pode ser colocado em um espaço bem específico da casa.

A virada das mídias sociais para o digitálico

As mídias sociais representam a expressão mais explícita dessa mudança, dando origem a uma filiação de situações e de terminologias dificilmente compreensíveis para quem viveu a própria juventude na segunda metade do século XX: a maioria se limita a utilizar essas novas formas de participação social, mas certamente não é capaz de fazer emergir de forma inovadora as imensas potencialidades que elas escondem.

E é precisamente em termos de adaptação participativa que se joga a grande partida da metamorfose induzida na passagem de uma cultura do analógico à do digitálico.

Se faz sentido aquilo que foi afirmado no parágrafo anterior, isto é, se é verdade que a relação com a téchne não tem valor compensatório e não se baseia em uma mera utilização – que: i) deixa o instrumento do lado de fora, ii) situa-o de modo ergonômico e até iii) preserva o corpo da contaminação –, em outras palavras, se o contrário for verdadeiro, temos mais de uma razão para nos preocuparmos em relação às mudanças de participação social induzidas pela imersão.

Não é uma posição neoludista

A esse respeito, gostaria de limpar imediatamente o campo do equívoco de sustentar uma atitude tecnofóbica ou neoludista: não acredito que as novas tecnologias representem, por si sós, um problema ou mesmo um mal, pelo contrário, considero-as grandes oportunidades também para refletir sobre o significado ecológico dos predicados. A minha reflexão se refere, antes, ao risco de abordar a aceleração digitálica com uma chave de leitura humanística que, se é incorreta também para as chamadas técnicas tradicionais – por se basear em pressupostos de centralidade, pureza e autarquia da condição humana –, torna-se conclamadamente paradoxal diante de uma téchne que se baseia no princípio de hibridação e de imersão.

E não se trata de saber ler um fenômeno com o distanciamento epistemológico de quem continua acreditando que não há relação produtiva entre descritivo e prescritivo, mas sim de compreender que, na frequentação da imersão tecnosférica, é o horizonte dos valores que muda, nos âmbitos estético e ético, ambos muito mais conectados do que se possa imaginar. Indubitavelmente, a conexão digitálica que caracteriza o panorama experiencial de uma criança desde os primeiríssimos anos de vida, eu diria até mesmo antes do 12º mês – a tal ponto que muitas vezes se aprende primeiro a navegar na web do que a caminhar –, produz resultados bem precisos do ponto de vista ontogenético.

As transformações do humano para o digitálico

Já é possível notar algumas transformações, muitas vezes erroneamente atribuídas a falhas educacionais por parte dos pais ou a problemas relacionados à escola, mas, na realidade, muito mais facilmente atribuíveis ao horizonte experiencial que a criança vive desde a infância, tais como: i. uma forte flutuação dos parâmetros de arousal, acompanhada de insegurança, baixa resiliência e emotividade; ii. uma escassa consciência das consequências concretas das próprias ações; iii. uma incapacidade de gerir as frustrações e, em geral, as emoções; iv. uma propensão à hipercinesia, relacionada com um déficit de atenção e concentração; v. uma acentuada redução da capacidade empática e da identificação; vi. uma tendência ao narcisismo e um excesso competitivo nas relações sociais; vii. uma vertiginosa queda das vocações cooperativas e colaborativas; viii. uma diminuição das capacidades mnésicas e da organização de uma identidade biográfica coerente.

Neste ponto, gostaria de chamar a atenção não apenas para as características de diferencial evolutivo que a experiência imersiva produz, mas também para as características comuns de socialização que, ao se enraizarem na familiaridade consolidada na infância, se traduzem depois em valores ou em prescrições.

De facto, se é verdade que tanto a empatia quanto a propensão colaborativa são qualidades intrínsecas do ser humano que, no entanto, exatamente como qualquer músculo, requerem exercícios evolutivos para poderem crescer e alcançar os padrões de adequação, é igualmente verdade que são os primeiros referentes da interação infantil que, depois, vão definir os parâmetros de eleição valorial do adulto.

Preocupa a erradicação do contexto natural e social que a prevalência imersiva produz, habituando a criança a se defrontar com outra realidade que será para ele, inevitavelmente, um ponto de referência, tanto na orientação quanto nos valores que a levam a eleger os entes a serem preservados e para os quais manifestará uma atitude negligente, porque não faz parte do seu panorama de socialização. Gostaria de dizer que nós podemos muito bem tentar ensinar o respeito pela natureza, pelos equilíbrios ambientais, pela sensciência animal, mas, se esses entes não encontrarem uma contrapartida de familiarização no jovem, isto é, se não corresponderem à sua estética e à sua introjeção biográfica, fruto das experiências de infância, esses preceitos permanecerão inevitavelmente como letra morta e não se traduzirão em atitudes sentidas e vividas.

No imaginário coletivo, a natureza tornou-se um pano de fundo, exatamente como nos cenários utilizados no cinema, uma espécie de cartão-postal de contornos bem definidos, a ser preservado na sua estaticidade e na disjunção dos entes, quase imaterial e, em todo o caso, hiper-real; não é mais um entrelaçamento de vida, ainda que caótica e pegajosa nos seus parâmetros orgânicos – estes despertariam o nojo de qualquer adolescente –, e é assim que, no senso comum de uma administração pública, o verde se torna “mobiliário urbano”. A despeito de todo o movimento ambientalista da segunda metade do século passado, a sociedade rural era mais ecológica na sua própria imersão inconsciente na lama e no esterco, nos ritmos sazonais e na autoctonia de produção-consumo, na reutilização capaz de superar qualquer política de reciclagem.

Um discurso semelhante pode ser feito em relação ao respeito aos animais, tão alardeado na mídia, a ponto de fazê-lo se tornar uma captatio benevolentiae, quando, na realidade, por meio das formas mais nauseantes de constrição antropomórfica, nega-se aos diversos animais que expressem a sua própria identidade de espécie específica. O porquê é óbvio. As pessoas têm uma maior frequentação com os personagens dos desenhos animados interpretados pelos animais do que com os próprios animais. Os animais se tornaram máscaras chamadas a desempenhar o papel que o ser humano lhes impõe, sem qualquer capacidade crítica.

É impensável preservar os equilíbrios ecológicos, salvaguardar os diversos ambientes naturais, respeitar os animais se estes não entram no horizonte experiencial da criança desde a primeira infância, se são vividos como estranhos, não foram introjetados como elementos eletivos, próprios por serem habitados e em relação aos quais ocorreu um processo de sodalício. Os valores também têm uma perspectiva afetiva, indicam um projeto na sua definição de plataformas prescritivas, mas é evidente que estão enraizados dentro de orientações que não podem se basear na estranheza.

Os valores definem prioridades e escolhas – por exemplo: quais entes eu quero preservar, o que eu acredito que está de acordo com o meu juízo de uma vida boa, quais as finalidades pelas quais vale a pena lutar ou se sacrificar –, mas estes só podem se fundar no enraizamento. A imersão constante em uma segunda realidade só pode produzir uma erradicação e um estranhamento em relação à natureza, aos ecossistemas e ao mundo animal. Trata-se de um divórcio que não pode deixar de determinar influências estéticas e éticas. Quando observo uma família sentada à mesa, onde cada um está totalmente compenetrado diante do seu celular, não posso pensar que isso não tenha consequências, depois, no plano valorial, porque, principalmente nas mentes jovens, esse estranhamento da relação social se traduz em um modelo bem preciso de participação existencial e, portanto, de orientação prescritiva.

Confiar-se à máquina

A passagem da utilização da máquina analógica para a imersão na tecnosfera digitálica também produz um lento hábito de se confiar à máquina – não mais apenas no perfil operacional, mas também no estratégico-decisório – chegando ao paradoxo de elevá-la a âncora de salvação, isto é, fazendo sobre a téchne aquele investimento soteriológico que o homem pré-humanista identificava na divindade, e o moderno, em si mesmo. A tecnosfera não é feita de instrumentos de pronta utilização, mas é dimensional – poderíamos dizer acolhedora e tranquilizadora, como uma espécie de âmnio – e, nesse sentido, assume a imagem de uma base segura. A tecnosfera se abraça, nela nos abandonamos, afrouxando as rédeas do comando. Por isso, ganha espaço o pensamento de que vão ser as máquinas que vão nos salvar ou, pelo menos, tomar aquele leme que parece bloqueado no homem contemporâneo: a imersão na tecnosfera nos mostra, portanto, uma progressiva perda de titularidade que se assoma no horizonte. Por outro lado, se refletirmos de modo pós-humanístico sobre a ilusão amniótica da téchne, perceberemos o quanto precisamos de novos paradigmas interpretativos em relação às acelerações em curso.

Uma coisa deve ser dita. O ser humano parece desarmado e incapaz de enfrentar os desafios mais importantes – pensemos no aquecimento global, no crescimento demográfico, no reequilíbrio da riqueza, nos problemas de geopolítica após a queda dos Estados-nação, nas migrações dos povos – e, assim, parece esperar contornar esse chamado à responsabilidade confiando-se a um ente terceiro capaz de decidir por ele. Não só a ficção científica, mas também algumas escolas de filosofia, pensemos por exemplo no movimento trans-humanista, imaginam um futuro no qual serão as máquinas que programarão a agenda do ser humano; por outro lado, é a própria produção industrial que nos oferece a perspectiva de máquinas com elevada autonomia performativa e funcional: pense-se, por exemplo, nos carros autônomos ou nas novas gerações de robôs ou, ainda, nos avanços na pesquisa sobre a inteligência artificial. É inútil dizer que estamos diante de uma metamorfose antropológica, antes ainda que tecnopoiética, em relação à qual desenvolvemos uma escassa capacidade crítica acerca das consequências ontológicas possíveis, na falsa ilusão de que, de todos os modos, nós estamos no leme desses processos.

Como a máquina muda

As pesquisas de ponta estão nos orientando para uma revolução do próprio conceito de máquina, não só em termos de autonomia operacional, mas também de capacidade avaliativa e decisória, por meio de novos caminhos projetuais.

Menciono dois: a construção de robôs ou inteligências artificiais animalizadas, ou seja, dotadas de sistemas motivacionais e emocionais intrínsecos, capazes, portanto, de não se limitarem a resolver problemas que o homem lhes propõe, mas de agir de modo ativo na busca de oportunidades, ou seja, de intus-legere, em outras palavras, de levantar problemas; a realização de máquinas híbridas, em parte inorgânicas e em parte orgânicas, construindo redes de células neuronais em conexão entre si, da mesma forma que uma rede sináptica, em infusões capazes de construir novas conexões e de crescer, ou seja, dando origem a organoides, em relação com estruturas de silício ou outras partes mecânicas capazes de fornecer aquelas performatividades que faltam nos aparatos biológicos.

Gostaria de sublinhar que, em ambos os casos, falar de máquinas, no sentido usual do termo, valendo-se das estruturas conceituais às quais estamos acostumados, mais do que nos fornecer uma imagem aproximada, é totalmente enganoso. Um robô que sente e deseja não é mais uma máquina.

Atribuir disposições a uma máquina, poderíamos dizer “animalizá-la”, significa torná-la portadora de interesses inerentes – um pouco como no famoso exemplo do Hal 9000 de Kubrick – fazendo emergir inevitavelmente uma self-ownership. Mas, então, ainda faria sentido chamá-la de máquina? Uma inteligência artificial, dotada de um sistema disposicional, caracterizado por emoções e por motivações, seria, para todos os efeitos, uma alteridade portadora de um certo nível de autopertencimento: certamente, não pode mais ser considerada um instrumento a ser utilizado. Com que consequências éticas? O debate está aberto. Por outro lado, para se ter um robô autônomo e inteligente, não se pode deixar de torná-lo capaz de intus-legere. Na verdade, estamos diante de uma circularidade nada fácil de desembaraçar.

As questões éticas

Também existem, nesse caso, questões éticas de primeiro impacto. Gostaria apenas de citar algumas, sem qualquer pretensão de exaustividade: i. estamos realmente dispostos a dar autonomia ideativa e decisória às máquinas? ii. é viável um caminho baseado em uma programação rígida das escolhas éticas que elas deverão executar? Mas, acima de tudo, responderia realmente às exigências de ordem éticas?; iii. quais características disposicionais devem ser atribuídas a uma inteligência artificial para evitar uma situação de conflitualidade de interesses? iv. deveremos ler como uma nova forma de escravismo o fato de dotar uma máquina de interesses e, depois, mantê-la em uma condição de cativeiro?; v. como regular as relações entre o ser humano e os robôs, conhecendo as atitudes certamente não pacíficas do ser humano?; vi. diante da evidente incapacidade do ser humano de tomar decisões interessadas, mas imparciais – é utópico o véu de ignorância de Rawls – devemos confiar aos robôs as decisões que dizem respeito ao futuro da humanidade?; vii. como devemos nos comportar em relação a uma entidade inteligente? Que limitações deveremos nos impor?;

viii. como evitar alianças entre grupos de humanos contra outros humanos, ambos equipados de robôs capazes de decisão?

Conclusão

Acredito que a grande maré de debates e reflexões que se desenvolvem dentro da filosofia pós-humanista diz respeito essencialmente a alguns problemas: 1. em primeiro lugar, há a queda daquela centralidade universalista do ser humano, caracterizadora do humanismo, que, se antes oferecia valores-bússola, hoje não é mais capaz de fazer isso; 2. a grande crise ecológica em curso, para além de todas as considerações fantasiosas e futuristas, coloca-nos diante de desafios nada fáceis de resolver, razão pela qual o ser humano parece em busca de um salvador e de uma salvação tecnomediada; 3. estamos submersos pelo desenvolvimento de uma pluralidade existencial que torna toda leitura onicompreensiva e baseada em dicotomias resolutivas que não respondem mais às exigências com as quais temos que lidar; 4. a transformação da própria téchne que se torna cada vez mais dimensional e é cada vez menos interpretável dentro da métrica conceitual do instrumento.

A tecnoética está precisamente dentro desses problemas.


Flavio Lazzarin

A TENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA

Acontecimentos e pessoas do passado – como Gaetano Bresci, Dietrich Bonhoeffer e Camilo Torres – revestem-se de atualidade neste tempo difícil e duro da história humana. A opinião é de Flavio Lazzarin, padre italiano fidei donum que atua na Diocese de Coroatá, no Maranhão, e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O textto foi publicado em Settimana News. A tradução é de Moisés Sbardelote /IHU

Nestes dias, vêm à minha mente, com uma certa insistência, acontecimentos e pessoas do passado, ligados a caminhos e reflexões da juventude, que – sabe-se lá por quê – têm a pretensão da atualidade neste tempo difícil e duro da história humana. São recordações que ecoam acompanhadas de uma canção:

'Alle grida strazianti e dolenti [Aos gritos angustiantes e dolorosos]

Di una folla che pan domandava, [De uma multidão que pedia pão]

Il feroce monarchico Bava [O feroz monarca Bava]

Gli affamati col piombo sfamò. [Os famintos com chumbo saciou]


Furon mille i caduti innocenti [Foram mil os que caíram inocentes]

Sotto il fuoco degli armati caini [Sob o fogo dos armados cains]

E al furor dei soldati assassini: [E ao furor dos soldados assassinos]

“Morte ai vili!”, la plebe gridò. [“Morte aos vis!”, a plebe gritou]' [1]

Essa canção foi composta após as manifestações populares de maio de 1898, em Milão, impiedosamente reprimidas pelo exército de Saboia, comandado pelo general Bava Beccaris. Os “motins do pão” somaram 127 mortos – falou-se até de 500 mortos –, assassinados pelos tiros de canhão dos soldados. Bava Beccaris foi condecorado pelo “rei bom” Umberto I com o título de Grande Oficial da Ordem Militar de Saboia. Em junho, o rei também o nomeou senador do Reino.

Isso, enquanto a Lombardia, a 40 anos da sua anexação ao Piemonte, após a Segunda Guerra da Independência (1859), passava fome, e, nesses 40 anos, mais de meio milhão de lombardos haviam migrado para os Estados Unidos, a Argentina e o Brasil.

Como não pensar, então, em Gaetano Bresci, que voltou dos Estados Unidos e, na noite de domingo, 29 de julho de 1900, pouco depois das 22h, em Monza, matou o rei da Itália Umberto I com três tiros de revólver.

Naqueles anos, sobre Ignacy Hryniewiecki, Sante Caserio e Gaetano Bresci, León Tolstói, anarquista cristão e pacifista, escreveu:

“Se Alexandre da Rússia e Umberto não mereceram a morte, muito menos a mereceram os milhares de caídos em Plevna ou em terras da Abissínia. Esses assassinatos são terríveis não pela sua crueldade ou injustiça, mas pela irracionalidade daqueles que os cometem. Se os assassinos de reis são levados a isso por um sentimento pessoal de indignação despertado pelos sofrimentos do povo em escravidão pelos quais Alexandre, Carnot e Umberto parecem ser responsáveis, ou por um sentimento pessoal de ofensa e vingança, então tais ações, por mais injustas que sejam, parecem compreensíveis” [2].

“O assassinato dos reis, como o recente assassinato de Umberto, é terrível, sim, mas não porque seja em si mesmo uma coisa cruel. O que é feito por ordem do rei e dos imperadores [...] e os massacres que ocorrem na guerra são incomparavelmente mais cruéis do que os assassinatos cometidos pelos anarquistas” [3].

Outro nome, então, vem às portas da memória: Dietrich Bonhoeffer, pastor e teólogo – o mestre da teologia do século XX! – da Igreja Confessante. Bonhoeffer enfrentou o nazismo desde o início, em 1933. Opôs-se em nome da fé em Jesus e na sua Palavra. E foi em nome do Evangelho, aceitando a culpa de ir contra a Lei, que ele se uniu ao grupo do almirante Canaris e participou, em 1944, do atentado fracassado contra a vida de Hitler. Acusado de alta traição, foi processado e condenado à morte. Foi executado em 9 de abril de 1945, no campo de concentração de Flössenburg.

A um companheiro de prisão italiano, que lhe perguntou como um pastor pôde participar de uma conspiração que envolveu a transgressão do mandamento “não matar”, ele respondeu: “Quando um louco joga seu carro sobre a calçada, eu não posso, como pastor, contentar-me em enterrar os mortos e consolar as famílias. Se estiver naquele lugar, eu devo pular e agarrar o motorista ao volante.”

Em 1965, 20 anos depois, o Pe. Milani diria: “Se não fosse pela Igreja Confessante, nós, cristãos, não teríamos mais o direito de olhar um judeu na cara”.

De facto, a Igreja Católica, nos anos do nazifascismo, revestiu-se de uma neutralidade não inocente, enquanto a Igreja Evangélica institucional fez uma aliança explícita com o nazismo. Somente a Igreja Confessante luterana, em oposição à Igreja oficial, decidiu enfrentar os nazistas. E, em 1945, a Igreja Confessante, a Igreja de Bonhoeffer, fez a famosa Declaração de Stuttgart:

“A Igreja [...] ficou muda quando deveria ter gritado, porque o sangue dos inocentes gritava aos céus (...) Ela ficou olhando quando, sob a cobertura do nome de Cristo, cometeram-se violências e injustiças (...) A Igreja confessa ter assistido ao uso arbitrário da força brutal, aos sofrimentos físicos e espirituais de inúmeros inocentes, à opressão, ao ódio, ao assassinato sem levantar sua própria voz em seu favor, sem ter encontrado meios para correr em sua ajuda. Ela se tornou culpada da vida dos irmãos mais fracos e indefesos de Jesus Cristo (os judeus) (...) Ela o confessa (...) Ela não recriminou o caluniador pela sua injustiça e abandonou o caluniado à sua própria sorte”.

Por fim, há ainda um nome, entre tantos, que ocupa espaço na minha memória: o Pe. Camilo Torres. Assim Camilo se definia:

“Eu sou um revolucionário, como colombiano, como sociólogo, como cristão e como padre. Como colombiano, porque não posso me apartar das lutas do meu povo. Como sociólogo, porque, graças à minha compreensão científica da realidade, cheguei à convicção de que soluções técnicas e eficazes são inalcançáveis sem uma revolução. Como cristão, porque a essência do cristianismo é o amor ao próximo e somente por meio de uma revolução é que se pode obter o bem da maioria. Como padre, porque dedicar-se ao próximo, como exige a revolução, é um requisito indispensável do amor fraterno para celebrar a Eucaristia” [4].

No dia 15 de fevereiro de 1966, em San Vicente de Chucurí, departamento de Santander, na Colômbia, Camilo Torres caiu em combate na sua primeira acção de guerrilha.

Notas:

1. Vettori Giuseppe. Canzoni italiane di protesta 1794 – 1974. Roma: Newton Compton, 1975.

2. L. Tolstói. “Non uccidere”. A primeira edição foi a dos Listkì svobodnago slova, n. 17, 1900. Na Rússia, “Não matarás” foi publicado em brochura pela editora Obnovlenie, em Petersburgo, em 1906. As citações de “Não matarás” seguem a tradução [ao italiano] de Sibaldi em L. Tolstói, “Perché la gente si droga? E altri saggi su società, politica, religione”, editados por Sibaldi, Milão: Oscar Mondadori, 1988.

3. Ibid.

Mariana Mazzucato e Robert Skidelsky

ECONOMIA DO COMUM, URGÊNCIA MÁXIMA

"Crise, pobreza e enriquecimento especulativo alastram-se no Ocidente. O dogma da 'superioridade dos mercados' fracassou. Exemplos históricos demonstram: é possível reorientar a produção para o social, o ambiente e os empregos dignos", escrevem Mariana Mazzucato, economista italiana, professora da cátedra RM Phillips de Ciência e Tecnologia da Universidade de Sussex, e Robert Skidelsky, historiador econômico inglês, professor emérito de economia política na Warwick University, e autor de uma biografia em três volumes de John Maynard Keynes e de "Keynes: The Return of the Master", em artigo publicado por Outras Palavras. A tradução é de Simone Paz e Gabriela Leite /IHU

A pandemia de COVID-19 teve um impacto imenso, imprevisível e duradouro nas economias do mundo inteiro. Como resultado, os governos tiveram a oportunidade — e a obrigação — de repensar o papel e o propósito da política fiscal.

Quanto piores os fundamentos e previsões econômicas, mais misteriosos tornam-se os resultados do mercado de ações nos EUA. Em uma época em que as notícias reais sugerem que os preços das ações deveriam estar caindo, e não atingindo altas recordes, explicações baseadas na psicologia da multidão, na viralização das ideias e na dinâmica das epidemias narrativas podem trazer alguma luz.

Faz tempo que precisamos de uma nova abordagem. Desde a era da primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e do presidente dos EUA Ronald Reagan, a ortodoxia econômica predominante tem negado a função de investimento potencial do Estado e fez do equilíbrio do orçamento um fim em si mesmo. Essa indiferença tanto em relação à direção, quanto ao nível de atividade econômica, tornou a crise de 2008-09 quase inevitável, e a subsequente corrida para a “austeridade” enfraqueceu a recuperação. Agora, o colapso simultâneo da oferta e da demanda, após a chegada da covid-19, tornou a ortodoxia neoliberal duplamente insustentável.

Há, no entanto, poucas evidências de que qualquer novo pensamento fiscal esteja em andamento. É verdade que o financiamento de emergência está sendo implementado. Mas, a menos que esse gasto seja estruturado, o resultado pós-2008 se repetirá, com a liquidez elevando os preços dos ativos nos mercados financeiros, mas fazendo pouco para ajudar a economia real. No Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson pode aspirar ao manto do presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt. Mas seu anunciado “New Deal” não chega nem perto da escala ou ambição do original de Roosevelt. Nenhum dos gastos do governo anunciados até agora vai além de um “trabalho de ambulância”.

O que essa resposta emergencial colocou em evidência foi o imenso poder fiscal do Estado, que, quando as circunstâncias exigem, é perfeitamente capaz de manter as famílias abastecidas, ao longo de uma paralisação de meses da iniciativa privada. Dessa forma, a meta nos próximos meses e anos não deve ser descartar a economia subsidiada o mais rápido possível, mas sim transformá-la em uma nova parceria duradoura entre o Estado, a iniciativa privada e os trabalhadores.

Uma nova linha mínima

Assim como a saída da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial exigiu colaboração política e a adoção de ideias que, nas décadas de 1920 e 1930, eram consideradas radicais e “anti capitalistas”, a recuperação pós-pandemia deve ir além do mero gerenciamento de crises. É hora de abraçar a capacidade única e profunda que o Estado tem para conduzir a vida econômica na defesa do bem comum.

Afinal, não faltam desafios de longo prazo que exigirão liderança política proativa e investimento público voltado para essa missão. Diante de uma onda de calor histórica no Ártico, a necessidade de reorientar a economia para um crescimento limpo e sustentável nunca foi tão urgente ou óbvia. E embora os apelos por um “Green New Deal” na escala da transformação socioe-conômica na era da 2ª Grande Guerra já tenham ganhado força, a crise do COVID-19 mostrou que “os negócios como de costume” não são adequados para isso. Quando chega a hora, os Estados — e não as empresas privadas — é que são os principais atores econômicos.

As dimensões socioeconômicas e climáticas da crise atual estão intimamente relacionadas. O legado das políticas de laissez-faire acabou deixando setores-chave e grandes grupos da força de trabalho subempregados e subvalorizados de maneira crônica. Como o Comitê de Mudanças Climáticas do Reino Unido mostrou, a atual crise econômica é, portanto, o momento perfeito para acelerar “a transição para uma economia mais limpa, livre de emissões, e fortalecer a resiliência do país frente aos impactos das mudanças climáticas.”

Mas qualquer versão atualizada do New Deal deve incluir uma nova constituição fiscal. Caso contrário, não teremos nenhuma garantia contra a retomada da ortodoxia financeira quando a emergência atual for considerada encerrada.

O Estado deveria assumir um papel permanente e contínuo de guiar, estabilizar e — se necessário — transformar a vida econômica. Intervir apenas em momentos difíceis para consertar o sistema só garante outra crise. Do lado da oferta, deve haver mais atenção em direcionar a produção para as necessidades de desenvolvimento de longo prazo: para uma economia mais sustentável, inovadora e inclusiva. E do lado da demanda, é hora de reafirmarmos o compromisso keynesiano com o pleno emprego, estabelecendo um esquema de garantia de emprego para assegurar que o capital humano não seja desperdiçado nem corroído durante a transformação econômica que se aproxima.

Mais especificamente, um New Deal modernizado significa prestar atenção tanto à direção do crescimento quanto à sua taxa. Significa inclinar o campo de jogo em uma direção mais verde, que exige não apenas projetos do tipo “shovel-ready” ou pronta-entrega em infraestrutura limpa, energia renovável e outras formas de descarbonização, mas também demanda uma visão de como projetar e coordenar projetos como parte de um novo caminho de crescimento sustentável. Precisamos, também, de novos incentivos para direcionar o investimento privado na direção certa. Impostos, regulamentos e outras políticas públicas devem estar alinhados para promover o planejamento de longo prazo e reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEE) em toda a economia. Essa abordagem — da gestão econômica voltada para uma missão — renderia um maior retorno para o investimento público, tanto diminuindo o multiplicador negativo nas recessões de qualquer negócio, quanto aumentando o multiplicador positivo de qualquer recuperação nos negócios.

O Estado oco

Como John Maynard Keynes observou em meados da década de 1930, “A dificuldade reside não nas novas ideias, mas em escapar das antigas, que se ramificam em todos os cantos de nossas mentes”. Hoje, o principal fracasso do modelo econômico predominante — particularmente nos Estados Unidos e no Reino Unido — tem sido o descaso com os bens públicos. Embora seja essencial para o funcionamento adequado da economia, o setor privado carece de qualquer incentivo para fornecê-los. É por isso que Adam Smith argumentou em A Riqueza das Nações que o Estado tem o dever de fornecer a infraestrutura da qual depende a economia de mercado. E à medida que a lista de bens públicos se expande para incluir o acesso a dados e tecnologias digitais, precisamos nos tornar mais ambiciosos em fornecer o que os cidadãos precisam para prosperar.

A ortodoxia contemporânea, no entanto, subordina esse dever ao de equilibrar o orçamento do governo. A responsabilidade de desenvolver os recursos reais da economia é simplesmente abandonada em nome de um imperativo financeiro que, na verdade, só se aplica às famílias. Embora as famílias precisem equilibrar os orçamentos ao longo do tempo, os governos deveriam criar orçamentos para equilibrar a economia, garantindo a utilização total da capacidade produtiva. É crucial, para ressuscitar a noção de bens públicos, garantir que eles não sejam meramente “correções” para falhas de mercado, mas sim elementos centrais na interação entre governo e empresa privada. Uma lógica estreita de manutenção de mercado deve abrir espaço para uma lógica de criação e modelagem de mercado mais proativa.

A ortodoxia predominante repousa em duas presunções supostamente axiomáticas: que o investimento público é uma forma de desperdício e, portanto, deve ser minimizado; e que as economias de mercado têm uma tendência espontânea para alcançar o pleno emprego (definido como a taxa “natural” de desemprego). A partir desses axiomas, conclui-se que somente quando os mercados não podem alocar recursos de forma eficiente é que o investimento público deve ser usado para suavizar “atritos”.

A crise financeira de 2008-09 já expôs a fragilidade desse modelo. No Reino Unido, entre 1975 e 2000, o investimento público bruto como parcela do PIB caiu de 8,9% para 1,7%. Como resultado, mais gastos com investimentos foram direcionados à especulação, onde não só foram desperdiçados, mas provocaram instabilidade, contribuindo para uma sequência de crises financeiras.

A crise do covid-19 tornou as falhas do modelo ortodoxo ainda mais óbvias, ao ressaltar a grave deficiência de bens públicos, desde a infraestrutura básica de saúde até equipamentos de proteção individual. A ortodoxia prescreveu a privatização, a proteção de patentes e a terceirização de funções críticas do governo em quase todos os domínios relevantes, desde pesquisa e desenvolvimento em medicina e tecnologia até transporte, saúde e educação. Depois de anos de cortes de gastos, muitos governos ocidentais estavam completamente despreparados para administrar um choque como o que ocorreu este ano.

Assim que a covid-19 surgiu, também surgiram os sinais da putrefacção, desde as críticas lacunas nas cadeias de abastecimento até a pouca e inadequada capacidade do Estado. Em todo o mundo ocidental, os governos reuniram tudo o que tinham para responder à pandemia, mas foi tarde demais. Construir capacidade estatal suficiente requer anos de investimento constante e ponderado, não apenas “dinheiro de helicóptero” despejado na economia em resposta a uma emergência. Além disso, essa oferta insuficiente é produto da falta de demanda. As economias têm operado bem abaixo da capacidade total desde a crise de 2008. Em 2018, o Reino Unido pode ter tido uma taxa de desemprego de “manchete” — de 4,2% — mas sua taxa de subemprego, que inclui aqueles que trabalham em tempo parcial e que são incapazes de garantir empregos de jornada completa, estava mais perto de 8% (e esse número exclui aqueles que foram forçados a trabalhar abaixo de seu nível de habilidade).

Aprendemos a lição?

Mas como os governos permaneceram mais em dívida com a contabilidade financeira do que com a de recursos reais, durante a Grande Recessão, eles perderam a oportunidade de começar a mudar a atividade econômica numa direção mais sustentável e inclusiva. Pior, muitos abandonaram as medidas de estímulo ao crescimento, inibindo a consolidação fiscal. No caso do Reino Unido, Simon Wren-Lewis, da Universidade de Oxford, estima que a austeridade tenha atrasado a recuperação da economia por até três anos, exatamente como o keynesianismo elementar teria previsto. E embora a política monetária tenha permanecido expansiva, ela não compensou a política fiscal contracionista do país.

Em sua defesa, o Banco da Inglaterra alegou que a situação teria sido ainda pior se eles não tivessem bombeado recursos como fizeram. E ainda, nessa busca por comprar ativos, os legisladores apenas colocavam dinheiro “novo” nas mãos dos detentores de ativos existentes, que tinham menos probabilidade de gastá-lo. A menos que a criação de dinheiro esteja ligada à criação de oportunidades na economia real, a maior parte da liquidez fornecida pelo banco central acabará no setor financeiro — exatamente como aconteceu depois de 2008.

As lições da última crise são evidentes: a marginalização da função de investimento estatal privou os legisladores das ferramentas necessárias para lidar com um evento inesperado ou estabilizar a economia, quanto mais posicioná-la para um crescimento sustentado. O investimento público é essencial não apenas para “consertar” as falhas do mercado, mas também para impulsionar os gastos de capital intensivo e de alto risco necessários para a inovação — e, portanto, para o próprio desenvolvimento de capital. Pode ser alavancado tanto desde o lado da oferta — com investimentos em projetos transformadores, que apresentam riscos grandes demais para uma empresa privada — quanto do lado da demanda, por meio de políticas de compras públicas.

Segundo o Consenso de Washington, que é neoliberal, são essas funções estatais que foram amplamente “terceirizadas” para os mercados — voluntariamente, no caso dos países desenvolvidos, e como uma condição de apoio financeiro nos países em desenvolvimento (que foram então renomeados como “mercados emergentes”). A desregulamentação do setor financeiro e do mercado de trabalho, a privatização de empresas estatais e a austeridade fiscal foram as prescrições de uma fórmula supostamente universal que combina micro e macroeconomia e deve ser aplicada independentemente do estágio de desenvolvimento de um país.

A economia neoliberal segue a “lei” do economista dos inícios do século XIX, Jean-Baptiste Say, de que a oferta cria sua própria demanda. A implicação é que, ao eliminar a influência política indevida sobre os incentivos econômicos, o mercado garantirá a criação de valor ideal. A política, portanto, torna-se uma corrida para diminuir o papel de modelagem do mercado do Estado, enquanto ignora amplamente a relação do mundo real entre oferta e demanda — particularmente a escassez de oferta e de demanda.

Mas a isenção neoliberal também se baseou seletivamente na “economia do bem-estar”, que atribui um papel aos governos para consertar as coisas quando os resultados se desviam do ideal do mercado perfeito. Essa referência analítica, combinada com o medo do inevitável “fracasso do governo”, garantiu que a recuperação do mercado nunca chegasse ao nível de renovação do mercado. É o mercado, e não o Estado, quem sempre recebeu o benefício da dúvida.

Mercados e missão

Agora que o COVID-19 expôs os danos causados pelo paradigma anterior, é hora de começar a mapear uma nova era de investimento público para remodelar nosso cenário tecnológico, produtivo e social. O novo modelo deveria abraçar a compreensão de que nossas economias estão sempre evoluindo em alguma direção, em vez de apenas se expandir no vácuo. Deixadas por conta própria, as economias de mercado tendem a favorecer atividades de curto prazo ou de rentismo — daí as tendências radicais de financeirização e desindustrialização testemunhadas nas últimas quatro décadas.

Em contraposição, nas economias de mercado com governos voltados para alguma missão, os gastos públicos e a formulação de políticas direcionarão as atividades para a realização de metas socialmente desejáveis, e não só para o mero crescimento a seu próprio favor. Para além dos Estados Unidos da era do New Deal, um bom exemplo real do novo modelo é a Nova Zelândia, cujo governo adotou um “orçamento de bem-estar” para alinhar as decisões de gastos públicos com objetivos mais amplos.

Uma abordagem orientada por essa missão também permite uma nova forma de estímulo fiscal direcionado. O objetivo é começar com um desafio de grande escala, como a mudança climática, e dividi-lo em objetivos políticos concretos, como alcançar emissões zero em uma determinada região, em uma data específica. Com as metas estabelecidas, toda a força dos subsídios do governo, empréstimos e contratos de aquisição podem ser empregados para alavancar o potencial combinado dos setores público, privado e não governamental.

Para evitar objeções previsíveis, essa abordagem orientada para a missão não envolve escolher vencedores e perdedores em termos de setores, tecnologias ou empresas; em vez disso, a ideia é escolher problemas específicos e permitir que soluções surjam por meio de um processo ascendente de experimentação e inovação em todos os setores. O mesmo processo também criará novas oportunidades de emprego. Alcançar a neutralidade de carbono em uma determinada região, por exemplo, exigiria novas formas de colaboração entre energia, transporte, materiais, o digital, a tecnologia, a infraestrutura e outros setores, bem como novos tipos de empregos para reaproveitamento, reutilização e reciclagem de recursos e capital existentes.

A criação de empregos, e o lado da demanda de maneira mais geral, é onde o segundo pilar da nova constituição fiscal entra em ação. Uma transição econômica suave exigirá um programa de empregos no setor público que busque gerar uma base tributária sustentável por meio do “crowding in” [efeitos dos gastos públicos sobre o investimento privado] da atividade econômica que, de outra maneira, a crise teria deixado ociosa. Na verdade, o pleno emprego genuíno deve ser considerado um bem público.

Afinal, uma pessoa empregada aumenta não apenas sua própria renda, mas também a da comunidade em geral, aumentando suas compras. Quando as pessoas estão em subempregos ou desempregadas, têm menos renda para impulsionar a demanda na economia, deixando todos em situação pior.

Em 1948, o (futuro) economista ganhador do Prêmio Nobel Paul Samuelson apontou que “o sistema fiscal moderno tem ótimas propriedades de estabilização automática”. Quando a economia desacelera, o déficit orçamentário aumenta automaticamente; quando a economia se recupera, o déficit cai automaticamente. Para preservar essa estabilidade inerente, ele argumentou que “nenhuma atitude deve ser tomada para equilibrar o orçamento em uma desaceleração”. Mas, como o próprio Samuelson observou, “um estabilizador embutido atua para reduzir parte de qualquer flutuação na economia, mas não elimina 100% da perturbação. Ele deixa o resto do distúrbio para ação discricionária fiscal e monetária resolverem.”

O mercado radical

No caso da recuperação de hoje, tal ação discricionária deveria incluir um programa de emprego público (PEP), nos moldes que o Levy Economics Institute, com sede nos EUA, descreveu. Isso constituiria um estabilizador anticíclico muito mais poderoso que o sistema descrito por Samuelson, mas também representaria uma continuação das políticas inauguradas pelo New Deal de Roosevelt.

Entre 1935 e 1943, a Administração de Progresso de Obras dos EUA (WPA, na sigla em inglês) empregou 8,5 milhões de norte-americanos e ofereceu quase todo tipo de trabalho imaginável, desde construção de infraestrutura e extermínio de pragas até a produção de livros em braille e apresentações nas maiores sinfonias do mundo. Da mesma forma, o Corpo de Conservação Civil (CCC) foi projetado para oferecer trabalho a cerca de um milhão de jovens desempregados em projetos que incluíam “a prevenção de incêndios florestais, inundações e erosão do solo, controle de pragas e doenças em plantas, construção, manutenção ou reparo de vias, trilhas e saídas de incêndio nos parques nacionais e florestas nacionais, e outros trabalhos … que o presidente possa determinar como desejáveis. ”

Em nosso próprio esboço para um PEP, o governo do Reino Unido garantiria emprego a uma valor/hora fixo (não inferior ao salário mínimo nacional) para qualquer candidato a emprego ou adulto em idade produtiva que não encontre vagas no setor privado. Se concentraria na criação de empregos em áreas cruciais para conduzir a economia em direção a uma transição verde e forneceria programas de treinamento para que os trabalhadores do PEP pudessem obter ou manter suas de habilidades, preparando-os assim para empregos no setor privado.

Além disso, um PEP robusto ofereceria quatro vantagens importantes sobre o status quo. Em primeiro lugar, criaria um estoque regulador do mercado de trabalho que se expande e se contrai automaticamente com o ciclo de negócios, limitando variações discricionárias nas despesas. Portanto, apoiaria a demanda agregada e, ao mesmo tempo, protegeria contra a possibilidade de gastos públicos inadequados (devido a previsões ruins ou interferência política indevida).

Em segundo lugar, um PEP manteria a empregabilidade dos trabalhadores melhor do que um seguro-desemprego, e poderia ser prontamente acoplado ao treinamento no local de trabalho – um fator importante na recuperação econômica e no crescimento a longo prazo.

Em terceiro lugar, esses funcionários do PEP seriam pagos a uma taxa fixa, estabelecendo assim um piso para os salários do setor privado. Se o salário PEP fosse definido pelo salário mínimo nacional, não haveria necessidade de legislação de salário mínimo e todos os custos de conformidade decorrentes. E, como Pavlina R. Tcherneva, do Levy Economics Institute, argumenta, se o salário do PEP fosse fixado acima do salário mínimo, teria até um efeito distributivo benéfico.

Por fim, o PEP pode ser usado para influenciar a estrutura geral de empregos, direcionando talentos e recursos para os objetivos previstos no Green New Deal.

O paradigma do Programa de Emprego Público

Num esboço para o Reino Unido, o programa seria financiado nacionalmente, mas seria administrado localmente por várias agências: governos, ONGs e empresas sociais. Cada um teria a tarefa de criar oportunidades de emprego “no ponto” onde fossem mais necessárias (cuidado ambiental, cívico e humano), atendendo às necessidades da comunidade com pessoas desempregadas ou subempregadas.

Haverá empecilhos, é claro; e como todas as novas ideias, será preciso romper a barreira do pensamento arraigado. A noção de que as economias tendem naturalmente ao pleno emprego é um tipo de ortodoxia que os eventos históricos já deveriam ter provado totalmente errada. No entanto, permanece enraizada nas condições cada vez mais duras exigidas para o recebimento de benefícios de desemprego, com a suposição implícita de que o problema é sempre a relutância dos desempregados em trabalhar, e não a escassez de empregos. Em qualquer caso, um PEP superaria esses debates morais proporcionando trabalho ou treinamento a todos os que estivessem dispostos e capazes, aliviando assim a necessidade dos benefícios de desemprego.

Um PEP é, para concluir, uma ideia inerentemente biosustentável, porque aborda duas formas cruciais de negligência econômica e devastação na economia: a do capital natural e humano. Portanto, não deve ser visto apenas como um programa de consumo anticíclico, mas também como ingrediente essencial no que a especialista em tecnologia Carlota Perez chama de “crescimento verde inteligente”.

A economia carece de capacidade produtiva atualizada, enquanto uma grande parte de sua força de trabalho permanece subempregada e mal remunerada. Mas com políticas salariais inclusivas e demanda agregada mais forte, as empresas terão de investir em equipamentos mais inteligentes. Espremer os trabalhadores precários não será mais uma opção viável para sustentar os lucros corporativos.

A revolução da tecnologia da informação e os principais avanços em energia renovável dos últimos anos mostraram que a inovação gera novos produtos, serviços, materiais e modos de vida — e todos geram empregos. A ortodoxia neoliberal ignorou a necessidade de transformar o antigo capital em novo, e por isso, agora estamos econômica e socialmente mais pobres.

É hora de reiniciar os ciclos virtuosos de forte demanda e alto investimento, com foco no crescimento verde e alinhamento adequado do lado da oferta e da demanda da economia. Uma nova constituição fiscal, garantida por meio de um PEP, fornece a base. Não devemos desperdiçar esta chance de reformar as economias para o bem das pessoas e do planeta.

Yuk Hui e a terceira via

FRAGMENTAR, OCUPAR E RESISTIR

O engenheiro e filósofo Yuk Hui propõe uma terceira via para se distanciar das impiedosas formas e valores neoliberais do Vale do Silício, mas também do pobrismo tecnológico dos nostálgicos do século XX. A fórmula não é retroceder, nem acelerar as tendências tech. O caminho passaria pelo redirecionamento das irrefreáveis invenções informáticas, respeitando cosmotécnicas particulares que permitam maior contemplação do ambiente humano e não humano. O artigo é de Alejandro Galliano, professor da Universidade de Buenos Aires e colaborador das revistas Crisis, La Vanguardia e Panamá, publicado por Télam. A tradução é do Cepat /IHU

Em 2020, a digitalização da vida se acelera. E em seu rastro ativa debates antigos e modernos. Um deles é o que opõe o universal ao particular, hoje traduzido como o global contra o local. Esta discussão, velha como o Ocidente, cruza com outra que confronta a pastoral tecnocrática com o novo ludismo. O resultado é um campo de batalha dividido entre os defensores do capitalismo global, suas instituições e valores made in Silicon Valley versus a reação localista, nostálgica e tecnofóbica. Neste campo enlaçado, a filosofia de Yuk Hui entra como uma navalha propondo um particularismo tecnológico.

No início da pandemia, em meio ao festival de interpretações que convocou figurões do pensamento ocidental, destacou-se um misterioso ensaio intitulado “Cem anos de crise”, um texto mostrengo que parecia querer dizer mais do que cabia em suas 5.300 palavras. Seu autor, Yuk Hui, um engenheiro informático honconguês e professor de filosofia em Weimar, falava de uma “imunologia global” e uma “guerra entre infoesferas”, ponderava a vigilância digital asiática diante da “eugenia libertária” ocidental e, sobretudo, propunha “recuperar a tecnodiversidade”.

Os ensaios de Hui reunidos em “Fragmentar el futuro” (Caja Negra, 2020) são uma oportunidade para desvendar aquele mistério e se aprofundar em sua proposta.

A recursividade

A dicotomia entre o mecânico e o orgânico está inserida na filosofia moderna. Serviu para opor o artificial ao natural, o formal ao autêntico, o linear ao integral, a sociedade de indivíduos regulados por leis à comunidade de membros ordenados por costumes e, essencialmente, as máquinas à natureza. A cibernética dissolve essa dicotomia. O princípio que a domina não é a lógica linear de uma engrenagem impulsionando a outro, mas a recursividade: a operação não linear que volta constantemente sobre si, retroalimentando-se de informação para se conhecer melhor.

Assim funciona a correção automática do processador de texto com o qual se escreve esta nota. Assim funciona meu braço ao se esticar em busca do mouse, recalculando distâncias com a informação de meus olhos. Assim funciona um mosquito. Assim funciona o planeta Terra segundo James Lovelock: um sistema integrado de elementos que mantém seu desequilíbrio químico para evitar a entropia. E assim funciona a alma humana: para Aristóteles, o noeîn se volta constantemente sobre si para se reexaminar. Mais tarde, os romanos traduziram noeîn como intellegere.

A recursividade permite ao algoritmo absorver a contingência, lidar com acidentes que uma máquina travada com um parafuso solto não poderia resolver. Assim abandona a mecânica e emerge a inteligência artificial. A máquina cibernética não é mecânica, é orgânica, assim como a natureza. E uma civilização, conclui Hui, é uma relação íntima e cúmplice entre os seres humanos e seu meio.

A cibernética é o princípio que pode salvar o planeta, se conseguirmos integrar, mediante sistemas recursivos, máquinas e humanos a seu meio. Dessa maneira, a cibernética superaria a relação utilitária que a técnica tem com a natureza como mero estoque de recursos, conforme a denunciou Heidegger, para dar lugar a uma comunidade em que cada um seja metade indivíduo animal, metade ambiente (ecológico, tecnológico, simbólico).

Mas a cibernética também ameaça acabar integrando tudo: os dados já não são o dado, mas um produto da própria técnica. A inteligência (que sempre incorporou a matéria mediante sua matematização, para depois voltar sobre ela em forma de ferramenta) hoje se emancipa da matéria humana e ameaça nos substituir. Como um vírus hegeliano, a cibernética avança anulando dualismos, reduzindo tudo a 1, comprimindo distâncias, minando o local. “Um dos grandes fracassos do século XX – diz Hui – foi a incapacidade de articular a relação entre o local e a tecnologia”.

A crise civilizatória, da qual a Covid é apenas um sintoma, se explica por esta incapacidade: as reações contra a globalização perfilam obscurantismos no seio do Ocidente, a lógica computacional (entender o mundo como o computável) arrasa os recursos naturais sob um verniz de neutralidade e despolitização, a tecnologia escapa do controle humano e substitui a filosofia mediante a recursividade.

A saída para Hui é pensar para além da totalização cibernética: emancipar mais uma vez a inteligência, mas neste momento de sua concepção uniforme; incorporar ao não racional, o não computável; ressituar as máquinas orgânicas dentro da vida, da estética, de “certa mística”. Do simbólico, enfim. Pensar uma nova ecologia das máquinas. Para isso, será necessário voltar ao local, mas trazendo para casa todo aquele fulgor digital: “para superar a Modernidade sem recair na guerra e o fascismo é necessário se reapropriar da tecnologia moderna através do ajuste novo de uma cosmotécnica”.

A cosmotécnica

Já é um lugar comum dizer que a globalização morreu em 11 de setembro de 2001. Para a visão conservadora, que vai do venerável Henry Kissinger aos neorreacionários (ramo obscuro da alt-right capitaneada por Nick Land e Peter Thiel), o que entrou em crise é o projeto tricentenário do Iluminismo.

Hui entra em debate com essa visão. A crise do século XXI não é a morte do Iluminismo, mas sua coroação: um processo de globalização tecnológica orientado pelo Ocidente que culmina quando essas tecnológicas são apropriadas pelo Oriente. “Hoje, a globalização continua, mas sua consciência feliz foi avantajada pelas condições materiais”. O Ocidente perde o monopólio de seu patrimônio técnico, a aldeia global se rompe, a Inteligência Artificial, nova fronteira tecnológica, torna-se um campo de batalha.

Mas a crise não se resolve com uma mera passagem da hegemonia global para o Leste. A homogeneização tecnológica do mundo moderno não só arrasou com a biodiversidade, mas também sepultou as diversas cosmologias que a suportavam. Até aqui, o lamento de Hui não se distancia de certo pachamamismo: o relativismo antropológico que entende a “modernidade ocidental” como uma cosmologia mais a par de outras como o animismo ou o totemismo.

Contudo, a restauração de “naturezas indígenas” não é o suficiente para Hui, pois carece de uma reflexão sobre as tecnologias. A tecnologia é o suporte do pensamento, de cada tipo de pensamento, a membrana que regula os fluxos entre o exterior e o interior de cada cultura: “A tecnologia não é um universal tecnológico, é possibilidade e restringida por cosmologias particulares”.

Recuperar a diversidade biológica e cultural requer recuperar a diversidade tecnológica, reconstituir cosmotécnicas, isto é, a unidade do cosmos e a moral por meio de atividades técnicas. As tendências são universais, mas os fatos técnicos e o cosmos que os envolve são particulares. É hora de voltar para casa, diz Hui, o mundo acabou.

Qual é a tarefa política deste retorno ao local? Seria possível resumir como um redirecionamento do aceleracionismo. Velocidade não é aceleração. Esta última requer uma direção. Acelerar a tecnologia para superar o neoliberalismo não é intensificar a velocidade do dado, mas o redirecionar, bifurcar o futuro para múltiplas cosmotécnicas, mais orgânicas, mais respeitosas de seu ambiente humano e não humano.

Em diversas passagens de seus ensaios, assim como em seu livro “The Question Concerning Technology in China”, Hui menciona o caso da cosmotécnica chinesa: sua propensão à inteligência intuitiva, seu pensamento taoísta não trágico, seu acesso à verdade sem Ser, um cosmos que tornou possível outras técnicas que a globalização obscureceu e que Hui acredita ser possível recuperar. Trata-se, diz, somente de uma a mais entre outras cosmotécnicas. A pergunta latino-americana é se temos uma cosmotécnica e se a China nos permitirá recuperá-la.

Made in Argentina

Não é um dado menor a nacionalidade de Hui. A China não é um país, é uma civilização, assim como são Rússia e Índia. E os Estados Unidos também. Circuitos semifechados de insumos culturais com barreiras eficazes para filtrar inteligentemente os recursos externos. A América Latina, ao contrário, talvez com a exceção brasileira, é um mosaico de mestiçagens, antropofagias e ideias fora de lugar, enclaves modernos e consumos importados. Qual é a cosmotécnica argentina? A instalação de Biogénesis Bagó, em Garín, ou o drama da crotoxina? O germoplasma de “soja Maradona” ou o Projeto Huemul?

Não é por acaso também que os insumos filosóficos de Hui, para além de pensadores da técnica como Norbert Wiener ou Gilbert Simondon, pertençam a essa tradição de transcendentalismo alemão que vai de Herder a Heidegger. A ênfase de Hui na particularidade e na organicidade o coloca na tradição romântica, seu sujeito é um povo com um espírito sobre uma terra. Também é alemão seu projeto de introduzir a tecnologia nessa sensibilidade. Em suas páginas, aparecem os nomes de Schmitt e Spengler, representantes do que Jeffrey Herf chamou de “modernismo reacionário”.

Hui não é um reacionário: “Pessoalmente, não sou um tradicionalista, mas valorizo a tradição e continuo acreditando que o fracasso de todas as revoluções comunistas se deveu à incapacidade de respeitar a tradição e de se nutrir de suas forças”. No entanto, seu convite ao local, sua rejeição ao humanismo abstrato da ONU, a partir de um império em amadurecimento abertamente antidemocrático, admite uma leitura nacionalista, quando não imperialista, para além da vontade de seu autor.

Não seria a primeira vez que a China reverte um discurso descolonizador. A seleção eminentemente política da edição argentina de seus ensaios (em que, por exemplo, faltam seus escritos sobre o objeto digital ou a individuação nas redes sociais) tem o mérito de destacar este risco.

Então, como ler Hui a partir de uma potencial província desse novo império? Após 300 anos de globalização monotecnológica, a reconstrução de cosmotécnicas particulares requererá um pouco de tradição e bastante de invenção. As tradições sempre nascem do presente. Nessa “invenção da tradição cosmotécnica”, as hibridações serão uma ferramenta e nossa condição mestiça pode funcionar como circuito e como barreiras. Inclusive diante da nova monotécnica chinesa: Huawei já apresentou Harmony, seu próprio sistema operacional, com sua constelação de aplicativos: Huawei Mobile Services.

Qual a contribuição da Argentina à mestiçagem cosmotécnica regional? Nosso país padece de uma espécie de provincianismo cosmopolita: vive buscando referências internacionais, mas as achata em um sentido pateticamente paroquial. Assim, nem conseguimos desenvolver um “pensamento nacional”, nem “nos abrimos ao mundo” para além de nossos narizes. Esse circuito cultural deficitário pode se enriquecer quando chegam a nosso porto vozes novas, propondo pensar localmente a agenda global.

Entre as conversas de [Aleksander] Dugin na CGT [Confederação Geral do Trabalho] e o desenvolvimentismo de porcarias, pensadores como Benjamin Bratton, Mark Alizart, Mercedes Bunz, Evgeny Morozov e o próprio Hui (um autêntico híbrido filosófico diante do remanejado e já complacente Byung-Chul Han) nos permitem acessar o instrumental do capitalismo 4.0 por fora de seu decadente marco neoliberal, como ponto de partida para um nacionalismo econômico não protecionista, uma política ambiental não decrescentista e uma economia popular não ludita.

Trata-se de politizar e digitalizar o “escritor argentino e a tradição”. Trata-se, enfim, de fragmentar o futuro para poder ocupá-lo.

Edição 164, janeiro 2021

Pino Piva SJ

O CONVIDADO INESPERADO”: IGREJA E HOMOSSEXUALIDADE: QUAL PASTORAL?

Publicamos aqui o prefácio escrito pelo padre jesuíta italiano Pino Piva ao livro “L’ospite inatteso. L’omosessualità in famiglia” [O convidado inesperado. A homossexualidade em família], de Alessandra Bialetti, publicado pela editora Tenda di Gionata, 2021. O Pe. Piva atua no acompanhamento espiritual e na “Spiritualità dalle Frontiere” [Espiritualidade a partir das fronteiras]. O prefácio foi publicado em Gionata. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IIHU

Devo confessar que a primeira pergunta que me veio à mente depois de ler esta obra – importante – de Alessandra Bialetti foi: por que o prefácio foi pedido a um padre? No texto, não há nenhuma referência ao papel da comunidade eclesial, da Igreja, que, de fato, é citada apenas uma vez e, no restante, está completamente ausente.

Mas, conhecendo Alessandra e pela amizade que nos une, logo intuí a resposta: uma tese deste tipo, escrita por uma pessoa que tem uma explícita vida de fé e de compromisso eclesial, não pode deixar de interpelar também a fé e comunidade cristã!

Mas precisamente aí está o problema, e talvez Alessandra tenha pensado bem, simpaticamente, em “descarregá-lo” sobre mim. O problema da relação entre a Igreja e a homossexualidade: qual pastoral? Qual acompanhamento familiar? Qual anúncio evangélico aos filhos LGBT e aos seus genitores?

De facto, a Igreja Católica tem um problema não resolvido com a homossexualidade. Mesmo sabendo que entre os fiéis das nossas paróquias, assim como no clero, há muitas pessoas que vivem essa condição, de fato é como se na Igreja as pessoas homossexuais não existissem. Só se fala delas com constrangimento; não há propostas pastorais orgânicas; no máximo, são repropostas as indicações doutrinais universais de mais de 30 anos atrás, sem qualquer mediação interpretativa das ciências humanas (como acontece, em vez disso, em muitos outros âmbitos pastorais).

Na verdade, muitos dos problemas na compreensão e abordagem da condição homossexual nas nossas famílias, particularmente aquelas com uma ou mais pessoas homossexuais, vêm de uma visão religiosa distorcida do tema, muitas vezes propagandeada nas paróquias ou através dos meios de comunicação autodenominados “católicos”.

De facto, a Igreja ainda não tem os instrumentos antropológicos – e, portanto, teológicos – para enfrentar com serenidade a questão; como confirma o documento final do Sínodo dos Jovens:

“No atual contexto cultural, a Igreja tem dificuldade de transmitir a beleza da visão cristã da corporeidade e da sexualidade (...). Por isso, é urgente uma busca de modalidades mais adequadas, que se traduzam concretamente na elaboração de renovados caminhos de formação” (n. 149); “Existem questões relativas ao corpo, à afetividade e à sexualidade que precisam duma elaboração antropológica, teológica e pastoral mais profunda, que se há de realizar nas modalidades e níveis mais convenientes desde o local ao universal” (n. 150).

Ainda no mesmo número 150, os bispos do Sínodo afirmam: “Em muitas comunidades cristãs, já existem percursos de acompanhamento na fé de pessoas homossexuais: o Sínodo recomenda que se favoreçam tais percursos. Ao longo destes percursos, as pessoas são ajudadas a ler a sua história, aderir livre e responsavelmente à sua chamada batismal, reconhecer o desejo de pertencer e contribuir para a vida da comunidade, discernir as melhores formas para o concretizar. Deste modo, ajudam-se todos os jovens, sem exceção, a integrar cada vez mais a dimensão sexual na própria personalidade, crescendo na qualidade das relações e caminhando para o dom de si.”

Os bispos elogiam e citam positivamente esses caminhos de acolhida e de acompanhamento na fé das pessoas LGBT; cientes, porém, de que quase nenhum desses caminhos foi oferecido pelas próprias comunidades cristãs ou pela pastoral diocesana. São caminhos nascidos por iniciativa espontânea de indivíduos, homossexuais ou famílias; muitas vezes obstaculizados pelas Igrejas locais, mas só agora reavaliados positivamente.

No entanto, devemos reconhecer que um momento importante para a pastoral com as pessoas homossexuais e os seus genitores foi a publicação da Amoris laetitia pelo Papa Francisco, que, no número 250, afirma:

“Com os Padres sinodais, examinei a situação das famílias que vivem a experiência de ter no seu seio pessoas com tendência homossexual, experiência não fácil nem para os pais nem para os filhos. Por isso desejo, antes de mais nada, reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar ‘qualquer sinal de discriminação injusta’ e particularmente toda a forma de agressão e violência. Às famílias, por sua vez, deve-se assegurar um respeitoso acompanhamento, para que quantos manifestam a tendência homossexual possam dispor dos auxílios necessários para compreender e realizar plenamente a vontade de Deus na sua vida.”

Com essa afirmação de autoridade, a pastoral com as pessoas homossexuais, pelo menos nas intenções do Papa Francisco, é inserida na pastoral familiar mais ampla; a condição homossexual em si, portanto, não é mais entendida como antagônica e perigosa para o contexto da família (é o número 251 que se preocupa em traçar alguns limites apenas no que diz respeito ao matrimônio sacramental).

Pelo contrário, na perspectiva mais atual da família “real” típica da Amoris laetitia, que não tem medo de falar também das dificuldades e das famílias feridas, a condição homossexual encontra uma colocação pastoral e o contexto primário onde deve ser enfrentado: a família.

Graças a essa indicação, a pastoral pode finalmente assumir as suas responsabilidades no acompanhamento dos homossexuais e, em particular, das suas famílias – ou, melhor, “nas” suas famílias – como insiste esta contribuição de Alessandra Bialetti. Existe uma forma de “genitorialidade” (paternidade e maternidade) à qual a Igreja não pode se permitir renunciar e que, pelo contrário, “permanece sempre”, justamente; também em relação às pessoas homossexuais e ao seu contexto familiar.

Por isso, a leitura deste texto não será útil apenas aos genitores de filhos LGBT (ou eles mesmos homossexuais), mas também aos agentes de pastoral que buscam instrumentos para acompanhar essas famílias.

A progressiva assunção de responsabilidade genitorial (ou empoderamento, como o presente estudo a define) é uma tarefa que a própria comunidade cristã deve sentir; para si mesma e na sua tarefa de acompanhamento das famílias. Os genitores, devido à inesperada irrupção da homossexualidade na família, precisam conjugar de modo novo e criativo a sua tarefa educativa; um oportuno acompanhamento pastoral, junto com o aconselhamento, podem apoiar essa renovada declinação educativa, levando em conta também a dimensão espiritual e da fé.

Os agentes de pastoral adequadamente formados terão que apoiar e libertar os genitores, acima de tudo, dos seus sentimentos de culpa por não terem sabido “modelar” o filho segundo as regras da sociedade e da moral... Porque o nascimento e o crescimento de um filho é um mistério ao qual só Deus tem pleno acesso; um mistério que não pode ser controlado ou predeterminado, mas que, em vez disso, pede abertura e escuta, porque pode sugerir novas visões da realidade, do mundo e de Deus mesmo.

E, nesse sentido resiliente, a irrupção inesperada da homossexualidade também poderia acompanhar a família rumo a novas possibilidades, a novos e mais autênticos modos de ser “família”.

Parafraseando as palavras de Alessandra, eu diria que a própria comunidade cristã deverá exercer, também em relação aos genitores, aquela escuta empática que significa acolher os seus sentimentos de medo, confusão, raiva e desespero pelo luto do “filho” ou do “genitor” ideal; reconhecer esses sentimentos, sem negá-los, porque são normais e não devem ser julgados.

A comunidade cristã poderia se tornar aquela “caixa de ressonância” da vivência conturbada, difícil de exprimir, dos genitores e dos filhos; e conduzi-los a uma maior autenticidade e compreensão no diálogo familiar.

Certamente, a própria comunidade cristã é chamada a trabalhar inicialmente sobre si mesma, sobre os seus próprios preconceitos religiosos e sociais, em um caminho de conversão à verdadeira escuta de Deus, da família e das pessoas reais.

Só assim ela poderá se constituir evangelicamente – como diria Alessandra – como “mediadora protetiva e tranquilizadora”, em relação ao mundo mais amplo, complexo e muitas vezes hostil às pessoas homossexuais.

Em síntese, a comunidade cristã é chamada a ser cada vez mais um lugar educativo de fundamental importância no processo de construção identitária das pessoas homossexuais e das suas famílias, como filhos de Deus amados e cuidados por Ele.

Paolo Benanti

POLÍTICA TECNOLÓGICA: QUANDO A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL REVELA UMA MENTALIDADE COLONIAL

Pensar em uma algor-ética significa pensar em um desenvolvimento da inovação. Utilizar eticamente a tecnologia hoje significa tentar transformar a inovação em desenvolvimento. Significa direcionar a tecnologia para e pelo desenvolvimento, e não simplesmente buscar um progresso como fim em si mesmo. A opinião é de Paolo Benanti, teólogo e frei franciscano da Terceira Ordem Regular, professor da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, e acadêmico da Pontifícia Academia para a Vida. O texto foi publicado em seu blog. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

A discriminação algorítmica e o “trabalho fantasma” não parecem ser problemas que afligem as inteligências artificiais (IA) por acaso. Relatamos aqui as ideias de Shakir Mohamed, um pesquisador sul-africano que nos convida, com um olhar a partir do Sul global, a tentar sair dos nossos paradigmas culturais.

Compreender outras perspectivas pode ser um primeiro passo para entender a dimensão política da tecnologia e talvez para tentar erradicar a longa e preocupante história de algumas injustiças globais.

Em março de 2015, na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, eclodiram protestos contra a estátua do colono britânico Cecil Rhodes. Rhodes, um magnata da mineração que doou as terras nas quais a universidade foi construída, cometera um genocídio contra os africanos e lançou as bases para o apartheid.

Sob a bandeira da demonstração “Rhodes Must Fall” [Rhodes deve cair], os estudantes exigiram que a estátua fosse removida. Seus protestos desencadearam um movimento global para erradicar as heranças coloniais que persistem na educação.

Os eventos também levaram Shakir Mohamed, um pesquisador sul-africano de inteligência artificial no DeepMind, a refletir sobre quais heranças coloniais também poderiam existir na sua pesquisa.

Em 2018, precisamente quando o campo da IA estava começando a fazer as contas com problemas como a discriminação algorítmica, Mohamed escreveu um post no seu blog com seus pensamentos iniciais.

Nele, ele convidou pesquisadores a “descolonizarem a inteligência artificial”, a reorientarem o trabalho do campo para longe dos centros ocidentais como o Vale do Silício e a envolverem novas vozes, culturas e ideias para orientar o desenvolvimento da tecnologia.

Agora, no rasto dos renovados gritos de “Rhodes Must Fall” no campus da Universidade de Oxford, estimulados pelo homicídio de George Floyd e pelo movimento antirracista global, Mohamed publicou um novo documento junto com o seu colega William Isaac e a doutoranda de Oxford Marie-Therese Png.

Nesse novo texto, Mohamed complementa as ideias originais com exemplos específicos de como os desafios éticos da IA estariam enraizados no colonialismo e apresenta estratégias para enfrentá-los a partir do reconhecimento dessa história.

Como a mentalidade colonial se manifesta na IA

Embora o colonialismo histórico possa ter acabado, os seus efeitos existem ainda hoje. Isso é o que os estudiosos chamam de “colonialidade”: a ideia de que os modernos desequilíbrios de poder entre raças, países, ricos e pobres e outros grupos são extensões dos desequilíbrios de poder entre colonizadores e colonizados.

Veja-se aquilo que é chamado de racismo estrutural. Dentro dessa visão, reconhece-se como historicamente os europeus teriam originalmente inventado o conceito de raça e as diferenças entre elas para justificar o tráfico de escravos africanos e, portanto, a colonização dos países africanos.

Nos Estados Unidos, os efeitos dessa ideologia podem ser rastreados agora através da história da escravidão do país, de Jim Crow e da brutalidade policial.

Da mesma forma, argumentam os autores do artigo, essa história colonial explica algumas das características e dos impactos mais preocupantes da IA. Nesse estudo, são identificadas cinco manifestações de colonialidade:

1. Discriminação algorítmica e opressão

Os laços entre discriminação algorítmica e racismo colonial talvez sejam os mais óbvios: os algoritmos construídos para automatizar os procedimentos e formatos dos dados dentro de uma sociedade racialmente injusta acabam replicando esses resultados racistas nos seus resultados. Mas grande parte dos estudos sobre esse tipo de dano produzido pela IA se concentra em exemplos dos EUA. Examinar isso no contexto da colonialidade permite uma perspectiva global: os EUA não são o único lugar com desigualdades sociais. “Sempre há grupos que são identificados e submetidos”, diz Isaac.

2. Trabalho fantasma

O fenómeno do trabalho fantasma, o trabalho de dados invisível necessário para sustentar a inovação da IA, estende nitidamente a relação econômica histórica entre colonizador e colonizado. Muitas ex-colônias dos EUA e do Reino Unido – Filipinas, Quênia e Índia – se tornaram centros de trabalho fantasma para empresas estadunidenses e britânicas. A força de trabalho de baixo custo e de língua inglesa dos países, que os torna ideais para o trabalho sobre os dados, existe por causa das suas histórias coloniais.

3. Testes Beta

Às vezes, os sistemas de IA são testados em grupos mais vulneráveis antes de serem implementados para usuários “reais”. A Cambridge Analytica, por exemplo, submeteu os seus algoritmos a testes Beta nas eleições na Nigéria em 2015 e no Quênia em 2017 antes de usá-los nos EUA e no Reino Unido. Os estudos descobriram posteriormente que esses experimentos interromperam ativamente o processo eleitoral do Quênia e erodiram a coesão social. Esse tipo de teste ecoa o tratamento histórico do Império Britânico às colônias como laboratórios para novos remédios e tecnologias.

4. Governação da IA

Os desequilíbrios de poder geopolítico que a era colonial deixou em seu rastro também moldam ativamente a governação da IA. Isso ocorreu na recente corrida para formar diretrizes éticas globais sobre a IA: os países em desenvolvimento na África, América Latina e Ásia central foram amplamente excluídos das discussões, o que levou alguns a se recusarem a participar dos acordos internacionais sobre o fluxo de dados. O resultado: os países desenvolvidos continuam se beneficiando desproporcionalmente de normas globais moldadas a seu favor, enquanto os países em desenvolvimento continuam ficando para trás.

5. Desenvolvimento social internacional

Por fim, os próprios desequilíbrios de poder geopolítico influenciam o modo como a IA é utilizada para ajudar os países em desenvolvimento. As iniciativas “IA para o bem” ou "IA para o desenvolvimento sustentável” costumam ser paternalistas. Elas forçam os países em desenvolvimento a depender dos sistemas de IA existentes, em vez de participarem da criação de novos sistemas projetados para o seu próprio contexto.

Os pesquisadores observam que esses exemplos não são completos, mas demonstram como são vastas as heranças coloniais no desenvolvimento global da IA. Eles também unem aqueles que parecem ser problemas díspares sob uma tese unificadora. “Isso nos permite uma nova gramática e vocabulário para falar tanto do motivo pelo qual esses problemas são importantes quanto do que faremos para pensar e enfrentar esses problemas em longo prazo”, afirma Isaac.

Como construir uma IA descolonial

A vantagem de examinar os impactos prejudiciais da IA por meio dessa lente, argumentam os pesquisadores, é o quadro que isso fornece para prever e mitigar danos futuros. Png acredita que realmente não existem “consequências não intencionais”, mas apenas as consequências dos pontos cegos que as organizações e os institutos de pesquisa têm quando carecem de representações diferentes. Nesse sentido, os pesquisadores propõem três técnicas para obter uma IA “descolonial” ou mais inclusiva e vantajosa:

1. Desenvolvimento técnico ciente do contexto

Primeiro, os pesquisadores de IA que criam um novo sistema deveriam considerar onde e como ele será utilizado. Além disso, o seu trabalho não deveria terminar com a escrita do código, mas deveria incluir a sua testagem, o apoio a políticas que facilitem o seu uso correto e a organização de ações contra os usos impróprios.

2. Tutela reversa

Segundo, deveriam ouvir os grupos marginalizados. Um exemplo de como fazer isso é a prática emergente do aprendizado automático participativo, que busca envolver as pessoas mais afetadas pelos sistemas de aprendizado automático no seu projeto. Isso oferece aos diferentes sujeitos a possibilidade de discutirem e estabelecerem como são enquadrados os problemas de aprendizado automático, quais dados são coletados e como e onde os modelos finais são utilizados.

3. Solidariedade

Os grupos marginalizados também deveriam receber o apoio e os recursos para iniciar seu próprio trabalho de IA. Já existem diversas comunidades de profissionais de IA marginalizados, incluindo o Deep Learning Indaba, Black in AI e Queer in AI, e o seu trabalho deve ser ampliado.

Desde que publicaram seu artigo, dizem os pesquisadores, eles encontraram um enorme interesse e entusiasmo. “Pelo menos, isso me sinaliza que há receptividade a esse trabalho”, diz Isaac. “Parece que esse é um debate com o qual a comunidade deseja começar a se envolver.”

O que observar a partir dessa leitura

Pensar em uma algor-ética significa pensar em um desenvolvimento da inovação. Utilizar eticamente a tecnologia hoje significa tentar transformar a inovação em desenvolvimento. Significa direcionar a tecnologia para e pelo desenvolvimento, e não simplesmente buscar um progresso como fim em si mesmo.

Embora não seja possível pensar e realizar a tecnologia sem formas de racionalidade específicas (o pensamento técnico e científico), colocar o desenvolvimento no centro das atenções significa dizer que o pensamento técnico-científico não basta por si só. São necessárias diversas abordagens, incluindo a humanística e a contribuição da fé.

O desenvolvimento necessário para enfrentar os desafios da mudança época deverá ser:

Global,

ou seja, para todas as mulheres e para todos os homens, e não só para alguns ou para alguns grupos (diferenciados por sexo, língua ou etnia);

Integral,

ou seja, de toda a mulher e de todo o homem;

Plural,

ou seja, atento ao contexto social em que vivemos, respeitando a pluralidade humana e as diversas culturas;

Fecundo,

ou seja, capaz de lançar as bases para as gerações futuras, ao invés de ser míope e direcionado para a utilização dos recursos de hoje sem nunca olhar para o futuro;

Gentil,

ou seja, respeitoso com a terra que nos hospeda (a casa comum), com os recursos e com todas as espécies vivas.

Para a tecnologia e para o nosso futuro, precisamos de um desenvolvimento que, sinteticamente, eu definiria como gentil. A ética é isso, e as escolhas éticas são aquelas que vão na direção de um desenvolvimento gentil.

Domenico Marrone

PARTIDÁRIOS E INIMIGOS DAS VACINAS: UM OLHAR RETROSPECTIVO

"Sempre que se trata de evitar o perigo de uma doença grave para o indivíduo ou a sociedade, desde que, segundo a concepção atual da medicina, existam sérias probabilidades de efeito útil e na ausência de dano grave ao indivíduo, deve-se advertir a obrigação moral de se vacinar", escreve Domenico Marrone, pároco, professor, doutor em Teologia e diretor do Istituto Superiore di Scienze Religiose S. Nicola, il Pellegrino, da Facoltà Teologica Pugliese, em Bari, Itália, em artigo publicado por Settimana News. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Desde o surgimento da primeira vacina, no século XVIII, por obra de Jenner, assim chamada por se originar do vírus da varíola, a possibilidade de imunizar a população contra doenças transmissíveis sempre trouxe consigo expectativas de bem-estar sanitário e anátemas de vários tipos. Nesse sentido, uma pequena digressão histórica pode ser útil, referente às primeiras décadas do início do uso das vacinas.

Um debate que continua até os nossos dias

A primeira experiência feita em doenças contagiosas com o intuito de induzir imunidade contra a doença em indivíduos, deve-se ao médico inglês Jenner que, após 23 anos de estudo, constatou com segurança que a infecção local por varíola em bovinos, embora ocorrendo sem gravidade, imuniza o ser humano contra a varíola humana. Ele inoculou pela primeira vez em seu filho, em 1789, a linfa proveniente de pústulas suínas, tornando-o imune às inoculações subsequentes (1791-1792) de varíola; em 14 de maio de 1796, ele inoculou uma criança com pus da varíola (cow-pox) que se desenvolveu nas mãos de uma leiteira; dois meses depois, a criança resultou vacinada e refratária à inoculação de varíola humana.

A vacinação assim inventada difundiu-se deixando de lado todos os meios anteriormente utilizados, como a "variolação" (inoculação da linfa da pústula da varíola em indivíduos com formas brandas) ou a introdução de crostas de varíola nas narinas ou até mesmo o hábito de usar roupas de pessoas com varíola.

A inoculação ou "enxerto" em doses muito pequenas de varíola, no caso humana por ser retirada de pústulas de doentes leves ou em processo de recuperação ("variolização"), para prevenir uma doença devastadora, é patrocinada por grandes intelectuais milaneses de prestígio, incluindo Beccaria, Verri, que a define como uma "prática muito vantajosa", e o "colega" poeta satírico Parini, ao mesmo tempo católico fervoroso (abade) e iluminista, que na prolixa e ilegível ode L'innesto (1765) critica o fatalismo e a falta de prevenção de quem acredita esse e todo mal inelutável: "Ó arte débil, ó escolta mal segura / que espera o mal e não o previne com prudência".

A inoculação da varíola foi até disposta pelo Papa Bento XIV (Prospero Lambertini), que tem todo o tempo - morreria em 1758 - para participar com posição favorável, mas prudente, da grande disputa sobre a inoculação que inflamava a Europa naqueles anos, e especialmente a Itália. Sobre o tema segue pessoalmente seu teólogo de confiança, o grande iluminista católico Ludovico Antonio Muratori.

“Se eu fosse imperador ou rei - escreve Bento XIV ao médico Bianchi, líder dos católicos antivacinais - a inoculação, pelas vantagens que vejo, seria agora permitida nos meus estados. Mas não quero escandalizar os tímidos e os fracos”.

Os jesuítas, sempre atentos à ciência, revisam favoravelmente o relatório do italiano Jacopo Pilarino, o primeiro médico no mundo que pratica (1701), estuda e publica (1715) o método de inoculação em relatório científico (ver abaixo) , e imediatamente, precisamente em 1715, começam a experimentá-la nos indígenas em suas missões na América do Sul. Aliás, como o enxerto de varíola vem do Oriente, eles fazem ironia sobre os católicos anti-enxerto: "Quase parece que eles temem que com a varíola seja inoculado até o islamismo! " Os jesuítas aprovam, mas depois se retiram do debate: espinhoso demais.

Um debate que ainda hoje se mantém aceso.

A Igreja está dividida e incerta. Dois lados se enfrentam: inoculistas e anti-inoculistas. Grande parte do clero e do povo são contrários, até mesmo na França, que é mais racionalista e laica que a Itália. Padres e devotos estão até convencidos de que “administrar a um ser humano uma doença que talvez não lhe ocorresse naturalmente é tentar a Deus”. Uma nova forma de superstição, em suma. Os párocos bretões reunidos em assembleia falam de um "crime contra a lei divina".

Mesmo médicos católicos, como Philippe Hecquet que em Razões para duvidar da inoculação (1722), argumenta que se trata de uma prática reprovável, contrária ao poder divino, que não tem nada de médico e se assemelha à magia.

Com a vacina, ou seja, com o vírus tirado de vacas, as reações dos tradicionalistas são exacerbadas. Sangue de animais misturado com o de homens? Não mesmo! Alguns filósofos moralistas leigos a definem "bestialidade". Assim, a "sacralidade" do Homem é minada, lastimam alguns teólogos.

Mas o bispo anglicano de Worcester em 1752 se declara a favor do enxerto, causando alvoroço. Na própria Roma católica, não só alguns médicos são favoráveis (1754), mas o teólogo agostiniano Gian Lorenzo Berti em 1762, com outros dois teólogos eruditos. Francesco R. Adami e Gaetano Veraci, publica em Pisa um importante documento ético em defesa da inoculação.

Um importante documento teológico-moral

É interessante repercorrer as páginas da cartilha citada para destacar a abordagem metodológica que eu não hesitaria em chamar de "científica", no sentido contemporâneo do termo adotado nas disciplinas teológicas.

O raciocínio, embora proceda segundo a metodologia típica dos estudos da casuística, caracteriza-se por elementos que parecem antecipar os critérios do procedimento científico: o fundamento escritural, a referência às ciências profanas - neste caso à medicina -, a enunciação dos critérios morais.

A argumentação parte de um quesito, de acordo com a abordagem da casuística clássica: “Pergunta-se se seria legítimo provocar a varíola a uma criatura, apesar do caso (embora remoto) de que ela possa morrer dela, e apesar das outras evento em que tal Criatura pudesse estar livre de tal doença; e junto com esta questão acredita-se que se possa levantar a objeção, isto é, que não são desproporcionalmente mais numerosos os casos (sejam mesmo cem para um), em que morreriam de varíola, crianças e adultos, devido à inoculação".

O primeiro autor, Giovan Lorenzo Berti, prossegue em sua exposição referindo-se antes de tudo ao fundamento bíblico. Refere-se a Sr 38,1-8 e afirma que “ensinados, pois, por este documento divino, certamente seríamos imprudentes, mas avisados, se rejeitássemos os medicamentos, e os remédios julgados oportunos e benéficos por algum sapientíssimo médico”.

O autor também deseja esclarecer que “deveríamos aguardar a opinião não da grande multidão dos que exercem a medicina, mas dos poucos que a praticam com o louvor de sua doutrina, e em benefício dos Outros, e que têm plena cognição e reiterada experiência certíssima de tal matéria, isto é, da enxertia da varíola".

Depois de afirmar a necessidade de recorrer a médicos especialistas com experiência e competência comprovadas, o autor faz uma pausa para ressaltar um dos princípios fundamentais da ética médica: primum non nocere: “E creio que não há quem não saiba, que eles (os médicos) violam o mandamento divino, e se tornam réus de grave culpa, sempre que fazem mal ao doente confiado aos seus cuidados, e prescrevem remédios que podem matá-los, ou agravar consideravelmente a sua doença, ainda que resultasse acidentalmente a saúde e a melhora dos próprios enfermos. E o que deve ser particularmente notado, é que quando surge a dúvida, se um remédio pode beneficiar o doente ou prejudicar (o que não vejo como não poderia, e não se deveria afirmar da mesma forma de um remédio preservativo) o médico estaria muito errado ao administrá-lo”.

Berti também considera a triste eventualidade da morte após a inoculação da vacina e chega a esta conclusão: “Eu digo que quando apenas um contra cem tenha morrido após a inoculação, e os outros cem sobrevivido, a morte não deve ser atribuída à própria inoculação, mas a outras causas desconexas e supervenientes”.

O risco é um componente inevitável em todo ato humano. Especificamente, na saúde não é possível pensar em sua eliminação completa. Assim, perante a consciência de que não é possível ser médico excluindo e eliminando os riscos, surge o problema de gerir da melhor forma a profissão, assumindo a responsabilidade e tomando decisões, quando possível com base em critérios científicos, mas sempre com base em considerações éticas.

Berti não deixa de apontar como a frente dos inimigos da vacina aduzem razões que, como veremos, ainda estão em voga nas confissões religiosas contemporâneas: “No entanto, a mera menção desta inoculação partiu dos circassianos, dos turcos, do mar Cáspio, e é praticada na América, na Tartária, e ainda na Inglaterra, gera neles não sei que repulsa, o que nos faz parecer abominável, tanto mais porque na própria Inglaterra alguns, e até mesmo um do púlpito, declararam-na uma superstição mortal e inventada pelo Diabo”.

Ele não hesita em afirmar que: “Portanto, deve ser considerada lícita e proveitosa; e também é possível, falando da Varíola, dar a quem ama a vida de si mesmo e de seus Filhos aquela lembrança do Sábio Eclesiástico 18, antes que surja a enfermidade, que enfraquece ou tira o vigor, usa o medicamento".

Portanto, é "bom se precaver contra o feroz ataque maligno daquela (varíola), pois há uma probabilidade muito grande de um mal, certamente futuro, ou quase certamente".

Portanto, "deduzimos que pertence à prudência, à humanidade, à piedade e ao benefício do amor próprio, buscar diligentemente aqueles meios que o grande Criador todo-poderoso preparou como preventivos específicos para as doenças mais comuns e funestas, e que no gênero de tais preventivos deve-se contar aqueles que são prescritos de comum acordo e afirmação pelos mestres da arte dos médicos competentes, desinteressados e partidários do bem público" .

O segundo teólogo, Francesco Raimondi Adami, está na mesma linha de Berti. De fato, afirma: "A Lei Cristã nos ensina a receber tranquilamente da mão de Deus as doenças pelas quais somos afeitos, mas não nos proíbe de nos proteger contra elas com remédios oportunos, e preveni-las com os segredos da arte". Portanto, o médico “fará uma ação útil, prudente e caridosa, prevenindo o perigo natural”.

Raimondi, com uma pergunta retórica, pergunta-se: “O enxerto não deveria ser proposto como um remédio, para o qual os princípios nos convidam, não menos que uma moral cristã, do que uma sã política? E não menos condenável seria a obstinação daqueles que, contra as evidências, talvez ainda em sua consciência persistem em rejeitar o Enxerto”.

Por fim, o terceiro teólogo que se expressa na consulta, Gaetano Veraci, não hesita em afirmar que “a religião participa nessa operação, que parece ser tão útil para a sociedade humana e para a nossa conservação”.

Afirma também, contra os inimigos do Enxerto: “Se é difícil provar que o Enxerto é contra a Moral natural, também será difícil provar que ofende a Religião”.

Veraci continua a sua reflexão, sempre seguindo o enfoque casuístico, afirmando: “Pergunta-se, se em caso de necessidade que tivesse que ser determinada, João ofende mais a caridade ou a justiça, que expõe José a um remoto perigo de perder a vida para tirá-lo de um mais próximo; ou se Antônio, que abandona José a um perigo próximo, quando poderia colocá-lo em outro mais remoto. Acredito que qualquer um, seja quem for, certamente se decidirá a favor de João”.

Não podemos ignorar que, para além da moral suasion, da persuasão moral com autoridade, que esses teólogos propuseram para orientar escolhas e comportamentos em relação à vacina, toda a Igreja em substância, dividida entre os não e os sim enfáticos, entre os partidários do enxerto e os inimigos do enxerto, parece suspender o juízo e aguardar a evolução científica ao longo de todo o século XVII.

Leão XII: papa antivacina?

A vacinação foi tornada obrigatória nos Estados Papais em 20 de junho de 1822, dois anos após a eclosão da enésima epidemia de varíola, pelo Papa Pio VII, Barnaba Niccolò Chiaramonti, provavelmente devido às pressões ou à opinião, respeitadíssima, do influente Conde Monaldo. Leopardi, Gonfaloniere de Recanati e pai do poeta Giacomo.

De fato, o poeta Giacomo Leopardi foi um dos primeiros a ser vacinado na região das Marche por iniciativa de seu pai Monaldo, famoso católico reacionário muito respeitado em Roma e prefeito papal de Recanati, mas um propagandista convicto da vacina, que acabou impondo-a em sua própria cidade e nas Marche.

Leão XII é definido como o "Papa antivacina", alegando que teria se oposto à vacina contra a varíola e se tornado responsável pela morte de milhares de pessoas.

O fato costuma ser acompanhada desta frase: “Quem se deixa vacinar deixa de ser filho de Deus. A varíola é um castigo disposto por Deus, a vacinação é um desafio contra o céu”. É uma frase claramente absurda, não é por acaso que essa citação carece de fonte bibliográfica e nenhum texto de Leão XII a relata.

De acordo com Donald J. Keefe, nenhum documento oficial relata tais afirmações. Hoje, porém, sabemos por fontes oficiais da época que o Papa Leão se limitou a retirar a obrigatoriedade da vacinação, mesmo mantendo seu caráter gratuito: “Pio VII então reinante, que por tempo a havia adotado seus estados, convencido pela experiência, das admiráveis vantagens que certamente dela se obtêm, renovou os regulamentos (...) Seu sucessor Leão XII, numa circular legislativa de 15 de setembro de 1824 (...) revogou (...) qualquer disposição a esse respeito, deixando a vacinação livre a quem quisesse valer-se dela, sem afastar a obrigação dos médicos e cirurgiões de ministra-la gratuitamente a todos os que a solicitassem; sendo este, segundo a frase daquela circular, o tratamento e a prevenção de uma doença que, como todas as outras, eram obrigados a reparar”.

De fato, de acordo com a opinião pública da época, a vacinação era perigosa, pois utilizava material humano e não bovino, e não eram raras as mortes em decorrência de "vacinas” contaminadas. Durante grande parte do século XIX, de fato, muitos expoentes famosos da ciência e da cultura se opuseram a essas (então novas) práticas, consideradas inúteis ou prejudiciais. Entre outros, personagens como o filósofo alemão Immanuel Kant e seu colega inglês Herbert Spencer e Charles Darwin foram hostis à vacinação contra a varíola, pois negavam a sua eficácia.

É importante notar que a vacina antivariólica na época não era obrigatória em muitos estados europeus, incluindo o Reino da Sardenha (posteriormente Reino da Itália), onde passou a ser obrigatória apenas em 1859. A título de comparação, a Inglaterra ofereceu vacinação gratuita em 1840 e tornou-a obrigatória em 1853.

Deve-se notar que Leão XII em 1824 concedeu a Luigi Sacco a ordem equestre da Espora de Ouro como agradecimento pelo envio de 108 exemplares de seu livro sobre vacinação, que foram distribuídos nas repartições de saúde do Estado pontifício. Esse fato foi descoberto por A.P. Gaeta em uma correspondência inédita que encontrou no Arquivo Secreto do Vaticano. Comentando essa descoberta, Maria Luisa Righini Bonelli observa que “o que alguns quiseram afirmar não parece proceder, a saber, que Leão XII teria se mostrado contrário ao que Pio VII havia feito e especialmente o Cardeal Consalvi, promotor do edital emitido em 1822 a favor da vacinação".

Aliás, considerando a última expressão da Circular Legislativa de 15 de setembro de 1824, o Papa Leão XII fala claramente. Se fosse realmente um acirrado antivacina, certamente não teria acrescentado: "obrigação de reparar". Por que, de fato, atribuir aos médicos “a obrigação de reparar” essa doença dada por Deus, como diziam padres e teólogos antivacinistas, ao mesmo tempo em que reconhecia a vacina como “a cura e a prevenção”, a esse ponto únicos? Quase se poderia pensar que o Papa Leão, em sua disposição, na realidade tenha ficado sobre o muro, tenha diplomaticamente mediado entre duas posições presentes na Igreja. Claro, se a análise lógica não for uma opinião, a última frase pode sugerir uma posição favorável.

Os inimigos das vacinas: uma frente ainda aberta

Já em 1798, quando Jenner publicou os resultados do uso da varíola bovina para a imunização de uma criança, informando assim o mundo da invenção da vacina contra a varíola, foi fundada nos Estados Unidos a "Sociedade dos anti Vacinadores". Eles argumentavam que as vacinas deveriam ser rejeitadas porque acreditavam que interferissem na obra de Deus.

A recusa de vacinas, mais do que por motivos científicos, baseia-se assim em razões “fideísticas”, por vezes até “religiosas”. Quem se apoia em um tipo de homeopatia "fundamentalista" motiva sua aversão às vacinas referindo-se à alma que seria afastada do corpo devido à inserção da agulha na pele; a medicina steineriana, que é fruto das teorias da sociedade antroposófica, listada pelo Cesnur (Centro de Estudos sobre Novas Religiões) entre os "grupos teosóficos e pós-teosóficos", olha com desconfiança as vacinas porque limitariam o crescimento espiritual do indivíduo.

Alguns grupos religiosos consideram a recusa da vacinação parte de suas crenças. Dentre eles, o mais conhecido é a igreja cientista, ou Christian science, fundada nos Estados Unidos em 1892 por Mary Baker Eddy. Seus seguidores acreditam que as doenças podem e devem ser curadas contando exclusivamente com a oração.

Uma "associação cultural", denominada "La Biolca", afirma reportar-se às teorias steinerianas sobre nutrição e saúde, assume o objetivo visa sensibilizar católicos, judeus, muçulmanos e testemunhas de Jeová sobre as substâncias que estariam contidas nas vacinas e que cada um deles, se fosse um bom crente, teria que se recusar a consumir. As vacinas, de acordo com esta tese, conteriam células de fetos abortados e derivados de animais, como sangue bovino e gelatina de porco.

É necessário especificar que na doutrina das principais religiões do mundo não há proibição alguma em relação às vacinas, sejam ou não obrigatórias. Ainda assim, pode acontecer que a recusa em se submeter, ou sujeitar os próprios filhos, a vacinas seja baseada em argumentos religiosos, que um estudo dividiu em três categorias: as vacinas violariam a proibição de matar, violariam alguns preceitos alimentares religiosos, interfeririam com a ordem natural das coisas dispostas por Deus.

Ao primeiro conjunto de argumentos contra as vacinas pertencem as perplexidades apresentadas por alguns grupos ligados ao Jainismo, uma religião oriental que proíbe matar qualquer ser vivo, mesmo bactérias ou, no nosso caso, vírus. A vacinação deveria, portanto, ser considerada ilegal, pois comporta uma ação violenta contra os vírus, que são seres vivos.

Mais complexas são as questões relacionadas à presença de substâncias alimentares que algumas religiões consideram ilícitas. Estas são especialmente os excipientes de origem suína que são utilizados na preparação de algumas vacinas. Como se sabe, as religiões judaica e islâmica consideram o porco um animal impuro e, portanto, proíbem comer sua carne e seus derivados.

Neste caso, os estudiosos judeus consideram prevalente a intenção de salvar a vida, pessoal e dos outros, como o cumprimento de uma ordem divina. Ressalta-se que a proibição da ingestão de alimentos não kosher não se aplica às vacinas que são, geralmente, injetadas pela pele e que, em todo caso, todos os medicamentos que servem para salvar vidas são lícitos, ainda que não sejam kosher. Estudiosos islâmicos que aplicam o princípio da transformação à questão, segundo o qual um produto, originalmente impuro, pode se tornar halal, também assumem posições semelhantes.

O direito islâmico, portanto, permite a administração de vacinas, mesmo que contenham substâncias originalmente haram, e isso com base em três princípios: o direito de proteger a vida, o dever de prevenir o perigo e a proteção do interesse público. A prevenção de doenças por meio de vacinas está de acordo com a lei divina e, em algumas circunstâncias, é necessária, por exemplo, por ocasião da peregrinação anual a Meca (hajj), durante a qual a vacinação é útil para prevenir a propagação de epidemias entre a grande massa de peregrinos que afluem para os lugares sagrados. No entanto, em algumas comunidades islâmicas, houve episódios de recusa de vacinação, mesmo de forma violenta.

No âmbito cristão, além da citada igreja cientista, são absolutamente contrários à vacinação os Amish, grupo que nasce como uma corrente radical do anabatismo, que rejeita todos os aspectos da modernidade, inclusive o uso de medicamentos e, portanto, das vacinas. Algumas congregações reformadas holandesas acreditam que os fiéis devem confiar exclusivamente em Deus, e que ser vacinado constitui falta de fé na providência divina: será o próprio Deus, caso o julgue necessário, a imunizar seus fiéis.

Outras pequenas denominações cristãs, como Faith Tabernacle, a Church of the First Born, a Faith Assembly e a End Time Ministries, também se alinham a essas mesmas posições, que proíbem seus fiéis de usar qualquer tipo de fármaco. No passado, as Testemunhas de Jeová também haviam se pronunciado contra a vacinação, mas desde 1952 sua atitude mudou e hoje as vacinas são aceitas. Os grupos religiosos que proíbem a vacinação de seus membros estão presentes principalmente na sociedade estadunidense.

Para concluir

Ao longo dos séculos, a vacinação sempre sofreu novas modificações e aperfeiçoamentos, geralmente provando ser sempre muito útil, embora ocasionalmente tenha encontrado críticos ferozes, especialmente no mundo anglo-saxão. A partir dessa primeira experiência, o novo meio de tratamento foi generalizado a outras doenças infecciosas, ainda hoje não destronado nem mesmo pela antibioticoterapia e o termo "vacinação" assumiu de forma mais universal o valor de produção em um indivíduo de um estado de imunidade pela introdução de antígenos ou toxinas microbianas dotada da capacidade de estimular a formação de substâncias de defesa no indivíduo, ou seja, anticorpos e antitoxinas.

É praticada para muitas doenças, tanto para fins preventivos como terapêuticos. Os resultados curativos, embora muitas vezes muito bons, não têm um valor absoluto para todas as doenças infecciosas; por outro lado, para alguns delas, a obrigação legal foi imposta a grandes massas de indivíduos, perfilando-se assim problemas de valor social e médico-moral. Por exemplo, na Itália existem vacinas obrigatórias; as normas internacionais de profilaxia exigem vacinação para algumas doenças em indivíduos que viajam de um país para outro; algumas profissões requerem vacinas preventivas obrigatórias.

Do ponto de vista médico-moral, pode-se discutir o direito do Estado de interferir na liberdade do indivíduo, obrigando-o a se submeter a uma vacinação e seu dever de realizá-la ou de se oferecer espontaneamente. Esses problemas continuam a ser discutidos.

Pessoalmente, creio que devemos falar em obrigação moral, antes mesmo que de obrigação legal e, portanto, ainda mais vinculante para a consciência do indivíduo. Sempre que se trata de evitar o perigo de uma doença grave para o indivíduo ou a sociedade, desde que, segundo a concepção atual da medicina, existam sérias probabilidades de efeito útil e na ausência de dano grave ao indivíduo, deve-se advertir a obrigação moral de se vacinar. Isso está de acordo com os ditames da moral, que o indivíduo é obrigado a renunciar a parte de seu bem pelo da comunidade, desde que não se trate do perigo de sua vida ou de grave comprometimento de suas funções essenciais.

José Luís Fiori / IHU

SOB OS ESCOMBROS, AS DIGITAIS DE UM RESPONSÁVEL

"Parece que está chegando a hora de a sociedade brasileira se desfazer desses “mitos salvadores” e devolver seus militares a seus quartéis e suas funções constitucionais. Assumir de uma vez por todas, com coragem e com suas próprias mãos, a responsabilidade de construir um novo país que tenha a sua cara, e que seja feito à sua imagem e semelhança, com seus grandes defeitos, mas também com suas grandes virtudes", escreve José Luis Fiori, em artigo enviado pelo autor. É professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Economia política Internacional (PEPI), coordenador do GP da UFRJ/CNPQ “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”, coordenador adjunto do Laboratório de “Ética e Poder Global”, pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (INEEP).

Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais? A soma dos fatos e dos números não deixa lugar a dúvidas que a resposta do governo brasileiro à pandemia do coronavírus foi absolutamente desastrosa, quando não criminosa; e seu plano de vacinação massiva da população é um caos, quando não um engodo. Já são 7,5 milhões de brasileiros infectados e cerca de 200 mil morreram até agora, e as autoridades seguem batendo cabeça diariamente, como se fossem um bando de palhaços irresponsáveis e debochados. E apesar de tudo isso, o general Eduardo Pazuello segue ministro da Saúde, sem entender de pandemias, nem de planejamento, nem de logística. Simplesmente porque ele é apenas mais uma nulidade de um governo que não existe, que não tem nenhum objetivo nem estratégia, e que não é capaz de formular políticas públicas que tenham início, meio e fim.

Por isso, o fracasso frente à pandemia se repete monotonamente em todos os planos e áreas de ação de um governo que se contenta em assistir, com ar de galhofa, à desintegração física e moral da sociedade brasileira, enquanto estimula a divisão, o ódio e a violência entre os próprios cidadãos. É o mesmo descaso e omissão com a vida que este governo vem mantendo frente ao avanço da devastação ecológica da Floresta Amazônica, da Região do Cerrado e do Pantanal, com números que vêm provocando um levante mundial contra o Brasil.

Basta olhar os números para dimensionar o tamanho do desastre, começando pela economia, que já estava estagnada desde antes da pandemia. A previsão do PIB brasileiro para ao ano de 2020 é de uma queda de cerca de 5%, embora o PIB brasileiro já viesse caindo em 2018 e em 2019, quando cresceu apenas 1,1%. Mas o que é mais importante, a taxa de investimento da economia, que foi de 20,9% em 2013, caiu para 15,4% em 2019 e deve cair muito mais no ano de 2020, segundo todas previsões das principais agências financeiras nacionais e internacionais.

Para piorar o quadro de desmonte, a saída de capitais do país, que havia sido de R$ 44,9 bilhões em 2019 – a maior desde 2006 –, quase dobrou em 2020, passando para R$ 87,5 bilhões de reais e sinalizando uma desconfiança e aversão crescente dos investidores internacionais com relação ao governo do senhor Bolsonaro e seu ministro Paulo Guedes, apesar de suas festejadas reformas trabalhista e previdenciária.

Por isso mesmo, em 2019 o Brasil foi simplesmente excluído do Índice Global de Confiança para Investimento Estrangeiro publicado pela A. T. Kearney, consultoria norte-americana que traz o nome dos 25 países mais atraentes do mundo para os investidores estrangeiros, o mesmo índice segundo o qual o Brasil ocupava a 3ª posição nos anos 2012/2013. Paralelamente, a participação da indústria no PIB nacional, que era de 17,8% em 2004, caiu para 11% em 2019, e deve cair ainda mais em 2020/2021; e o desemprego, que era de 4,7% em 2014, subiu para 14,3% em 2020, e deve seguir subindo no próximo ano.

A indústria brasileira está enfrentando escassez de matéria-prima e, segundo o DIEESE, o país já acumula, em 2020, uma taxa de inflação de 12,14% no preço dos alimentos que afetam mais diretamente o consumo das famílias mais pobres. De outro ângulo, os especialistas estão prevendo um apagão elétrico para o ano de 2021, como já aconteceu no estado do Amapá. E agora, no final de 2020, o Brasil está com déficit energético e importa energia do Uruguai e da Argentina, o que explica a Bandeira Vermelha 2 que começará a pesar no bolso dos consumidores em 2021.

Ainda com relação ao estado da infraestrutura do país, a Confederação Nacional dos Transportes vem advertindo que o estado geral das rodovias brasileiras piorou em 2019, e 59% da malha rodoviária pavimentada apresentam hoje sérios problemas de manutenção e circulação. Por fim, como consequência inevitável dessa destruição física, a economia brasileira sofreu uma das maiores reversões de sua história moderna, deixando de ser a 6ª ou 7ª maior do mundo, na década de 2010, para passar ser a 12ª em 2020, devendo cair ainda mais, para o 13º lugar, em 2021, segundo previsão do Centre for Economics and Business Research publicada pelo jornal The Straits Times, de Singapura.

As consequências sociais desta destruição econômica eram previsíveis e inevitáveis: mesmo antes da pandemia, em 2019, 170 mil brasileiros voltaram para o estado de pobreza extrema, onde já viviam aproximadamente 13,8 milhões, número que deverá crescer exponencialmente depois que terminar o “auxílio emergencial”, aumentando ainda mais a taxa de desemprego em 2021.

A nova realidade criada pelo fanatismo ultraliberal do senhor Guedes já apareceu imediatamente retratada no novo ranking mundial das Nações Unidas, o IDH, que mede a “qualidade de vida” das populações, no qual o Brasil caiu cinco posições, passando de 79º para 84º lugar entre 2018 e 2020. No mesmo período, o Brasil passou a ser o país com a segunda maior concentração de renda do mundo, atrás apenas do Qatar, e o oitavo mais desigual do mundo, atrás apenas de sete países africanos.

Por fim, é impossível completar este balanço dos escombros deste governo sem falar da destruição da imagem internacional do Brasil, conduzida de forma explícita e aleivosa pelo palerma bíblico e delirante que ocupa a chancelaria. Aquele mesmo que comandou a tragicômica “invasão humanitária” da Venezuela em 2019, à frente do seu fracassado Grupo de Lima; o mesmo que fracassou na sua tentativa de imitar os Estados Unidos e promover uma mudança de governo e de regime na Bolívia, através de um golpe de Estado; o mesmo que já comprou briga com pelo menos 11 países da comunidade internacional que eram antigos parceiros do Brasil; o mesmo que se lançou numa guerra beatífica contra a China, o maior parceiro econômico internacional do Brasil; o mesmo que conseguiu derrotar, em poucas semanas, duas candidaturas brasileiras em organismos internacionais; o mesmo que conseguiu que o Brasil fosse excluído da Conferência Internacional sobre o Clima realizada pela ONU em dezembro de 2020; e por fim, o mesmo que celebrou com seus subordinados do Itamaraty, o fato de o Brasil ter sido transformado, na sua gestão, num “pária internacional”. Algo verdadeiramente sem precedentes e que dispensa qualquer tipo de comentário adicional vindo da parte de um rapagão deslumbrado que foi nomeado praticamente por John Bolton e Mike Pompeo, a dupla de “falcões” que comandou durante alguns meses, em conjunto, a política externa do governo de Donald Trump.

Ao final do segundo ano deste governo, compreende-se imediatamente por que a maioria dos que participaram do golpe de Estado de 2016, e que depois apoiaram o governo do senhor Bolsonaro, estejam abandonando o barco e passando para a oposição. Os jovens “cruzados curitibanos”, tendo cumprido a missão que lhes foi encomendada e depois dos seus cinco minutos de celebridade, estão fugindo ou voltando para o seu anonimato, enquanto afundam na lama da sua própria corrupção.

A grande imprensa conservadora mudou e hoje dedica-se a atacar o governo diariamente, enquanto os partidos tradicionais de centro e centro-direita, que estiveram juntos com o senhor Bolsonaro desde o golpe de 2016, agora se afastam e tentam construir um bloco parlamentar de oposição. E até mesmo o “mercado” parece cada vez mais insatisfeito com o seu ministro da Economia, que já foi comemorado em outros tempos como a Joana d’Arc da revolução ultraliberal no Brasil.

Assim, neste momento o governo só conta com o apoio político do submundo fisiológico do Congresso Nacional, que a imprensa chama delicadamente de “centrão”, o mesmo mundo em que o senhor Bolsonaro vegetou durante 28 anos no mais absoluto anonimato, em nove partidos diferentes. Esse grupo parlamentar sempre esteve e estará pendurado em qualquer governo que lhe ofereça vantagens, mas nunca teve nem terá capacidade autônoma de constituir ou sustentar um governo por sua própria conta. Por isso, depois de dois anos dessa desgraceira, existe uma pergunta que não quer calar: como se sustenta, afinal, este governo mambembe, apesar da destruição que vai deixando pelo caminho?

Já foi mais difícil, mas hoje a resposta está absolutamente clara, porque na medida em que os demais sócios relevantes foram se afastando, o que sobrou de fato foi um simulacro de governo militar, absolutamente mambembe. Basta olhar para os números, uma vez que todos sabem que o próprio presidente e seu vice são militares, um capitão e o outro general da reserva. Mas além deles, 11 dos atuais 23 ministros do governo também são militares, e o próprio ministro da Saúde é uma general da ativa, todos à frente de um verdadeiro exército composto por 6.157 oficiais da ativa e da reserva que ocupam postos-chave em vários níveis do governo.

Segundo dados extraoficiais, são 4.450 do Exército, 3.920 da Aeronáutica e 76 da Marinha, número que talvez seja até maior do que o dos militantes oficiais do PSDB e do PT que ocuparam postos governamentais durante seus governos em décadas passadas. Por isso, depois de dois anos fica difícil tapar o céu com a peneira e tentar separar as FFAA do senhor Bolsonaro, não apenas pela extensão e pelo grau de envolvimento pessoal dos militares instalados dentro do Palácio da Alvorada, mas também pelo nível e intensidade dos contatos e reuniões regulares mantidas durante estes dois anos entre generais e oficiais da reserva e da ativa, dentro e fora do governo, sobretudo entre os altos escalões das duas instituições. Depois de tudo isso, seria como querer separar dois ovos de uma mesma gemada.

Isto posto, o fracasso deste governo deverá atingir pesadamente o prestígio e a credibilidade das FFAA brasileiras, colocando uma pá de cal sobre o mito da superioridade técnica e moral dos militares com relação ao comum dos mortais. Agora está ficando absolutamente claro, e de uma vez por todas, que os militares não foram treinados para governar. Uma coisa são seus manuais de geopolítica e exercícios de ginástica e de guerra, outra coisa inteiramente diferente são os conhecimentos e a experiência acumulada indispensável para a formulação de qualquer tipo de política pública, ainda mais para se propor a governar um país com o tamanho e a complexidade do Brasil.

Além disso, também ficou claro na história recente que a presunção da superioridade moral dos militares é apenas um mito, porque os militares são tão humanos e corruptíveis quanto todos os demais homo sapiens. Basta lembrar o episódio recente da solicitação irregular, por parte de centenas de militares, da “ajuda emergencial” destinada às pessoas mais pobres, na primeira fase da pandemia no Brasil. Estima-se que foram mais de 50 mil casos de irregularidades denunciadas pelo Tribunal de Contas da União e que tiveram que devolver o auxílio aos cofres públicos. Mas mesmo depois da devolução dos valores adquiridos irregularmente, o que esse episódio ensina é que não existe nenhuma razão para acreditar que os soldados estejam acima de qualquer suspeita e que sejam inteiramente infensos às “tentações mundanas”.

Aliás, não existe caso mais exemplar do fracasso desta crença na superioridade do juízo militar do que o que se passou com o próprio ex-Comandante em Chefe das FFAA brasileiras, que autoconvencido de sua “genialidade estratégica” e de sua grande “sabedoria moral” decidiu avalizar em nome das FFAA, e tutelar pessoalmente a operação que levou à presidência do país um psicopata agressivo, tosco e desprezível, cercado de por um bando de patifes sem nenhum princípio moral, e de verdadeiros bufões ideológicos, que em conjunto fazem de conta que governam Brasil, há dois anos. Que sirva de exemplo para que não se repitam estas pessoas que se consideram superiores e iluminadas, com direito a decidir em nome da sociedade, usem farda, toga, batina ou pijama.

No século XX, os militares deram uma contribuição importante para a industrialização da economia brasileira, mas também contribuíram de forma decisiva para a construção de uma sociedade extremamente desigual, violenta e autoritária. E castraram toda uma geração progressista que poderia ter contribuído para o avanço do sistema democrático instalado em 1946. Assim mesmo, agora no século XXI, a nova geração de militares, bastante mais medíocre, está se dedicando a destruir o que de melhor haviam feito no século passado.

Por tudo e com tudo, parece que está chegando a hora de a sociedade brasileira se desfazer desses “mitos salvadores” e devolver seus militares a seus quartéis e suas funções constitucionais. Assumir de uma vez por todas, com coragem e com suas próprias mãos, a responsabilidade de construir um novo país que tenha a sua cara, e que seja feito à sua imagem e semelhança, com seus grandes defeitos, mas também com suas grandes virtudes. Que seja um país altivo e soberano, mais justo e menos violento, que respeite as diferenças e todas as crenças, e que volte a ser mais humano, mais fraterno e mais divertido. E que o Brasil volte a ser aceito, admirado e respeitado pelo resto do mundo. Estes pelo menos são meus votos para o ano de 2021.

Edição 163, dezembro 2020

António Sales Rios Neto

CHEGOU A VEZ DE A SOCIEDADE ASSUMIR O PROTAGONISMO DA HISTÓRIA

"O momento pelo qual passa a humanidade, neste início de século XXI, é de extrema gravidade e, portanto, as possibilidades de profundas regressões, de barbárie e até mesmo de um colapso civilizatório nas próximas décadas já começam a permear algumas análises sobre conjuntura global e sobre o futuro da humanidade", escreve António Sales Rios Neto, Engenheiro Civil e Consultor Organizacional.

No último dia 10/12, ministrei uma palestra no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no espaço do IHU Ideias, abordando o tema Transição Epocal na Perspectiva das Ciências da Complexidade. O animal humano irá se reconciliar com a sua condição natural? Para complementar o que já foi apresentado nesta palestra, reforço aqui a relevância das reflexões em torno desta temática, hoje tão necessárias para buscarmos alternativas à atual crise civilizatória que está nos arrastando para o abismo. Já faz algum tempo que, aos poucos, surgem instituições assumindo uma postura crítica diante dos rumos sombrios que o nosso sistema-mundo vem trilhando nas últimas décadas, que caracterizam o contexto de mudança de época histórica vivenciado pela humanidade, tal como ocorreu na última transição de época, quando o gregarianismo – iniciado lá na revolução do neolítico – foi substituído pelo industrialismo, ao longo do século XVIII.

Uma dessas instituições é o próprio IHU, que desde a sua fundação em 2001 adotou em sua declaração de princípios uma abordagem crítica face à dura realidade em que a humanidade se encontra. Segundo o IHU, “vivemos a transição de uma modernidade para outra modernidade. Se a primeira foi universalizada pela Revolução Científica do século XVII e pela Revolução Industrial, desencadeada em 1750, a segunda universaliza o conhecimento e a informação, afetando profundamente todas as dimensões da existência humana”. É necessário, pois, que saibamos nos situar neste ambiente de mudança de época histórica e, desse modo, passarmos a assumir um protagonismo coletivo e integrador necessário à construção de um futuro reconhecível, que se afaste do modelo civilizatório vigente, amparado nas ilusões desnecessárias do fetiche da mercadoria e da dominação das instituições patriarcais, que se exacerbaram na contemporaneidade com a chegada do algoritmo, a mais nova ferramenta de indução do comportamento humano.

Como bem alertou o historiador Eric Hobsbawm, para quem “chegamos a um ponto de crise histórica”, ao concluir o quarto volume de sua principal obra (A era das revoluções, 1962; A era do capital, 1975; A era dos impérios, 1987; e A era dos extremos, 1994): “se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão.”

A seta da História está, mais uma vez, diante da possibilidade de novas bifurcações. Muitos pensadores que se notabilizaram com suas visões de mundo tentaram interpretá-la para compreender sua dinâmica e dar-lhe algum sentido. Apresento, a seguir, quatro perspectivas acerca do tortuoso curso da História que, embora antagônicas e contraditórias em muitos aspectos, podem ser muito úteis, tanto para nos mostrar que a realidade em que estamos inseridos resulta de um processo incessante de disputa de hegemonia entre muitas percepções de mundo, quanto para nos ajudar a ter uma melhor compreensão da conflituosa condição humana.

1) Há aproximadamente 170 anos, a engenhosidade do revolucionário Karl Marx em compreender a gênese e o metabolismo do capital, bem como seus prováveis desdobramentos para o futuro da humanidade, foi muito bem expressa neste relato: “A situação mais favorável para o trabalhador é a do crescimento do capital, temos de admiti-lo […]. De maneira geral, o sistema protecionista de hoje é conservador, ao passo que a livre troca é destruidora. Ela aniquila as velhas nações e leva ao extremo o antagonismo entre o proletariado e a burguesia. Numa palavra, o comércio livre acelera a revolução, e é numa direção revolucionária, senhores, que voto em favor do livre comércio!” (Discours sur le libre échange, 1848);

2) Logo após a queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, o filósofo e economista político nipo-estadunidense, Francis Fukuyama, vislumbrou, talvez movido por uma inspiração hegeliana do processo histórico, que a redenção humana, após tantas tentativas frustradas, havia chegado a um bom termo com a supremacia da democracia liberal, ao concluir que a dissolução das Repúblicas Socialistas Soviéticas representava “uma inconfundível vitória do liberalismo econômico e político, o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como a forma final de governo humano.” (The End of History, 1989);

3) Oferecendo um contraponto à perspectiva do fim da História de Fukuyama, em um artigo publicado ainda no mesmo ano de 1989, o controverso filósofo político britânico John Gray, questionador da ideia de que o progresso representou um avanço ético no processo civilizatório, disse: “Pelo menos sabemos de uma coisa: a história não há de acabar com a morte do liberalismo, nem com o colapso do comunismo. A segunda coisa que sabemos com certeza é que não temos nenhuma razão para esperar que o futuro seja marcadamente diferente do nosso passado. Como a temos conhecido, a história humana é uma sucessão de contingências, catástrofes e lapsos ocasionais de paz e civilização.” (Outra vez o fim da História?,1989);

4) Outro notável pensador que parece ter intuído bem o âmago da atual mudança de época que vivenciamos foi Hobsbawm, quando se dedicou a compreender os desdobramentos das grandes convulsões e contradições do breve século XX, período em que ocorreu o maior genocídio da História, estimado em 187 milhões de mortes (Brzezinski, 1993), o equivalente a algo em torno de 12% da população mundial em 1900. Para ele, “os jornalistas e ensaístas filosóficos que detectaram o ‘fim da história’ na queda do império soviético estavam errados. O argumento é melhor quando se afirma que o terceiro quartel do século assinalou o fim dos sete ou oito milênios de história humana iniciados com a revolução da agricultura na Idade da Pedra, quando mais não fosse porque ele encerrou a longa era em que a maioria esmagadora da raça humana vivia plantando alimentos e pastoreando rebanhos” (Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991, 1994)

Se observarmos bem, desde Fukuyama aos dias atuais, tanto a democracia quanto o mercado já passaram e continuam passando por muitas transformações. O curso da História nunca esteve tão mutável e essa dinamicidade sempre foi impulsionada por um grande vetor: a busca da liberdade. Segundo o historiador francês Jacques Attali, a História sempre seguiu, de século em século, numa direção única, de modo que nenhum dos inúmeros sobressaltos já ocorridos ao longo da sua trajetória conseguiu desvirtuá-la, pois “a humanidade impõe o primado da liberdade individual sobre qualquer outro valor”. Foi assim que se deu a longa evolução da História, uma permanente resistência às variadas formas de coerção. Como disse o sociólogo, antropólogo e filósofo francês Edgar Morin, “ainda que, para Fukuyama, sejam as capacidades criativas da evolução humana que se esgotaram com a democracia representativa e a economia liberal, devemos pensar que, ao contrário, é a história que se esgota e não as habilidades criativas da humanidade”.

Revoluções entrelaçadas, ainda em curso

Para muitos pensadores, o processo histórico é impulsionado por uma busca incessante por liberdade – obviamente considerando o ponto de vista de cada um dos diversos atores sociais –, como bem expressou Attali, ao afirmar que “a mesma força está sempre em curso: a da libertação progressiva do homem de todas as coerções.” Talvez seja mais proveitoso hoje aceitarmos que o devir da História está inexoravelmente enredado a uma pulsão por liberdade, muito embora uma considerável parcela da humanidade tenha se acomodado à falsa segurança da servidão voluntária. A liberdade é a energia que tem alimentado, tanto no passado quanto no presente, para o bem ou para o mal, as revoluções que moldaram a história da humanidade e que se manifestam com mais intensidade nesta mudança de época. Sob essa perspectiva libertária, temos hoje em movimento pelo menos três grandes revoluções entrelaçadas:

1) A revolução econômica, por mais liberdade do “capital”: desencadeada especialmente por volta de 1973, quando as nações mais ricas do globo ratificaram, sob forte pressão dos mercados, o fim dos acordos de Bretton Woods, antes rompido unilateralmente pelos EUA em 1971 com o chamado “choque de Nixon”. Esta manobra alterou as regras monetárias e financeiras internacionais de fundamento keynesiano, adotadas em julho de 1944, ainda no calor dos horrores da Segunda Guerra Mundial, para salvar a economia global da grande depressão dos anos 1930. O padrão dólar-ouro que regulava a economia no período do Estado de bem-estar social (1947-1973) foi substituído pelo regime de flutuação (tendo o dólar como moeda-reserva) ao sabor do mercado, especialmente o do estadunidense. Com isso, abriram-se os espaços para o livre trânsito de capitais, a financeirização da economia e a especulação pela especulação, exacerbando ainda mais a lógica de degradação ambiental, consumo e acumulação. A partir daí, de um lado, o neoliberalismo foi se firmando em busca do projeto irrealizável do laissez-faire global, ultrapassando as fronteiras e ideologias de Estado e arrastando os regimes democráticos para uma situação de declínio irrefreável. Por outro lado, a lógica da relação extrativista e predatória do capital com a natureza seguiu destruindo as condições que asseguram nossa permanência no planeta. Por isso, o alerta da jornalista e ativista canadense Naomi Klein, que vem denunciando o atual “capitalismo de desastre”, de que “o normal é mortal. A ‘normalidade’ é uma imensa crise. Precisamos catalisar uma massiva transformação para uma economia baseada na proteção da vida”;

2) A revolução tecnológica, por mais liberdade do “algoritmo”: revolução inaugurada a partir de meados dos anos 1970, quando houve a invenção do microchip (1976) pelo físico estadunidense e co-fundador da Intel Corporation, Robert Noyce. A partir daí, outras revoluções tecnológicas foram sendo desencadeadas nas áreas de nanotecnologia, inteligência artificial, robótica, biotecnologia, novos materiais etc. Ao mesmo tempo, ocorreram também mudanças radicais nas formas e meios de comunicação. Forjou-se assim uma espécie de visão cibernética de mundo. Estas duas revoluções, a econômica e a tecnológica, estabeleceram uma simbiose em que se reforçam e se potencializam mutuamente. No momento atual, com o choque provocado pela pandemia do coronavírus e com a eficiente resposta da vigilância digital posta em prática pelos países asiáticos como China, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e outros, é muito provável que o resultado dessa simbiose para as próximas décadas seja o condicionamento do nosso modo de viver a partir de uma nova biopolítica digital, especialmente depois que o Ocidente se apropriar desse novo Estado de vigilância. Cabe aqui lembrar o alerta da filósofa e psicóloga social estadunidense Shoshana Zuboff, que tem se dedicado a compreender e denunciar o capitalismo de vigilância instalado nas duas últimas décadas. Segundo ela, “se destruirmos a democracia, tudo o que resta é esse tipo de governança computacional, que é uma nova forma de absolutismo”;

3) A revolução sociocultural, por mais liberdade de modos de viver: associada ao entendimento de que há uma silenciosa revolução iniciada por volta dos anos 1960, ainda em curso nos dias atuais, que parece não mais permitir, especialmente da parte das forças de Estado, qualquer novo arranjo civilizatório que esteja assentado em bases patriarcais. Nesta vertente, estão os movimentos sociais como os protestos desencadeados por estudantes e trabalhadores na França em maio de 68, considerados por alguns como a primeira manifestação global pelo fim de posturas conservadoras e opressoras, bem como o movimento feminista, cujas origens remontam ao século XIX, a Revolução Laranja na Ucrânia (2004 e 2005), a Primavera Árabe no Oriente Médio e no norte da África (2010 a 2012), o Occupy Wall Street nos EUA (2011), os Indignados na Espanha (2011), as manifestações de junho de 2013 aqui no Brasil, o black lives matter, que irrompeu também em 2013 e recrudesceu agora em 2020 diante do acirramento de posturas racistas, dentre tantos outros, que parecem sinalizar o início do esgotamento de uma cultura patriarcal milenar.

Um dos que pressentiram que estamos vivenciando uma profunda transformação cultural nesse sentido foi Morin, quando disse: “tenho a impressão que maio de 68 é algo assim como um momento simbólico de crise da civilização, onde surgem algumas aspirações profundas, quase antropológicas (mais autonomia, mais comunidade), que declinam e renascerão sob outras formas”. Todas estas inquietações socioculturais parecem nos mostrar que chegou a vez de a sociedade assumir o protagonismo da História, se quisermos ter um futuro reconhecível.

Outro aspecto que permeia as preocupações com o decadente estado do mundo na atualidade é, conforme já amplamente comprovado pelas ciências da Terra, a questão das mudanças no clima que ameaçam seriamente as condições de manutenção da biodiversidade, da qual depende a vida do nosso planeta, o que já está nos colocando em situação de extrema vulnerabilidade, especialmente o enorme contingente de excluídos gerado pela visão mercadológica de mundo, representada pelo atual sistema capitalista hegemônico de cunho neoliberal. Um bom referencial para entender a gravidade da crise climática foi apresentado pelo jornalista David Wallace-Wells, editor da New York Magazine, ao publicar o livro A terra inabitável – Uma história do Futuro (Companhia das Letras, 2019). Não é exagero o alerta de Wallace-Wells de que seu livro contém “horror suficiente para induzir um ataque de pânico até nos de imaginação mais otimista”. Ele vê nas mudanças climáticas uma real “crise existencial”, em que estamos deixando por conta do acaso possibilidades dramaticamente infernais para um futuro bem próximo, cujo “resultado do melhor cenário é morte e sofrimento numa escala de 25 Holocaustos e o resultado do pior cenário nos deixa à beira da extinção”.

O momento pelo qual passa a humanidade, neste início de século XXI, é de extrema gravidade e, portanto, as possibilidades de profundas regressões, de barbárie e até mesmo de um colapso civilizatório nas próximas décadas já começam a permear algumas análises sobre conjuntura global e sobre o futuro da humanidade. O cenário é tão grave que a Universidade de Oxford criou em 2005 um Instituto para o Futuro da Humanidade – FHI (sigla em inglês), fundado e dirigido pelo filósofo sueco Nick Bostrom, dedicado à investigação de riscos de extinção da espécie humana. Com este mesmo propósito, a Universidade de Cambridge também criou em 2015 o Centro de Estudos de Risco Existencial – CSER. Segundo o cosmólogo e astrofísico britânico Martin Rees, que é professor de Cambridge, “este é o primeiro século na história mundial em que as maiores ameaças provêm da humanidade”. Por isso é que precisamos, com urgência, mudar radicalmente a nossa forma de estar no mundo.

Esse mal-estar civilizacional também é alimentado pela sensação de ausência de um projeto civilizatório. Há um vazio de ideias e ações, o que compromete ainda mais o futuro da humanidade, como bem expressou recentemente o sociólogo francês Alain Touraine, numa entrevista (El País, 28/03/2020) sobre a conjuntura da crise gerada pela pandemia do coronavírus: “hoje, não há nem atores sociais, nem políticos, nem mundiais, nem nacionais, nem de classe. Por isso, o que ocorre é totalmente o contrário de uma guerra, com uma máquina biológica de um lado e, do outro, pessoas e grupos sem ideias, sem direção, sem programa, sem estratégia, sem linguagem. É o silêncio.”

Para o sociólogo José de Souza Silva, a atual mudança de época histórica explica, de um lado, a crise de percepção que fragmenta os modos de interpretação da realidade e, de outro, a gênese da vulnerabilidade institucional que fragmenta os modos de intervenção nessa mesma realidade. Há, assim, uma crise de legitimidade das “regras do jogo” do desenvolvimento e “na eterna guerra entre a aparência (técnica) e a essência (visão de mundo, modo de pensar), a aparência continua ganhando a maioria das batalhas” (A mudança de época e o contexto global cambiante: implicações para a mudança institucional em organizações de desenvolvimento, 2003). Por isso, pensadores como Morin e outros propõem uma passagem do pensamento linear (enfoque em fragmentação, controle e previsibilidade), que sustentou a cultura patriarcal durante os últimos 6 a 7 mil anos, e vigora até hoje, para o pensamento complexo (enfoque em interações, incerteza e imprevisibilidade) que é bem mais abrangente para lidar com a complexidade da condição humana e da realidade que nos cerca (ver resumo de aprofundamento no Pensamento Complexo, abordado na palestra realizada no IHU Ideias, em 10/12). Nesse sentido, Morin nos alerta: “existem progressos possíveis, progressos incertos e todo progresso que não se regenerar, degenera. Tudo pode regredir.”

O filósofo político John Gray, que parece ser pouco conhecido no Brasil, no seu livro Cachorros de palha (Record, 2006), causou um certo pavor moral em muitos setores da ciência e da filosofia ainda impregnados com a ideia de que o progresso trará a salvação da humanidade. Em uma das passagens do livro, ele diz: “Hegel escreve em algum lugar que a humanidade só se contentará quando estiver vivendo num mundo construído por si mesma. Ao contrário, ‘Cachorros de palha’ argumenta a favor de uma mudança que se afaste do solipsismo humano. Os humanos não podem salvar o mundo, mas isso não é razão para desespero. Ele não precisa de salvação. Felizmente, os humanos nunca viverão num mundo construído por si mesmos.”

Ao que Gray sugere, que parece convergir com o entendimento das novas Ciências da Complexidade, quaisquer tentativas humanas de moldar a realidade segundo as visões mercadológica e cibernética de mundo (ou alguma outra), que estão disputando hegemonia nesta mudança de época histórica, estarão fadadas ao fracasso, o que pode acelerar ainda mais a interrupção prematura da experiência humana. É bem melhor apostarmos nosso futuro na revolução sociocultural em curso, na reforma do pensamento como propõe Morin, na revisão de nossas crenças e valores patriarcais, numa visão de mundo que dialogue com a realidade, que se afaste das ilusões de controle, hierarquia e apropriação da verdade, que aceite a aleatoriedade, a ambiguidade, as contradições, a multiplicidade, a imprevisibilidade e a incerteza que caracteriza a nossa frágil condição natural.

Michael G. Lawler e Todd Salzman

A IGREJA CATÓLICA PRECISA DE OUVIR TRANSGÉNEROS E INTERSEXUAIS

Os transgéneros e intersexuais não são pecadores perdidos no deserto moral católico, e é hora, na verdade já passou da hora, de a Igreja ir em busca deles, encontrá-los, afirmá-los e respeitá-los, e parar de intimidá-los e discriminá-los”, escrevem Michael G. Lawler e Todd Salzman, teólogos, em artigo publicado por National Catholic Reporter. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo/IHU

Quando os fariseus cobraram Jesus por ele ter recebido e comido com pecadores, ele respondeu com uma parábola. “Se um de vocês tem cem ovelhas e perde uma, será que não deixa as noventa e nove no campo para ir atrás da ovelha que se perdeu, até encontrá-la? E quando a encontra, com muita alegria a coloca nos ombros. Chegando em casa, reúne amigos e vizinhos, para dizer: ‘Alegrem-se comigo! Eu encontrei a minha ovelha que estava perdida’” (Lucas 15, 3-6).

Nós argumentamos – contra a carta do arcebispo emérito de St. Louis Robert Carlson “Desafio e Compaixão” e um documento de fevereiro de 2019 da Congregação do Vaticano para a Educação Católica, “Homem e mulher os criou”, ambos abordam a “ideologia de gênero” – que pessoas transgénero e intersexuais não são pecadoras, mas são ovelhas perdidas no deserto católico.

O termo transgênero descreve pessoas que nasceram com anatomias masculinas ou femininas mas que suas experiências os convencem que suas identidades de gênero não se encontram com a de nascimento. Transgênero é contrastado com cisgênero, pessoas cuja identidade de gênero se encontra com a identidade de nascimento.

Um estudo da UCLA em 2016 revelou que há mais de 1,4 milhão de adultos nos Estados Unidos que se identificam como transgênero, uma pequena minoria perdida em meio à avassaladora maioria de milhões de pessoas cisgênero.

Elas também estão perdidas no deserto da Igreja Católica, a qual continuam afirmando que somente o binário masculino-feminino é aceito como criado por Deus absoluto e ao qual atribui gênero imutável.

Pessoas intersexuais nasceram com genitália ambígua, frequentemente lutam com questões similares sobre identidade de gênero como pessoas transgênero fazem. Pessoas transgênero e intersexuais diferem em suas estruturas anatômicas no nascimento, e a maioria das pessoas intersexuais se auto-identificam como homens ou mulheres, mas elas frequentemente sofrem a mesma dor da rejeição da família, bullying e discriminação, tanto na sociedade quanto na Igreja.

Essa discriminação se baseia principalmente na aceitação inquestionável do binarismo sexual feminino-masculino e na aversão, até mesmo no ódio, a qualquer arranjo sexual ou de gênero que o desafie. O resultado angustiante desse bullying e discriminação foi relatado em um estudo de 2019 da Academia Americana de Pediatria: 35% dos adolescentes transgêneros relataram que haviam tentado suicídio no ano passado – mais do que o triplo do número de adolescentes cisgêneros.

Pais, famílias e igrejas podem começar a reduzir essas estatísticas aprendendo os factos sobre pessoas trans. Talvez até aprendam a ouvir Jesus em sua declaração conclusiva em sua parábola do bom samaritano: “Vai e faça o mesmo” (Lucas 10, 37), isto é, vá e tenha misericórdia.

A realidade biológica das pessoas intersexuais pode dar uma visão da complexa realidade das pessoas trans e fornecer direção para a resposta moral da Igreja a ambos os grupos. Uma rápida varredura da literatura médica revela que cerca de dois em cada mil nascidos vivos (0,2%) são crianças intersexuais.

Já 0,2% é uma frequência pequena, mas quase o dobro da frequência de nascimento de crianças com Síndrome de Down, que merecidamente recebem atenção e respeito em nossa sociedade. Certamente crianças intersexuais, perdidas e clamando no deserto social e católico, merecem a mesma atenção e respeito que os seres humanos criados por e à imagem misteriosa do Deus misterioso.

Seus corpos intersexuais são preocupantes para seus pais, sua sociedade e sua igreja por apenas uma razão: eles são considerados biologicamente ambíguos sexualmente quando comparados ao binário feminino-masculino dominante. Eles não seriam ambíguos e perturbadores, sugerimos, se a sociedade e a Igreja ouvissem sua afirmação de que constituem uma minoria do terceiro sexo.

A capital dos EUA, Washington, D.C., e 11 estados, incluindo Arkansas, Colorado e Minnesota, já reconhecem isso por meio de uma nota nas carteiras de motorista de indivíduos intersexuais. Acreditamos que o amor e a preocupação que as pessoas intersexuais merecem devem se estender às pessoas trans e àqueles com um gênero psicologicamente ambíguo.

Na véspera de sua aposentadoria como arcebispo de St. Louis em julho de 2020, Carlson publicou uma carta, “Desafio e Compaixão”, que lida especificamente com mulheres e homens que são transgêneros e as atitudes que os católicos devem ter em relação a eles. Apesar de enfocar as pessoas transgênero e seu tratamento, a carta tem implicações também para pessoas intersexuais e seu tratamento.

A carta ensina que os católicos devem ser compassivos com as pessoas que são transgêneros (e certamente também com as pessoas que são intersexuais), mas que “há limites para como devemos manipular nossos corpos”. A instrução para ser compassivo é decididamente uma instrução católica, mas nem tanto.

Carlson fala do sentimento e desejo de transição de um gênero para outro e argumenta, corretamente, que os sentimentos, dos quais temos uma multidão diária, não podem controlar exclusivamente nossa identidade. Há, no entanto, uma distinção que ele perde entre desejar psicologicamente estar em um gênero diferente e precisar fisiologicamente estar em um gênero diferente porque o gênero ao qual a pessoa foi designada no nascimento é experimentada por si mesma como o gênero errado. Essa autoexperiência contínua é uma realidade pessoal muito mais forte do que um sentimento ou desejo passageiro e pode ser descoberta e verificada por análise psicológica.

Apesar do ensino do papa João Paulo II de que “a Igreja valoriza a pesquisa sociológica e estatística” (Familiaris Consortio, 5) e de seu lamento de que os teólogos não utilizam os dados da ciência ao explorar questões teológicas, Carlson afirma que a Igreja proíbe qualquer intervenção médica para pessoas trans sem reconhecer a distinção entre simplesmente querer e precisar pessoalmente de uma transição de gênero.

Ele observa que a Igreja, entretanto, “reconhece que cuidados médicos apropriados são necessários nos raros casos de distúrbios genéticos ou físicos do desenvolvimento sexual”, isto é, naqueles raros casos de intersexo. Mais um exemplo da preferência da Igreja em sua ética sexual por um fundamento físico e anatômico em vez de um fundamento pessoal e humano.

Carlson estava seguindo uma linha marcada pelo documento do Vaticano “Homem e Mulher os criou”. O subtítulo do documento, “Rumo a um caminho de diálogo sobre a questão da Teoria de Gênero na Educação”, sugere que ele pode estar interessado no diálogo, mas está seriamente carente de ouvir pessoas transgênero e intersexuais. O “intersexo”, de fato, é mencionado apenas entre aspas, como se não fosse uma população real com experiências reais e dolorosas, mas apenas uma população com uma aberração fisiológica a ser resolvida.

O problema a ser resolvido não é um problema de “aberração psicológica” nos que nasceram intersexuais ou de desejo ilícito naqueles que querem fazer transição de gênero, mas um problema de encontrar uma estrutura para além do binarismo masculino-feminino para falar a todos os humanos e entenderem seus corpos.

Há também o problema do erro que tanto o documento do Vaticano quanto Carlson cometem, confundindo e combinando sexo físico imutável com gênero mutável socialmente construído. Novamente, o diálogo entre as autoridades da Igreja e os cientistas sociais contemporâneos esclareceria muito um problema obscuro.

O arcebispo declara “homem e mulher os criou” (Mateus 19, 4; Gênesis 1, 27), interpretando esta passagem da Escritura para sugerir que Deus criou apenas dois sexos, masculino e feminino. Essa interpretação, comum entre as autoridades da Igreja que não são estudiosos da Bíblia, ignora a regra católica estabelecida pelo Vaticano II para interpretar o significado das palavras bíblicas de Deus para nosso próprio tempo e cultura (Dei Verbum, 12).

O que o escritor sagrado de Gênesis realmente expressou é “homem e mulher os criou”, não “apenas homem e mulher os criou”. O intersexo, como a ciência o entende hoje, não era reconhecido no tempo e na cultura do escritor e, portanto, o escritor não poderia mencioná-lo, sugeri-lo ou governá-lo. Usar Gênesis 1, 27 como prova de que existem apenas dois sexos estabelecidos no nascimento e que o gênero está ligado a esses sexos é uma leitura errada e um uso indevido da palavra bíblica de Deus.

Enquanto algumas igrejas cristãs afirmam e acolhem pessoas trans e intersexuais, as igrejas católicas e evangélicas conservadoras ainda são tentadas a seguir os médicos vitorianos que, para reforçar o tradicional binário feminino-masculino, procuraram “corrigir” clinicamente o que perceberam como ambiguidade sexual. Protestamos e rejeitamos qualquer procedimento médico em adultos transgêneros e crianças intersexuais, mais preocupados em manter as normas sexuais religiosas e sociais conservadoras do que em respeitar a dignidade, integridade e agência de pessoas transexuais e intersexuais perdidas.

Pais, equipe médica e líderes religiosos devem aprender a permitir que pessoas trans tomem decisões cruciais sobre seus próprios corpos e a esperar até que as crianças intersexuais estejam maduras o suficiente para tomar suas próprias decisões sobre seus próprios corpos e evitar qualquer suposição de que são incapazes de fazendo isso com responsabilidade. Protestamos contra qualquer “correção” cirúrgica de uma criança intersexual.

A “ambiguidade” biológica dos corpos intersexuais, externa e internamente, torna difícil atribuir um determinado sexo / gênero a uma pessoa intersexual por meio de intervenção médica, pois a ciência contemporânea reconheceu que o gênero e suas expressões são determinados não apenas biologicamente por cromossomos, hormônios e genética, mas também nutrindo e cultura. O gênero pode ser discernido por todas as pessoas, heterossexuais, homossexuais, transexuais e intersexuais, somente à medida que ganham experiência, conhecimento e compreensão de si mesmas e de seus corpos na vida que vivem.

A ciência em torno do gênero desafia a afirmação ingênua do documento do Vaticano de que os médicos podem determinar a “identidade constitutiva” de um indivíduo simplesmente identificando ou reorganizando seu sexo biológico.

A montanha de testemunhos de adultos intersexuais que foram cirurgicamente “corrigidos” na infância deixa claro que, em seu julgamento, sua “correção” prejudicou em vez de aumentar seu florescimento humano. O testemunho semelhante de adultos transgêneros sobre a “correção” psicológica imposta a eles é igualmente convincente.

O documento “Homem e Mulher os criou” tem razão: ouvir os testemunhos das populações transgênero e intersexo é absolutamente necessário para que sua dignidade humana seja promovida e o bullying e a discriminação contra eles sejam erradicados. As pessoas transgênero e intersexual, não menos do que qualquer outra pessoa, são criadas à imagem e semelhança misteriosa do Deus misterioso. Se criados por Deus iguais a todas as outras criaturas humanas, perguntamos, por que eles são uma ameaça e estão perdidos na Igreja Católica?

Respondemos: Somente por causa da adesão inquestionável da Igreja ao binário estatisticamente dominante do sexo feminino-masculino.

Uma pessoa famosa sexualmente “corrigida” pode servir de exemplo para todos. Sally Gross nasceu intersexual de pais judeus na África do Sul em 1953 e, embora tenha nascido com “órgãos genitais ambíguos”, foi designada para sexo/gênero masculino e recebeu o nome de Selwyn. Gross sempre soube que ela era diferente e, na puberdade, quando seu desejo sexual nunca se desenvolveu, ela decidiu que era apenas uma celibatária natural. Isso a motivou a ser batizada na Igreja Católica, que valoriza o celibato. Ela ingressou na Ordem Dominicana, foi ordenada sacerdote em 1987 e ensinou teologia moral no Dominican College em Oxford, Inglaterra.

No início da década de 1990, ela voltou para a África do Sul, onde continuou a ensinar e onde, disse ao jornal The Natal Witness em 2000, finalmente teve tempo para refletir sobre as tensões em sua vida. “Havia duas áreas de tensão: havia a questão da minha identidade judaico-cristã e a questão da corporeidade e do gênero, embora eu achasse que isso fosse secundário”.

Na África do Sul, Gross encontrou um competente conselheiro que a ajudou a reconhecer que seu sexo/gênero registado estava errado e deveria considerar uma mudança de sexo/gênero.

Gross recebeu uma licença de um ano dos dominicanos para considerar uma mudança de sexo/gênero e foi proibida por seu voto de obediência de falar sobre sua condição aos pais, irmãos dominicanos ou amigos. Ela também foi injustamente negada qualquer apoio material ou moral. Quando seus superiores hierárquicos souberam de sua condição congênita e da possibilidade de uma mudança de sexo/gênero, eles a trataram como uma ameaça à ordem e à Igreja e recomendaram que ela fosse demitida do sacerdócio.

Um novo escrito do Vaticano então a dispensou do sacerdócio e a “reduziu” ao estado laico. Gross então optou por uma redesignação de sexo/gênero e se tornou Sally Gross e uma ativista intersexual.

Gross escreveu que um conhecido seu “teologicamente sofisticado, mas cristão fundamentalista”, disse a ela que, com base em Gênesis 1, 27, “uma pessoa intersexual como eu não satisfaz o critério bíblico de humanidade” e também é “congenitamente não batizável”.

Baseando-se em sua educação judaica e católica, Gross confessa ter achado esse comentário “bastante cômico” e ignorante, visto que a tradição rabínica sugere que o humano original era hermafrodita, homem e mulher, antes de Javé remover a mulher do costado de Adão.

Gross conclui com base teológica legítima: “Eu sou uma criatura de Deus. ... Eu fui criado, e as pessoas intersexuais [e transgêneros] são criadas, não menos do que qualquer outra pessoa, à imagem e semelhança de Deus”.

Criada por Deus igual a todas as outras criaturas humanas, sim, mas ainda cruelmente ovelha perdida e uma ameaça para a Igreja Católica e seu inquestionável sexo feminino-masculino.

A missão de Jesus no mundo era e é buscar a alma perdida, pecador ou não pecador, até que a encontre (Lucas 19, 10). A missão da Igreja Católica, que afirma ser o seu corpo, não pode ser diferente.

Os transgêneros e intersexuais não são pecadores perdidos no deserto moral católico, e é hora, na verdade já passou da hora, de a Igreja ir em busca deles, encontrá-los, afirmá-los e respeitá-los, e parar de intimidá-los e discriminá-los. Ao fazer isso, sugerimos, as pessoas transgênero e intersexuais criarão, como Jesus disse, “mais alegria no céu”, pois a Igreja terá “encontrado minhas ovelhas que estavam perdidas” (Lucas 15, 6-7).

Comentário de Andrea Lebra

ACABEMOS COM O SISTEMA CLERICAL

É densa a argumentação com a qual o filósofo e teólogo francês Loïc de Kerimel aborda a raiz doente do clericalismo eclesiástico no seu livro “En finir avec le cléricalisme” [Acabar com o clericalismo] (Seuil, 2020). O comentário é de Andrea Lebra, leigo católico italiano, em artigo publicado por Settimana News A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

É um livro que está obtendo um considerável sucesso na França. Ele aborda de frente e de forma meticulosa e documentada uma das questões particularmente caras ao Papa Francisco: como prevenir, combater e superar na Igreja aquele “mal feio que tem raízes antigas” (meditação matinal de 13 de dezembro de 2016), constituído pelo clericalismo, “modo anómalo de entender a autoridade na Igreja” e “atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas também tende a diminuir e a subestimar a graça batismal” posta pelo Espírito Santo no seu coração (Carta ao Povo de Deus de 20 de agosto de 2018).

O livro intitula-se “En finir avec le cléricalisme”. Foi escrito por Loïc de Kerimel, pai de quatro filhos e avô de seis netos, irmão do bispo de Grenoble-Vienne, Guy de Kerimel, apreciado professor de filosofia por quase 30 anos em um colégio de Le Mans, teólogo perspicaz, assíduo leitor das obras de um dos mais renomados teólogos franceses, o jesuíta Joseph Moingt, que morreu com mais de 100 anos no dia 28 de julho de 2020.

Cofundador da associação Chrétiens en Marche, por uma presença ativa e responsável do laicato na Igreja, particularmente comprometido no âmbito da Conférence Catholique des Baptisé-es Francophones, por uma reforma profunda da Igreja, Loïc de Kerimel também tem um papel particularmente ativo no Amitié Judéo-Chrétienne de France, uma associação que visa a favorecer o diálogo entre cristãos e judeus.

Raízes culturais do clericalismo

Precedido por um belo prefácio de Jean-Louis Schlegel, redator da revista Esprit, a revista fundada em 1932 por Emmanuel Mounier, “En finir avec le cléricalisme” tem o mérito de ir às raízes teóricas e culturais do clericalismo, uma doença crônica de que padece o cristianismo desde o fim do segundo século da era cristã. Publicado em abril de 2020, logo após a morte prematura do autor, ele pode ser considerado como um testamento espiritual dele.

A intenção de Loïc de Kerimel não é tanto estigmatizar as formas desviantes de clericalismo na Igreja que desembocaram – como afirmou o Papa Francisco na Carta ao Povo de Deus de 20 de agosto de 2018 – nos abusos sexuais, de poder e de consciência, mas sim de evidenciar o seu caráter sistêmico.

Este último é identificado pelo autor no facto de terem sido introduzidas e reiteradas no seio do “povo de Deus” as categorias da separação (clero/leigos, homens/mulheres, puro/impuro), da hierarquização (bispos/presbíteros/diáconos/religiosos/fiéis), da marginalização da mulher e da sacralização de uma pessoa mediante a imposição das mãos, que cria as condições para se sentir parte de uma casta (a “sacerdotal”), detentora de competências e de atribuições exclusivas e excludentes.

O caráter sistêmico daquilo que o Papa Francisco denuncia como “um modo não evangélico” de conceber o papel eclesial do presbítero (discurso de 6 de outubro de 2018 aos peregrinos da Igreja Greco-Católica Eslovaca), ou como “uma caricatura e uma perversão do ministério” do bispo (discurso de 24 de janeiro de 2019 aos bispos da América Central), ou ainda como “um perigo do qual os diáconos também devem se resguardar” (discurso de 25 de março de 2017 aos padres e consagrados por ocasião da visita apostólia a Milão), é examinado percorrendo, primeiro, a história dos primeiros séculos da Igreja.

Configuração hierárquico-sacrificial do sistema clerical

Segundo Loïc de Kerimel, na origem do clericalismo, há um processo de sacralização da função do presbitério, que, a partir do fim do século III, a Igreja nascente tomou emprestada das estruturas centralizadoras da tribo judaica dos levitas. A classe sacerdotal constituiria uma casta depositária dos poderes divinos, implicando uma diferença não apenas de grau, mas também de natureza entre o clero e os leigos. No que diz respeito à generalidade das pessoas batizadas, o clero seria depositário de uma superioridade religiosa derivada do sacramento da ordem.

Paradoxalmente, enquanto a religião judaica, com a substituição do templo pela sinagoga, do rabinato pelo sacerdócio e do sistema sacrificial pelo estudo da Torá, se encontra, de fato, após a destruição do Templo em 70 d.C., dessacralizada e dessacerdotalizada, a Igreja se estrutura de acordo com categorias levíticas, como a instituição do sumo sacerdote (ou seja, do bispo), a distinção sacerdotes/leigos, a exclusão das mulheres, a concepção sacrificial do culto e a reintrodução do “espaço sagrado” inteiramente dedicado a ele e acessível apenas ao clero.

A esse respeito, o autor cita a fórmula lapidar utilizada por Joseph Moingt na sua obra “Esprit, Église et monde: de la foi critique à la foi qui agit” (Paris: Éditions Gallimard, 2016, p. 216): o Antigo Testamento fundado na lei superou o Novo fundado no amor recíproco (p. 29).

No início, não era assim

São 15 os capítulos do livro distribuídos em três partes. A primeira (capítulos 1 a 6) examina o nascimento do “sistema clerical”, em contraste com o ensino de Jesus e com a vida das primeiras comunidades cristãs. O elemento mais problemático do processo que, ao longo da história, afetou o ministério ordenado – vivido concretamente hoje nos distintos papéis do bispo, do presbítero e do diácono – é a assunção de um forte caráter sacral e sacerdotal, que no início lhe era completamente estranho.

É significativo que os escritos neotestamentários, inclusive os apócrifos, concordam em atribuir a Jesus uma linhagem genealógica que não tem nada a ver com a tribo de Levi, excluindo-o assim na raiz do pertencimento à classe sacerdotal.

Com respeito a Jesus – e aos seus apóstolos – os Evangelhos nunca falam de sacerdócio. São muitos os títulos atribuídos a ele (Mestre, Profeta, Filho de Davi, Filho do homem, Messias, Senhor, Filho de Deus), mas nunca o de Sacerdote ou de Sumo Sacerdote (p. 45).

“Lendo os textos das origens cristãs, pode-se perceber que nenhum apóstolo e nenhuma outra pessoa se separa da comunidade em virtude de um caráter sagrado, ou se comporta como ministro de um culto novo ou realiza atos especificamente rituais. Pode-se observar que não há nenhuma distinção entre pessoas consagradas e não consagradas (…). Não há espaços ocupados por uma instituição sacerdotal”. Quem escreve isso é Joseph Moingt (em: “Dieu qui vient à l’homme”, t. 2/2, Paris: Les Éditions du Cerf, 2008, p. 842), o teólogo muitas vezes citado por Loïc de Kerimel.

O que é indelével no âmbito do “santo povo fiel de Deus” – escreve o autor – é a condição comum dos batizados e das batizadas à qual tudo, inclusive o exercício da autoridade, está subordinado (p. 41).

É o que emerge a partir das Escrituras, e foi o que o Concílio Vaticano II afirmou com autoridade: antes do ministério ordenado, isto é, antes do “sacerdócio ministerial” do bispo, do presbítero e do diácono, existe a condição comum de todos os fiéis em virtude do batismo, significativamente definida como “sacerdócio comum”. E é isso que, infelizmente, em nível prático e generalizado, por enquanto, não parece ter sido recebido pela Igreja, mesmo que seja um bom presságio a insistência do Papa Francisco em colocar novamente no centro o batismo como base inevitável da vida cristã.

Em outras palavras, no que se refere ao presbiterado, é do batismo que se origina não o “poder” sobre uma comunidade de fiéis, mas sim o “serviço” a ela. O sacramento da ordem não sacraliza a pessoa sobre a qual são impostas as mãos, mas radicaliza a sua vocação batismal.

Clericalismo: um problema cuja solução não está próxima

Na segunda parte do seu ensaio (capítulos 7 a 11), o autor se detém sobre a evolução e o fortalecimento do sistema clerical ao longo da história da Igreja.

Estigmatizando as ligações entre a violência e o sagrado a partir dos estudos de René Girard (p. 143), ele relê a Reforma de Lutero e o Concílio de Trento, que enfatizou a dimensão sacrificial da eucaristia e a sacralidade da figura do padre, ofuscando decisivamente a centralidade do fundamento batismal que une todos os fiéis.

Quanto aos nossos tempos, ele não esconde a sua decepção com a presença do fenômeno da reclericalização galopante presente em alguns âmbitos eclesiais e que parece interessar sobretudo aos “padres da geração João Paulo II”, que alimentam a nostalgia “de um sagrado englobante, que exonera o indivíduo da responsabilidade de viver e de pensar” (p. 197).

Isso o leva a reconhecer que o sistema clerical ainda parece ter um futuro decididamente duradouro, até porque quem deseja padres clericais são famílias numerosas e poderosas de afiliados pertencentes principalmente a categorias socioprofissionais elevadas (p. 198).

Presbíteros, não sacerdotes

Na terceira parte (capítulos 12 a 15), Loïc de Kerimel tenta responder à pergunta sobre se hoje é possível, por parte da Igreja, sair do clericalismo, concretizando o ideal crístico (p. 64) da igualdade de todas as pessoas batizadas em razão da mesma dignidade cristã proclamada certamente pelo Concílio Vaticano II, mas de modo não totalmente isento de mal-entendidos.

A esse respeito, o autor cita Gilles Routhier, um dos mais renomados historiadores do Concílio Vaticano II, que considera que, a 50 anos do Vaticano II, a perspectiva decididamente revolucionária de considerar o tema do “povo de Deus” como uma prioridade em relação à constituição hierárquica da Igreja permaneceu no nível de um piedoso desejo.

Em particular, quanto à imagem do ministro ordenado, o professor canadense de eclesiologia acredita que o Concílio se viu diante de duas perspectivas: uma, tradicional, que parte da noção de sacerdote – no modelo do “sacrificador” das religiões tradicionais, do grego hiéreus e do hebraico cohen –; a outra, atestada no Novo Testamento, baseada na ideia do presbiterado – o estatuto do idoso, do homem (ou da mulher?) que, pela experiência amadurecida, é capaz de exercer a arte do discernimento e de contribuir para resolver conflitos, demonstrando assim que tem o título para cuidar da comunidade que lhe foi confiada, para dar a sua própria contribuição para a vida dos fiéis em um serviço generoso e apaixonado, para presidir o culto.

Segundo Gilles Routhier, o Concílio escolheu a segunda perspectiva e, consequentemente, utiliza o termo “presbítero”, enquanto o Concílio de Trento usa o de “sacerdote”.

Citando, depois, Yves Congar, Routhier acrescenta que não só o termo sacerdote não é bíblico, mas que ele também privilegia indevidamente, entre as três funções atribuídas a Cristo (sacerdotal, profética, real), a sacerdotal em detrimento das outras duas.

Tratando-se de presbíteros, o seu ministério sacerdotal, isto é, a celebração da eucaristia e dos sacramentos, é apenas uma das dimensões do seu ministério sacerdotal. Este último é, em primeiro lugar, ministério da evangelização e do governo. A celebração da eucaristia não monopoliza a definição de quem é e do que faz o padre (p. 204).

Nenhuma desigualdade em Cristo e na Igreja

O reconhecimento – quanto à nacionalidade, condição social ou sexo – da “igual dignidade em Cristo e na Igreja” (Lumen gentium 32, comentando Gl 3,28) das pessoas batizadas e o consequente fim da “dominação masculina” constituem a condição sine qua non tanto da possibilidade de saída da crise que assola a Igreja depois dos escândalos em matéria de abusos sexuais, de poder e de consciência, quanto mais simplesmente da fidelidade ao Evangelho (p. 229).

A radical igualdade de todos os membros do “povo de Deus” sem discriminação de nação, de condição social ou de sexo não anula as diferenças de funções, mas faz com que o exercício destas últimas não gere cisões no corpo eclesial, afaste toda forma desviante de autoritarismo e, ao mesmo tempo, valorize diversidades e complementaridades dos carismas (cf. 1Cor 12) a serviço do bem comum (p. 257).

Sobretudo, “só será possível falar – afirma o autor – de saída do sistema clerical no dia em que nenhuma mulher for impedida de exercer as funções de governo, de ensino e de culto” reservadas hoje aos homens. Mas ele também acrescenta que, antes de pensar em abrir às mulheres a possibilidade de acesso ao ministério presbiteral, é preciso dessacralizá-lo e dessacerdotizá-lo, evitando estruturá-lo segundo uma ordem hierárquica rígida e discriminatória (p. 241).

Pôr fim à exclusão das mulheres devida ao sistema clerical demonstraria realmente que, com Jesus de Nazaré, passamos do sagrado ao santo, de uma concepção elitista de salvação à convicção de que Deus se doa imediatamente a todos e a todas sem excluir ninguém (p. 244).

Edição 162, novembro 2020

Mercedes D'Alessandro

DEVE A ECONOMIA FEMINISTA RESGATAR OS HOMENS?

"A economia feminista é revolucionária ou não é, porque não se pode conseguir igualdade em um mundo de opressão, porque não há igualdade em um mundo de pobreza nem de exploração. Temos à disposição todas as ferramentas para nos lançarmos nessa grande tarefa que é transformar o mundo que temos naquele em que queremos viver", escreve Mercedes D'Alessandro, economista argentina que fundou Economía Femini(s)ta, website e ONG, em 2015, sobre economia a partir da perspectiva do gênero, em artigo publicado originalmente por Piseagrama e reproduzido por Outras Palavras /IHU

Hanna Rosin, escritora e editora da revista Slate, escreveu em 2010 um artigo para a revista The Atlantic no qual previa o “ocaso dos homens”. Nele, Rosin mencionava muitos dos dados que já conhecemos: que hoje as mulheres estão mais educadas que os homens e que essa tendência está crescendo; que nos Estados Unidos elas já constituem a metade da força de trabalho; que pouco a pouco estão ocupando lugares antes impossíveis de imaginar para uma mulher (em empresas, em governos, na ciência e na tecnologia); e que, finalmente, esta tendência não é apenas irreversível, mas também tende a se fortalecer com o tempo.

Rosin faz uma observação muito interessante (e otimista): “Durante anos, o progresso da mulher se projetou como uma luta por igualdade. Mas e se a igualdade não for o ponto final? E se a sociedade pós-moderna simplesmente se adaptar melhor às mulheres?” O argumento central é que a economia do futuro não estará interessada nas características exercidas tradicionalmente pelos trabalhadores homens: tamanho e força. Estas características podem ser facilmente substituídas por gruas mecânicas, pás, máquinas genéricas. Os atributos mais difíceis de substituir são a comunicação, a inteligência social, a empatia, e nenhum deles é especialmente masculino.

Em linha com a abordagem de Rosin, há algum tempo pesquisadores que estudam temas vinculados ao emprego alertam para a necessidade de se pensar o que fazer diante da robotização. Há estudos que advertem que os computadores poderão substituir quase a metade dos trabalhos nos Estados Unidos nas próximas duas décadas (na China, mais ainda). Na Argentina, especula-se que em cerca de 15 anos os avanços tecnológicos poderão substituir quase 40% do emprego privado, e este é um cenário no qual o vento da modernização é usado a favor. Os robôs não só são capazes de realizar tarefas rotineiras ou que demandam força, mas também podem aprender: existem empresas testando-os como recepcionistas de hotel, na cozinha, para receber pacientes em hospitais e inclusive para colaborar em operações de alta complexidade. Existem máquinas que são capazes de prever doenças mentais a partir da leitura de um discurso com 99% de eficácia. No ano passado foi apresentado no Brooklyn, em Nova Iorque, um balé de robozinhos adoráveis, que dançavam ao ritmo de uma orquestra também de robôs.

Neste mundo futurista de empregos que desaparecem e de novas ocupações emergentes, as mulheres parecem levar vantagem. Como explica a economista Heather Boushey, das 15 categorias trabalhistas que devem apresentar mais crescimento na próxima década, só duas estão dominadas por homens: porteiro e engenheiro de computação. As mulheres, em compensação, lideram em enfermagem, assistência médica, cuidado de crianças. Não são trabalhos com um alto salário, mas essas trabalhadoras têm melhores perspectivas que seus pares. Quantos filmes futuristas poderíamos realizar com essa ideia!

Professoras e enfermeiras convivendo em suas rotinas de trabalho com R2-D2 e C-3PO que as ajudam. O que fariam de seus dias os milhares de homens desempregados? Tomariam responsabilidade pelos trabalhos domésticos? Haveria trabalhos domésticos? As mulheres dominariam o mundo ou um punhado de ricos donos das máquinas controlaria tudo?

O desenvolvimento das forças produtivas é um facto vivo do capitalismo, é o sangue que corre por suas veias e não algo excepcional. A robotização não é outra coisa senão a expressão do desenvolvimento do conhecimento humano colocado a serviço da produção. O grande problema aqui é o de sempre: quem se apropria dos benefícios da aplicação da ciência, da tecnologia, da expansão do nosso saber? O que pode haver de novidade nessa etapa é que a inteligência artificial talvez esteja em um ponto de inflexão.

No alvorecer do capitalismo, os operários lutavam com as máquinas que os substituiriam em sua força física; hoje essas máquinas não só podem reproduzir suas destrezas, como também se aproximam de compreender e imitar a inteligência humana… Ou ao menos esta é a fantasia que alguns têm. Cabem aqui as velhas perguntas existenciais da filosofia da ciência: O que é a inteligência? Qual parte dela é imitável? Podemos reproduzi-la?

Nos idos de 2016, a Microsoft lançou um bot que aprendia a partir de sua interação nas redes sociais. Depois de algumas horas, ele estava escrevendo comentários racistas. Cientistas da Universidade de Boston e da Microsoft publicaram, em meados de 2016, um artigo no qual contam a experiência de uma rede neural artificial que lia o site de notícias do Google News para construir um espaço de significados. O resultado deste experimento foi que a máquina reproduzia estereótipos de gênero. As mulheres eram enfermeiras, enquanto que os homens eram médicos. Elas eram donas de casa e eles trabalhavam.

Já no plano da ficção científica, Ava, a mulher robô do filme Ex Machina, tem seu cérebro artificial conectado à internet. Através de fibras óticas, nutre-se de palavras, ideias e músicas, assiste a filmes e inclusive encontra referências para escolher seu corte de cabelo e a roupa com a qual se sente melhor. Seu criador tem algumas versões anteriores dela programadas para servi-lo como gueixas eletrônicas; Ava, em seu caminho em direção à autoconsciência, consegue se rebelar contra esse destino traçado e escapa da fortaleza que testemunhou seu “nascimento”. O conflito entre o homem e a máquina é uma constante em todos os filmes futuristas, embora os mais difíceis sejam aqueles em que, ao desenvolver sua inteligência, os robôs não fazem nada além de submeter o homem a seus arbítrios e explorá-lo. Ou seja, uma projeção da vida capitalista.

“A gramática é a política por outros meios”, disse Donna Haraway em seu Manifesto ciborgue. A linguagem da ciência, da tecnologia e de nossos artefatos não está – por enquanto – separada do mundo em que vivemos. Basta dar uma volta pelo Vale do Silício para ver que quem manda no paraíso das startups é o mercado e quem decide o aplicativo da moda do próximo mês é a cotação em Wall Street.

Antes de cantar vitória por uma suposta força equalizadora entre mulheres e homens como resultado da robotização, poderíamos pensar em como podemos nos desfazer de uma antiga divisão do trabalho – vigente até quando imaginamos o futuro – e colocar essa tecnologia do nosso lado e não contra nós.

Uma vez, alguém me questionou: “Se os empresários podem pagar menos para as mulheres, então contratariam mais mulheres do que homens, e garantiriam mais dinheiro. O capitalismo já teria resolvido isso.” A princípio, nunca deixa de me chamar a atenção como pessoas que vivem submersas em um mundo de desigualdades e injustiças podem ter tanta certeza de que o capitalismo é eficiente e resolve seus desequilíbrios como que por magia. Mesmo que eu acreditasse que o capitalismo funciona, poderia salientar que pode levar muito tempo para resolver certos problemas. Pelo menos no que diz respeito às desigualdades salariais entre homens e mulheres, já se passaram algumas centenas de anos e não há sinais de que isso vá mudar substancialmente em curto prazo. Além disso, há muitos fatores no mercado de trabalho que fazem com que as mulheres ganhem menos que os homens pelo mesmo trabalho, fato que se repete em todo o planeta.

Parte das desigualdades salariais pode ser explicada por fatores claros, objetivos e passíveis de medição. Se alguém tem um nível de educação mais alto, mais preparação ou experiência para um cargo, parece lógico que esta pessoa ganhe mais que seus companheiros que não os têm. Posso explicar que Luís ganha mais que Mariana porque fez uma pós-graduação e já trabalha na empresa há três anos, enquanto ela acaba de ingressar e é o seu primeiro emprego. Mas se a comparo com Juan, que também é novo e recém-saído da universidade, e se acontece dele ter um salário maior, temos que indagar o que pode estar ocorrendo. O que acontece se isolamos todos os fatores que podem justificar as desigualdades salariais entre homens e mulheres?

Um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) analisou informações de 38 países que compararam a renda dos trabalhadores. O estudo levava em conta trabalhadores com os mesmos graus de educação, experiência, tipo de ocupação, categoria profissional, zona de residência e tempo de trabalho por mês e por semana. Considerando apenas essas características (lacuna explicável), descobriram que a lacuna deveria ser invertida: se não existisse o resto – esse lado obscuro que mencionávamos antes (a lacuna não explicável) –, as mulheres deveriam ganhar mais do que os seus companheiros homens em pelo menos 19 dos casos estudados, incluindo o Brasil.

Em resumo, para todos os estudos e diferentes medições, considerando que tenham similaridades no que diz respeito a educação, experiência, horas trabalhadas e demais variáveis que influenciam nas decisões do mercado de trabalho, as mulheres ganham menos que os homens; as que têm filhos ganham menos que as que não têm filhos; as mulheres negras, indígenas e camponesas ganham menos que as brancas.

São chamados de “paredes de cristal” os mecanismos invisíveis que impedem que haja movimentos horizontais de trabalhadoras em direção a ocupações associadas aos homens: ser pedreiro, comentarista de futebol ou governador aparecem como coisas de homens (e as estatísticas refletem isso). Há cinquenta anos as mulheres estavam majoritariamente restritas ao lar e a ter filhos, e só duas em cada dez trabalhavam no mercado de trabalho. Mas, tanto em 1900 como no presente, suas principais ocupações têm sido empregada doméstica, professora e enfermeira. A segmentação de tarefas por sexo quase não mudou no último século. Inclusive nas profissões em que são maioria e têm séculos de experiência a seu favor, as mulheres ganham menos!

Formar uma família segue sendo um dos maiores obstáculos que uma mulher enfrenta para desenvolver-se em sua vida profissional, política, artística, esportiva ou acadêmica. O motivo é simples: elas cumprem o papel de mãe e realizam o trabalho doméstico. Ser mãe e que tudo gire em torno disso é percebido socialmente como um dever e como destino inexorável da mulher. Isso é reforçado pela ideia, socialmente aceita, de que as mulheres seriam mais aptas para se ocupar da criação dos filhos. Essas atividades demandam tempo e exigem um grande esforço para se adequarem a qualquer outra tarefa. As mulheres se integram a um mundo profissional preparado para homens; além disso, esse homem comum que é tomado como referência é aquele que só tem obrigações com seu trabalho e cujo papel em casa não vai além de tirar o lixo ou levar as crianças para passear nos fins de semana.

Os preconceitos de empregadores (e consumidores) também são um obstáculo para o acesso e a permanência de mulheres em trabalhos que se assumem como masculinos. Há machismo e estereótipos quando se levantam dúvidas sobre sua capacidade de lidar com determinadas situações, seja por motivos emocionais, por motivos psicológicos, ou por sua capacidade física ou intelectual. Entrar em um taxi e encontrar uma motorista ainda nos gera surpresa, simplesmente não estamos acostumados.

Aquilo que me disseram em alguma reunião, que “o capitalismo deveria resolver”, de certo modo acontece. Desde que a mulher entrou no mercado de trabalho, o salário masculino baixou em termos relativos, e já não é suficiente para manter a imagem do homem da casa que alimenta a família. Muitas mulheres se viram obrigadas a trabalhar porque seu salário é parte central da renda familiar, não um extra.

Quanto à desigualdade salarial de gênero, podemos dizer com toda a segurança que o capitalismo não se ajusta por si só. Os países que mais avançaram nessa agenda partiram de políticas destinadas especificamente a extinguir as distintas desigualdades de gênero. É necessário estimular salários igualitários, combater os estereótipos e papéis tradicionais, incentivar as mulheres em suas aspirações, contribuir com sistemas de cuidado que permitam uma melhor remuneração do trabalho doméstico, entre tantas outras coisas. As negociações coletivas de salários e condições de emprego que visam garantir a igualdade, canalizadas através de sindicatos e associações de trabalhadores, são outra forma de responder a estas demandas.

Mas suponhamos por um momento que os salários se alinhem e que o eclipse seja total, que a mão invisível do mercado faça desaparecer por completo a desigualdade salarial. Sairemos do escritório, brindando pelas boas notícias, abriremos a porta de casa, e lá nos esperará radiante a segunda jornada de trabalho, aquele trabalho que ninguém paga e que todos esperam que a Mulher Maravilha faça.

No início de 2016, assisti a uma fala de Heather Boushey na New School, na qual ela apresentava seu livro Finding Time: The Economics of Work-Life Conflict (em português, algo como Encontrando tempo: A economia do conflito trabalho-vida). Na apresentação, Boushey mostrou um pôster que ilustrava o velho slogan do chamado “socialismo utópico” de Robert Owen. Em forma de tríptico, eram apresentadas três imagens. Na primeira, uma mulher na fábrica com o subtítulo “8 horas para trabalhar”; na segunda, uns pés que sobressaíam da cama com a legenda “8 horas para descansar” ; e, finalmente, um casal em um barco, com o jornal do sindicato nas mãos, representando as restantes “8 horas de recreação”. Boushey contou que o pôster, que está colado em seu escritório, lhe serviu de inspiração para sua pesquisa sobre a economia política do tempo. “Eu o vejo e não deixo de sorrir, este desenho diz muito. Tem algo perdido ali, há algo que falta. Eu o chamo de sócio oculto do capitalismo. Porque, para que essa mulher possa trabalhar 8 horas, dormir 8 horas e depois passear 8 horas de barco, alguém tem que se ocupar de fazer o café da manhã, limpar as suas roupas, tirar o lixo, fazer o trabalho doméstico. Alguém tem que estar cuidando das crianças e dos idosos. Alguém está ausente nessa situação. Há muitos trabalhos que não são vistos aqui, trabalhos não remunerados.”

A conclusão que deriva de seus estudos é que as mulheres também enfrentam pobreza de tempo. Saem para trabalhar para ganhar mais dinheiro, mas perdem em termos de qualidade de vida. Os homens têm longas jornadas de trabalho pago e as mulheres de trabalho pago e de tarefas do lar (não remuneradas). Quantas coisas mais se poderiam fazer com uma ou duas horas extras por dia? Para algumas mulheres seria uma revolução em sua vida cotidiana: permitiria que estudassem, fossem ao médico ou, como colocou Virginia Woolf, que escrevessem um poema.

O tempo está no coração das teorias econômicas mais antigas. Adam Smith se perguntava, antes de 1800, sobre o tempo de trabalho necessário para produzir as coisas de que necessitamos: um pedaço de pão, uma caneca de cerveja, uma jaqueta. A própria história do capitalismo está incorporada em tudo o que fazemos, reduzindo as horas que dedicamos ao trabalho para substituí-las através da incorporação da tecnologia, de processos mecânicos, de máquinas. No entanto, na economia, o tempo que faz sentido medir e calcular é o que se reflete em dinheiro; e é aí que o tempo das mulheres gasto no cuidado com a casa desaparece – como no quadro de Owen – da órbita do sistema de preços.

Se há algo que caracteriza a sociedade capitalista é o fato de que os produtos do trabalho tomam a forma de mercadorias, ou seja, nosso trabalho tem um preço; nós mesmos temos uma etiqueta que diz quanto valemos. Não importa se se trata de um trabalho físico ou intelectual, vivemos num mundo em que produzimos coisas (comida, móveis, dados, relatórios, a narração de um jogo de futebol), que logo trocamos por dinheiro, que por sua vez nos permite consumir aquilo de que necessitamos (roupa, transporte, moradia, ir ao cinema, um livro). Na economia governada pelo deus do mercado, além dos produtos do nosso trabalho terem um preço, também aqueles que os produzem têm uma remuneração: o trabalhador recebe um salário, o capitalista um lucro, o proprietário de terra uma renda.

No entanto, paralelamente, acima e abaixo do mercado se realizam vários trabalhos que não têm esse dom de serem trocados por dinheiro: o jantar preparado pela mamãe (incluindo o jantar preparado pela mamãe de Adam Smith), ir até o supermercado de bicicleta com a listinha de compras para encher a despensa, lavar as roupas e os lençóis, levar os filhos ao médico. Essas tarefas são realizadas todos os dias rotineiramente e demandam um tempo valioso, desgaste e esforço, mas não são trocadas por dinheiro. Todas são percebidas pela família, pela sociedade e pela contabilidade nacional como atos de dedicação e de amor. Embora sejam essenciais e inevitáveis para que a sociedade funcione, geralmente são menos valorizadas social e economicamente que o trabalho pago.

A assimetria na distribuição do trabalho doméstico é uma das maiores fontes da desigualdade entre homens e mulheres, é algo que transcende a desigualdade salarial. Sendo as mulheres aquelas que dedicam mais tempo a essas tarefas não pagas, elas dispõem de menos tempo para estudar, formar-se, trabalhar fora do lar; ou têm que aceitar trabalhos mais flexíveis (geralmente precarizados e mal pagos) e terminam enfrentando uma dupla jornada de trabalho: trabalham dentro e fora de casa.

A imagem da mulher circunscrita a sua casa serviu nos anos 1970 a Silvia Federici, filósofa e ativista marxista, para expor a necessidade da luta das mulheres por um salário pelo trabalho doméstico. O problema do trabalho doméstico é que, além de não remunerado, ele foi imposto como uma obrigação da mulher e foi se transformando em um atributo da personalidade feminina: ser uma boa dona de casa tornou-se, em algum momento, algo desejável ou característico das meninas.

Segundo Federici, as mulheres não decidem espontaneamente ser donas de casa, mas há um treinamento diário que as prepara para este papel, convencendo-as de que ter filhos e um marido é o melhor a que podem aspirar. E isso não é algo que pertence somente ao passado. Muitas décadas depois ainda se transmite uma cultura que reforça esses papéis. As bonecas, a pequena cozinha, o jogo de chá, a vassoura rosa, a maquiagem e as pulseiras de montar são o combo perfeito para criar princesas encantadoras, as mães e esposas devotas do amanhã. Essa história não é tão distante de uma cultura de filmes hollywoodianos com mulheres que largam tudo pelo amor por um homem. Ou mesmo do caso das telenovelas latinas, onde a empregada é aquela que se tornará a esposa depois de cuidar durante anos, em silêncio, de seu amado patrão, alcançando inclusive sua ascensão social. O modelo clássico de casal heterossexual funciona desse modo como um acordo tácito e reprodutivo.

As mídias estão cheias de publicidades de excelentes produtos de limpeza que cuidam, com essências de aloe vera e lavanda, das mãos que irão acariciar os entes queridos depois de limpar a crosta do vaso sanitário. A dona de casa é a heroína e protagonista dos contos infantis, a Cinderela nobre, altruísta e romântica que se prepara durante toda a sua vida para o momento em que se entregará e amará – com o melhor limpador bactericida – aos seus.

Ao longo da história das lutas feministas (e das políticas públicas de gênero), foram ensaiadas diferentes alternativas para valorizar economicamente o trabalho doméstico. Salários e pensões para a dona de casa – que equiparam o trabalho doméstico àquele que se realiza fora do lar –, cobertura universal de equipamentos públicos voltados aos cuidados com crianças, idosos ou pessoas com deficiência, entre outras. Há muitos elementos que a teoria econômica e as estatísticas públicas não veem e não integram em seus modelos, indicadores e políticas.

Quando não há berçários, jardins maternais ou casas de cuidados geriátricos disponíveis de forma gratuita (ou ao menos acessível), as famílias – sobretudo as de menor poder aquisitivo – têm que enfrentar essas tarefas por conta própria, e não resta tempo para estudar, formar-se, ter empregos remunerados – ou para assistir a uma novela na TV. As mulheres não têm escolha a não ser reduzir todas as atividades extras e apelar para a ajuda das irmãs mais velhas, tias, avós. Por outro lado, as famílias de alto poder aquisitivo têm mais possibilidades de contratar uma babá ou uma empregada e, assim, liberar tempo para ir à faculdade ou ao cinema.

Segundo o diretor regional (América Latina e Caribe) da OIT, José Manuel Salazar, há “uma situação de discriminação complexa em nossas sociedades, que estão historicamente enraizadas em regimes de servidão, com atitudes que contribuem para tornar invisível o trabalho das mulheres, muitas delas indígenas, afrodescendentes e migrantes”. Em muitos casos, essas trabalhadoras são exploradas física, mental e sexualmente. Em escala mundial, a América Latina possui 37% dos trabalhadores domésticos do mundo, ocupando o segundo lugar depois da Ásia. “Este trabalho, insuficientemente regulamentado e mal remunerado, segue sendo o principal prestador de assistência, na ausência de políticas públicas universais na maioria dos países da região”, explica María José Chamorro, especialista em gênero da OIT.

Por tudo isso, e porque, como diziam as feministas da segunda onda, “o pessoal é político”, é que o Estado tem um papel tão importante na provisão de sistemas de assistência. Bem implementados, eles poderiam ajudar a garantir que o mecanismo da desigualdade entre mulheres ricas que utilizam serviços prestados por mulheres pobres não se potencialize.

É justamente aqui que está o desafio conceitual da economia feminista, que necessita ser inscrita na teoria econômica, não como um capítulo à parte, um anexo, mas como uma peça que até certo ponto reorganiza a construção teórica. É o momento em que o homo economicus esbarra com a mulher econômica, ou em que o operário explorado se dá conta de que, para além de suas condições de exploração, há mais exploração ainda – a de suas esposas e filhas. Há toda uma revolução conceitual diante de nós.

Estudar a pobreza ou a desigualdade a partir da perspectiva de gênero implica entender que as relações de gênero sustentam e reproduzem a atividade econômica e contribuem para gerar pobreza e desigualdade. Por isso, quando falamos em acabar com a desigualdade salarial, não podemos ficar na superfície, pensando que se trata simplesmente de ter salários semelhantes ou de aderir à igualdade de superexploração e de pobreza para todos. No fundo, estamos falando da necessidade de transformar o modo com o qual organizamos nossa vida econômica cotidiana, e também de transformar a maneira como pensamos sobre isso. Nesse sentido, a economia feminista ainda precisa ser reescrita na história do pensamento econômico.

É aqui que a discussão central da economia em torno da desigualdade se torna relevante: pode o próprio capitalismo resolver a desigualdade entre ricos e pobres? A isso podemos acrescentar: pode o próprio capitalismo resolver essa lacuna sem resolver as questões de gênero?

O trabalho é aquilo que fazemos para transformar materiais em objetos que satisfaçam nossas necessidades (sejam elas espirituais ou alimentícias); o trabalho assalariado, em compensação, é uma relação social específica, que nasce com a sociedade capitalista. É necessário entender isso para compreender que a forma como organizamos o trabalho socialmente é passível de transformação.

Em um sistema cujo único objetivo é a obtenção de lucro, os resultados de melhorias na ciência e na técnica não são mais bem-estar, pessoas felizes e descansadas, mas a extensão da pobreza, a deterioração do trabalho humano, a precarização do trabalho que é também a precarização da vida. Essa relação fundamental problematiza um vínculo geral: o desemprego não é um problema individual. Por enquanto, a panaceia de um mundo automatizado, em que as máquinas nos libertam do lado obscuro da exploração, não parece estar chegando – pelo contrário, a precarização e o empobrecimento dos trabalhadores só avançam.

“Como feminista, sempre assumi que lutando pela emancipação da mulher eu estava construindo um mundo melhor, mais igualitário, justo e livre. Mas ultimamente comecei a me preocupar com o fato de que os ideais promovidos pelas feministas estejam servindo para fins muito diferentes. Me preocupa, em particular, que nossa crítica ao sexismo esteja legitimando novas formas de desigualdade e exploração”, diz Nancy Fraser. Fraser, filósofa e escritora feminista estadunidense, se preocupa com o fato de setores sociais que expressam o projeto político neoliberal se apropriarem dos horizontes e das lutas do feminismo, colocando-os a serviço de uma sociedade egoísta, meritocrática e individualista, em que se promove o bem-estar e o crescimento da mulher como fins em si mesmos, e não como parte de um projeto político igualitário.

Na campanha de Hillary Clinton à presidência dos Estados Unidos, houve uma grande discussão quando Madeleine Albright – que foi a primeira Secretária de Estado do país – disse que “há um lugar especial no inferno para as mulheres que não apoiam outras mulheres”. Mas acontece que o feminismo não é um movimento homogêneo e, de fato, pode até ser pensado isoladamente de uma concepção política ou de um horizonte. O feminismo é um movimento truncado. Ele não tem um único slogan, não tem uma cor, nem tem um código de vestimenta. É uma proposta de revolução do mundo em que vivemos, que aponta para uma organização social igualitária na qual nós, mulheres e homens, possamos exercer nossa liberdade.

Mas qual é o caminho ou a estratégia? A princípio, precisamos usar tudo isso que aprendemos com séculos de trabalhos domésticos não remunerados para varrer os estereótipos, aspirar as ideias arcaicas e jogá-las no lixo, criar nossos filhos a partir do respeito, da tolerância e do amor pelos demais, cuidar de nossos idosos e aprender com eles, exercer nosso poder de compra em produtos que respeitem homens, mulheres e natureza. E nesse caminho não nos resta outra saída senão transformar nossos vínculos familiares e romper com as dicotomias nas funções de cada um, definidas por regras que não ajudamos a criar e nas quais não estamos refletidas. É necessário travar muitíssimas batalhas ao mesmo tempo nos escritórios, nas fábricas, nos parlamentos, nos campos de futebol, na música, na cama.

Mas o maior desafio é entender a rede de relações por onde nos movemos. Quebrar teto e paredes de cristal às custas da exploração de trabalhadoras domésticas não contribui para nosso caminho em direção à igualdade. Ter mais trabalho às custas de nos sujeitarmos a uma maior precarização e a baixos salários também não é muito encorajador. Nos tornarmos um conjunto de zumbis sobreviventes às crises não é uma opção.

Se o capitalismo é uma construção social, sua transformação também é um processo social. A economia feminista é revolucionária ou não é, porque não se pode conseguir igualdade em um mundo de opressão, porque não há igualdade em um mundo de pobreza nem de exploração. Temos à disposição todas as ferramentas para nos lançarmos nessa grande tarefa que é transformar o mundo que temos naquele em que queremos viver.

Giorgio Agamben

QUANDO A CASA ESTÁ A ARDER

Vivemos em casas, em cidades que queimaram de cima a baixo, como se ainda estivessem de pé. As pessoas fingem que moram nelas e saem pelas ruas mascaradas entre as ruínas, quase como se ainda fossem os familiares bairros de antigamente. E agora a chama mudou de forma e natureza, fez-se digital, invisível e fria, mas precisamente por isso ainda está mais perto, está ao nosso redor e nos cerca a todo instante. A opinião é do filósofo italiano Giorgio Agamben, em artigo publicado em Quodlibet. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

“Tudo o que eu faço não tem sentido, se a casa está a arder.” No entanto, precisamente enquanto a casa está a arder, é preciso continuar como sempre, fazer tudo com cuidado e precisão, talvez até mais meticulosamente – mesmo que ninguém perceba. Pode ser que a vida desapareça da terra, que nenhuma memória permaneça daquilo que foi feito, para o bem ou para o mal. Mas você continua como antes, é tarde para mudar, não há mais tempo.

“O que acontece ao seu redor / não é mais da sua conta.” Como a geografia de um país que você deve deixar para sempre. No entanto, de que modo isso ainda lhe diz respeito? Precisamente agora que não é mais da sua conta, que tudo parece acabado, todas as coisas e todos os lugares aparecem na sua veste mais verdadeira, tocam-lhe mais de perto de algum modo – assim como são: esplendor e miséria.

A filosofia, língua morta. “A língua dos poetas é sempre uma língua morta... curioso dizer isso: língua morta que se usa para dar mais vida ao pensamento.” Talvez não uma língua morta, mas um dialeto. O facto de a filosofia e a poesia falarem em uma língua que é um pouco menos do que a língua dá a medida do seu grau, da sua vitalidade especial. Pesar, julgar o mundo medindo-o com um dialeto, com uma língua morta e, no entanto, fontal, onde não há nem vírgula para mudar. Continue falando esse dialeto, agora que a casa está a arder.

Qual casa está a arder? O país onde você vive, ou a Europa, ou o mundo inteiro? Talvez as casas, as cidades já arderam, não sabemos há quanto tempo, numa única imensa fogueira, que fingimos não ver. De algumas, restam apenas pedaços de parede, uma parede com afrescos, uma aba do telhado, nomes, muitíssimos nomes, já tocados pelo fogo. No entanto, nós os cobrimos de novo tão cuidadosamente com gesso branco e palavras falsas que parecem intactos. Vivemos em casas, em cidades que queimaram de cima a baixo, como se ainda estivessem de pé. As pessoas fingem que moram nelas e saem pelas ruas mascaradas entre as ruínas, quase como se ainda fossem os familiares bairros de antigamente.

E agora a chama mudou de forma e natureza, fez-se digital, invisível e fria, mas precisamente por isso ainda está mais perto, está ao nosso redor e nos cerca a todo instante.

O facto de uma civilização – uma barbárie – se afundar para não mais se levantar já ocorreu antes, e os historiadores estão acostumados a marcar e a datar cesuras e naufrágios. Mas como podemos testemunhar um mundo que se arruína com os olhos vendados e o rosto coberto, uma república que desaba sem lucidez nem orgulho, em abjeção e medo? A cegueira é ainda mais desesperadora, porque os náufragos fingem governar seu próprio naufrágio, juram que tudo pode ser mantido tecnicamente sob controle, que não há necessidade de um novo deus nem de um novo céu – apenas de proibições, de especialistas e de médicos. Pânico e sem-vergonhice.

O que seria um Deus a quem não se dirigissem nem orações nem sacrifícios? E o que seria uma lei que não conhecesse nem mandato nem execução? E o que seria uma palavra que não significa nem manda, mas se mantém verdadeiramente no princípio – ou, melhor, antes dele?

Uma cultura que se sente no fim, sem mais vida, tenta governar a sua ruína como pode, por meio de um estado de exceção permanente. A mobilização total na qual Jünger via o caráter essencial do nosso tempo deve ser vista nessa perspectiva. Os homens devem ser mobilizados, devem se sentir a cada instante em uma condição de emergência, regulada nos mínimos detalhes por quem tem o poder de a decidir. Mas, enquanto a mobilização no passado tinha o propósito de aproximar os homens, agora ela visa a isolá-los e a distanciá-los uns dos outros.

Há quanto tempo a casa está arder? Há quanto tempo queimou? Certamente, um há século, entre 1914 e 1918, algo ocorreu na Europa que jogou nas chamas e na loucura tudo aquilo que parecia restar de íntegro e vivo; depois, novamente, 30 anos depois, o fogo se espalhou por toda a parte e, desde então, não deixou de arder, sem trégua, submisso, quase invisível debaixo das cinzas. Mas talvez o incêndio começou ainda muito antes, quando o cego impulso da humanidade rumo à salvação e o progresso se uniu ao poder do fogo e das máquinas. Tudo isso é conhecido e não é preciso repetir. Em vez disso, é preciso se perguntar como pudemos continuar vivendo e pensando enquanto tudo estava queimando, o que restava de algum modo íntegro no centro da fogueira ou nas suas margens. Como conseguimos respirar entre as chamas, o que perdemos, a que destroço – ou a que impostura – nos apegamos.

E agora que não há mais chamas, mas apenas números, cifras e mentiras, estamos certamente mais fracos e sozinhos, mas sem possíveis compromissos, lúcidos como nunca antes.

Se apenas na casa em chamas é que se torna visível o problema arquitetônico fundamental, então agora você pode ver o que está em jogo na história do Ocidente, o que ela tentou apreender a todo o custo e por que só poderia fracassar.

É como se o poder tentasse aferrar a todo o custo a vida nua que produziu; no entanto, por mais que se esforce para se apropriar dela e controlá-la com todos os dispositivos possíveis, não mais apenas policialescos, mas também médicos e tecnológicos, ela só poderá fugir deles, porque é por definição inaferrável. Governar a vida nua é a loucura do nosso tempo. Homens reduzidos à sua pura existência biológica não são mais humanos, governo dos homens e governo das coisas coincidem.

A outra casa, aquela em que nunca poderei habitar, mas que é a minha verdadeira casa, a outra vida, aquela que não vivi enquanto acreditava que a estava vivendo, a outra língua, que soletrei sílaba por sílaba sem nunca conseguir falá-la – tão minhas que nunca poderei tê-las...

Quando pensamento e linguagem se dividem, crê-se que é possível falar esquecendo que se está falando. Poesia e filosofia, enquanto dizem algo, não esquecem que estão dizendo, recordam a linguagem. Se nos recordamos da linguagem, se não nos esquecermos de que podemos falar, então somos mais livres, não somos forçados às coisas e às regras. A linguagem não é um instrumento, é o nosso rosto, o aberto em que estamos.

O rosto é o que há de mais humano, o homem tem um rosto e não simplesmente um focinho ou uma cara, porque mora no aberto, porque no seu rosto se expõe e se comunica. Por isso, o rosto é o lugar da política. O nosso tempo impolítico não quer ver o próprio rosto, mantém-no à distância, mascara-o e cobre-o. Não deve haver mais rostos, mas apenas números e cifras. O tirano também não tem rosto.

Sentir-se vivendo: ser afetado pela própria sensibilidade, ser delicadamente entregue ao próprio gesto sem poder assumi-lo nem evitá-lo. Sentir-me vivendo torna a minha vida possível, mesmo que eu estivesse preso em uma gaiola. E nada é tão real quanto essa possibilidade.

Nos próximos anos, haverá apenas monges e delinquentes. No entanto, não é possível simplesmente dar um passo para o lado, acreditar que é possível sair dos escombros do mundo que desabou ao nosso redor. Porque o colapso nos diz respeito e nos apostrofa, nós também somos apenas um desses escombros. E teremos que aprender com cautela a usá-los do modo mais justo, sem sermos notados.

O rosto é o que há de mais humano, o homem tem um rosto e não simplesmente um focinho ou uma cara, porque mora no aberto, porque no seu rosto se expõe e se comunica. Por isso, o rosto é o lugar da política – Giorgio Agamben

Envelhecer: “Crescer apenas nas raízes, não mais nos ramos”. Afundar nas raízes, sem mais flores nem folhas. Ou, melhor, como uma borboleta bêbada, voar sobre aquilo que foi vivido. Ainda há ramos e flores no passado. E ainda é possível fazer mel com eles.

O rosto está em Deus, mas os ossos são ateus. Lá fora, tudo nos leva para Deus; por dentro, o obstinado e zombeteiro ateísmo do esqueleto.

O facto de a alma e o corpo estarem indissoluvelmente ligados – isso é espiritual. O espírito não é um terceiro entre a alma e o corpo: é apenas a sua inerme e maravilhosa coincidência. A vida biológica é uma abstração, e é essa abstração que se pretende governar e curar.

Para nós, sozinhos, não pode haver salvação: existe salvação porque existem outros. E isso não por razões morais, porque eu deveria agir pelo bem deles. Somente porque não estou sozinho é que há salvação: só posso me salvar como um entre muitos, como outro entre os outros. Sozinho – esta é a especial verdade da solidão – eu não preciso de salvação; pelo contrário, sou propriamente insalvável. A salvação é a dimensão que se abre porque não estou sozinho, porque há pluralidade e multidão. Deus, encarnando-se, deixou de ser único, tornou-se um homem entre muitos. Por isso, o cristianismo teve que se ligar à história e seguir o seu destino até o fim – e quando a história, como parece ocorrer hoje, se apaga e decai, também o cristianismo se aproxima do seu ocaso. A sua irremediável contradição é que ele buscava, na história e através da história, uma salvação para além da história, e, quando esta acaba, falta-lhe o chão debaixo dos pés. A Igreja, na realidade, era solidária não com a salvação, mas com a história da salvação e, como buscava a salvação através da história, só podia terminar na saúde. E, quando o momento chegou, ela não hesitou em sacrificar a salvação à saúde.

É preciso arrancar a salvação do seu contexto histórico, encontrar uma pluralidade não histórica, uma pluralidade como saída da história.

Sair de um lugar ou de uma situação sem entrar em outros territórios, deixar uma identidade e um nome sem assumir outros.

Rumo ao presente, só é possível regredir, enquanto no passado se procede em linha reta. Aquilo que chamamos de passado nada mais é do que a nossa longa regressão rumo ao presente. Separar-nos do nosso passado é o primeiro recurso do poder.

Aquilo que nos liberta do peso é a respiração. Na respiração, não temos mais peso, somos levados como que em um voo para além da força da gravidade.

Teremos que aprender do zero a julgar, mas com um julgamento que não pune nem premia, nem absolve nem condena. Um ato sem propósito, que remove a existência de qualquer finalidade, necessariamente injusta e falsa. Somente uma interrupção, um instante situado entre o tempo e o eterno, em que resplandece apenas a imagem de uma vida sem fim nem projetos, sem nome nem memória – por isso salva, não na eternidade, mas em uma “espécie de eternidade”. Um juízo sem critérios pré-estabelecidos; no entanto, precisamente por isso, político, porque restitui a vida à sua naturalidade.

Sentir e sentir-se, sensação e autoafeição são contemporâneos. Em toda sensação, existe um sentir-se sentir; em toda sensação de si, um sentir outro, uma amizade e um rosto.

A realidade é o véu através do qual percebemos o possível, aquilo que podemos ou não podemos fazer. Saber reconhecer quais dos nossos desejos infantis foram realizados não é fácil. Sobretudo se a parte da realização que beira o não realizável é suficiente para nos fazer aceitar continuar vivendo. Temos medo da morte porque a parte dos desejos não realizados cresceu sem medida possível.

“Os búfalos e os cavalos têm quatro patas: eis o que eu chamo de Céu. Colocar o cabresto nos cavalos, perfurar as narinas dos búfalos: eis o que eu chamo de humano. Por isso, digo: cuide para que o humano não destrua o Céu dentro de você, cuide para que o intencional não destrua o celestial”.

Permanece, na casa que está a arder, a língua. Não a língua, mas as imemoriais, pré-históricas, fracas forças que a conservam e a recordam, a filosofia e a poesia. E o que elas conservam, o que recordam da língua? Não esta ou aquela proposição significante, não este ou aquele artigo de fé ou de má-fé. Pelo contrário, o próprio fato de que há linguagem, de que sem nome somos abertos no nome e, nesse aberto, em um gesto, em um rosto, somos incognoscíveis e expostos.

A poesia, a palavra é a única coisa que nos restou de quando ainda não sabíamos falar, um canto obscuro dentro da língua, um dialeto ou um idioma que não conseguimos entender plenamente, mas que não podemos abrir mão de ouvir – mesmo que a casa esteja queimando, mesmo que, na sua língua que queima, os homens continuem falando pelos cotovelos.

Mas existe uma língua da filosofia assim como existe uma língua da poesia? Assim como a poesia, a filosofia mora integralmente na linguagem, e só o modo dessa moradia a distingue da poesia. Duas tensões no campo da língua, que se cruzam em um ponto para depois se separarem incansavelmente. E quem quer que diga uma palavra justa, uma palavra simples e fontal, mora nessa tensão.

Quem se dá conta de que a casa está a arder pode ser levado a olhar para os seus semelhantes, que parecem não se dar conta com desdém e desprezo. Porém, não serão precisamente esses homens que não veem e não pensam os lêmures com os quais você deverá prestar contas no último dia? Dar-se conta de que a casa está queimando não o eleva acima dos outros: pelo contrário, é com eles que você terá que trocar um último olhar quando as chamas se aproximarem. O que você poderá dizer para justificar a sua suposta consciência a esses homens tão inconscientes que parecem quase inocentes?

Na casa que está a arder, continue a fazer o que você fazia antes – mas você não pode deixar de ver aquilo que agora as chamas mostram a você nu. Algo mudou, não naquilo que você faz, mas no modo como você abre mão disso no mundo. Uma poesia escrita na casa que está queimando é mais justa e mais verdadeira, porque ninguém poderá ouvi-la, porque nada assegura que poderá escapar das chamas. Mas se, por acaso, ela encontrar um leitor, então ele não poderá, de modo algum, se isentar da apóstrofe que o chama a partir daquela inerme, inexplicável, submissa gritaria.

Só pode dizer a verdade quem não tem nenhuma chance de ser ouvido, só quem fala a partir de uma casa em que, ao seu redor, as chamas estão implacavelmente se consumindo.

O homem desaparece hoje, como um rosto de areia apagado na praia. Mas aquilo que assume o seu lugar não tem mais mundo, é apenas uma vida nua muda e sem história, à mercê dos cálculos do poder e da ciência. Mas talvez seja apenas a partir dessa destruição que algo mais poderá um dia aparecer lenta ou bruscamente – não um deus, certamente, mas sequer outro homem – um novo animal, talvez, uma alma vivente de outra forma...

Byung-Chul Han

O FACTOR X CONTRA A PANDEMIA É O SENSO CÍVICO

"O paradoxo da pandemia é que, em última análise, haverá mais liberdade se nos limitarmos voluntariamente. Quem, por exemplo, rejeita a máscara porque ela limita sua liberdade, acaba no final tendo menos liberdade ainda", escreve Byung-Chul Han, filósofo e ensaísta sul-coreano que é docente de Filosofia e Estudos Culturais na Universität der Künste de Berlim, e autor, entre outras obras, de Sociedade do Cansaço. Nascido em Seul, é considerado um dos filósofos contemporâneos mais interessantes. O artigo é publicado por Domani. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Qual a diferença entre as estratégias europeias na luta contra o vírus e as asiáticas? À primeira vista, parece que a diferença está na rígida vigilância digital a que estão submetidos os habitantes daqueles países. Na realidade, há uma maior observância das rígidas regras sanitárias, ainda que não seja prevista uma obrigatoriedade por parte do Estado, um “factor X” que não é fácil de explicar. Ao contrário, as democracias ocidentais pagam o preço pela doutrina liberal que as caracteriza e corre o risco de deteriorar o senso cívico que, por exemplo, na Nova Zelândia, ajudou a derrotar o vírus. Quando perguntado por que o Japão foi melhor sucedido na luta contra a pandemia em relação ao Ocidente, o ministro das finanças japonês, com reconhecidas tendências nacionalistas, Taro Aso, respondeu secamente com a palavra "mindo", literalmente "o nível das pessoas".

A afirmação do ministro da Fazenda gerou polêmica até no Japão. Ele foi censurado por espalhar o chauvinismo nacionalista em um período em que seria necessária a solidariedade entre todos os países do mundo. No entanto, Aso defende sua posição contra seus críticos, argumentando que os japoneses seguiram as regras rígidas de higiene de maneira resoluta, apesar de o governo não impor sanções aos infractores. As pessoas em outros países não teriam sido capazes de fazer isso, continua Aso, mesmo se tivessem sido obrigadas. Em primeiro lugar, é preciso considerar que não apenas o Japão, mas outros países asiáticos como China, Coreia do Sul, Taiwan, Cingapura ou Hong Kong continuam a manter sob controle a pandemia com sucesso. Enquanto isso, a Europa e os Estados Unidos estão literalmente dominados pela segunda onda de contágios. Essa segunda onda na Ásia praticamente não se manifestou. Os números mais atualizados são tão baixos que podem ser considerados irrelevantes. Justamente esses países nos mostram que podemos resistir à pandemia mesmo sem a vacina.

Os asiáticos observam com espanto como os europeus estão indefesos diante do vírus, como os governos europeus são impotentes na luta contra a pandemia. Diante de diferenças tão evidentes no número de contágios, quase se impõe a pergunta: o que distingue a estratégia asiática da europeia?

A contenção da pandemia na China pode ser atribuída em parte à vigilância rigorosa do indivíduo, inimaginável para o Ocidente. Mas a Coreia do Sul e o Japão são democracias. Um totalitarismo digital ao estilo chinês não é admissível nesses países.

Na Coreia do Sul, no entanto, o rastreamento digital é aplicado constantemente. Naquele país não está nas mãos das empresas de saúde, mas sim da polícia. Os contatos diretos são identificados com métodos forenses. Inclusive o aplicativo anticontágio que todos instalaram, embora não seja obrigatório, funciona de forma precisa e confiável. Quando as técnicas normais de rastreamento não são mais suficientes, também são analisados os pagamentos com cartão de crédito e inúmeras câmeras de vigilância pública.

Para a contenção efetiva da pandemia, portanto, a Ásia deve agradecer ao rigoroso regime sanitário que usa a vigilância digital? Não parece. O coronavírus é notoriamente transmitido entre contatos próximos que cada pessoa infectada pode indicar por conta própria, mesmo sem a vigilância digital. Já sabemos que não é tão relevante para acompanhar o contágio saber quem esteve em que momento durante um curto período em que lugar, quem andou por quais ruas.

Durante a enchente de 1962, parece que Helmut Schmidt tenha dito: "A força de espírito se mostra em tempos de crise". A Europa evidentemente não consegue mostrar força de espírito diante da crise – Byung-Chul Han

Os virologistas estão se questionando sobre as razões do baixo número de contágios na Ásia. O vencedor japonês do Prêmio Nobel de Medicina, Shin'ya Yamanaka, fala de um "fator X" que não é fácil de explicar. Está fora de questão que os países liberais ocidentais não possam implementar a vigilância individual segundo o modelo chinês. E isso é bom. O vírus não deve minar as democracias liberais. Nas redes sociais, no entanto, a preocupação com a privacidade é rapidamente jogada ao vento, mesmo no Ocidente. Todos se exibem sem nenhuma vergonha. As plataformas digitais como Google e Facebook têm acesso ilimitado à esfera privada. Ninguém reclama que o Google esteja lendo e avaliando os nossos e-mails. Não é apenas o governo chinês que está coletando os dados de seus cidadãos para controlá-los e discipliná-los. O sistema de crédito social do Estado chinês é baseado nos mesmos algoritmos que os sistemas de pontuação ocidentais como o Fico nos Estados Unidos ou o Schufa na Alemanha também usam. Considerando a questão por esse ponto de vista, a vigilância panóptica não é apenas um fenômeno chinês. Diante da vigilância digital que já está acontecendo em todos os lugares, o rastreamento anônimo por meio do aplicativo anti-Coronavírus seria realmente inofensivo.

Mas o rastreamento digital provavelmente não é a principal causa do sucesso dos asiáticos no combate à pandemia. Se o viés nacionalista for removido das palavras do ministro das finanças japonês, elas contêm uma porção de verdade. Indicam a importância do senso cívico, da ação comum em uma crise pandêmica. Onde as pessoas respeitam voluntariamente as regras sanitárias, se podem poupar controles e obrigações que exigem muito pessoal e custam muito tempo. Durante a enchente de 1962, parece que Helmut Schmidt, então Ministro do Interior do Land de Hamburgo, tenha dito: "A força de espírito se mostra em tempos de crise". A Europa evidentemente não consegue mostrar força de espírito diante da crise.

Na pandemia, as democracias liberais ocidentais estão mostrando fraqueza. Evidentemente, a doutrina liberal favorece a decadência do senso cívico. A pandemia mostra o quanto é importante. Prova da decadência é o fato de os jovens promoverem festas ilegais em meio à pandemia, que os policiais que deveriam dispersá-los são agredidos e que se cospe ou tosse sobre eles, ou o fato de as pessoas não tenham mais confiança no Estado. Paradoxalmente, os asiáticos têm mais liberdade justamente porque respeitam voluntariamente as rígidas regras sanitárias. Nem no Japão nem na Coreia do Sul foram estabelecidos lockdowns ou toques de recolher. O dano econômico também foi muito menos severo do que na Europa.

O paradoxo da pandemia é que, em última análise, haverá mais liberdade se nos limitarmos voluntariamente. Quem, por exemplo, rejeita a máscara porque ela limita sua liberdade, acaba no final tendo menos liberdade ainda. Os países asiáticos não são muito influenciados pela doutrina liberal. Por essa razão, os asiáticos têm pouca compreensão e tolerância pelos individualismos. As restrições sociais são, portanto, extremamente fortes. É também por isso que, como coreano, prefiro continuar vivendo no foco do Coronavírus que estourou em Berlim, em vez que em Seul, mesmo sem vírus.

Um grande número de contágios durante a pandemia não é, no entanto, e isso deve ser enfatizado, uma consequência natural do estilo de vida liberal que deveríamos simplesmente aceitar. O senso cívico e a responsabilidade individual são armas liberais eficazes contra o vírus. A doutrina liberal não leva necessariamente ao individualismo vulgar e ao egoísmo, que entram no jogo do vírus. A Nova Zelândia, um país liberal, já derrotou a pandemia pela segunda vez. O sucesso dos neozelandeses também se deve a uma mobilização do senso cívico. A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, falou com empatia do "time dos cinco milhões". Seu apelo apaixonado ao senso cívico foi muito bem recebido pela população. O desastre estadunidense pode ser reconduzido ao fato de que, ao contrário, Trump minou o senso cívico por puro egoísmo e sede de poder e dividiu o país. Sua forma de fazer política impede a criação de qualquer sentimento comum.

O liberalismo e o senso cívico não devem ser alternativos. O senso cívico e a responsabilidade individual são pressupostos essenciais para uma sociedade liberal completa. Quanto mais liberal uma sociedade, mais senso cívico é necessário. A pandemia ensina o que significa solidariedade. A sociedade liberal precisa de um forte conceito de "nós". Caso contrário, cai em uma multidão de pessoas egoístas. E aí, o vírus tem uma vida fácil. Se mesmo no Ocidente falássemos de um "factor X" clinicamente inexplicável que coloca o vírus em dificuldade, nada mais seria do que o senso cívico, a ação comum e a responsabilidade para com os outros.

Maria Rita Kehl

NATURALIZAMOS O HORROR?

"O Brasil regrediu a 1968, depois a 1964, e agora a 1936: Viva la muerte!", escreve Maria Rita Kehl, psicanalista, jornalista, escritora e autora, entre outros livros, de Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade (Boitempo), em artigo publicado originalmente na revista Socialismo & liberdade, Nº. 30, e reproduzido por A Terra é Redonda e IHU.

“É noite. Sinto que é noite/ não porque a treva descesse/ (bem me importa a face negra)/ mas porque dentro de mim/ no fundo de mim, o grito/ se calou, fez-se desânimo// Sinto que nós somos noite/ que palpitamos no escuro/ e em noite nos dissolvemos/ Sinto que é noite no vento/ noite nas águas, na pedra/ E de que adianta uma lâmpada?/ E de que adianta uma voz?” - (Carlos Drummond de Andrade, “Passagem da Noite”, em A rosa do Povo, 1943-45).

Nós, humanos, nos acostumamos com tudo

Melhor: com quase tudo. Há vida humana adaptada ao frio do Ártico e ao sol do Saara, à mata Amazônica ou o que resta dela assim como às estepes russas. Há vida humana em palacetes e palafitas, em academias de ginástica e UTIS de hospital. E o pulso ainda pulsa. Há pessoas sequestradas por psicopatas durante décadas, há meninas e meninos estuprados pelo tio ou pelo patrão da mãe. Sem coragem de contar, porque podem levar a culpa pelo crime do adulto. E o pulso ainda pulsa.

Mas o Brasil – tenham dó! – tem caprichado no quesito do horror já faz tempo. Naturalizamos a escravidão, por exemplo. Durante mais de trezentos anos! E depois da abolição naturalizamos a miséria em que ficaram os negros até então escravizados: jogados nas ruas de uma hora para outra, sem trabalho, sem casa, sem ter o que comer. Pensem bem: o fazendeiro que explorava a mão de obra de, digamos, dois mil escravizados, ao se ver obrigado a pagar um salário de fome (até hoje?) aos que se tornaram trabalhadores livres, iria fazer o quê? Ficar no prejuízo? Claro que não.

Decidiram forçar ainda mais o ritmo de trabalho de uns duzentos ou trezentos mais fortes e mandar os outros para o olho da rua. Sem reparação, sem uma ajuda do governo para começar a vida, sem nada. Daí que naturalizamos também um novo preconceito: os negros são vagabundos. Quando não são ladrões. Ou, então, incompetentes. Não são capazes de aproveitar as oportunidades de progredir, acessíveis a todos os cidadãos de bem.

Até hoje moradores de rua, pedintes e assaltantes amadores (os profissionais moram nos Jardins ou em Brasília) são identificados pelos vários tons de pele entre bege e marrom. É raro encontrar um louro entre eles. O mesmo vale para os trabalhadores com “contratos” precários: todos afrodescendentes. Achamos normal. A carne mais barata do mercado é a carne preta. Para não cometer injustiças, nesse patamar estão também muitos nordestinos que chegaram à região Sudeste como retirantes de alguma seca. Às vezes acontece alguma zebra e um deles vira presidente da República. Cadeia nele.

Naturalizamos duas ditaduras, que se sucederam com intervalo democrático de, apenas, 19 anos entre elas. Daí que naturalizamos as prisões arbitrárias também. “Alguma ele fez!” – era o nome de uma série satírica do grande Carlos Estevão, na seção Pif Paf da antiga revista Cruzeiro. A legenda era o comentário covarde de pessoas de bem, que observavam um pobre coitado apanhando da polícia ou arrastado pelos meganhas sem nenhuma ordem (oficial) de prisão. Naturalizamos a tortura também, para sermos coerentes. Afinal, ao contrário dos outros países do Cone Sul, fomos gentis com “nossos” ditadores e seus escalões armados. Não julgamos ninguém. Quem morreu, morreu. Quem sumiu, sumiu. Choram Marias e Clarices na noite do Brasil.

Daí que naturalizamos também – por que não? – que nossas polícias, findo o período do terror de Estado, continuassem militarizadas. Como se estivessem em guerra. Contra quem? Oras: contra o povo. Mas não contra o povo todo – alguns, nessa história, sempre foram menos iguais que os outros. Os pobres, para começar. Entre eles, á claro, os negros. Esses elementos perigosos para a sociedade, cujos antepassados não vieram para cá a passeio. Aprendizes do período ditatorial prosseguiram com as práticas de tortura nas delegacias e presídio. De vez em quando some um Amarildo. De vez em quando um adolescente infrator é amarrado num poste, pela polícia ou por cidadãos de bem.

Tolerantes, mas nem tanto

Mas calma aí, nem tudo se admite assim, no jeitinho brasileiro: que uma presidenta mulher tenha sido eleita em 2010 já foi uma grande concessão. Pior, uma presidenta vítima de tortura no passado – bom, se ela não nos lembrar disso a gente pode deixar pra lá. Mas a coisa vai além: uma presidenta mulher, vítima de tortura no passado, que resolve colocar em votação no Congresso – e aprovar! – a instauração de uma Comissão da Verdade??? Aí também é demais.

Por isso mesmo achamos normal que um capitão reformado (alguma ele fez?) tenha desafiado a Câmara dos Deputados ostentando, durante uma audiência pública, o livro de Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos torturadores mais cruéis daquele período. Parece que isso se chama quebra de decoro parlamentar, mas os colegas do provocador não quiseram ser intolerantes. “Brasileiro é bonzinho”, como dizia uma personagem representada por Kate Lyra no antigo programa Praça da Alegria.

Por isso, também achamos normal que a tal presidenta, que provocou os brios das pessoas de bem ao instaurar uma comissão para investigar crimes de lesa humanidade praticados naquele passado esquecido, tenha sofrido impeachment no meio do segundo mandato. Seu crime: “pedaladas fiscais”. Parece que antes de virar crime essa era uma prática comum e, às vezes, até necessária, e se constitui em antecipações de pagamentos por parte de bancos públicos para cobrir déficits do tesouro, reembolsáveis mais adiante.

Também achamos normal que o melhor presidente que o país já teve tenha sido preso – por que, mesmo? Ah, um pedalinho num sítio em Atibaia. Ah, um apartamento no Guarujá, calma lá!

Não é muita regalia para um filho de retirantes, torneiro mecânico, líder sindical? Um que tentou três vezes e se elegeu na quarta, com uma prioridade na qual até então ninguém tinha pensado: tirar o Brasil do mapa da fome… Que pretensão. Pior é que, durante algum tempo, conseguiu a façanha com a aprovação de uma lei que instituiu o Bolsa Família – essa, cujo usufruto, aliás, algumas famílias devolviam ao Estado, em prol de outros mais necessitados, tão logo conseguiam abrir um pequeno negócio, como um pequeno salão de beleza, um galinheiro, uma videolocadora…

Algumas dessas famílias chegaram a cometer o grande abuso de comprar passagens aéreas para visitar seus parentes espalhados pelo Brasil. As pessoas de bem às vezes reagiam. Não foi só uma vez que, na fila de embarque, ouvi o comentário indignado – esse aeroporto está parecendo uma rodoviária! Esse horror de conviver com pobres dentro do avião nunca foi naturalizado.

Além disso, o tal presidente persistente, por meio do Ministro da Educação, Tarso Genro, conseguiu aprovar pelo ProUni um programa de bolsas para alunos carentes. Entre estes, muitos trabalhavam na adolescência para ajudar as famílias e tinham menos tempo para estudar do que os candidatos das classes médias e altas. Outra lei provocativa foi a que instituiu as cotas para facilitar o acesso às universidades de jovens de famílias descendentes de escravizados.

Ana Luiza Escorel, professora da UFRJ, contou uma vez em conversa informal que os cotistas, no curso ministrado por ela, eram com muita frequência os mais empenhados. Faz sentido: a oportunidade de fazer um curso superior faria uma diferença muito maior na vida dos cotistas do que dos filhos das classes médias e altas. Esse mundo está perdido, Sinhá! Diria Tia Nastácia, que Emília chamava de “negra beiçuda” (credo!) nos livros de Monteiro Lobato.

Então, em 2018…

… naturalizamos, por que não?… as chamadas fake news. Até hoje, em alguma discussão política com motoristas de táxi – esses disseminadores voluntários ou involuntários de notícias falsas – eu me exalto quando o sujeito não quer nem ouvir que eu conheço o Fernando Haddad desde que ele era apenas o jovem estudante de Direito, filho de um comerciante de tecidos. Foram 80 diferentes fake news contra ele e sua candidata a vice, Manuela d’Ávila, na 1ª semana depois do 1º turno. A série das mentiras começou com um suposto apartamento de cobertura num prédio de alto padrão – o que não seria crime algum, se comprado com dinheiro obtido pelo morador. Só que o apartamento em que a família Haddad morava na época era de classe média, não de alto padrão. A mentira seguinte era a posse de uma Ferrari – com motorista!

Se fosse verdade, seria uma ostentação pra lá de brega. Segue o circo de horrores: acusação de estupro de uma criança de doze anos; de ter em seu programa de governo o projeto de lançamento de um “kit gay” (?) nas escolas e de instituir “mamadeiras de piroca” (?) nas creches públicas. Por fim, a pior das notícias: o candidato do PT teria baseado seu projeto de governo num decálogo leninista em defesa da guerrilha. Hein??? Foi o coroamento de uma sequência de absurdos que só não foram cômicos porque o Judiciário deixou passar impune … e nos condenou a um final trágico.

Aqui estamos, pois. O tal apologista da tortura se tornou presidente do país. No segundo ano de seu mandato, a pandemia de coronavírus chegou ao Brasil. O machista intrépido, que afirmou ter tido uma filha mulher depois de três filhos homens porque fraquejou, achou que uma boa medida em prol da saúde de seus governados seria insultar o vírus. Começou por chamar o dito cujo de gripezinha. Para provar que estava com a razão, compareceu e continua a comparecer a manifestações de apoiadores sem usar a máscara protetora. Continua a fazer essas aparições demagógicas semanais, com chapéu de cowboy (hein?), cuspindo perdigotos amorosos entre os eleitores. O narcisista só consegue olhar o outro pela lente de sua autoimagem. Se ele teve o vírus e nem foi hospitalizado, por que essa frescura de máscaras e luvas? Coisa de boiola.

E os que não têm pão? Que comam bolo…

E já que ninguém está olhando, que tal liberar as florestas para o agronegócio? A Amazônia arde, o Pantanal queima. O vice-presidente também faz pouco caso. Para um governo cujo Ministro da Saúde recusou a entrega de remédios para populações indígenas, os incêndios na mata onde várias etnias vivem e de onde tiram seu sustento são uma espécie bem-vinda de fogo amigo. A Amazônia, maior bioma do mundo, não se regenera quando incendiada. O que não virar pasto um dia vai produzir um matinho secundário mixuruca. Amazônia, nunca mais? A economia, ou melhor, o lucro do agronegócio, tem segurado a moral da tropa governamental.

Por outro lado, a inexistência de políticas públicas para amparar os milhões de trabalhadores desempregados e comerciantes falidos atingidos pela pandemia tem despejado diariamente milhares de brasileiros para morar nas ruas. Os R$ 600 responsáveis pelo aumento da aprovação do presidente evitam que alguns morram de fome. Os que já estão nas ruas não têm como se cadastrar para receber o auxílio. A situação dessas famílias é agravada pelo fato de que, durante o lockdown, pouca gente circula na rua.

Agora, aqueles que já sofriam a humilhação de ter de suplicar por uma moeda ou uma xícara de café com leite para aquecer o corpo, já não têm mais nem a quem pedir. As ruas, na melhor das hipóteses, estavam quase desertas porque muita gente respeitava o isolamento social. Agora, quando em São Paulo o surto deu uma pequena recuada, os “consumidores” voltaram a circular, mas com medo até de olhar nos olhos do morador de rua faminto. Contornam seus corpos sem olhá-los nos olhos: para se pouparem de algum mal-estar moral? Ou será que de fato não os veem?

Por uma razão ou por outra, devemos admitir que, sim, naturalizamos o horror. Com o lockdown é mais fácil ficar em casa e não olhar para o que se passa além da porta. É um dever cívico. A não ser… a não ser quando a moçada se cansa e resolve lotar as praias. Ou apostar tudo numa balada animadíssima, cheia de gente num lugar fechado – dançando, compartilhando copos de cerveja, gritando, soltando e aspirando perdigotos. O Brasil regrediu a 1968, depois a 1964, e agora a 1936: Viva la muerte!

P.S. Uma pergunta, para terminar: por que o Queiroz depositou 89 mil na conta de Michele Bolsonaro?

Edição 161, Outubro 2020

Markus Gabriel

A NOSSA ERA “PÓS-CORONIAL”

Os perigos existenciais para a humanidade em seu conjunto, associados à digitalização e a mudança climática, assim como a concorrência sistêmica amplamente percebida entre os Estados Unidos, a União Europeia e a China, afetam todas as pessoas que vivem hoje e as gerações futuras. Qualquer tomada de posição estratégica sobre estas problemáticas que não leve em conta sua dimensão cosmopolita fracassará porque passa por cima dos factos morais. E esta deficiência, por sua vez, se tornará visível sob a lupa da atual crise do coronavírus”, escreve Markus Gabriel, filósofo alemão, diretor do Centro Internacional de Filosofia de Bonn, Alemanha, em fragmento extraído da conferência [online] “Vírus e sociedade”, promovida em inícios de outubro pelo jornal Clarín, publicada por Clarín-Revista Ñ. A tradução é do Cepat /IHU

A ordem simbólica se viu balançada desde que a Organização Mundial da Saúde declarou uma pandemia viral, em março de 2020. Os subsistemas formativos da sociedade moderna se descarrilaram e hoje buscam frear o seu rumo deslizante sob a lupa de uma atenção globalmente coordenada sem precedentes. A ordem simbólica é o lugar onde a sociedade representa a si mesma. A sociedade é o sistema máximo de transações sociais, nunca fechado e por princípio inapreensível.

Em razão da sociedade não ser apreensível e nem sequer seja possível se aproximar e controlar como um todo, sempre há concepções da sociedade que estão mais ou menos distorcidas. Portanto, a ordem simbólica é sempre suscetível a enganos e autoenganos, ideologias, manipulações, propaganda, etc., ou seja, a toda gama de fenômenos gerados em condições de incerteza, falibilidade, pressões do tempo e complexidades que nunca poderão ser eliminadas com êxito.

O processo taxonômico no início da crise do coronavírus foi controvertido porque o uso do termo SARS-CoV-2, como agora é chamado, contribui ao fato de que, como todos vimos, “as pessoas entram em pânico ao pensar em um ressurgimento do SARS”, contra o qual alertou um grupo de virologistas chineses, na reconhecida revista The Lancet, em inícios de março de 2020: “O nome SARS-CoV-2 poderia ter efeitos adversos sobre a estabilidade social e o desenvolvimento econômico em países onde o vírus está causando uma epidemia, talvez até mesmo em todo o mundo”.

A reação social em sua totalidade, especialmente a reação política ao vírus, incluídas as classificações do vírus por atores politicamente envolvidos como o Instituto Robert Koch, assim como a declaração de pandemia da OMS, modifica a interação dos subsistemas da sociedade, o que se reflete no termo “relevância sistêmica”. Os grandes sistemas geopolíticos encenam seus valores em todos os canais disponíveis, há meses, e os mobilizam mediante sua gestão da crise normativa.

Atualmente, embora sejamos regidos por leis de proteção contra infecções e estados de emergência, como resultado, surgiu um desequilíbrio axiológico na Europa, a partir de março de 2020, revestido por uma pseudorracionalidade. Este desequilíbrio consiste em que o imperativo viral, que nos pede para fazer tudo o que for possível individual e coletivamente, a quase qualquer preço, para enfrentar a pandemia, elimina em grande medida os outros pontos de vista. Há meses, a única alternativa pensável na autodeterminação humana tem sido a economia, o que faz com que as discussões sobre o relaxamento das medidas se concentrem na questão de como é caro conter a pandemia.

A pseudorracionalidade do imperativo viral consiste em que são formulados riscos potenciais do novo coronavírus com base em dados incertos, de tal modo que até mesmo se sugere que deveria ter sido imposto um confinamento mais precoce, mais rigoroso e por mais tempo na Europa. Se o objetivo principal das atividades na sociedade em seu conjunto fosse conter o vírus, tal interpretação de risco teórico poderia ser aplicada segundo os dados fáticos e os estudos médicos.

Mas a premissa unilateral da teoria do risco (que não destaca uma saída à crise do coronavírus) é completamente absurda, já que passa por cima do facto de que, em primeiro lugar, há muitos outros riscos para a vida (incluídos os virais, como a pandemia interminável do HIV) que não se convertem na “máxima máxima” da ação estatal, e, em segundo lugar, que as medidas tomadas para combater o vírus são em si perigosas, e que em alguns casos já produziram e estão produzindo grandes danos colaterais.

É aqui que entra um formato de observação de análise crítica sobre a crise do coronavírus, que gostaria de utilizar como modelo para uma visão positiva do futuro. A crise revela nesta ótica as fragilidades sistêmicas da ordem global, que surgiu no curso de uma globalização interpretada em sua maioria de forma neoliberal, porque, com efeito, esta crise tem lugar majoritariamente na ordem simbólica: uma representação da pandemia viral absorveu toda a operação dos meios de comunicação.

No caso da Alemanha, em particular, é possível afirmar que, felizmente, o disparo inicial para enfrentar a pandemia foi impulsionado por uma visão moral. Em vista dos perigos médicos, tornou-se evidente um consenso social sob a forma de uma onda gigantesca de solidariedade, interpretada no sentido de que é nossa obrigação incondicional fazer tudo o que for possível, a quase qualquer preço econômico, para proteger as pessoas ameaçadas e para proteger nosso sistema de saúde de sua saturação. Chamo esta visão moral de “imperativo viral”.

Graças à dinâmica moral da primeira fase de gestão da pandemia, que tratava da proteção da vida, ficou demonstrado frente ao público que é uma mera desculpa política afirmar que, por necessidades do mercado, não sejamos capazes de criar uma ordem mundial moral, cujo alvo seja colocar no cume de nossos objetivos a sustentabilidade, a justiça distribu- Markus Gabrieltiva e outros imperativos urgentes para melhorar as condições sociais, independente das fronteiras nacionais.

Em resumo: devemos e podemos nos permitir reconstruir a ordem global em termos de objetivos moralmente justificáveis, inclusive eticamente desejáveis. O que é possível para conter uma pandemia viral não pode ser impossível para prevenir a crise climática – muito mais grave – e os diversos males que assolam milhões de pessoas em pobreza extrema e escassez de suprimentos.

Minha visão positiva se refere a que reconhecemos que somos capazes de progredir moralmente. Portanto, não é uma coincidência que, em meio à pandemia viral, estejamos lidando com problemáticas de carga moral – palavras-chave: discussão sobre racismo, mudança climática, renda básica incondicional, exploração de humanos e animais na indústria da carne, notícias falsas e populismo de direita –, com um enfoque inesperado. Em geral, o progresso moral consiste em tornar visíveis os fatos morais parcialmente encobertos também para aqueles que se beneficiaram em mantê-los em segredo.

O homem é capaz de uma moralidade superior, ou seja, de realizar mudanças sistemáticas no comportamento que resultam do reconhecimento de que existem coisas que devemos fazer e outras das quais devemos nos abster. Na tradição filosófica, o que devemos fazer se chama o bem, e o que devemos nos abster se chama o mal. Nossas situações cotidianas de ação nas condições da divisão moderna do trabalho são, é claro, consideravelmente mais complexas que os cenários éticos disponíveis, durante milhares de anos. Isto se traduz em novos tipos de situações de ação que nos confrontam com problemas éticos que ainda não foram esclarecidos. Portanto, como mostra a crise de coronavírus, não é fácil saber o que devemos fazer por motivos morais.

A ética em tempo real, em sistemas dinâmicos interconectados globalmente, se move de maneira diferente do que Platão, Aristóteles ou Kant poderiam imaginar. Os desafios morais mais urgentes do século XXI só podem ser superados, se eliminarmos os freios da ética local tradicional em favor de uma perspectiva genuinamente cosmopolita e, portanto, universalista.

Os perigos existenciais para a humanidade em seu conjunto, associados à digitalização e a mudança climática, assim como a concorrência sistêmica amplamente percebida entre os Estados Unidos, a União Europeia e a China, afetam todas as pessoas que vivem hoje e as gerações futuras. Qualquer tomada de posição estratégica sobre estas problemáticas que não leve em conta sua dimensão cosmopolita fracassará porque passa por cima dos fatos morais. E esta deficiência, por sua vez, se tornará visível sob a lupa da atual crise do coronavírus.

Uma crise é uma situação complexa de tomada de decisões cujo resultado está em aberto. Nossa liberdade se revela nas crises porque o resultado depende em grande medida das decisões que tomamos como indivíduos e comunidades, e de como se mapeiam institucionalmente nossos padrões de autodeterminação, o que por sua vez modifica a autodeterminação individual. Há diferentes padrões, ou seja, pontos de referência que podemos utilizar para medir e avaliar a gestão das crises e, portanto, um potencial ainda inexistente no “mundo depois do coronavírus”.

Algumas normas são de natureza local. Isto inclui, em particular, a maioria das normas legais que são fundamentais para a crise do coronavírus (especialmente as leis de proteção contra infecções), mas também requisitos e objetivos econômicos que estão vinculados a expectativas em uma economia social de mercado, diferentes daquelas da República Popular da China, por exemplo. As normas morais, os valores que afetam a todos os seres humanos como tais, devem ser distinguidas, pois concebem nossa ação individual e coletiva em termos de uma normatividade universal e são, portanto, o vínculo racional da humanidade, o teto sob o qual todos nós estamos.

Em vez de um “mundo depois do coronavírus”, gostaria de falar de uma ordem “pós-coronial”, que supõe que o novo coronavírus provavelmente não desaparecerá, mas se infiltrará nas estruturas sociais (como o HIV). É muito pouco provável que este vírus, como a varíola, possa ser erradicado em grande parte ou por completo mediante uma vacina. E mesmo que este golpe de sorte ocorresse, estaria a vários anos de distância no futuro, razão pela qual definitivamente haverá uma ordem “pós-coronial”, mas não necessariamente um mundo sem coronavírus.

Minha visão positiva em relação à ordem “pós-coronial” é que agora deveríamos aplicar aos grandes desafios do século XXI a bússola moral universal que usamos no início da pandemia para o imperativo viral. Estrategicamente, isto significa que temos que romper com a ideia de que os valores universais de liberdade, igualdade e solidariedade são específicos da Europa, e de que a União Europeia deveria agir agora contra os Estados Unidos ou contra a China com seu formato de valor correspondente.

Os valores morais não podem ser encontrados em uma concorrência sistêmica, eles a transcendem assim como os desafios que a humanidade enfrenta hoje. Existe uma possibilidade real de que no curso da crise do coronavírus criemos uma ordem moral que aponte para a cooperação e o encontro de uma imagem própria global da humanidade. Isto pressupõe que é necessário superar o pensamento contido dentro das fronteiras nacionais, que durante a pandemia viral também nos colocou em um perigoso desequilíbrio na Europa, porque os estados nacionais entraram em uma concorrência de higiene que só diminui gradualmente.

Desafios globais

Os grandes desafios do século XXI que reconhecemos até agora estão em nível global. Em primeiro lugar, trata-se de uma concorrência do sistema geopolítico na qual os Estados Unidos, União Europeia e China, em particular, estão lutando pela soberania interpretativa de nossas ações. Trata-se particularmente da relação entre instituições (agrupadas no conceito de Estado), empresas, ciência, tecnologia e a autodeterminação individual.

Neste contexto, deve-se agradecer que o disparo inicial para enfrentar a pandemia na Europa tenha conduzido a uma compreensão moral das fragilidades das cadeias de produção globais e locais em nosso comportamento de consumo, porque os cidadãos e as cidadãs, com restrições à sua liberdade, não se submetem às leis de proteção contra infecções só por medo ou obediência à autoridade, mas também pela ideia de que é moralmente imperativo proteger a saúde dos grupos de risco especialmente ameaçados.

Em segundo lugar, a atual crise do coronavírus é apenas um presságio de uma situação de crise incomparavelmente mais perigosa. Existe um consenso científico que se desenvolveu por décadas, com muito bons dados e estudos, de que a crise ecológica (palavra-chave: mudança climática, extinção de espécies, etc.) representa uma ameaça existencial real para os humanos. Já nem sequer está claro se este perigo ainda pode ser evitado, razão pela qual alguns especialistas em ética ambiental preferem discutir possíveis cenários de extinção controlada, em vez de sua prevenção.

A circunstância de que os atores políticos até agora nem sequer haviam implementado rudimentarmente medidas em temas ambientais que o conhecimento científico claramente sugere, ao passo que parecem agir bem durante a crise do coronavírus, se inscreverá na concorrência pela soberania da gestão da crise, razão pela qual não é por acaso que os comentários políticos sobre as medidas do coronavírus caminhem de mãos dadas com questões de proteção ambiental, inclusive com a declaração de um “New Green Deal” europeu.

Em terceiro lugar, as tecnologias da informação socialmente disruptivas (inteligência artificial, redes sociais, telefones inteligentes, robôs, etc.) há muito tempo penetram em nosso ambiente vital. O mundo da vida está tecnologizado de uma maneira que inclusive supera algumas das distopias históricas do ser (seinsgeschichtliche) de Heidegger referentes ao domínio da imposição da técnica moderna (Herrschaft des Gestells).

Em termos concretos, isto significa que os gigantescos oligopólios tecnológicos, quase exclusivamente estadunidenses e chineses, fazem com que seus usuários produzam enormes quantidades de dados, pelos quais são compensados bem abaixo do valor econômico de um salário mínimo aceitável. Ao mesmo tempo, mediante sistemas de autoengano (publicidade, fake news, bolhas de filtro, ciberataques para a formação de opiniões políticas, etc.), estes oligopólios penetram profundamente na capacidade de encontrar uma imagem própria das pessoas, e, portanto, na ordem simbólica. Desta maneira, a maioria dos usuários digitais se torna uma espécie de proletariado digital, situação que nem sequer é compensada com o pagamento de impostos adequados aos estados nacionais, que não se defendem realmente até agora.

Estes três grupos de problemas estão estreitamente vinculados às assimetrias de distribuição global, que certamente podem ser descritas como sistemas de exploração que conduzem a formas de desigualdade moralmente (e, portanto, socialmente) inaceitáveis, que não podem ser superadas pelos estados-nação sozinhos. As cadeias produtivas são e continuarão sendo globais, mas até agora se baseiam puramente na ideia de valor agregado, o que explica as cadeias produtivas às vezes absurdas e ecologicamente insustentáveis por completo do ponto de vista do consumidor e que, atualmente, estão parcialmente interrompidas pela pandemia viral e assim se tornam visíveis.

Concluo com um pedido ousado: para o futuro que com sorte será uma “ordem pós-coronial” moralmente progressista, tudo dependerá de conseguirmos fazer com que os déficits morais sejam superados de maneira moralmente adequada, ou seja, fruto de uma reflexão ética e filosófica. Para conseguir isto, primeiro devemos trabalhar para evitar qualquer unilateralidade a nível nacional. Porque estas andanças nacionais solitárias não se baseiam em uma moral superior e perdem ipso facto o objetivo de uma gestão de crise eficaz e sustentável, pois não se dirigem aos atores em sua autodeterminação moral (sua autonomia), que conecta todas as pessoas entre si.

É por isso que defendo uma nova Ilustração, em cujo centro esteja uma atualização urgentemente necessária de nossa capacidade de encontrar uma imagem própria no espaço humano da autonomia moralmente guiada. É claro, concretamente isto requer que esbocemos formatos de digitalização desejável e eticamente justificáveis, dos quais estamos muito distantes, como testemunham os chamados sem sentido por mais digitalização, em tempos de e-meetings intermináveis.

Enquanto não controlarmos eticamente a penetração das tecnologias da informação socialmente disruptivas no ambiente da vida e, portanto, revertermos parcialmente seus efeitos através da regulação e do comportamento ilustrado do consumidor, só poderemos observar com impotência como se desmantela o conceito moral que associamos ao título de democracia liberal. Quanto mais descontrolada é a digitalização por parte dos gigantes tecnológicos, reflete-se de maneira menos ética a autodeterminação do público formatada pelos novos sistemas digitais. Então, necessitamos de uma teoria transdisciplinar da digitalização desejável, da qual podem surgir as pautas para uma ética da era digital.

Artigo de José Centeno

TERESA DE JESUS E O DINHEIRO

Segundo José Centeno: “o dinheiro salta em cada página, ainda que o mais grandioso de Teresa fosse a profunda ou alta espiritualidade da união com Deus tal e como escreve em seus livros sobre os distintos graus de oração, da união mística com Deus sob as palavras de núpcias e do matrimónio espiritual com Deus. No entanto, o tema do dinheiro ou das riquezas são sempre recorrentes em sua vida e escritos”. O artigo é de José Centeno, escritor espanhol, publicado por Religión Digital. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

Santa, porém, mulher. O aspecto mais humano de Teresa, a mulher do dia-a-dia, não foi divulgado apesar da abundância de informações. É conhecida como a Santa de Ávila. Seus arrebatamentos místicos obscureceram sua grande personalidade humana. Qualquer santo fica tão mais admirado e sugestivo conforme mais o conhecemos como ser humano em sua vida cotidiana. Historiadores, artistas, escritores, pensadores, filósofos, antropólogos e muitas personalidades, não somente crentes, mas também ateus ou agnósticos ou indiferentes se interessaram por esta mulher, como mulher.

Quase sempre nos transmitiu a espiritualidade dos santos desencarnada da sua vida diária e do contexto histórico que é imprescindível para compreende-la em sua profundidade. Como são as relações de Teresa com sua família, sua ascendência de cristã-nova, pertencia a uma classe social de fidalgos, suas relações com a aristocracia e altas hierarquias da Igreja e do Reino, os livros que lia, sua juventude de menina presumida, faladora, que gostava de ser agradável e se relacionar. Para alguns a palavra de Teresa não agrada, pois seria feminista. Em seus escritos, ela se enoja da baixa estima e desprezo que eclesiásticos e civis tinham das mulheres, que as condenam a criar filhos, e os eclesiásticos condenam as irmãs a dedicar e recitar orações memorizadas e não a pensar e meditar. Suas queixas eram abundantes contra os inquisidores que proibiam não apenas a leitura da Bíblia, mas também muitos livros espirituais. Há críticas sociais à preponderância que se dá à “honra” e à “casta dos cristãos velhos” e às aparências sociais. Para ela somente há a honra das virtudes de ser filha de Deus. Rompe com o costume de não admitir irmãs que não sejam de sangue limpo. Abriu as portas de seus monastérios às filhas de famílias de cristãs-novas.

O dinheiro está presente em todos os seus escritos

Que lugar o dinheiro, os bens, as riquezas, as necessidades materiais, a comida, as tarefas diárias ocuparam na vida de Teresa de Jesus?

Teresa de Jesus, por ser descendente de cristãos-novos, ainda que nunca tenha dito abertamente, estava habituada à mentalidade mercantil própria dos judeus. Pertencia à classe média acomodada.

O primeiro escrito que se conserva de Teresa, quando tinha 31 anos, é uma carta ao rentista que se encarregava do pomar dos Ahumada, onde dizia: “faça-me a misericórdia de pagar pelo trigo, porque eu não tenho, porque o senhor Martín de Guzmán (cunhado de Teresa) ficará feliz com ele e pagará por ele, o que normalmente é feito lá”. Na última carta que escreve, também trata, dentre outras coisas, sobre o dinheiro.

Em seus escritos de todo o tipo, não somente nas cartas, mas também nos mais místicos, falava com frequência do dinheiro, das riquezas, do ouro, dos diamantes, dos bens, etc. Por exemplo, disse que “a alma é toda um diamante criado pelo Vidreiro Divino e com o ouro de maior quilate”. Afirma que “as obras divinas são ouro, joias, pedras preciosas”. As obras humanas são “chifres de cobre”, moeda de ínfimo valor que estava fora do curso legal. Nas Moradas do Castelo Interior há uma transposição descritiva das grandezas e riquezas dos castelos ao Castelo ou Morada onde habita o Senhor Nosso Deus.

O dinheiro salta em cada página, ainda que o grandioso dela é a profunda ou alta espiritualidade da união com Deus tal e como escreve em seus livros sobre os distintos graus de oração, da união mística com Deus sob as palavras de núpcias e do matrimônio espiritual com Deus. No entanto o dinheiro ou as riquezas são sempre um tema recorrente em sua vida e escritos.

Pequenos mosteiros de pobreza e esmola ou de renda

O destino da mulher era ou ser esposa, servir o marido e aos filhos ou solteira cuidando dos pais ou para o convento servir a Deus sob a vigilância dos clérigos. Não se concebia uma mulher sozinha na vida. Em 1536, com 21 anos, Teresa, contra a vontade de seu pai que procurava para ela um esposo do seu escalão, escapou de casa para entrar no convento da Encarnação. De acordo com um irmão “combinamos de irmos um dia, cedo da manhã, ao mosteiro onde estava aquela minha amiga, a quem eu tinha muita afeição”.

No mosteiro da Encarnação havia mais de 150 mulheres, nem todas freiras, porque algumas de famílias ricas entravam com suas criadas, recebiam visitas de todo tipo em suas celas que as vezes tinham cozinhas. Outras dormiam em pequenas celas ou dormitórios corridos. A clausura era infringida por qualquer desculpa. Havia lá dentro as desigulades de classes da sociedade. As “freiras” eram na prática subservientes. Algumas vivem muito bem, outras passando fome e frio. Mais que conventos, eram similares a beatérios onde ingressavam as mulheres que ficavam solteiras, ou que não queriam se casar, como ocorreu com Teresa. A vida era muito relaxada como na maioria dos conventos, Teresa que é muito profunda e radical aspirava com outras a outro tipo de vida mais autêntico. Ela e outras freiras decidiram por sair de lá e fundar um mosteiro que seria casa de oração, contemplação, pobreza e recolhimento. Uma casa para uma comunidade de doze ou treze monjas, como Jesus e os discípulos.

A primeira fundação foi o mosteiro de São José de Ávila em 1562. Ela queria que fosse um mosteiro onde vivessem da esmola ou da pobreza, como ela chamava. Ela sofreu uma oposição muito forte da Encarnação e também da cidade de Ávila. Estamos em 1562, Teresa tinha 45 anos e já estava na Encarnação há 27 quando partiu. Ela teve que obter uma licença civil e outra do bispo para criar outro convento. Naquela segunda metade do século XVI ocorreu uma grande crise econômica no Reino devido aos muitos gastos causados pelas guerras do rei Felipe II. As autoridades e os outros conventos relutaram em permitir outro convento, que teve de ser pago com mais esmolas. As esmolas estavam diminuindo como veremos mais tarde.

Sua intenção era fundar conventos de pobreza, sem dote, e viver da esmola, para evitar a desigualdade que os dotes geram entre as irmãs. Para fazer isso, ela fundou seus mosteiros em cidades importantes onde o dinheiro é abundante. Mas as dificuldades econômicas temperaram o início de seus conventos de pobreza. Sem dotes havia o perigo de se tornarem abrigos para os necessitados. Suas bases foram alimentadas principalmente por mulheres de origem burguesa. Não se admitia analfabetas que não soubessem rezar o ofício divino. Se viver da renda e não do trabalho era o ideal e a honra do rico castelhano, ela, pelo contrário, queria viver da esmola como os pobres e, se necessário, do trabalho. As judias-convertidas sempre tiveram dificuldades de se manter, então ela não descartou completamente o trabalho. “Você tem que viver de esmola sempre, sem renda, enquanto puder sofrer” (Const. 9).

O realismo a obrigou a adotar decisões flexíveis e admitir algum trabalho nas cidades onde há pouca esmola “porque os mosteiros com renda são os de lugares pequenos, não deveria ser feito assim, mas teve que ser assim para poder se sustentar”.

Em 1568, devido às graves dificuldades econômicas das duas primeiras fundações de São José de Ávila e de Medina del Campo, ela também concordou em fundar mosteiros para alugar, como o de Malagón. A partir deste momento alternando entre uns e outros, conforme as possibilidades. No total fundou 17 conventos em vinte anos, dez de pobreza e sete de renda. A partir de 1579, cinco dos “de pobreza” tiveram que se transformar em “de renda”. Teresa é uma mulher eminentemente prática.

Famílias benfeitoras, como frequentemente acontecia, pagavam por igrejas, capelas ou mosteiros protegidos para interceder por suas almas e garantir o céu com missas perpétuas. Teresa não se contenta com só a promessa de ducados suficientes para suas novas fundações. Ela é muito realista. Exige a assinatura de um contrato para que os doadores não voltem atrás depois. Tanto quanto possível, os rendimentos não devem ser de casas ou terrenos, mas sim de doações em dinheiro, em “juros” ou “censos” (empréstimos hipotecários, com a obrigação de pagar uma determinada quantia anualmente). “Aceitem doações de terras, dizia ela às freiras, apenas se forem muito perto do convento, onde podem viajar facilmente para receber o aluguel anual dos inquilinos, porque senão no final elas se perderão”.

As fundações deveriam ser feitas em povoados com mais de mil moradores, importantes, com movimento mercantil, nos quais morassem mercadores e flui-se o dinheiro onde fosse possível para que as famílias da alta sociedade facilitassem esmolas e doações. Devem os mosteiros estar bem comunicados, não distantes da aldeia para que possam ser visitados e se acesse sem dificuldade. Suas fundações foram nas cidades mais importantes de então: Medina del Campo, Valladolid, Toledo, Salamanca, Segóvia, Sevilla, Burgos, etc. além de Ávila.

Os bens e as irmãs

Deseja em princípio que as irmãs, como foi dito, não façam doações para evitar desigualdades dentro do convento, porém diante das muitas necessidades admite que contribuam com o que possam e se são ricas exige o dote, porém nenhuma mulher poderia ficar de fora por não ter dote. “As irmãs são tanto para nós, que não olhamos para os dotes” (Carta 176, 5). “É um deleite para mim cada vez que entra alguma que não traz nada, mas que vem somente por Deus” (Carta 61, 4). Teresa concebia os dotes, assim se dizia, como uma doação e os utilizava para pagar dívidas e comprar casas, muitas vezes em mau estado, para fazer as fundações ou para fazer obras e consertos nos conventos. “Aqui nesta casa duas freiras entraram com mil e quinhentos ducados (em Burgos), e são muito boas e essenciais para a obra” (Carta 223, 7).

As freiras não saiam para mendigar, viviam da esmola que recebiam; elas não deveriam trabalhar para subsistir. Elas tinham que se dedicar à oração. Elas não têm, como em outros mosteiros, “casas de trabalho” (oficinas) para viver do seu trabalho. No entanto, elas podiam costurar apenas nas horas vagas para não ficarem paradas e, assim, conseguirem algum dinheiro.

Como era muito prática, Teresa admitiu nas Constituições que em situações extremas “ajudem-se no trabalho das vossas mãos como o fez São Paulo, que o Senhor vos dará o que necessitais, mas que não é um trabalho curioso, mas sim fiar ou costurar e em coisas que não sejam tão primorosas que ocupem o pensamento para no lugar de Nosso Senhor; não em coisas de ouro, nem prata, e que não se persista no que receberão por isso”. As irmãs não podem ter nada nas suas celas “nem para comer, nem para vestir, nem ter cômoda, gaveta ou armário... mas tudo é comum” (Const., 2).

Teresa estava ciente das necessidades econômicas dos mosteiros

Antes de embarcar numa viagem para uma fundação, Teresa, através dos confessores ou das relações que tem com a alta sociedade (a sua família, embora diminuída, era bem ligada) procura casas que tenham jardim e água onde instalar a nova fundação. Ela cuida das transações para adquiri-los. Muitas vezes as casas não são adequadas como aconteceu em Valladolid, estão em mau estado ou o proprietário, em Burgos, volta atrás ou especula exigindo mais dinheiro no último minuto. Viaja sempre com duas ou três irmãs fundadoras e um frade para a cidade para onde vão estabelecer o convento. São obrigadas a dormir ao ar livre, em pousadas ou na rua ou galpões até desistirem ou a casa ser entregue a elas.

A casa que recebeu em Valladolid junto ao rio Pisuerga no pomar de Río Olmos (hoje bairro Cuatro de Marzo) não tinha boas condições, era insalubre e ficava a um quarto de légua (pouco mais de um quilômetro) da cidade. Como no momento não havia mais nada, a casa teve que ser limpa para as freiras viverem. Ela escreve nas Fundações: “Fiz os oficiais virem muito secretamente e comecei a fazer paredes para o recolhimento”. Saiu de casa algumas semanas depois por estar doente, sendo acolhida em alguns quartos do palácio (Palácio Real, antiga capitania) de María de Mendoza, irmã do Bispo de Ávila, onde viveram uma vida monástica durante vários meses até conseguir comprar uma casa, hoje o atual convento das Carmelitas.

Teresa não saiu da nova fundação antes de estabelecer suas irmãs. “Nunca saí de minha própria casa e me recolhi acomodada à minha vontade, não saí de nenhum mosteiro, nem abandonei. Que nisto Deus me fez muito favor, porque no trabalho gostava de ser a primeira, e em tudo pelo seu descanso e alojamento ele experimentou até os mais pequenos, como se por toda a minha vida tivesse que viver naquela casa; e por isso fiquei muito feliz quando elas pareciam bem” (Livro das Fundações 19, 6). Em Burgos, cuja fundação foi pouco antes de sua morte já doente, ela teve que ficar por cinco meses até encontrar o local definitivo.

“Porque eu sempre quis que os mosteiros (que fundei) tivessem uma renda tal, que as freiras não precisassem dos seus parentes, de nenhum deles, mas que ganhassem tudo o que precisam em casa, para comer e se vestir, e a doente se curar muito bem, porque se falta o necessário se tem muitos inconvenientes. E para fazer muitos mosteiros de pobreza sem renda nunca me faltou coração e confiança, com a certeza de que Deus não faltou, e se para fazê-los de renda mesmo com pouco, é melhor que não sejam fundados”. As doentes devem receber “sua boa ração de carne, mesmo que seja sexta-feira”.

Introdução à contabilidade

Teresa mandava que mantivessem uma contabilidade diária em cada convento com as receitas e despesas. “A esmola que o Senhor dá em dinheiro deve sempre ser colocada na arca das três chaves depois; exceto se não forem nove ou dez ducados abaixo, que serão dados à tesouraria que a prioresa julgar conveniente, e ela dá ao procurador tudo o que a prioresa disser que ela gasta. E todas as noites, antes de cantarem em silêncio, deem contas à prioresa ou à felicidade frequentemente pregada. E uma vez feita a conta, junta-se no livro que está no convento, para relatar ao visitante a cada ano” (Constit 2).

Os primeiros documentos contábeis ainda estão preservados no mosteiro Medina del Campo. Por exemplo, nos anos 1569-1571, um total de 207,8 ducados entraram (202 eram de esmolas e os 5,7 restantes eram de seus empregos). Quinze anos depois, em 1584-1585, devido às dificuldades econômicas prevalecentes, o mosteiro deixou de ser de pobreza e passou a ser de renda. Entraram 1000,9 ducados (cinco vezes mais), dos quais 116 de esmolas (metade do que no outro biênio), 358 de dotes e 397 de censos e juros. Tem que se levar em consideração a forte inflação. O custo total de comida e obras por freira em 1562 era de 47 ducados. Em 1585 de 68 ducados. Em seu livro “Modo de visitar os conventos”, previne o erro de que as prioresas são gastadoras.

Envolvida na vontade de seu irmão Lorenzo

Ela sempre teve uma relação muito próxima com seu irmão Lorenzo, quatro anos mais jovem. Ele foi para as Índias em 1540 como quase todos os seus irmãos e voltou viúvo com três filhos em 1572. Teresa tinha 60 anos e o ajudou a se adaptar em Ávila. Entre outras coisas, orientou-o sobre onde investir o dinheiro trazido das índias. Como nos últimos treze anos já havia fundado onze mosteiros, teve longa experiência em obras de construção, compra e venda de casas e fazendas, negócios, aluguéis, ações judiciais e empréstimos. Ela procurou uma fazenda para ele em Serna, perto de Ávila onde ele iria morar. Lorenzo combinou com doações e empréstimos para fundações. Ele já a havia ajudado antes de vir, quando ela estava nas Índias. Ela se dava tão bem com ele que eles até tinham confidências espirituais. Lorenzo a confiou a sua filha Teresita, de 8 anos, ao chegar a Sevilla. Teresita viveu no convento e esteve sempre ao lado da tia, foi freira e a ajudou nos últimos anos da sua vida.

Ela teve que intervir no testamento de seu irmão Lorenzo muito favorável à sua filha Teresita, a freira, e ao convento de São José de Medina. Lorenzo morreu repentinamente em 1580, dois anos antes de Teresa. O outro irmão, Pedro de Ahumada, que era bastante irresponsável, foi nomeado por Lorenzo administrador e testamentário e guardião de seus dois filhos, Francisco e Teresita, caso morresse antes dele. Francisco estava casado e sua sogra impugna o testamento para evitar que o dinheiro fosse para o convento de São José, onde estava Teresita, e para que a sua filha, mulher de Francisco, ficasse com a herança. Teresita, entretanto, naquele momento não tinha boas relações com sua tia Teresa de Jesus e cedeu sua parte em favor de seu irmão Francisco. As freiras de São José tiveram que negociar com a família a parte correspondente ao convento.

Ganha-se deixando tudo

Apesar de estar tão envolvida em tantos negócios, ela também escreve sobre o que pensa sobre dinheiro e riqueza:

“Se com ele (dinheiro) você pudesse comprar o bem que eu agora vejo em mim, tê-lo-ia muito. Mas, esse bem se ganha deixando tudo. O que é que se compra com esse dinheiro? É uma coisa de preço? É uma coisa durável e para que a queremos?... Muitas vezes o inferno é adquirido com ele e se compra o fogo duradouro e a pena sem fim... com que amizade se tratariam todos se faltasse interesse de honra e de dinheiro! Tenho para mim que se remediaria tudo” (Vida 20, 27).

Teresa ria das mulheres devotas que vão às freiras para rezar a Deus para que seus negócios deem certo porque Deus não lhes faz caso: “Que eu ria e me entristeça com as coisas que elas vêm nos confiar, que imploremos a sua Majestade, aluguéis e dinheiro, e algumas pessoas que eu gostaria que implorassem a Deus para pisar e chutar todos esses. Elas têm uma boa intenção, e aí eu o confio a Deus, para dizer a verdade, embora eu tenha para mim que nessas coisas ele nunca me ouve” (Cam Perfec 1,5).

“Nunca deixes de receber as que se tornarão freiras... porque se elas não têm fortuna, têm virtudes” (Fundac 27,13).

Nemonte Nenquimo

CARTA DA AMAZÔNIA: DESTRUÍMOS O QUE NÃO ENTENDEMOS

"Provavelmente vocês não estejam acostumados que uma mulher indígena os chame de ignorantes, e menos ainda num cenário como este. Mas para os povos indígenas uma coisa é clara: quanto menos você sabe sobre algo, menos valor isso tem para você ― e, portanto, mais fácil será de destruir", escreve Nemonte Nenquimo, cofundadora da organização sem fins lucrativos dirigida pelos indígenas Ceibo Alliance, primeira presidente da organização waorani da província de Pastaza (Equador) e eleita pela revista Time uma das 100 pessoas mais influentes de 2020, em carta publicada por El Pais /IHU

Segundo ela, "em cada uma das centenas de línguas diferentes da Amazônia, temos uma palavra para vocês, os estranhos. No meu idioma, o waotededo, essa palavra é “cowori”. E não tem por que ser um insulto, mas vocês a transformaram nisso. Para nós, essa palavra (e, de uma forma terrível, sua sociedade), significa: o homem branco que sabe muito pouco para o poder que exerce e o dano que causa". Eis a carta.

Aos senhores presidentes dos nove países da Amazônia

e a todos os líderes mundiais que dividem a responsabilidade

pelo saque de nossa floresta:

Meu nome é Nemonte Nenquimo. Sou uma mulher waorani, mãe e líder do meu povo, e a Amazônia é minha casa. Escrevo esta carta porque os incêndios continuam queimando nossa floresta. Porque as empresas estão despejando petróleo em nossos rios. Porque os mineiros estão roubando ouro (como têm feito durante os últimos 500 anos), deixando para trás crateras e toxinas. Porque os invasores e extrativistas de terras estão derrubando mata virgem para que seu gado possa pastar, suas plantações possam crescer e o homem branco possa comer. Porque nossos anciãos estão morrendo de coronavírus e, enquanto isso, vocês planejam seus próximos movimentos para explorar nossas terras e estimular uma economia que nunca nos beneficiou. Porque, como povos indígenas, estamos lutando para proteger o que amamos: nossa forma de vida, nossos rios, os animais, nossas florestas, a vida na Terra. E é hora de que nos ouçam.

Em cada uma das centenas de línguas diferentes da Amazônia, temos uma palavra para vocês, os estranhos. No meu idioma, o waotededo, essa palavra é “cowori”. E não tem por que ser um insulto, mas vocês a transformaram nisso. Para nós, essa palavra (e, de uma forma terrível, sua sociedade), significa: o homem branco que sabe muito pouco para o poder que exerce e o dano que causa.

Provavelmente vocês não estejam acostumados que uma mulher indígena os chame de ignorantes, e menos ainda num cenário como este. Mas para os povos indígenas uma coisa é clara: quanto menos você sabe sobre algo, menos valor isso tem para você ― e, portanto, mais fácil será de destruir. Com “fácil”, quero dizer sem culpa, sem remorso, sem se sentir estúpido e, inclusive, com todo direito. E isso é exatamente o que vocês estão fazendo conosco como povos indígenas, com nossos territórios de floresta tropical e com o clima do nosso planeta.

Levamos milhares de anos para conhecer a floresta da Amazônia. Entender suas formas, seus segredos, aprender a sobreviver e a prosperar com ela. Mas meu povo, o waorani, só conhece vocês há 70 anos (fomos “contatados” na década de cinquenta pelos missionários evangélicos americanos). Mas aprendemos rápido, e vocês não são tão complexos quanto a floresta.

Quando vocês dizem que as empresas petroleiras têm maravilhosas e inovadoras tecnologias que podem extrair petróleo debaixo de nossas terras como os colibris sugam o néctar de uma flor, sabemos que estão mentindo porque vivemos rio abaixo dos derramamentos.

Quando dizem que a Amazônia não está queimando, não precisamos de imagens de satélite para provar que estão errados: estamos inalando a fumaça das árvores frutíferas que nossos antepassados semearam há séculos.

Quando vocês dizem que estão buscando urgentemente soluções climáticas, mas continuam construindo uma economia mundial baseada no extrativismo e na poluição, sabemos que estão mentindo porque somos os mais próximos da terra e os primeiros a escutar seu choro.

Nunca tive a oportunidade de ir à universidade e me tornar médica, advogada, política ou cientista. Meus “pikenani” (autoridades tradicionais, anciãos sábios) são meus mestres. A floresta é minha professora. E aprendi o suficiente (e falo de mãos dadas com meus irmãos e irmãs indígenas do mundo todo) para saber que vocês perderam o rumo, que têm um problema (embora ainda não o entendam completamente) e que seu problema é uma ameaça para toda forma de vida na Terra.

Vocês formaram sua civilização sobre a nossa, e vejam agora onde estamos: pandemia global, crise climática, extinção de espécies e, guiando isso tudo, uma pobreza espiritual generalizada. Em todos esses anos vocês nos expulsaram, expulsaram e expulsaram das nossas terras e não tiveram a coragem, a curiosidade ou o respeito suficientes para nos conhecer. Para entender como vemos, pensamos e sentimos, e o que sabemos sobre a vida nesta terra. Também não posso ensinar a vocês agora com esta carta. Mas o que posso contar tem a ver com milhares e milhares de anos de amor por esta floresta, por este lugar.

Amor no sentido mais profundo da palavra: respeito. Esta floresta nos ensinou a caminhar com rapidez, e, como a escutamos, como aprendemos com ela e a defendemos, ela nos deu tudo: água, ar limpo, alimentos, remédios, felicidade, espiritualidade. E vocês estão tirando tudo isso de nós. Não apenas de nós, mas também de todas as pessoas do planeta e das gerações futuras.

É madrugada na Amazônia, justo antes do amanhecer: um momento que consideramos propício para compartilhar nossos sonhos e nossos pensamentos mais profundos. De modo que aproveito para dizer a todos vocês: “A Terra não espera que a salvem, espera que a respeitem. E nós, como povos indígenas, esperamos o mesmo.”

Leonardo Boff

É POSSÍVEL O FIM DA ESPÉCIE HUMANA?

Um dos maiores especialistas em vírus, David Quammen, alertou num vídeo os chefes de Estado acerca da possibilidade, caso não mudarmos a nossa relação destrutiva para com a natureza, da irrupção de um outro vírus ainda mais letal, podendo destruir parte da biosfera e levar grande parte da humanidade, senão toda, a um fim dramático.

O Papa Francisco em sua alocução na ONU no dia 25 de setembro 2020, advertiu por duas vezes da eventualidade do desaparecimento da vida humana como consequência da irresponsabilidade em nosso trato com a Mãe Terra e com a natureza superexploradas. Na sua encíclica Laudado Sì: sobre o cuidado da Casa Comum (2015) constata: ”As situações ameaçadoras provocam os gemidos da irmã Terra que se unem aos gemidos dos abandonados do mundo, com um lamento que reclama de nós outro rumo; nunca maltratamos e ferimos a nossa Casa Comum, como nos últimos dois séculos” (n. 53).

Isso não significa o fim do sistema-vida, mas o fim da vida humana. Curiosamente, o Covid-19 afetou somente os humanos de todos os continentes e não os demais animais domésticos como os gatos e os cães. Como interpretar esta eventual catástrofe à luz de uma reflexão radical, quer dizer, filosófica e teológica?

Sabemos que normalmente a cada ano cerca de 300 espécies de organismos vivos chegam ao seu clímax, depois de milhões e milhões de anos de existência e retornam à Fonte Originária de Todo Ser (Vácuo Quântico), aquele oceano insondável de energia, anterior ao big bang e que continua subjacente a todo o universo. Conhecem-se muitas extinções em massa durante os mais de três bilhões de anos da história da vida (Ward 1997). Atualmente cerca de um milhão de espécies de seres vivos estão sob ameaça de desaparecimento devido à excessiva agressividade humana.

Dos seres humanos sabemos que das várias expressões, somente o homo sapiens sapiens se consolidou na história há cerca de 100 mil anos e permaneceu até o presente sobre a Terra. Os demais representantes, especialmente o homem de Neandertal, desapareceram definitivamente da história.

Da mesma forma vale para as culturas ancestrais do passado. No Brasil, por exemplo, a cultura do sambaqui e os próprios sambaquieiros que viveram há mais de 8 mil anos nas costas oceânicas brasileiras foram literalmente exterminados, por antropófagos, diferentes dos atuais indígenas. Deles nada restou a não ser os grandes monturos de conchas, cascos de tartarugas e restos de crustáceos (Miranda, 2007,52-53). Muitas delas sumiram definitivamente, deixando parcos sinais de sua existência como a cultura da ilha de Páscoa ou as culturas matriarcais que dominaram em várias partes do mundo, há cerca de 20 mil anos, especialmente na bacia do Mediterrâneo. Deixaram as figuras das divindades maternas ainda hoje encontradas em sítios arqueológicos.

Entre as tantas espécies que desaparecem anualmente, não poderá estar a espécie homo sapiens/demens? Desta vez, tudo indica que seu desaparecimento não se deve a um processo natural da evolução, mas a causas derivadas de sua prática irresponsável, destituída de cuidado e de sabedoria face ao conjunto do sistema da vida e do sistema-Gaia. Seria consequência da nova era geológica do antropoceno e mesmo no necroceno.

O facto é que o Covid-19 colocou em xeque, diria, de joelhos, o modo de produção capitalista e sua expressão política, o neoliberalismo. Seriam eles suicidários? Esta pergunta não é de mau agouro, mas um chamamento dirigido a todos os que alimentam solidariedade geracional e amor à Casa Comum. Há um obstáculo cultural grave: estamos habituados a resultados imediatos, quando aqui se trata de resultados futuros, fruto de ações postas agora. Como afirma a Carta da Terra, um dos mais importantes documentos ecológicos assumidos pela UNESCO em 2003: “as bases da segurança global estão ameaçadas; estas tendências são perigosas mas não inevitáveis”.

Estes perigos somente serão evitados caso mudemos o modo de produção e o padrão de consumo. Esta reviravolta civilizatória exige a vontade política de todos os países do mundo e a colaboração sem exceção de toda rede de empresas transnacionais e nacionais de produção, pequenas, médias e grandes. Se empresas mundiais se negarem a agir nesta mesma direção, poderão anular os esforços de todas as demais. Por isso, a vontade política deve ser coletiva e impositiva com prioridades bem definidas e com linhas gerais bem claras, assumidas por todos, pequenos e grandes. É uma política de salvação global.

O grande risco reside na lógica do sistema do capital globalmente articulado. Seu objetivo é lucrar o mais que pode, no tempo mais curto possível, com a expansão cada vez maior de seu poder, flexibilizando legislações que limitam sua dinâmica. Ele se orienta pela competição e não pela cooperação, pela busca do lucro e não pela defesa e promoção da vida.

Diante das mudanças paradigmáticas atuais, se vê confrontado com esse dilema: ou se auto-nega, mostrando-se solidário com o futuro da humanidade e muda sua lógica e assim se afunda como empresa capitalista, ou se auto-afirma em seu objetivo, desconsiderando toda compaixão e solidariedade, fazendo aumentar os lucros, mesmo passando por cima de cemitérios de cadáveres e da Terra devastada. Não é impossível que, obedecendo à sua natureza de lobo voraz, o capitalismo seja autossuicidário. Prefere morrer e fazer morrer do que perder seus lucros. Mas quem sabe, quando a água chegar ao nariz e o risco de morte coletiva atinja a todos, inclusive a eles, os poderosos, não seria impossível que o próprio capitalismo se renda à vida. O instinto dominante é viver e não morrer. Este instinto possivelmente acabará prevalecendo. Mas devemos estar atentos à força da lógica interna do sistema, montado sobre uma mecânica que produz morte de vidas humanas e vidas da natureza.

Nomes notáveis das ciências não excluem a eventualidade do fim de nossa espécie. Stephen Hawking em seu livro O universo numa casca de noz (2001,159) reconhece que em 2600 a população mundial ficará ombro a ombro e o consumo de eletricidade deixará a Terra incandescente. Ela poderá se destruir a si mesma.

O prêmio Nobel Christian de Duve, em seu conhecido Poeira Vital (1997, 355) atesta que a evolução biológica marcha em ritmo acelerado para uma grande instabilidade; de certa forma nosso tempo lembra uma daquelas importantes rupturas na evolução, assinaladas por extinções maciças. Antigamente eram os meteoros rasantes que ameaçavam a Terra; hoje o meteoro rasante se chama ser humano.

Théodore Monod, talvez o último grande naturalista moderno, deixou como testamento um texto de reflexão com este título: E se a aventura humana vier a falhar (2000, 246, 248)? Assevera: somos capazes de uma conduta insensata e demente; pode-se a partir de agora temer tudo, tudo mesmo, inclusive a aniquilação da raça humana (p. 246). E acrescenta: seria o justo preço de nossas loucuras e de nossas crueldades. Se tomarmos a sério o drama mundial, sanitário, social e o alarme ecológico crescente, esse cenário de horror não é impensável.

Edward Wilson atesta em seu instigante livro O futuro da vida (2002, 121): O homem até hoje tem desempenhado o papel de assassino planetário…a ética da conservação, na forma de tabu, totemismo ou ciência, quase sempre chegou tarde demais; talvez ainda haja tempo para agir.

Vale citar ainda dois nomes da ciência que possuem grande respeitabilidade: James Lovelock, que elaborou a teoria da Terra como Super-organismo vivo, Gaia, com um título forte, A vingança de Gaia (2006), e o astrofísico inglês Martin Rees (Hora final, 2005), que prevêem o fim da espécie antes do fim do século XXI. Lovelock é contundente: até o fim do século 80% da população humana desaparecerá. Os 20% restantes vão viver no Ártico e em alguns poucos oásis em outros continentes, onde as temperaturas forem mais baixas e houver um pouco de chuva… quase todo o território brasileiro será demasiadamente quente e seco para ser habitado ”(Veja, Páginas Amarelas de 25 de outubro de 2006).

Um facto que tem provocado muitos cientistas, especialmente biólogos e astrofísicos, a falarem do eventual colapso da espécie humana é o caráter exponencial da população. A humanidade precisou um milhão de anos para alcançar em 1850 a um bilhão de pessoas. Os espaços temporais entre um crescimento e outro diminuem cada vez mais. De 75 anos – de 1850 a 1925 – passaram para 5 anos atualmente. Prevê-se que por volta de 2050 haverá dez bilhões de pessoas. É o triunfo inegável de nossa espécie.

Lynn Margulis e Dorian Sagan no conhecido livro Microcosmos (1990) afirmam com dados dos registros fósseis e da própria biologia evolutiva que um dos sinais do colapso próximo de uma espécie é sua rápida superpopulação. Isso pode ser visto com micro-organismos colocados na cápsula Petri (placas redondas de vidro com colônias de bactérias e nutrientes). Pouco antes de atingirem as bordas da placa e se esgotarem os nutrientes, multiplicam-se de forma exponencial. E de repente todas morrem.

Para a humanidade, comentam eles, a Terra pode mostrar-se idêntica a uma cápsula Petri. Com efeito, ocupamos quase toda a superfície terrestre, deixando apenas 17% livre, por ser inóspita como os desertos e as altas montanhas nevadas ou rochosas. Lamentavelmente de homicidas, genocidas e ecocidas nos faríamos biocidas.

Carl Sagan, já falecido, via no intento humano de demandar à Lua e enviar naves espaciais como o Voyager para fora do sistema solar como manifestação do inconsciente coletivo que pressente o risco de nossa próxima extinção. A vontade de viver nos leva a cogitar formas de sobrevivência para além da Terra. O astrofísico Stephen Hawking fala da possível colonização extrassolar com naves, espécie de veleiros espaciais, propelidas por raios laser que lhes confeririam uma velocidade de trinta mil quilômetros por segundo. Mas para chegar a outros sistemas planetários teríamos que percorrer bilhões e bilhões de quilômetros de distância, necessitando muitos e muitos anos de tempo. Ocorre que somos prisioneiros da luz, cuja velocidade de trezentos mil quilômetros por segundo é até hoje insuperável. Mesmo assim só para chegar à estrela mais próxima – a Alfa do Centauro – precisaríamos de quarenta e três anos, sem ainda saber como frear essa nave a esta altíssima velocidade.

Para terminar, a opinião de dois notáveis historiadores Arnold Toynbe em sua autobiografia: “vivi para ver o fim da história humana tornar-se uma possibilidade real que pode ser traduzida em facto não por um acto de Deus, mas do ser humano” (Experiências 1970,422).

E por fim de Eric J. Hobsbawm, em sua conhecida Era dos extremos (1994, 562) concluindo seu livro: Não sabemos para onde estamos indo. Contudo, uma coisa é certa. Se a humanidade quer ter um futuro aceitável, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso ou seja, a alternativa para a mudança da sociedade é a escuridão.

Naturalmente, precisamos ter paciência para com o ser humano. Ele não está pronto ainda. Tem muito a aprender. Em relação ao tempo cósmico possui menos de um minuto de vida. Mas com ele, a evolução deu um salto, de inconsciente se fez consciente. E com a consciência pode decidir que destino quer para si. Nesta perspectiva, a situação atual representa antes um desafio que um desastre inevitável, a travessia para um patamar mais alto e não fatalmente um mergulho na autodestruição. Estaríamos portanto num cenário de crise de paradigma civilizacional e não de tragédia.

Mas haverá tempo para tal aprendizado? Tudo parece indicar que o tempo do relógio corre contra nós. Não estaríamos chegando tarde demais, tendo passado já o ponto de não retorno? Mas como a evolução não é linear e conhece frequentes rupturas e saltos para cima como expressão de maior complexidade e como existe o caráter indeterminado e flutuante de todas as energias e de toda a evolução, consoante a física quântica de W. Heisenberg e de N. Bohr, nada impede que ocorra a emergência de um outro patamar de consciência e de vida humana que salvaguarde a biosfera e o planeta Terra. Essa transmutação seria, segundo Santo Agostinho em suas Confissões, fruto de duas grandes forças: de um grande amor e de uma grande dor. É o amor e a dor que têm o condão de nos transformar inteiramente. Desta vez mudaremos por uma imenso amor à Terra, nossa Mãe e por uma grande dor pelas penas que está sofrendo.

Mesmo assim, na hipótese de um eventual desaparecimento da espécie humana, que consequências se derivariam para nós e para o processo da evolução? Antes de qualquer consideração, seria uma catástrofe biológica de incomensurável magnitude. O trabalho de pelo menos 3,8 bilhões de anos, data provável do surgimento da vida, e dos últimos 5-7 milhões de anos, data do aparecimento da espécie homo e dos últimos cem mil anos, da irrupção do homo sapiens sapiens, trabalho esse feito pelo inteiro universo das energias, das informações e das diferentes densidades de matéria, teria sido senão anulado, pelo menos profundamente afetado.

O ser humano, na medida em que podemos constatar, estudando o universo, é o ser da natureza mais complexo já conhecido. Complexo em seu corpo com trinta bilhões de células, continuamente renovadas pelo sistema genético, complexo em seu cérebro de cem bilhões de neurônios em contínua sinapse, complexo em sua interioridade, em sua psique e em sua consciência, carregada de informações recolhidas desde o irromper do cosmos com o big bang e enriquecida com emoções, sonhos, arquétipos, símbolos oriundos das interações da consciência consigo mesma e com o ambiente à sua volta, complexo em seu espírito, capaz de captar o Todo e sentir-se parte dele e de identificar aquele Elo que une e re-une, liga e re-liga todas as coisas fazendo que não sejam caóticas mas ordenadas e confiram sentido e significado à existência neste mundo e nos fazendo suscitar sentimentos de profunda veneração e respeito face à grandeur do cosmos.

Até hoje não foram identificadas cientificamente e de forma irrefutável outras inteligências no universo. Por enquanto somos como espécie homo uma singularidade sem comparação no cosmos. Somos um habitante de uma galáxia média, a Via Láctea, dependendo de uma estrela, o Sol, de quinta grandeza, num canto da Via Láctea, morando no terceiro planeta do sistema solar, a Terra, e agora estando aqui neste pequeno espaço virtual discutindo sobre as consequências de nosso provável fim.

O universo, a história da vida e a história da vida humana perderiam algo inestimável. Toda a criatividade produzida por este ser, criado criador, que fez coisas que a evolução por ela mesma jamais faria, como uma tela de Di Cavalcanti ou uma sinfonia de Beethoven, um poema de Carlos Drumond de Andrade ou um canal de televisão, um avião e a internet com suas redes sociais. As construções da cultura seja daquela material, simbólica e espiritual teriam desaparecido para sempre.

Para sempre teriam virado pó as grandes produções poéticas, musicais, literárias, científicas, sociais, políticas éticas e religiosas da humanidade. Para sempre teriam desaparecido as referências de figuras paradigmáticas de seres humanos entregues ao amor, ao cuidado, à compaixão e à proteção da vida em todas as suas formas como Buda, Chuang-tzu, Moisés, Jesus, Maria de Nazaré, Maomé, Francisco de Assis, Gandhi entre tantos e tantas outras. Para sempre teriam desaparecido também as antifiguras que macularam o humano e violaram a dignidade da vida em incontáveis guerras e extermínios cujos nomes sequer queremos mencionar. Cabe lembrar as atuais queimadas fenomenais na Amazônia e no Pantanal muito provavelmente provocadas intencionalmente por gananciosos buscadores de lucro a qualquer custo. Tais eventos podem ameaçar o equilíbrio dos climas da Terra. Para sempre teria desaparecido a decifração feita da Fonte Originária de Todo Ser que permeia toda a realidade e a consciência de nossa profunda comunhão com ela, fazendo-nos sentir filhos e filhas do Mistério Inominável e compreendermo-nos como um projeto infinito que somente descansa quando se aconchega no seio deste Mistério de infinita ternura e bondade. Para sempre tudo isso teria desaparecido desta pequena parte do universo que é a nossa Mãe Terra.

Por fim cabe perguntar: quem nos substituiria na evolução da vida, caso alguma forma de vida subsistir? Na hipótese de que o ser humano venha a desaparecer como espécie, mesmo assim o princípio de inteligibilidade e de amorização ficaria preservado. Ele está primeiro no universo e depois nos seres humanos. Esse princípio é tão ancestral quanto o universo.

Quando, nos primeiríssimos momentos após a grande explosão, quarks, prótons e outras partículas elementares começaram a interagir, surgiram campos de relações e unidades de informação e ordens mínimas de complexidade. Aí se manifestava aquilo que depois se chamará de espírito, aquela capacidade de criar unidades e quadros de ordem e sentido. Ao desaparecer dentro da espécie humana, ele emergiria, um dia, quem sabe em milhões de anos de evolução em algum ser mais complexo.

Théodore Monod, falecido no ano 2000, sugere até um candidato já presente na evolução atual, os cefalópodes, isto é, uma espécie de moluscos à semelhança dos polvos e das lulas. Alguns deles, possuem um aperfeiçoamento anatômico notável; sua cabeça vem dotada de uma cápsula cartiginosa, funcionando como crânio e possuem olhos como os vertebrados. Detém ainda um psiquismo altamente desenvolvido, até com dupla memória, quando nós possuímos apenas uma (2000, 247-248).

Evidentemente, eles não sairiam amanhã do mar e entrariam continente adentro. Precisariam de milhões de anos de evolução. Mas já possuem a base biológica para um salto rumo à consciência.

De todas as formas, urge escolher: ou o ser humano e seu futuro ou os polvos e as lulas. Mais que otimismo, alimento a esperança de que vamos criar juízo e aprender a ser sábios.

Entretanto, importa já agora mostrar amor à vida em sua majestática diversidade, ter com-paixão com todos os que sofrem, realizar rapidamente a justiça social necessária e amar a Grande Mãe, a Terra. Incentivam-nos as Escrituras judaico-cristãs: Escolha a vida e viverás (Deut 30,28) Andemos depressa, pois não temos muito tempo a perder.

Por fim, buscando radicalidade nos perguntamos: como vê a teologia cristã esta questão de uma eventual extinção da espécie humana? Antes situemos a pergunta em sua tradição histórica, pois não é a primeira vez que os seres humanos se colocam seriamente esta questão. Sempre que uma cultura entra em crise, como a nossa, surgem mitos de fim do mundo e de destruição da espécie. Usa-se, então, um recurso literário conhecido: relatos patéticos de visões e de intervenções de anjos que se comunicam para anunciar mudanças iminentes e preparar a humanidade. No Novo Testamento esse gênero ganhou corpo no livro do Apocalipse e em alguns trechos dos Evangelhos que colocam na boca de Jesus predições de fim do mundo. Hoje prolifera vasta literatura esotérica que usa códigos diferentes como passagem a outro tipo de vibração e comunicação com extraterrestres. Mas a mensagem é idêntica: a viragem é iminente e há que estar preparado.

Importante é não deixar-se iludir por esse tipo de linguagem. É linguagem de tempos de crise e não uma reportagem antecipada do que vai ocorrer. Mas há uma diferença entre os antigos e nós hoje. Para os antigos, o fim do mundo estava no imaginário deles e não no processo realmente existente. Para nós está no processo real, pois criamos de fato o princípio de autodestruição. E se desaparecermos, como se há de interpretar? Chegou a nossa vez no processo de evolução já que há sempre espécies, desaparecendo naturalmente? Que diz a reflexão teológica cristã?

Suscintamente diria: se o ser humano frustrar sua aventura planetária significa, sem dúvida, uma tragédia inominável. Mas não seria uma tragédia absoluta. Essa, ele já a perpetrou um dia. Quando o Filho de Deus se encarnou em nossa miséria, por Jesus de Nazaré, logo após seu nascimento foi ameaçado de morte por Herodes que sacrificou todas as crianças dos arredores de Belém, na esperança de ter assassinado o Messias. Depois, durante a sua vida foi caluniando, perseguido, rejeitado, preso, torturado e pregado numa cruz. Só então se formalizou o que chamamos de pecado original que é um processo histórico de negação da vida. Mas, creem os cristãos, ocorreu outrossim a suprema salvação, pois onde abundou pecado, superabundou também graça. Houve a ressurreição, não como reanimação de um cadáver mas como irrupção do ser humano novo, na plenitude de suas virtualidades realizadas. Entretanto, maior perversidade que matar a criatura, a vida, o planeta, é matar o Criador encarnado.

Mesmo que a espécie mate a si mesma, ela não consegue matar tudo dela. Só mata o que é. Não pode matar aquilo que ainda não é: as virtualidades escondidas nela e que querem se realizar. E aqui entra a morte em sua função libertadora. A morte não separa corpo e alma, pois, no ser humano não há nada a separar. Ele é um ser unitário com muitas dimensões, uma exterior e material, o corpo, e esse mesmo corpo com sua interioridade e profundidade que chamamos de espírito. O que a morte separa é o tempo da eternidade. Ao morrer, o ser humano deixa o tempo e penetra na eternidade. Caindo as barreiras espaço-temporais, as virtualidades agrilhoadas podem desabrochar em sua plenitude. Só então acabaremos de nascer como seres humanos plenos (Boff, 2000). Portanto, mesmo com a liquidação criminosa da espécie, o triunfo da espécie não é frustrado. A espécie sai tragicamente do tempo pela morte, morte esta que lhe concede entrar na eternidade. E Deus é aquele que pode tirar da morte a vida e da ruína a nova criatura.

Alimentamos essa esperança. Assim como o ser humano domesticou outros meios de destruição como o primeiro deles, o fogo, (que originou os mitos de fim do mundo) assim agora, esperamos, domesticará os meios que podem destruí-lo. Aqui caberia uma análise das possibilidades dadas pela nanotecnologia (que trabalha com partículas ínfimas de átomos, genes e moléculas) que pode, eventualmente, oferecer meios técnicos para diminuir o aquecimento global e purificar a biosfera dos gases de efeito estufa (Martins, 2006,168-170).

Mas esclarecedor é pensar esta questões em termos da física quântica e da nova cosmologia. A evolução não é linear. Ela acumula energia e dá saltos. Assim também nos sugere a física quântica à la Niels Bohr e Werner Heisenberg: virtualidades escondidas, vindas do Vácuo Quântico, daquele oceano indecifrável de energia que subjaz e pervade o universo, a Terra e cada ser humano, podem irromper e modificar a seta da evolução.

Recuso-me a pensar que nosso destino, depois de milhões de anos de evolução, termine assim miseravelmente no próximo tempo ou nas próximas gerações. Haverá uma salto, quem sabe, na direção daquilo que já em 1933 Pierre Teilhard de Chardin anunciava: a irrupção da noosfera, vale dizer, aquele estado de consciência e de relação com a natureza que inaugurará uma nova convergência de mentes e corações e assim um novo patamar da evolução humana e da história da Terra.

Nesta perspectiva o cenário atual não seria de tragédia mas de crise de paradigma, da forma como habitamos a Casa Comum. A crise acrisola, purifica e amadurece. Ela anuncia um novo começo; nossa dor é de um parto promissor e não as dores de um prestes a morrer. Ainda vamos irradiar.

O que importa dizer é que não acabaria o mundo, mas pode acabar este tipo de mundo insensato que ama a guerra e a destruição em massa. Vamos inaugurar um mundo humano que ama a vida, dessacraliza a violência, tem cuidado e piedade para com todos os seres, pratica a justiça verdadeira, venera o Mistério do mundo que chamamos de Fonte Originária que faz Ser todos os seres e que nós nomeamos de Deus, enfim, que nos permite estarmos no monte das bem-aventuranças. O ser humano terá simplesmente aprendido a tratar humanamente todos os seres humanos e com cuidado, respeito e compaixão a todos os demais seres. Tudo que existe, merece existir. Tudo o que vive merece viver. Especialmente nós seres humanos.

Aloir Pacini /IHU

A ÁRVORE DA VIDA FLORESCE NA FRONTEIRA

"Essas palavras contundentes e objetivas querem chamar a atenção para o facto que, de nenhuma forma, esse caso pode ficar sem solução, sem resposta sobretudo às esposas, às mães, filhos e filhas das vítimas que pedem justiça. Os gestos concretos de caridade e solidariedade falam mais que as palavras. Que o Poder Judiciário brasileiro ouça o grito e o clamor das mães Chiquitanas!", escreve Aloir Pacini, padre jesuíta, antropólogo e professor da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT. Ao enviar o artigo que publicamos a seguir, Aloir Pacini informa: "triste, mas mataram mais 4 na madrugada do sábado para o domingo... 3 da comunidade de San José de la Frontera".

Com licença poética quero começar esse texto convidando a todos e todas para rezar no luar, e escutar as músicas da alma que acalentam as dores nas noites que não nos deixam dormir: SOS Pantanal!!! SOS Amazônia!!! SOS Chapada dos Guimarães!!! SOS Guatós!!! SOS Chiquitanos!!! Música: "Prece ao luar". Segundo os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), os índices de incêndio na Amazônia e no Pantanal são recordes devido ao desmonte dos órgãos de fiscalização ambientais e de falta de políticas públicas de preservação dos biomas. Até mesmo alguns setores da produção agrícola se queixam pelos riscos no descontrole na proteção ambiental, pois dizem os Chiquitanos que a terra não vale nada sem a água. Com recordes de desmatamento, Bolsonaro voltou a negar o problema e durante o pronunciamento virtual na Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 22, voltou a culpar os indígenas e os caboclos pelas queimadas. As causas das queimadas seriam as altas temperaturas da região e a concentração de matéria orgânica em decomposição no solo. As queimadas na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal não param de crescer e causam uma destruição sem precedentes num bioma que é a cara do Brasil no planeta. Como os biomas, não podem se defender na Justiça como nós seres humanos, existe um esforço de reconhecimento como sujeitos intrínsecos de direito, talvez assim possamos pensar a ecologia integral de forma consequente.

Não bastasse o drama vivido pelos povos indígenas com as famílias que se encontram enlutadas em consequência do corongo devido à irresponsabilidade dos nossos governos, pois descumprimos as orientações da OMS, em especial no cuidado da vida e saúde das populações mais vulneráveis, ou seja, o Brasil é o segundo país com mais mortes em decorrência da pandemia e o terceiro com maior número de infectados, de acordo com Johns Hopkins, isso com uma população bem menor que muitos países, estamos com fogos sem precedentes nos biomas onde vivem os indígenas tradicionalmente e tem acontecido a morte violenta, como o massacre dos quatro Chiquitanos que estavam caçando próximo de sua aldeia no dia 11/08.

Bertold Brecht (1998-1959) se colocou poeticamente no lugar dos negros, operários, miseráveis, desempregados etc., e eu convido a você leitor a se colocar no lugar dos pobres, estrangeiros, indígenas Chiquitanos etc., para compreender o que passam as pessoas nessas condições. Ao completar um mês do assassinato de Arcino Sumbre García, Pablo Pedraza Chore, Yona Pedraza Tosube e Ezequiel Pedraza Tosube Lopez em território brasileiro, a Comunidade de San José de la Frontera, na Bolívia, recebeu a equipe missionária da Diocese de Cáceres que se deslocara para lá para fazer doações de alimentos, roupas, de materiais de limpeza e de higiene. Ali celebraram uma Missa pelos falecidos e o batizado de duas crianças porque os Chiquitanos temem que os falecidos possam chamar as pessoas mais próximas para o lugar onde estão. O batismo corta alguns desses vínculos, pois atribui um Missão para os batizados aqui na terra.

O território tradicional Chiquitano foi cortado violentamente quando houve a imposição dos limites dos países e fez com que essa fronteira ficasse tão violenta como a acusação mencionada acima com o agravante das terras loteadas para outros nacionais que se estabelecem na região, devastam o meio ambiente, e fazem secar as fontes e riachos que formam as cabeceiras do rio Paraguai e tem efeito direto na falta de água para a formação do Pantanal. Mais trágica é a situação vivida porque não os reconhece em suas dinâmicas próprias enquanto indígenas, dividindo famílias e territórios que seguem sem a devida demarcação.

Quando ninguém queria escutar Antônia Arteaga Tosube de San José de la Frontera é que denunciava fortemente o massacre. Aqui ela está com Vanda Vilas Boas da ONG Chikibela, com camisetas em homenagem aos assassinados. Mentiroso é o Boletim de Ocorrência feito pelo Gefron, pois culpa os Chiquitanos de traficantes, como se esta pecha na Fronteira autorizasse matá-los sumariamente e tomar a droga que carregaram como “mulas”. Como não repudiar essa culpabilização dos povos indígenas pelo tráfico de drogas na fronteira seca entre o Brasil e a Bolívia, quando, de facto, esses são as maiores vítimas da liberação de uso da droga no país, mas criminaliza do comércio para enriquecer os traficantes. As estratégias de acusar no BO as vítimas do tráfico de drogas e das mortes serem fruto de “confronto” com bolivianos, ou seja, estrangeiros que não valem nada, choca ainda mais. De fato, costumeiramente os casos de assassinatos pela polícia na fronteira não levava a nada, nem inquérito policial era feito. Os preconceitos e irresponsabilidade de atos escusos como o massacre ocorrido no dia 11 de agosto de 2020 põe o Brasil em situação constrangedora perante a opinião pública nacional e internacional.

Os jovens negros nas periferias, os defensores do meio ambiente, indígenas em particular, são as maiores vítimas no campo dos direitos humanos e formas de conflitos aparecem sem cessar e as mortes pela violência policial no Brasil cresceram com o governo atual. Em vez de diminuir as barreiras entre os países, aumentaram significativamente com o ocorrido. Um novo momento começou quando fomos no dia 02/09 até a Comunidade para escutar as pessoas. Fomos levar alento e alimento, porque a caridade deve ser concreta. O Sargento Leonardo N., comandante do Gefron no Posto de Controle do Corixinho falou visivelmente emocionado na ocasião, pois Dona Meiry Pedraza Chore era a cozinheira ali no Posto do Gefron: “... dizer nós nos solidarizamos com os familiares, sentimos muito pelos fatos ocorridos, não é o que desejamos, não é o que queremos, queremos exatamente paz, queremos exatamente fraternidade com os nossos vizinhos, que sejamos sempre unidos, que busquemos a melhor forma de resolver os problemas, os conflitos, e que possamos viver bem. Estamos à disposição para o que pudermos ajudar, o que pudermos colaborar, que a gente sempre possa ajudar.”

O alcalde de San Matías, Fábio Lopez Olivares, o prefeito de Cáceres, o consulado, os policiais e os comunários, todos nós queremos paz na Fronteira. Mas não pode haver paz sem justiça, e o caminho dessa Justiça é que estamos trilhando agora para chegar à paz. Abafar o caso e costurar na superfície, indo ao Itamarati para cobrar indenização pelo assassinato dos indígenas Chiquitanos não é suficiente. As bandeiras pretas, sinal de luto, mostram a comoção na comunidade por causa da chacina do dia 11 de agosto. Por isso os comunários querem respostas mais profundas de Justiça, querem ouvir os que provocaram a tragédia para saber o que aconteceu.

A Fronteira deveria ser lugar de encontro, pois aqui as pessoas são desafiadas a ultrapassar as barreiras sanitárias do Indea, uma vez que os rios, o fogo e os ventos, mesmo os pássaros e outros animais passam de um lado para o outro sem restrições. Por que seriam os seres humanos impedidos de caminhar e fazer seus encontros, casarem-se e constituírem famílias, ainda mais quando num lado e no outro estão os mesmos Chiquitanos numa rede de parentesco e solidariedade que está aí muito antes dessa fronteira ter sido estabelecida pelos Comissões de Limites? Os caçadores no dia 11 de agosto na fazenda São Luiz, do “japonês”, em Cáceres (no Mato Grosso), foram surpreendidos pela ação do Grupo Especial de Fronteira (Gefron), torturados e mortos.

Os quatro Chiquitanos assassinados pertenciam à família de uma das principais matriarcas da comunidade, Dona Maria Natividad Chore Mejía. Dá para ver as dores do coração dessa avó, dessas mães, esposas na fotografia. Os indígenas denunciaram o caso na delegacia da alcaldia de San Matías para que a polícia boliviana cobrasse do Brasil inquérito policial, pois a chacina ocorreu no município de Cáceres, no Pantanal mato-grossense que faz fronteira com a Bolívia. Segundo o alcalde de San Matías ocorreu uma injustiça, pois quebraram-se vínculos importantes em quatro famílias e existem crianças menores que perderam os pais que eram os provedores. Por isso, membros da comunidade cobram ações de assistência às famílias que ficaram desamparadas.

Contudo, o problema está enraizado de forma mais ampla e o remédio terá que ser maior na Fronteira. Soilo Urupe Chue já vinha denunciando as abordagens de forma truculenta feita pelo Gefron já a algum tempo, por isso tem pedido celeridade da Justiça. Sua irmã, Saturnia Urupe Chue esteve na ONU no ano passado e denunciou a violência contra seus corpos, e seus territórios que foram historicamente invadidos e ocupados e que a falta de demarcação dos seus territórios tradicionais é que provoca essa violência.

O governo do Brasil não reconhece os direitos constitucionais dos Chiquitanos porque diz que é terra de fronteira, e criam assim empecilhos para demarcar como Terra Indígena. Se eles tivessem onde caçar, não precisariam ficar pedindo para os fazendeiros para ir caçar ali, já que era território tradicional deles e mais, a polícia não seria tão atrevida se estivesse dentro de um território indígena demarcado. Deslocados do território, muitos são obrigados a viver nas cidades em extrema vulnerabilidade e ali estão sujeitos a se misturarem com o uso de drogas, um assunto que virou tabu, ou seja, encontrou uma forma para fazer crescer o consumo e o tráfico.

Não se pode negar os fatos, existem também Chiquitanos aliciados pelo uso e o tráfico de drogas. Mas não só os indígenas, policiais, políticos etc. são aliciados pelo uso e o tráfico de drogas. Quando esses são mortos, ninguém tem coragem de fazer nada, somente enterram e desaparecem. Contudo, fica a dor velada, abafada, não comunicada porque todos estamos reféns de um sistema que permite o uso e não permite o comércio da droga. Volto mais uma vez a apontar a solução para quebrar as pernas do tráfico, pois existem políticos e polícias que ganham com o tráfico de drogas para chegar de forma tão capilar em todos os cantos do Brasil. Essa chaga da sociedade terá solução mais pacífica quando as drogas forem vendidas nas farmácias, sob receita médica.

Agora na 45ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos, dia 23/09/2020, as organizações da sociedade civil, entidades indígenas e indigenistas, apresentam o recrudescimento das violências: “Lideranças indígenas do Brasil e representantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apresentarão na sessão as denúncias referentes a chacina do povo Chiquitano na fronteira do Brasil e Bolívia no Mato Grosso, e dos povos que vivem entorno do Rio Abacaxis, no Amazonas”.

O Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH) também aprovou uma recomendação emergencial devido à chacina com tortura e execução com atos de crueldade cometidos no dia 11 de agosto ocorrida contra 4 indígenas Chiquitanos enquanto realizavam caça para alimentar suas famílias, habitantes da fronteira Brasil-Bolívia, entre as regiões de San Matías, na Bolívia, e de Cáceres no Mato Grosso:

“Ao Governo Estadual do Mato Grosso, o CNDH recomenda que aporte recursos materiais às famílias dos mortos, em razão de serem o que sustentavam seus familiares; à embaixada no Brasil do Estado Plurinacional da Bolívia, através de suas representações no Brasil, sobretudo através do Consulado na cidade de Cáceres (MT), Defensoria del Pueblo e ao Ministério Público Boliviano, que acompanhem de perto a apuração dos assassinatos; à Relatoria Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas da Organização da Nações Unidas (ONU), que solicite informações aos governos brasileiro e boliviano e acompanhe o caso; à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) que acompanhe os fatos e a situação específica do povo Chiquitano na fronteira Brasil-Bolívia.”

O pai de Yona Pedraza Tosube (in memoriam), assassinado com quatro tiros, disse que não sai da sua cabeça a forma cruel como trataram seu filho, que a tortura dói na honra de um homem. E a mãe fala da dor que não tem remédio que cure. Na foto Lucileny Tosube Alvarez, a mãe acarinha as flores querendo embalar o filho, como Nossa Senhora das Dores... uma espada transpassou o seu coração imaculado. A irmã de Yona afirmou: “Só a Justiça pode acalentar tanta dor!”

No ritual de oração pelos falecidos, os jarros de água estão em frente e todos os presentes jogam água benta em forma de cruz sobre as sepulturas de cada um dos quatro. A mãe de Yona está acendendo as velas para Deus iluminar o caminho dos quatro. O caso está sob investigação do Ministério Público em Santa Cruz de la Sierra. O Ministério das Relações Exteriores da Bolívia solicitou que o governo brasileiro informe os nomes dos policiais envolvidos na ocorrência. O Itamarati respondeu que esse assunto cabe ao Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ainda não foi revelado o nome dos assassinos. Segundo informações, os policiais não foram afastados de suas funções, estão na barreira desde o ocorrido sem vir pra cidade de Cáceres para os blindar de qualquer situação constrangedora.

O cerrado com suas serras e Chapadas, mais que um berço das águas é a coroa do mundo que capta as águas dos céus e as libera gradativamente em formas de fontes, riachos e rios para formar o Pantanal, esse sim um berço das águas para o rio Paraguai. O nome da árvore onde amarravam a rede para ficar de espera para a caça era um jatobá... Chegou a primavera e todos querem ver as plantas produzindo folhas, flores e frutos. Yona faria 28 anos no dia 23/09, junto com os demais estão trazendo para todos, de forma espiritual, o reverdecer do mundo. Quando as chuvas vierem abundantes farão os biomas revitalizarem a Esperança, enquanto isso estamos perseverantes, mas sem pressa, conversando nas noites de lua cheia.

Ao perguntar o nome das plantas, os problemas de classificação aumentaram porque estão relacionados com três línguas, três culturas que se encontram nessa Fronteira. Ali em torno da árvore massacrada tem a quina, figueira, pauterra, fruta-de-veado, canela-de-ema, pau-de-bicho, paratudo, lixeira, formigueiro-do-cerrado, bocaiúva (totay), açoitacavalo, barbatimão, gonçaleiro (pototó), tripa-de-galinha (cipó) etc. O jatobá que servia para amarrar a rede ou mesmo o fedebosta, a árvore cravejada de balas, são metáforas do acontecido, porque marcadas com o sofrimento dos quatro Chiquitanos que foram massacrados. Todas são plantas importantes no bioma do cerrado e do pantanal para sustentar a vida. De um tronco que foi semente plantada, cresceu e virou árvore como a aroeira (cusi), que foi cortada para fazer a cruz que novamente será nesse lugar plantada para se tornar símbolo do diálogo entre nós e os céus, entre os que ficamos e os que se foram para de lá da terceira margem do rio e nos auxiliar a encontrar o caminho da paz, os Chiquitanos dizem que a cruz é a chave dos céus. O sangue derramado em busca de alimento para a família também será sinal de salvação, chave para entrar nos céus. Por amor a Cristo, Caminho, Verdade e Vida, que também foi morto na cruz e derramou seu sangue, também essas mortes têm Ressurreição.

Concentrar-se ligados na mesma direção, em torno da Justiça, é o que de melhor podemos fazer. As árvores protegem o nosso planeta e seus vários tons de verde trazem bem viver e filtram a água nos seus rios voadores e subterrâneos para seu uso saudável por todos os seres vivos. Crimes de lesa-pátria são aqueles do corongo incentivado e da destruição do meio ambiente que leva a mãe terra a correr graves riscos de subsistência. Mas mais dramática ainda é essa violência institucional das polícias, por que doe no corpo e na alma dos povos originários.

A Constituição Federal do Brasil como Lei Maior reza no Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. E no inciso XXXV esclarece que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Além da Constituição Federal, o artigo 8º da 1ª Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos de São José da Costa Rica, da qual o Brasil é signatário, também garante: Toda pessoa tem direito de ser ouvida, com as garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza. Assim, o direito do acesso à Justiça supera uma garantia constitucional, sendo elevado a uma prerrogativa de Direitos Humanos, dada a sua importância.

Essas palavras contundentes e objetivas querem chamar a atenção para o fato que, de nenhuma forma, esse caso pode ficar sem solução, sem resposta sobretudo às esposas, às mães, filhos e filhas das vítimas que pedem justiça. Os gestos concretos de caridade e solidariedade falam mais que as palavras. Que o Poder Judiciário brasileiro ouça o grito e o clamor das mães Chiquitanas! “Ouvem-se gemidos e pranto em Ramá: é Raquel que chora seus filhos, e não quer ser consolada porque não existem mais” (Profeta Jeremias 31,15).

Dado que a Primavera chegou, quando eu flor e tu flores, todos florescerão e a Justiça virá para dar frutos de Amor e Paz que se eternizam na árvore da vida. Plantados na terra, vamos tirar das tempestades ensinamentos para a eternidade, as referências espirituais auxiliam a termos discernimento na hora de agir, o respeito ao outro é a melhor forma de mantermos essa humanidade habitando a mãe-terra. Daniel Bretas Fernandes, membro da Comissão de Direitos Humanos da 3ª Subsecção da OAB/MT comunicou que o procurador MPF de Cáceres/MT, Júlio César de Almeida declinou da sua competência para atuar no caso a partir de argumentos superficiais no dia 22 de setembro de 2020. Não foi conversar com as famílias enlutadas, nem procurou informar-se mais para saber da gravidade dos problemas na Fronteira a partir de notícia de fato criminal de nº 1.20.001.000234/2020-51, conclusa para a análise do 2º Ofício da Procuradoria da República em Cáceres/MT:

"Com base em levantamentos do núcleo de inteligência do GEFRON, dando conta de que haveria vários indivíduos armados transportando entorpecente na região da BR-070, fora designada uma patrulha policial afim de localizar e prender os possíveis infratores da lei. Durante o patrulhamento, a equipe visualizou vários indivíduos em região de mata portando arma de fogo em punho, diante da qual a equipe se identificou como polícia e deram ordem de parada aos suspeitos, momento em que foram recebidos com disparos de arma de fogo. Diante da referida agressão, a equipe revidou realizando disparos de arma de fogo e após cessar a ação foi realizado uma varredura pelo local, momento em que foram encontrados 04 (quatro) indivíduos ao solo feridos, todos eles armados. Simultaneamente a troca de tiros, a equipe conseguiu visualizar aproximadamente 09 (nove) indivíduos retornando em direção a Bolívia carregando sacos idênticos aos utilizados por ‘mulas’ para transporte de entorpecentes, aparentando ser drogas. De imediato foi prestado socorro médico até o hospital regional de Cáceres aos feridos, no entanto nenhum deles resistiram aos ferimentos e vieram a óbito. Diante dos fatos, foram encaminhadas as armas juntamente com o laudo médico e boletim de ocorrência para delegacia especializada de fronteira (DEFRON) para tomada das providencias que o caso requer.” (Ofício nº 336/GEFRON/2020- PRM-CAC-MT-00004897/2020).

Segundo a Resolução nº 35 do CNDH mencionada acima, “a chacina destes indígenas impôs, além do terror e desestabilização comunitária, a fragilização das famílias, posto que eram arrimo destas, ficando as viúvas, mães e seus filhos desamparados frente à ausência dos assassinados; que urge a efetivação da justiça, tão demandada pelos indígenas de San José de la Fronteira”. Por isso recomenda ao Governo Estadual de Mato Grosso, através da Secretaria de Estado e Segurança Pública, que se empenhe para apurar os fatos; providencie a perícia nos armamentos dos policiais envolvidos; que afaste os mesmos da atuação na região dos fatos; e que forneça ao Conselho as informações sobre as ações impetradas. O CNDH representa ainda à 6ª Câmara de Coordenação e Revisão – CCR do Ministério Público Federal para que acompanhe a investigação em curso na Polícia Civil; realize perícia antropológica para verificar as circunstâncias do assassinato dos quatro indígenas Chiquitanos na fronteira Brasil-Bolívia; e requeira o declínio das investigações para a Polícia Federal/Ministério Público Federal, considerando tratar-se de crime transfronteiriço e disputa de direitos indígenas coletivamente considerados.

A delegada do DEFRON, Cinthia Gomes da Rocha Cupido que conduz as investigações é esposa de um sargento J. Neto do Gefron, no caso é parte interessada no processo, por isso deveria declarar-se impedida de atuar nos inquéritos policiais da Fronteira. Grave é que o Grupo Especial de Fronteira (Gefron) é suspeito de outros crimes envolvendo Chiquitanos e outros na Fronteira: 1 – Morte de 5 pessoas, 4 Chiquitanos no dia 8/08/2020[13]; 2 – Morte não apurada de três na ponte na Comunidade Limões em 20/03/2017, pois não foram ouvidos os familiares dos assassinados pelo Gefron para colher informação acerca dos corpos estarem com indícios de tortura uma vez que nas funerárias que prepararam os referidos corpos foram verificadas as pernas quebradas aparentando que algum veículo passou por cima. As famílias não conseguiram nem o laudo pericial do que aconteceu e nem uma resposta da delegada; 3 – Invasão da Bolívia que levou à execução do cacique Vicente Tapeosi Masai e seu sobrinho, no município de San Ignácio de Velasco em 2/7/2020[14]; 4 – Nesta noite do dia 26 para o dia 27 outras quatro pessoas foram mortas pelo Gefron na margem do rio Jauru, estavam passando como “mulas” na BR 070 para Cáceres, três são da comunidade San José de la Frontera: um brasileiro que vivia na comunidade chamado Tiago Silva (34 anos), Júlio César Tosube Alvarez (27 anos) e Carlos Socoré (17 anos). A comunidade reconhece que “faziam coisas erradas, mas não precisava logo matar, não andam armados!", disseram. A funerária liberou os corpos às 17 horas desse domingo e foram velados durante a noite para serem sepultados no amanhecer dessa segunda-feira, dia 28 de setembro de 2020. Essa licença para matar é inadmissível em qualquer contexto, base da civilidade são os devidos processos legais e os governos deveriam ser os primeiros a não cometer barbárie como nesses casos acima.

Contudo, aqui estamos acompanhando de perto o caso do dia 11/08, pois é muito triste o que vem acontecendo na Fronteira, mas pior ainda é que, além da chacinagem ou massacragem, eles foram manchados na sua moral, foram acusados de traficantes no último momento de suas vidas. Mais chocante parece ser a barbaridade ocorrida contra pessoas inocentes e sem defesa. Como se isso não bastasse, quando aconteceu essa tragédia, os meios de comunicação brasileiros transformaram os Chiquitanos em traficantes, e os policiais em heróis. Assim penso conseguir sensibilizar o mundo com relação a essa barbaridade cometida por quem deveria proporcionar a segurança e a paz para florescer nessa Fronteira.